segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Amiga querida

 Numa cena de "Os Cafajestes", o filme de Ruy Guerra que, em 1962, sepultou as chanchadas da Atlântida e implantou o Cinema Novo, Jece Valadão enfiava um baseado no decote de uma atriz. A cena era atrevida para os padrões. E mais ainda porque a atriz era Germana de Lamare. Não porque fosse filha do pediatra Rinaldo de Lamare, autor do livro "A Vida do Bebê", um clássico do gênero, com dezenas de reedições. Mas porque ela era neta de Luiz Severiano Ribeiro Jr., magnata dos cinemas no Brasil e dono da Atlântida, a grande fábrica de chanchadas.

A ponta nos "Cafajestes", rodada meio de farra, foi sua única passagem pelo cinema. Como muitas meninas bem-nascidas da época, Germana fazia algum teatro, da geração de Dina Sfat e Ítala Nandi, mas nunca pensou numa carreira. Sua paixão era o jornalismo, mais exatamente o Correio da Manhã, de que era repórter, das poucas mulheres então no ramo, e de cujo 2º caderno seria editora.

Germana era amiga de José Celso Martinez Corrêa, para quem abriu seu apartamento na Vieira Souto como Q.G.. Em 1968, várias vezes saímos juntos do Correio, onde eu também trabalhava, para assistir aos ensaios de "Roda Viva", que ele iria estrear no Rio. Germana ficou 12 anos no jornal e, quando este fechou, em 1974, viu-se no espaço. Ir para outro nunca, ela dizia —para quem vivera o Correio da Manhã de Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Moniz Vianna e Paulo Francis, nem o New York Times teria graça.

Germana decidiu dar um trambolhão. Aos 37 anos, voltou a estudar. Prestou o vestibular de medicina e passou os oito anos seguintes em salas de aula, hospitais e enfermarias, dos quais saiu como psiquiatra.
A nova vida que ela começaria ali, pessoal e profissional, renderia sozinha outra coluna. E só poderia ser interrompida pela brutalidade da Covid, que a levou em dezembro último, aos 83 anos. Querida Germana.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

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