sexta-feira, 25 de março de 2022

O prazer feminino


Na última quinta-feira, eu estava me arrumando para uma festa quando minha filha chegou com seus enormes olhos cheios d’água e implorou para que eu não saísse. Antes de ela terminar a frase, eu já estava descalçando os sapatos e arrancando a maquiagem com um lencinho umedecido.

A avó veio pelo corredor, vestida com um pijama de flores e trazendo pipoca. Ela abriu um enorme sorriso ao me ver deitada na cama com a criança. Na cabeça dela, assim como na minha e na de tantas e tantas mulheres, o certo é abrir mão de qualquer prazer por um filho.

Apesar do meu recente divórcio, aquela ainda era uma casa "de família", e era como se eu pudesse ver o coração da senhora bater mais aconchegado. Em seus olhos passou toda a cerimônia da minha canonização. Eu estava morta ali, mais uma vez desistindo de uma farra, mas eu era uma santa. Uma mãe de verdade. Minha filha era muito abençoada. E que mulher, lá no fundo, no que nos resta de machismo estrutural e lembranças das aulas de religião, não quer se sentir nessa posição desgraçada?

Enquanto a Peppa Pig fazia alguma malcriação na TV, lembrei que naquela mesma tarde eu estava indo ao supermercado e Rita veio com seus enormes olhos cheios d’água e implorou para que eu não saísse. Ignorei completamente, porque eu precisava comprar comida. Foi fácil deixá-la esperneando na porta do elevador.

No dia anterior, quando tinha que ir a uma reunião de trabalho, lá veio Rita com seus enormes olhos cheios d’água. Mas eu fui, porque é necessário garantir o dinheiro que compra "o leite das crianças" —e também porque amo trabalhar, ser independente, livre, me arrumar, sair, convencer pessoas das minhas ideias, seduzir, ter dinheiro para comprar qualquer futilidade para mim, mas essa parte não entrava na cerimônia de canonização.

Concluí que, se eu tivesse um parente morrendo no hospital, e precisasse passar a noite cuidando dele, eu jamais teria desistido de sair. Se eu fosse médica, ou segurança, ou babá —e aquele fosse meu turno da noite—, eu iria. Se eu estivesse com uma infecção alimentar e o médico me ordenasse ir a um pronto-socorro, eu obedeceria. Se fosse uma missa de sétimo dia, eu já estaria lá. Valia frustrar minha filha em nome de trabalho, tristeza, dor, despedida, finitude, doença e caganeira. Valia a pena aturar aquela carinha na porta, desconsolada, por qualquer motivo "sério".

Mas por causa de uma festa? Por que se divertir, para nós mulheres, sobretudo para as mães, não passa de uma grande besteira, uma leviandade, se para os homens é o que existe de mais importante, necessário, um regulador fundamental da sanidade e um item essencial para manter a qualidade da espécie?

Então, enquanto a Peppa Pig fazia mais uma de suas malcriações, eu dei um pulo da cama. "Eu vou!" Só faltou colocar a mão no peito e fazer meu discurso de frente para uma bandeira com o desenho da minha vagina: a mamãe precisa te ensinar, nesse mundo machista dos infernos, a nunca desistir do seu prazer e da sua felicidade! Não existe nada no mundo mais importante do que você, nada que eu ame mais do que você, contudo ainda sobra tanto afeto e desejo dentro de mim. Ainda preciso de tanta realização, deleite, excitação e amor para fora da maternidade. Talvez eu beije muito hoje. E talvez faça mais coisas bem gostosinhas também.

O que eu disse não foi nada isso, fui breve, didática e poupei a criança de certos detalhes. Rita continuou muito brava, e às duas da manhã eu voltei correndo. Na próxima fico mais.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 24 de março de 2022

O Rio de Janeiro de perto enlouquece, e de longe faz falta


O leitor urbano talvez não terá tido a sorte de ser escolhido como hospedeiro de um micuim. Aconteceu quando eu tinha uns oito anos. Não sei se há um índice métrico pra coceiras. Acredito que o filhote de carrapato-estrela, a despeito do tamanho milimétrico, provoca a maior cafubira que um ser humano pode experimentar.

Nunca vi tanto comichão, por tanto tempo, e nos lugares mais irritantes. O bicho gosta das nossas dobras, debaixo do braço ou da virilha, isso se você der sorte. Meu primo Miguel hospedou por um bom tempo um carrapato-estrela no saco escrotal, e as tias tinham que ajudá-lo a mergulhar as bolas num copo de água gelada com alguma substância anti-inflamatória.

Meu micuim de estimação morou em mim por poucos dias mas pareceram séculos, porque foram poucos os minutos em que ele me deixou pensar em outra coisa. Mas o pior, por incrível que pareça, veio depois que ele foi embora, carregado por uma pinça.

Ao partir, o bicho não deixou dor, nem marcas, mas algo pior que isso: a saudade. Tinha poucos anos de idade mas lembro da estranheza de sentir algo tão complexo quanto o vazio. Percebi que minha vida tinha se organizado ao redor daquele comichão, e tinha ficado órfão sem ele. Olhava pra minha pele e faltava alguma coisa naquele mar de epiderme virgem, sem picada, sem função. Minha virilha tinha se transformado num terreno baldio.

Por que estou falando de carrapato? Fazia tempo que não saía do Rio de Janeiro. E percebi que minha relação com esta cidade parece muito com minha relação com micuim. Passo os dias me irritando com ela, mas quando me afasto fico órfão da coceira.

Essa cidade coça nos lugares mais irritantes —mas detesto quando para de coçar. Assim que saio do Rio, começo a sonhar com ele. Esqueço tudo o que me enlouquece na cidade e me sinto culpado por isso, passo a me odiar por não odiá-la. Mal me afasto do Rio e me torno um bairrista inveterado. Não suporto que alguém fale mal da cidade na minha frente. As feridas cicatrizam e não consigo fugir do saudosismo.

É um paradoxo: não entendo por que amo essa cidade, mas entendo menos ainda como é que alguém consegue não amá-la. "Quando me perguntam ‘por que você mora em Nova York?, não sei responder", diz a Fran Lebowitz, "só sei que tenho profundo desprezo por quem não tem coragem de morar aqui."

Ouvi uma vez de uma esposa, preocupada com a demora do consorte: "marido quando atrasa preocupa, quando chega incomoda". Me senti contemplado. O Rio de Janeiro, de perto, enlouquece. De longe? Faz falta.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Covid-19 nos deixou mais bêbados, com ansiedade e parecidos com ogros


Lembro bem: no começo da pandemia, houve gente que resolveu aproveitar o tempo dentro de casa. Muita coisa parecia possível: entrar num programa sério de fitness, aprender italiano, voltar a tocar um instrumento. Artesanato, quem sabe? Daria até para ganhar algum dinheiro.

Ocorreram casos de sucesso. O mais comum, entretanto, foi a vitória da entropia, da rotina, da falta de imaginação e de vontade.

O fenômeno ganhou um nome em inglês: as pessoas entraram em "goblin mode". Modo gnomo, ou, talvez mais propriamente, modo ogro.

Nem falo do consumo exagerado de bebidas alcoólicas. As pesquisas variam, e às vezes aumentam a confusão: li, por exemplo, que as vendas online de bebidas cresceram de modo alarmante durante o confinamento. Mas isso é óbvio —toda venda online cresceu na pandemia.

Outra notícia dizia que "as mortes por intoxicação alcoólica cresceram enormemente" —mas foi dado menor destaque ao fato de que mortes por embriaguez no trânsito caíram fortemente.

Não importa: se os bons amigos Hilton e Jaiminho deixaram de se ver toda sexta-feira no bar, é provável que tenham matado a saudade um do outro dentro de casa mesmo, confiando na companhia de outra boa amiga, a garrafa.

O efeito "ogro", em todo caso, é mais amplo. Hilton e Jaiminho não tiveram garçom e ajudante para deixar as garrafas vazias no lixo. O homem ou a mulher que ficam sozinhos dentro de casa vão naturalmente relaxar na limpeza.

Tive comportamentos contraditórios. Comecei a reparar em sujeirinhas e gastei dinheiro com produtos milagrosos. Ao mesmo tempo, tive um comportamento pouco admirável.

Depois de uns meses, acabei cedendo e resolvi chamar de volta a faxineira, para visitas semanais. Mas tive vergonha do que ela poderia encontrar de nojento, de escandaloso, de depressivo no ambiente aos seus cuidados.

Comecei a deixar minha casa "preparada" para quando ela viesse. Assim como na frase "para inglês ver", dediquei um pouco de tempo no esforço de deixar as coisas "para a faxineira ver".

E nisso talvez esteja a chave do "comportamento ogro". O olhar dos outros civiliza. O olhar do estrangeiro, mais ainda. Não se trata só do descalabro de quem vive sozinho —e começa a achar que banho e barba todos os dias não passam de uma convenção, de um artificialismo social.

Há anos, fiz um curso intensivo de inglês numa escola bem pequena, que era dirigida quase como uma empresa familiar. As aulas eram diárias, e, quando chegava sexta-feira, a dona organizava uma espécie de "brunch" coletivo. Cada pessoa trazia um prato, e se comemorava o fim de semana com uma comilança.

Para deixar todos à vontade, a dona era a primeira a falar com a boca cheia. "Nhow are nhyou? Nhare nhyou happy wnhith nhyour worgress in Enwlish?"

Tenho certeza de que era de propósito. Ela queria que nos sentíssemos em casa.

Pelo que sei, as maneiras à mesa conheceram deterioração semelhante desde que as famílias se isolaram com a pandemia de Covid.

Fragmentos de alface são extraídos, à vista dos outros, com o dedo indicador. Falas habituais se tornam incompreensíveis pelo excesso de arroz. Narizes, ouvidos e outros orifícios vão sendo explorados com pouca cerimônia. A civilização declina, no espaço circunscrito do clã.

Voltamos, também, à mentalidade dos humanos que se sentiam sob ameaça. Ressurgiram instintos de acumulação. Guardo ainda hoje os desinfetantes e tubinhos de álcool em gel comprados ao primeiro pânico.

Síndrome da fome noturna: não sabia da existência disso até vivenciá-la. A ansiedade surge do excesso de exposição ao computador, que causa insônia, que por sua vez aumenta o tempo que passa depois do jantar, e termina no brutal assalto à geladeira às quatro da manhã.

Adeus, planos de sair da pandemia como o "Davi" de Donatello! Adeus, projetos de sair por aí falando em alemão! Tiro a máscara cirúrgica. A tonalidade esverdeada de Shrek se expõe à luz das ruas. A barriga busca lugar entre a cadeira e a mesa do restaurante. Nem tudo está perdido. As orelhas de Shrek eram minúsculas.

As minhas cresceram um pouco, pela pressão do elástico.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 18 de março de 2022

Filme russo 'Verão' talvez fosse notado em Cannes com guerra na UcrâniaFilme russo 'Verão' talvez fosse notado em Cannes com guerra na Ucrânia


Assisti com atraso a "Verão", filme de 2018 do cineasta russo Kirill Serebrennikov, sobre a insurgência das bandas de rock do início da década de 1980, na União Soviética de Brejnev.

Os protagonistas são personagens reais, Mayk Naumenko, da banda Zoopark, e Viktor Tsoi, do grupo Kino. Mortos no início dos anos 1990, antes de completarem 40 anos, eles partiram sem conhecer a perestroika.

Filmado em preto e branco, "Verão" recria de forma lírica a vida dos jovens roqueiros de São Petersburgo, que contrabandeavam LPs de Lou Reed, de Bowie, de Led Zeppelin e dos Stones, enquanto driblavam a censura. O filme mescla, com graça, o cotidiano da moçada russa underground, com clipes de canções de Iggy Pop e Talking Heads.

Acusado de desviar dinheiro público, Serebrennikov editou o filme na prisão. Selecionado para a competição em Cannes, "Verão" foi ignorado pelo júri. Fosse exibido agora, em meio ao retorno impensável das tensões da Guerra Fria, talvez tivesse merecido maior atenção.

Trata-se de uma obra de juventude, que me despertou uma baita de uma nostalgia. É impossível assistir sem pensar no BRock, até pelo fato de Naumenko lembrar demais o Frejat e Tsoi ter algo de Paulo Miklos.

Minha geração sofreu de complexo de inferioridade, frente à grandeza da MPB. Da tropicália aos Mutantes, tudo de divino e maravilhoso ficara para trás e, aos recém-chegados ao baile, restava apenas ouvir os velhos vinis arranhados dos pais. No estertor da ditadura, vivíamos condenados ao marasmo de um país deprimido, isolado, autoritário e falido.

Cazuza, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Herbert Vianna e outros tantos vieram nos livrar da humilhação. Por fim, possuíamos poetas para chamar de nossos. E o que começou como brincadeira ginasiana terminou como um sólido movimento cultural.

Assim como para os heróis de "Verão", o rock dos anos 1980 deu forma ao niilismo de fim de século, que nos diferenciava das gerações anteriores. Legião, Ultraje, Paralamas e Titãs eram a versão nacional do espírito daquele tempo, dividindo o espaço das rádios com Blondie, Police, The Cure e Prince. O BRock nos proporcionou, pela primeira vez, a sensação de pertencimento.

Hoje, vivo a dúvida de saber se fui eu que envelheci ou se foi a cultura que sucumbiu à pecha de mama-tetas e ao imperativo tecnológico das bolhas de likes. Talvez a branquitude tenha me tornado obsoleta e as grandes revoluções da arte estejam acontecendo longe do meu quintal.

De qualquer forma, a ideia do artista como agente transformador perdeu a antiga potência, e não só no Brasil. Num mundo de convicções inabaláveis, armado pelo moralismo fundamentalista de um lado e pelo cancelamento do outro, sobrou pouco espaço para a subjetividade. Às vezes, chego a crer que a mobilidade de opinião e gosto não é mais possível.

Aos poucos, passei a me contentar em falar com a fatia cada vez mais estreita dos que me cabem. E toda vez que me procuravam para assinar um manifesto, gravar um protesto ou mover uma ação, eu perguntava se algum banco, jurista, médico, cientista ou empresário de peso estaria envolvido na iniciativa, temente de que um movimento movido por artistas comprometesse a causa.

Um mês atrás, Paula Lavigne me chamou para participar do ato contrário à PEC do veneno, que aconteceu em Brasília, no dia 9 de março. Passei um tempo no vai não vai e acabei não indo. Não sou de enfrentamentos e a animosidade de Brasília para com os artistas me causa tanto angústia quanto engulho.

Paula tem temperamento aguerrido e, à frente do 342, entre outras conquistas, ajudou a salvar biomas, apoiou os sem-teto, levantou recursos para os profissionais do setor, antes e durante a pandemia, e se empenhou na defesa do direito autoral, discutindo as leis que regem a internet.

Quando vi Caetano Veloso discursando diante de Arthur Lira, me arrependi de não ter pegado o avião. Caetano me pareceu vivo, hoje, agora, se recusando, como eu fiz, a aceitar a visão que se impôs à arte. À frente daquele palco armado no gramado da praça dos Três Poderes, ele deu o seu não ao garimpo artesanal, aos pesticidas proibidos e ao extrativismo predatório.

Não sei se o Congresso irá ignorar o ato, é provável que sim. No dia seguinte, Lira abriu a discussão sobre a mineração em terras indígenas, obsessão doentia do horror que nos rege.

Na Ucrânia invadida pelo país de "Verão", coube a um ator resistir à ofensiva. Aqui, num Brasil que volta a flertar com o autoritarismo, Caetano, ao lado de Emicida, Seu Jorge, Nando Reis e outras feras, vem reafirmar a força e a empatia de um cantor popular.

Outros ventos começam a soprar.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Guerra na Ucrânia mostra que o boicote pode ir do estrogonofe ao TikTok


Ela estava cansada de ver os noticiários sobre os ataques na Ucrânia impunes e sentiu que precisava fazer algo. Sabia que alguns restaurantes estavam tirando pratos russos do cardápio. Embora fosse apenas uma gota no oceano, uma batata palha no estrogonofe, qualquer boicote poderia ajudar a impedir
os ataques de Vladimir Putin.

Recolheu suas garrafas de vodca e despejou o conteúdo na privada. No escritório, procurou por autores russos. Jogou fora seus Tolstóis e Dostoiévskis. Não precisaria mais terminar o "Guerra e Paz" que começou há 15 anos.

Se estava boicotando um país por violar direitos humanos, deveria contemplar todos. Não podia ser hipócrita. Mesmo porque a palavra "hipócrita" tinha origem na Grécia, que escravizou e dizimou povos.

Pesquisando na internet, viu que os Emirados Árabes Unidos violam os direitos humanos e bombardeiam países vizinhos. Abriu seu álbum de fotos e jogou fora todos os registros de sua lua de mel em Dubai.

Reparou que usava o Google, ferramenta de um país que invadiu Iraque e Afeganistão. Migrou para o TikTok, mas, além das dancinhas que não ajudavam sua pesquisa, era um aplicativo da China, país que invadiu o Tibete e também viola os direitos humanos. Jogou todos eletrônicos chineses no lixo. Ouviu protesto do marido, mas lembrou que o casamento é uma instituição católica, que queimou bruxas e saiu de casa sem se despedir.

Pensou em pegar o carro, porém lembrou que o combustível vinha de regimes que ela precisava boicotar. Saiu de bicicleta, mas logo desistiu porque se tratava de uma invenção alemã, nação com um passado terrível.

Saiu pelas ruas caminhando, descalça, pois descobriu que os calçados tiveram origem no Egito, uma outra ditadura. Sentiu fome, mas não podia comer um hambúrguer imperialista, um misto-quente de franceses colonialistas ou uma esfirra da ditadura síria.

Foi encontrada alguns dias depois, agonizando de sede em protesto contra o saneamento básico, uma invenção dos romanos. Suas últimas palavras foram algo como "dwinir koplovis utironi", um idioma sem nenhuma ligação com ditaduras, que ela mesma criou e, por isso, ninguém conseguiu entender.


Texto de Flávia Boggio, na Folha de São Paulo

A gente é a língua que a gente fala


Às vezes a gente não se dá conta, mas o mal-estar fica ali, triangulando entre cérebro, estômago e boca: quer dizer que falamos errado? O idioma que aprendemos no berço não passa de uma versão bastarda de certa língua para sempre estrangeira?

Me refiro ao estrago que a brigada de guardiães da "norma curta" faz à nossa autoestima cultural e à qualidade do ensino de português em nossas escolas. Sim, esta é uma continuação da coluna anterior, que tratou da ótima "Gramática da Norma de Referência" de Vieira e Faraco.

Para as patrulhas da norma-padrão, armadas de canetas vermelhas, o português brasileiro é um coitado sem modos e cheio de vícios que não consegue largar, por mais cascudos que a gente aplique em sua cabeça dura.

Usar "a gente" no lugar de "nós", como fiz na primeira linha da coluna e voltei a fazer na frase anterior, é um dos sinais da suposta deterioração da língua que esses puristas extemporâneos (século 21, oi!) gostam de apontar.

Na vida real, a gente adora falar "a gente". Sim, a gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer, mas "a gente" é uma coisa que a gente quase sempre quer dizer. Porque a gente não tem cara de babaca —ou tem?

Verdade que, quando está escrevendo, a gente costuma se policiar. Ninguém quer perder ponto na prova, caramba. Às vezes escapa um "a gente" escrito, mas não era pra escapar. A gente sabe que no fundo está errado, que isso de "a gente" é um troço informal, tipo uma gíria, que não cabe na norma culta, certo?

Errado. Ou melhor, a carga de informalidade de "a gente" é obviamente maior que a de "nós". O que não faz sentido é tentar expulsar da norma culta tudo o que é informal, como se só coubesse nela o livresco, o empertigado, o que fica distante da fala e se mete arranhando por ouvidos e almas.

Isso revela imensa ignorância sobre o que é uma língua e em especial sobre o português brasileiro, dono de uma história que merece respeito. Abaixo, uma seleção de usos cultíssimos de "a gente" com o sentido de "nós" colhidos em textos clássicos de nossa literatura (século 19, oi!):

"Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam."

"Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver."

"Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos..."

"A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro."

"A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringrir deslavadamente."

"A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca."

"– O mar está de desafiar a gente – disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim."

A esta altura muita gente terá identificado o autor desses trechos; talvez já o tivesse feito antes mesmo de topar com o bandeiroso Escobar. Trata-se de Machado de Assis.

As três primeiras frases são, respectivamente, dos contos "Uns braços" e "Anedota pecuniária" e do romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas"; as quatro últimas, de "Dom Casmurro".

Acho que, com a ajuda do maior escritor nascido neste paisão falante de português, a gente já pode declarar burra e antipatriótica a perseguição movida pelos patrulheiros contra "a gente".


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Caso Marielle ensina quase tudo



Há quatro anos, uma mulher negra, mãe e bissexual, da favela da Maré, formada em administração pública e sociologia, eleita vereadora, foi assassinada depois de 15 meses de mandato, com 16 projetos de lei apresentados e sete aprovados (sobre combate a assédio sexual, garantia de creche e proteção a mototaxistas, por exemplo).

Antes mesmo de seu corpo ser retirado do carro, com quatro tiros na cabeça, uma campanha massiva de difamação explodia nas redes: mulher de traficante, eleita com dinheiro do tráfico, dizia a mentira. Plataformas digitais não controlaram a ofensiva. Nessa campanha, contribuiu até desembargadora do TJ-RJ, ainda não julgada pelo Conselho Nacional de Justiça.

A ação e sua estratégia de comunicação foram coreografadas pelo MBLO (Movimento Brasil Livre do Outro). Ativo há alguns séculos e alérgico à liberdade na diferença, as grandes derrotas do MBLO foram a abolição da escravatura, a Constituição democrática de 1988 e a inserção do país em tratados internacionais de direitos humanos.

O maior militante do MBLO no século 21, um homem branco, heterossexual por autodeclaração, expulso do exército, com 3 décadas de vida parlamentar sem uma única construção institucional, que conserva na cabeceira um livro de torturador, eleito presidente logo depois, viu no assassinato "apenas mais uma morte no Rio de Janeiro", evitando falar mais pois seria "polêmico demais".

Em quatro anos, o caso criminal avançou pouco. Quem matou, quem mandou matar e por qual motivo são as 3 perguntas que incumbem à polícia e a promotores investigar. Encontraram resposta para a primeira. Dois ex-policiais militares teriam sido executores. Há três anos presos, aguardam julgamento. Falta descobrir os mandantes e suas razões.

Cabem à democracia e aos observadores do sistema de justiça, porém, outras três perguntas: o que impede que se saiba quem e por que mandou matar; como se consegue impedir que se saiba quem e por que mandou matar; e como consertar buracos de uma arquitetura institucional que permite interferência política autointeressada.

O processo já levou quatro anos e tem futuro incerto. Autoridades argumentam, com razão, que o caso é "complexo". Boa parte dessa complexidade, porém, é menos técnico-jurídica do que política. Não explicam a demora e o bate-cabeça. Muito menos justificam.

Até aqui, muita coisa deu errado: falhas grosseiras na coleta de imagens do trajeto do carro feita por câmeras (grosseiras mesmo para o padrão de baixa qualidade investigativa); falta de continuidade de autoridades investigativas (cinco delegados, renúncia de promotoras por alegação de interferência externa, adoção tardia de uma força-tarefa); incapacidade de rastreamento da origem da arma do crime, de uso exclusivo por forças especiais da polícia, e das munições.

Ludmila Ribeiro, pesquisadora da UFMG, entre muitos outros analistas, já criticou a falta de coordenação entre investigadores e de "estabilidade da equipe", que contribuem na eficiência da solução de homicídios, além da falta de prioridade real ao caso. E ressalta que o envolvimento de ex-policiais "torna a corporação vítima dos seus próprios métodos".

"Solucionar" o homicídio de Marielle e Anderson não refundará a democracia brasileira. A esperança triunfalista arrisca perder de vista os desarranjos institucionais que facilitaram o crime e emperram sua apuração. Com ou sem condenação, permanecem as condições para o próximo descalabro.

A solução desse crime, claro, não é menos necessária por isso. Ajudaria, além de fazer justiça, a energizar um projeto democrático e de futuro. Pois o atentado contra a vida de Marielle ensina quase tudo. E a biografia de Marielle inspira muitos caminhos.

Eventual ausência de envolvimento da família Bolsonaro, ou eventual ausência de prova do envolvimento da família nesse nexo de causalidade específico, não cancela o fato de que o propulsor do êxito político de Bolsonaro por 30 anos é o mesmo que matou Marielle. As conexões são documentadas e até fotografadas no churrasco e na pescaria.

Isso, por si só, não basta para condenação penal do indivíduo, mas faz jorrar evidência sobre a topografia de onde esse movimento político germina. Direito penal, prova jurídica e prisão importam muito, mas importam menos. A presunção de inocência não apaga a história.

Esse território conecta Rio das Pedras, Vivendas da Barra, gabinetes da Câmara de Vereadores, da Assembleia Legislativa e quartéis; a contabilidade de franquias de chocolate, barraquinhas de açaí e imóveis comprados com dinheiro vivo; condecorações a milicianos e propostas inusitadas para "legalizar milícias". Para Jair, lembremos, "enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo".


Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo


quarta-feira, 16 de março de 2022

Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um mês, foi no Carnaval que passou


"Foi bom te ver outra vez, tá fazendo dois anos, foi no Carnaval que passou!", cantavam os foliões do Carnaval que não era pra ter acontecido. Ou pelo menos foi o que me contaram. Eu não estava lá. Achei que nem fosse ter Carnaval.

Fui pro meio da serra da Mantiqueira, onde não pegava celular. Sorte a minha. Nem fiquei sabendo do Carnaval que não era pra estar acontecendo. Devia ter suspeitado que ninguém segura um carioca com três doses.

Ou seja: o Carnaval não foi adiado pra abril. Ele foi esticado até abril. O governo fez com o Carnaval o mesmo que Doria fez com a cracolândia: querendo reprimir, espalhou. Agora é tarde demais pra desmarcar o Carnaval de abril. E tudo indica que vai ser muito maior, porque vai ser em abril, quando a temperatura há de ter baixado, e a pandemia, também.

O Carnabril começa com Tiradentes, e o dia 21 de abril cai milagrosamente numa quinta-feira, permitindo ao brasileiro a ironia de enforcar, de novo, o inconfidente (aproveito pra lançar aqui o bloco "Liberta que serás também").

O Carnaval começará com a celebração daquele que morreu por todos nós, não por acaso uma semana depois da ressurreição daquele outro que também morreu por nós, e que também haverá de ser celebrado. Pode escrever que vai ter Carnaval na Sexta-Feira da Paixão (um dia que já tem nome de bloco), no sábado de aleluia ("Amanhã Eu Ressuscito") e no domingo de Páscoa ("vem procurar meus ovos" ou, se o conflito na Ucrânia continuar: "Guerra e Páscoa").

Mas antes disso sugiro que tenha um Carnaval da mentira no primeiro de abril —e será melhor ainda se os músicos marcarem e ninguém aparecer. E seria bonito ver um Carnaval no dia 25 de Março na rua 25 de Março —esse ano cai num sábado, só pode ser um sinal.

Entendo que a ideia de um Carnaval tão longo seja um suplício pra muita gente, mas quem não gosta de aglomeração passou dois anos inteiros sem ouvir um surdo ou uma cuíca. Não custa nada aguentar um mesinho. O folião merece um Carnaval prolongado —e os músicos e ambulantes, mais ainda.

O Carnaval de abril fará até surgir uma rima onde não havia. "Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um ano" —sempre acho que pedia a palavra mês. Poderemos cantar, pela primeira vez, rimando: "Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um mês, foi no Carnaval que passou."

E em maio teremos que fazer o Carnaval dos trabalhadores, e em junho o Carnaval junino, e assim sucessivamente, até o Carnaval da democracia, quando dia vai raiar sem lhe pedir licença, e esse dia há de vir antes do que você pensa.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

'Os Olhos de Tammy Faye', indicado ao Oscar, mostra pastores corruptos


Quando vejo esses pastores na televisão, prometendo curas e arrecadando dinheiro, seguro bem firme o livro que acompanha os passos dos homens de bem. A saber, o Código Penal.

Se não for para jogar na cadeia vários deles, eu me contentaria ao menos com uma lei equivalente à da escola sem partido. Igreja sem partido: por que não? A campanha pelo menos inibiria um pouco a pilantragem desses profetas de cabelo pintado.

Mas minhas opiniões mudaram um pouco depois de assistir a "Os Olhos de Tammy Faye", filme de Michael Showalter com Jessica Chastain no papel de uma pregadora evangélica. Ela está entre as indicadas ao Oscar, e estou esperando que o filme apareça na Netflix para poder revê-lo.

A história é real. Tammy Faye (1942-2007) fez sucesso na TV americana nos anos 1970, junto com seu marido Jim Bakker.

Ele terminou preso, depois de muitos tombos e golpes em investidores. O casal usava o dinheiro de projetos imobiliários e doações para se entregar a uma orgia de gastos pessoais.

Desde criança, Tammy acreditava ter sido chamada por Deus. Joga-se no chão, desmaia, sai "falando em línguas". A família, muito simples e crente, não duvida, e ela muito menos.

Ocorre que, num ambiente que era tradicional a mais não poder, ela não tem nada de reprimida nem de moralista. Adora a vida, adora sexo, considera o dinheiro e a alegria uma prova do amor de Deus.

O senso que ela tem de liberdade é admirável. Paquera abertamente o seu colega no curso de teologia. Inventa um teatrinho de bonecos para crianças evangélicas. Canta muito bem. Larga o curso e se lança no showbusiness.

Mais tarde, seu programa televisivo fará qualquer negócio em nome de Jesus. E, quando digo qualquer negócio, não penso necessariamente em coisa ruim. Em meio a cânticos e versículos, ela faz propaganda de uma bombinha peniana que resolve problemas de ereção.

Afinal, diz ela, o que Deus pode ter contra a ereção? Nos anos 1980, foi mais longe. Abriu os braços da sua igreja a pacientes de Aids —isto, quando a ultradireita evangélica atribuía a doença a castigo divino. Ao mesmo tempo, hesitou em fazer campanha política para Ronald Reagan. A pressão de outras igrejas foi brutal e pegou em cheio o marido de Tammy Faye.

Não era só questão de fé. O casal organizara uma estrutura de comunicações e uma rede de doadores que fazia concorrência a outros pastores. Razões de mercado se provam, ainda uma vez, mais poderosas do que qualquer divergência teológica. A guerra por doações, a quantidade de esquemas fraudulentos e de aventuras empresariais haverá sempre de mobilizar os instintos dessa parcela especial do empresariado comunicativo.

São pilantras? Em boa medida, sim. Arrancam dinheiro de milhares de desgraçados e idiotas, que até se endividam para pagar as mansões, as joias, os casacos de pele de Tammy e sua turma.

O mais interessante, ou pelo menos o filme me fez acreditar nisso, é que eles são ao mesmo tempo inocentes.

São movidos pela crença de que, rezando, tudo dará certo. Se os negócios começam a ir mal, e se investidores começam a analisar as contas e pedir o dinheiro de volta, isso é apenas a travessia do deserto até que todos cheguem à terra prometida.

Não há atitude de Tammy Faye, louvável (caso da Aids) ou desprezível (linha direta para doações ao vivo), que não encontre justificação religiosa, na qual ela parece acreditar sinceramente. Talvez porque muita religião, no fundo, seja apenas uma questão de linguagem. Tudo o que o casal faz, na alegria da fraude e do sucesso, é explicitado com agradecimentos à bondade de Jesus.

Não será um pouco assim com todo mundo? O ateu convicto não deixa de empregar as expressões "se Deus quiser", ou "graças a Deus". Um frequentador moderado de missas sonolentas ouve o padre falar de vida eterna. Acredita literalmente?

Às vezes; raramente; quase nunca. Dificilmente visualiza, imagina concretamente o paraíso. São palavras que lhe fazem algum bem, ou que não fazem ruído para ele.

Há uma doença ou morte na família. É vontade de Deus, vamos rezar, tudo terminará bem. Em pouquíssimas pessoas há fervor; o resto são coisas que se dizem, porque o silêncio é mais difícil de manter.

Preso por fraude, Jim Bakker não perde a confiança em Deus. Não se diz inocente, não sofre por ser culpado. Repete as mesmas frases; não está cego para a nova realidade, mas seu vocabulário não tem recursos novos para descrevê-la.

É um enganador, um mentiroso, um cínico —mas também, quem sabe, um inocente. A linguagem de que dispõe não lhe permite ver o que de fato é.

Em alguns momentos, a máscara cai, o desespero chega. Mas a realidade, como a fé, exigiria que o sujeito se convertesse a ela; a ilusão tem, a seu favor, a força de ser um hábito. O desonesto se esquece do que é; também por isso, tantos corruptos se acham vítima de injustiça.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 10 de março de 2022

Médico cubano, após fim do Mais Médicos, trilhou vida nova no Brasil


Negro alto e forte, José nasceu em Havana 34 anos atrás. Estudou enfermagem em Cuba e fez estágio obrigatório na Missão Milagres, convênio de assistência médica assinado entre Hugo Chávez, então presidente da Venezuela, e o governo cubano.

Quando voltou para casa prestou exame para a faculdade de medicina. Completou seis anos de curso mais três de residência em medicina geral, há cinco anos. Em retribuição ao investimento do Estado em sua formação precisou fazer novo estágio. Escolheu o programa Mais Médicos, no Brasil. Foi alocado para o município de Prainha, às margens do rio Amazonas, a 555 quilômetros de Belém.

Quando se apresentou na prefeitura soube que havia sido designado para a comunidade Pacoval, a oito horas de barco.

Em Pacoval recebeu uma casa despojada: quarto, sala, cozinha e banheiro; tudo pequeno, nenhum móvel. Com o salário de R$ 3.800, comprou fogão, geladeira, cama, colchão, mesa e duas cadeiras de plástico para sentar e pendurar as roupas.

A comunidade dependia dele e de uma enfermeira para todos os problemas de saúde: gravidez, partos, pediatria, hipertensão arterial, diabetes, doenças cardiovasculares, picadas de cobra, escorpião e arraia, peixe traiçoeiro que lacera o pé dos incautos nas praias de rio.

Estava à disposição as 24 horas do dia. As chamadas eram tão frequentes que ao ir para a cama perguntava a si mesmo: "Quantas horas me deixarão dormir esta noite". Até cirurgias foi obrigado a realizar, embora os médicos do programa não fossem autorizados: "Fazer o quê, deixar a pessoa morrer num parto ou de apendicite à espera de uma ambulância que podia não chegar?".

Era venerado pelos habitantes de Pacoval, comunidade que nunca tivera médico. Um dia fez o parto de uma de uma paciente que morava em outra cidade. A acompanhante era uma sobrinha que vivia com ela e o marido, ambos pastores evangélicos. José notou o interesse da moça, mas não se aproximou porque ela parecia menor de idade. Só quando soube que já completara 21 anos, tomou coragem.

Encontravam-se todos os fins de semana, embora vivessem em cidades diferentes. Uma noite ela telefonou: estava grávida. Ele respondeu: "Avisa seus tios que no fim de semana vou conversar com eles. Não sou homem de fugir das responsabilidades".

A reação do casal de pastores não foi amigável: "Disseram que todos os cubanos eram bruxos e macumbeiros. Não me ofereceram um copo d’água". Viam-se às escondidas. Ele estava apaixonado: "Pensava nela e na criança o tempo todo."

Quando a namorada avisou que entrara em trabalho de parto, ele solicitou uma semana de licença-paternidade e viajou no mesmo dia. Procurou a maternidade da cidade, mas os pastores tinham deixado uma atendente na recepção encarregada de dizer que a sobrinha não estava internada, caso ele aparecesse. José andou a cidade inteira à procura em todas as unidades de saúde.

Quatro meses depois, ela fugiu da casa dos tios com a criança. A vida mudou: "Aluguei uma casa maior, comprei móveis, eletrodomésticos, louça e tudo o que uma mulher e um bebê precisam para viver bem".

Em novembro de 2019 o governo de Cuba enviou uma mensagem avisando que o Mais Médicos tinha sido encerrado, por divergências com o governo brasileiro. Quem não retornasse seria considerado desertor.

Ele decidiu ficar, como abandonaria mulher e filha sem saber se voltaria a vê-las?

Mudaram para Santarém, às margens do Tapajós. Sem autorização para exercer medicina, trabalhou como caixa de uma discoteca que fechou depois de três meses. Foi estivador no porto da cidade, vigia de uma serraria e carregador numa loja de material de construção para ganhar R$ 40 por dia. Trabalho bruto que o obrigava a sair de casa às cinco da manhã, para voltar às dez da noite, de segunda a sábado. Via a filha apenas aos domingos.

Em agosto de 2020, foi salvo pela pandemia que obrigou o governo do Pará a contratar os cubanos que permaneceram no país. Atendia de 80 a cem pacientes todos os dias, mas recebia um salário decente, pela primeira vez.

Acompanhei José nas visitas médicas que realiza no barco Abaré que leva atendimento médico às populações ribeirinhas do Tapajós. Quando chega nas comunidades todos o tratam com o respeito e a admiração que ele merece.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

A Constituição que polícia aplica e juiz confirma

 

Existe uma Constituição não escrita da brutalidade brasileira. A compilação de praxes sociais e institucionais está traçada em livros de sociologia, história e literatura, mas não ecoa nos códigos jurídicos.

Não está traduzida na linguagem das leis, linguagem mais livre para fugir da vida real e emitir comandos. Mas permanece em vigência disfarçada e normalizada nesse lusco-fusco da cordialidade brasileira.

Qualquer programa para desenvolvimento humano do país precisa sacar essas normas das entrelinhas, psicografá-las e ter estratégia para revogá-las.

Bolsonaro contribuiu à consciência da incivilização brasileira ao dar corpo, voz e legitimidade eleitoral a essa Constituição das ruas e morros, florestas e garimpos. Nunca houve melhor encarnação do "Brasil feião, sem maquiagem" (Mano Brown).

Esse esforço de síntese sociológica no dialeto normativo tem algum valor didático. O capítulo constitucional não escrito da polícia, pouco reconhecido e mais sentido na pele de alguns que de outros, poderia se ler assim:

Artigo 1º Todos são iguais perante a lei, exceto pretos etc.

Artigo 2º A violência preventiva é imperativo de segurança pública e privada.

Artigo 3º Preto se presume suspeito até prova robusta em contrário.

Artigo 4º Preto deve ser abordado com força e contundência. Polícia deve cobrar nota fiscal do tênis, do relógio, do celular e da bicicleta. Se estiver de carro novo, pode prender para averiguação. Policial não precisa justificar nem formalizar seus atos.

Artigo 5º Em operações policiais, quem leva tiro se presume bandido. Parágrafo único. Se policial ou cidadão branco de bem ficar incomodado diante de corpo preto e matar sob leve emoção, homicídio será culposo. Se matar sob violenta emoção, legítima defesa.

Artigo 6º Palavra de preto e marcas de tortura em corpo de preto não têm valor em inquérito ou decisão judicial. Palavra de policial se presume verdadeira e tem fé pública.

Artigo 7º Ignoram-se disposições da Constituição de 1988 em contrário.

Essa é a Constituição que polícia aplica, promotor defende e juiz confirma. A violência é policial. A cumplicidade é judicial e ministerial. A indiferença é social. Os dividendos se distribuem entre políticos do pânico e circo.

Levantamentos já quantificaram os delitos dessa instituição de uso da força que navega à margem do estado de direito. O dispositivo de irresponsabilização da polícia que mais mata e mais morre no mundo, e o apagamento da cadeia de comando que faz o policial lá embaixo matar, é obra magistocrática. Procure saber como o TJSP, palácio da magistocracia bandeirante, lidou com o massacre do Carandiru nesses últimos 30 anos.

Pelo menos quatro temas merecem a maior urgência. Primeiro, a abordagem policial de cidadãos. Relatório "Elemento Suspeito" (Cesec) constatou que pessoas negras correspondem a 63% das abordadas, e que 20% passaram por isso mais de dez vezes (os "superabordados" ou "freios de camburão").

Pesquisa da FGV e Cebrap revela tendência judicial de chancelar abordagens ilegais e de invasões domiciliares sem mandado. Alegações de "legítima defesa", "fundada suspeita" e "estrito cumprimento do dever legal" são senhas aceitas por seu valor de face.

Segundo, a condução judicial das audiências de custódia, que buscam neutralizar prisões ilegais, controlar tortura e garantir ampla defesa, desidratam seu potencial de desencarceramento.

Na melhor das hipóteses, a liberdade provisória concedida vem acompanhada de condicionamentos que restringem a liberdade sem razão jurídica específica ("medidas cautelares" como o recolhimento noturno ou a proibição de circular numa área).

Relatório "O Fim da Liberdade" (IDDD, 2019), percebeu que menos de 1% das concessões de liberdade provisória não trazem uma medida restritiva a reboque.

Terceiro, o reconhecimento fotográfico pela vítima e a palavra policial como única prova que embasa acusação (a partir da presunção ilegal da veracidade da palavra policial) também agravam a injustiça e o viés discriminatório do sistema de justiça. Relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que analisa prisões ilegais de 2012 a 2020, indica que 81% foram de pessoas negras.

Quarto, operações policiais em favelas precisaram do STF, semanas atrás, para reafirmar a necessidade de protocolos e algum meio de controle e accountability. Ninguém sabe se a autoridade do STF vencerá o policial que delínque. Em operação no Jacarezinho, polícia matou 28, muitos baleados pelas costas, a curta distância e com excesso de tiros. Maioria negros.

Não chame de "lei e ordem" uma política que viola a lei e multiplica a desordem. Libera arbitrariedade sem prestação de contas. Entrega medo e morte, populismo e liberticídio. Só não entrega segurança.


Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo