quinta-feira, 3 de julho de 2014

O Caso dos Nove Chineses


No dia 16 chega ao Brasil o presidente da China, Xi Jinping. Ele governa uma ditadura de vitrine, a segunda economia do mundo, e é o maior parceiro comercial de Pindorama. Semanas depois, chegará às livrarias "O Caso dos Nove Chineses", dos jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Mello, um magnífico trabalho de pesquisa histórica onde está contada a história de um episódio de vergonhosa marquetagem e histeria do amanhecer da ditadura.
Aconteceu o seguinte:
No dia 3 de abril de 1964, logo depois da deposição do presidente João Goulart, a polícia do governador Carlos Lacerda prendeu no Rio de Janeiro nove cidadãos chineses. Perigosos agentes, comandavam uma rede de 191 pessoas, tinham agulhas envenenadas, bombas teleguiadas e uma lista de personalidades que deveriam ser assassinadas durante a revolução comunista.
Tudo mentira. Dois eram jornalistas da agência estatal e estavam no Brasil desde 1961. Quatro haviam chegado em junho de 1963 para tratar de uma exposição comercial, e três vieram em janeiro de 1964, para comprar algodão. Todos tinham vistos oficiais. Começaram a apanhar no momento da prisão, em suas casas, e depois alguns deles foram espancados pela polícia. Tiveram os apartamentos saqueados e as contas confiscadas (R$ 865 mil em dinheiro de hoje.)
No dia 16, quando Xi Jinping descer em Brasília, completam-se 50 anos dos dias em que os nove chineses estavam trancados em quartéis. Só puderam escrever para as famílias dois meses depois. Só receberam a visita das mulheres (vigiadas por 32 agentes) em agosto.
"O Caso dos Nove Chineses" conta uma história de acovardamento da qual emerge, altaneiro, o advogado Sobral Pinto, que aceitou a defesa dos presos. A Sobral juntaram-se intelectuais como Augusto Frederico Schmidt e jornalistas como Antonio Callado e Carlos Heitor Cony. (Seus destemidos artigos da época, publicados no livro "O Ato e o Fato", foram reeditados há pouco.)
Como era tudo mistificação, violência e histeria, em poucos meses o governo ficou com uma batata quente nas mãos. Condenara os chineses a dez anos de prisão, enfrentava uma campanha internacional e não tinha como se explicar. Em fevereiro de 1965 eles foram expulsos e recebidos como heróis em Pequim.
Aí o jogo virou. Desde então, o Império do Meio mostra que tem memória. Não cria caso, mas não esquece. Sempre que surge a ocasião, refere-se ao "contencioso" do episódio. Cinco dos nove estão vivos. Um deles tornou-se diretor da agência de notícias para a qual trabalhava, outro dirigiu a área de América Latina do Ministério das Relações Exteriores e foi embaixador em Moçambique e Angola. Wang Yaoting chegou a presidente do Conselho para a Promoção do Comércio Internacional. Em 1979, quando o general João Figueiredo visitou a China, ele conversou com um brasileiro:
– Morei um ano no Rio.
– Então o senhor deve conhecer bem o Brasil.
– Conheço muito pouco, porque fiquei aquele ano quase todo preso.
Foram-se os militares, vieram Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Os tempos seriam outros. Talvez, mas até hoje o Império do Meio não recebeu satisfação pelo que sucedeu a seus cidadãos, nem o dinheiro de volta. Mais: em 1997 (governo Fernando Henrique) um dos jornalistas tentou vir ao Brasil com a mulher, mas não conseguiu visto. 


Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo.

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