quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Elogio kantiano ao STF


O STF vem ajudando a melhorar o Brasil.
Impôs a fidelidade partidária.
Declarou constitucionais, interpretando generosamente a “letra fria” da Carta Magna, as cotas sociais e raciais.
Validou a lei do piso nacional nacional do magistério contrariando a ideia de que isso fere a autonomia federativa.
Confirmou a lei da “ficha limpa” que, levada ao extremo, anula a presunção de inocência, esse instrumento pelo qual ninugém é culpado antes de uma condenação definitiva, transitada em julgado, contra a qual não caiba mais recurso.
O STF vem quebrando formalismos, invalidando leituras rígidas que impediam certas condenações.
De certo modo, o STF vem derrubando estratégias jurídicas construídas pelos poderosos, ao longo do tempo, em benefício próprio. Quem faz a lei, faz a brecha na lei e convenciona o que deve ou não ser imperativamente condenável.
No julgamento do mensalão, o STF vendo dando mais um passo à frente: a condenação por evidências lógicas robustas.
Sem a necessidade, em certos casos, da prova material para definir, por exemplo, atos de comando e responsabilidade.
É uma maneira de pegar os chefões que não deixam rastros.
Vale lembrar que o Procurador-Geral da Repúblicva, Roberto Gurgel, no seu papel de acusador, e o relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, admitem que, em alguns casos, não existe a chamada prova material.
Intelectuais ligados ao PT lançaram ontem manifesto contra a espetacularização desse julgamento pelo STF, contra um descaso em relação à presunção de inocência e contra a dispensa de provas materiais substantivas.
Denunciam um julgamento ideológico.
Esses mesmos intelectuais não lançariam manifesto nos mesmos termos se os julgados fossem os seus adversários.
Apoiariam o STF e aplaudiriam os seus avanços.
Em contrapartida, a mídia que está aplaudindo o STF agora e os intelectuais que repudiam o atual manifesto certamente assinariam outro nos mesmos termos se os julgados pelos atuais critérios e procedimentos fossem os seus aliados.
Em bom português, os aplausos e as críticas parecem de conveniência.
As posturas, em todos os casos, parecem escandalosamente ideológicas.
Coisa de torcida organizada, de luta política, de ódios que não podem ser calados.
A corrupção, que deve ser combatida implacavelmente, torna-se, para esquerda e direita, um pretexto para combater o inimigo pelos seus erros, pelos seus acertos, por estar no poder, por querer se perpetuar no poder, por suas contradições e artimanhas.
Mas e o STF?
Está errado?
Não.
Em princípio, está certo.
Certíssimo.
Mas precisará confirmar isso mais tarde.
Kant, o grande filósofo moderno da universalização das normas, entendia que só é defensável moralmente aquilo que alguém, propondo seja aplicável a outros, aceitaria e pediria que fosse aplicado rigorosamente a si.
Só faça aos outros aquilo que aceitaria que fizessem com você.
Os que assinam hoje manifesto contra o STF, em defesa do PT, teriam de assinar, nas mesmas condições, manifesto em defesa do PSDB. Tucanos, que vibram com a postura atual do STF, terão de fazer o mesmo no julgamento do mensalão mineiro.
O STF se consagrará se aplicar em todos os casos os mesmos critérios.
Será a confirmação de uma nova jurisprudência, de um novo olhar, de um novo método.
O Brasil precisa de regras claras, aplicáveis a todos, sem casuísmos.
A política não é assim? É campo de luta, de exploração dos erros dos adversários e de encobrimento dos próprios erros?
Pode ser. A justiça, com certeza, é o espaço de superação dessas incongruências.
As suspeitas que recaem agora sobre o STF se dissiparão se a corte se mantiver coerente.
Os comentaristas de hoje, se disserem amanhã o que falam agora, também se consagrarão.
Os próximos capítulos poderão ser emocionantes.
Só resta saber quando a novela irá ao ar.
Joaquim Barbosa, se mantiver a postura de agora, poderá tornar-se o grande herói nacional.
A hipocrisia será desmascarada?
Tudo está na mão do Supremo.
Bastará ser kantiano e o Brasil ficará bem melhor.
Melhor ainda ficará quando os inquéritos evoluírem e for possível condenar, em todos os casos, com prova material.
Mas aí já é utopia.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Até quando vamos endeusar a revolução farroupilha


Até quando?
Todo os anos eu me pergunto: até quando?
Sim, até quando teremos de mentir ou omitir para não incomodar os poderosos individuais ou coletivos?
Até quando teremos que tapar o sol com a peneira para não ferir as suscetibilidades dos que homenageiam anualmente uma “revolução” que desconhecem? Até quando teremos de aliviar as críticas para não ofender os que, por não terem estudado História, acreditam que os farroupilhas foram idealistas, abolicionistas e republicanos desde sempre? Até quando teremos de fazer de conta que há dúvidas consistentes sobre a terrível traição aos negros em Porongos? Até quando teremos de justificar o horror com o argumento simplório de que eram os valores da época? Valores da traição, do escravismo, da infâmia?
Até quando fingiremos não saber que outros líderes – La Fayette, Bolívar, Rivera – outros países – Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia – e outras rebeliões brasileiras – A Balaiada, no Maranhão, por exemplo – foram mais progressistas e, contrariando “valores” da época, ousaram ir aonde os farroupilhas não foram por impossibilidade ideológica? Até quando a mídia terá de adular o conservadorismo e a ignorância para fidelizar sua “audiência”?
Até quando deixaremos de falar que milhões de homens sempre souberam da infâmia da escravidão? Os escravos. Até quando minimizaremos o fato de que a Farroupilha, com seu lema de “liberdade, igualdade e humanidade”, vendeu negros para se financiar? Até quando deixaremos de enfatizar que os farrapos prometiam liberdade aos negros dos adversários, mas não libertaram os seus? Até quando daremos pouca importância ao fato de que a Constituição farroupilha não previa a libertação dos escravos? Até quando deixaremos de contar em todas as escolas que Bento Gonçalves ao morrer, apenas dois anos depois do fim da guerra civil, deixou mais de 50 escravos aos seus herdeiros? Até quando?
Até quando?
Até quando adularemos os admiradores de um passado que não existiu somente porque as pessoas precisam de mitos e de razões para passar o tempo, reunir-se e vibrar em comum? Até quando os folcloristas sufocarão os historiadores? Até quando o mito falará mais alto do que a História? Até quando não se dirá nos jornais que os farroupilhas foram indenizados pelo Império com verbas secretas? Que brigaram pelo dinheiro? Que houve muita corrupção? Que Bento Gonçalves e Neto não eram republicanos quando começaram a rebelião? Que houve degola, sequestros, apropriação de bens alheios, execuções sumárias, saques, desvio de dinheiro, estupros, divisões internas por causa de tudo isso e processos judiciais?
Até quando, em nome de uma mitologia da identidade, teremos medo de desafiar os cultivadores da ilusão? Até quando historiadores como Décio Freitas, Mário Maestri, Sandra Pesavento, Tau Golin, Jorge Eusébio Assumpção, Spencer Leitman e tantos outros serão marginalizados? Até quando nossas crianças serão doutrinadas com cartilhas contando só meias verdades?
Até quando a rebelião dos proprietários será apresentada como uma revolução de todos? Até quando mentiremos para nós mesmos? Até quando precisaremos nos alimentar dessa ilusão?
Até quando viveremos assim?

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

"Se sentindo melhor"...




Visto na Folha.com , em 17/09/2012.

'Capo di tutti i capi'


'Capo di tutti i capi'

RIO DE JANEIRO - Não entendi. Marcos Valério, principal personagem envolvido no mensalão, segundo uma revista lançada na última semana, atribui a Lula toda a responsabilidade moral e operacional do escândalo, que é realmente um dos maiores de nossa história.
Acontece que ele teve milhões de oportunidades, formais e informais, para revelar tudo o que sabe ou ficou sabendo durante o processo. Inclusive foi ouvido, sob juramento, a pedido do Supremo Tribunal Federal, único lugar onde legalmente devia depor -se houvesse, da parte dele, a intenção de revelar o que sabia, para o bem da Justiça e dele próprio.
A acusação frontal da participação do ex-presidente no escândalo teria como consequência sua inclusão entre os réus do mensalão, que analisaria à luz do direito (e da Constituição) a culpa principal ou secundária de Lula, ou a sua total inocência no tenebroso episódio.
Afinal, o foro legítimo e natural para a acusação de Valério não seria a mídia, mas o tribunal. E, se as coisas se passaram como ele diz, fatalmente haveria testemunhas, provas ou indícios da atuação do ex-presidente nas complicadas operações políticas e financeiras do mensalão.
Revelando ao tribunal os sombrios porões do escândalo, Valério não estaria praticando chantagem. Pelo contrário, estaria colaborando com a Justiça. O recurso que usou -uma entrevista que pode ser contestada, falseada ou acusada de coisa pior- demonstra a fragilidade e a leviandade com que se submeteu ao apelo da mídia.
As declarações de agora em nada servirão para anular ou diminuir as penas que lhe foram aplicadas. A tática de "afundar atirando" não mudará sua situação nem atenuará a sua culpa. Pessoalmente, acredito que Lula tenha tido algum conhecimento da tramoia, mas não que tenha sido o "capo di tutti i capi".


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Atenção à classe média faz referência aos pobres desaparecer da campanha presidencial americana



Em sua apresentação do dia 7 de setembro em um simpósio sobre desigualdade em Yale, Alice Goffman, professora assistente de sociologia na Universidade de Wisconsin, falou sobre o inverno de 2011-2012, que ela passou morando em Detroit entre os muitos pobres. Goffman descreveu parte dos efeitos da pobreza extrema citando as palavras de uma moradora de Detroit, que ela batizou de “Marqueta”.
Seus dedos ficam lentos, sabe, o corpo todo fica mais lento. Você não consegue fazer muito, você tenta ficar com uma cara boa para as crianças, mas quando elas saem, você fica bem parada, coberta. É como se você se dobrasse no chão. Como se estivesse apenas esperando. Você não pensa muito… em novembro, seu estômago está gritando, mas em dezembro, você começa simplesmente a se desligar… Perto das três horas da tarde você se levanta para pegar as crianças. Liga os aquecedores para que a casa esteja quente quando chegarem.
Por trás das estatísticas, por trás da desolação na mais pobre cidade grande dos EUA, está um dos dilemas políticos mais intratáveis da nossa era: será que o Partido Democrata, o partido da esquerda, pode tratar da questão da pobreza no atual ambiente político? Ele pode falar de fome?
A fome cresceu fortemente desde o colapso financeiro de 2008, apesar de ter sido sentida fortemente por uma percentagem relativamente pequena da população. Em 2007, 12,2% dos americanos passaram pelo que o USDA (Departamento de Agricultura americano) chama de “segurança alimentar baixa”, e 4% caíram na categoria de segurança alimentar muito baixa. Em 2011, a percentagem dos que viviam com baixa segurança alimentar subiu para 16,4% e o número dos que viviam com segurança alimentar muito baixa subiu para 5,5%.
O USDA define “baixa segurança alimentar” como a falta de acesso “a toda hora a alimentos nutritivos suficientes para uma vida saudável e ativa”. Indivíduos com “segurança alimentar muito baixa” são definidos como aqueles que sobrevivem com muito pouca ou nenhuma comida “em certas partes do ano, porque a família não tem dinheiro e outros recursos para obter alimentos”.
Contudo, nos cálculos da política partidária contemporânea, os dados do USDA demonstram que a baixa segurança alimentar em 2011 foi um problema para menos de um em cada oito brancos –uma questão preocupante, mas, para muitos eleitores brancos, virtualmente invisível. A segurança alimentar muito baixa afeta as vidas de apenas um em cada 24 brancos. Já no caso dos afro-americanos, a baixa segurança alimentar é um problema que afeta um em cada quatro, e a segurança alimentar muito baixa, um em cada 10.
A questão da fome lança luz sobre a política mais ampla da pobreza. Os democratas concluíram que, para obterem votos suficientes no dia das eleições, não podem adotar posições de política que alienam os brancos da classe média. Na prática, isso significa que, durante a campanha, há uma ausência de referências explícitas aos pobres.
Os republicanos, por sua vez, acham que sua melhor chance de chegar à presidência envolve conquistar uma maioria decisiva dos votos brancos. O eleitorado de 2012 será provavelmente 72% branco, de acordo com uma análise dos números. Neste cenário, os republicanos precisam de ao menos 62% dos votos brancos para vencerem, e os democratas precisam de 38% ou mais dos votos dos brancos.
O papel que a raça passou a ter nas campanhas presidenciais ajuda a explicar um fenômeno recente na academia e no debate público: o quase abandono da tradição de expor a exploração dos pobres.
Matthew Desmond, professor assistente de sociologia em Harvard e outro palestrante no simpósio de desigualdade em Yale descreveram a longa história dos senhores de terra, dos financiadores e empregadores que se aproveitam do aluguel e do trabalho dos moradores de favelas. Desmond, então, questionou:
Se a exploração ajudou a criar a favela e seus habitantes, se há muito é uma causa clara, direta e sistemática da pobreza e do sofrimento social, por que então essa “palavra feia” – exploração - foi apagada das atuais teorias da pobreza urbana?
A pesquisa da pobreza urbana contemporânea, em vez disso, gira em torno do conceito da falta, argumentou Desmond. As teorias culturais enfatizam a falta de exemplos, de pais e de valores de classe média. Apesar de, em geral, se combaterem, as abordagens estrutural e cultural compartilham um cenário comum: que os bairros pobres são uma coisa vazia, necessitada e que, como suprimentos levados para uma colônia de leprosos, seus problemas podem ser resolvidos enchendo o vazio com mais coisas: por exemplo, mais empregos, mais educação e mais serviços sociais.
Essa abordagem resulta no seguinte engano: que aumentar o salário mínimo ou melhorar os benefícios sociais seria suficiente. Não é assim, diz Desmond, que passou meses estudando despejos dos pobres – negros e brancos - em Milwaukee: “Em um mundo de exploração, tal premissa está longe de evidente”.
Desmond defende a elevação do conceito de exploração para uma posição mais central dentro da sociologia da desigualdade. Para os que argumentaram que os pobres urbanos de hoje não são tão explorados como foram em gerações anteriores, foi preciso lembrar a aceleração dos alugueis durante a crise de habitação; a proliferação de lojas de penhores, cujo número dobrou nos anos 90; emergência das redes de financeiras, anunciando mais lojas nos EUA do que filiais do McDonald’s e que lucraram mais de US$ 7 bilhões por ano em tarifas; e a expansão colossal da indústria de empréstimos podres, que gerava mais de US$ 100 bilhões por ano em seu pico da bolha imobiliária. E ainda assim, tanto a abordagem estrutural quanto a cultural, abordagens convencionais da desigualdade, continuam a ver a pobreza urbana estritamente como resultado de certa futilidade. Como seriam diferentes nossas teorias – e nossas soluções políticas - se começássemos a ver a pobreza como resultado de uma espécie de roubo.
A apresentação de Desmond levanta outra questão: como seria diferente a política da nação se cada partido acrescentasse o conceito de exploração econômica ao seu repertório.
Não apenas arriscaria inflamar a questão da raça, mas colocaria em risco as fontes de financiamento de campanha das quais os dois partidos são dependentes. O setor de financiamento e seguro imobiliário é a maior fonte de dinheiro do Partido Democrata, com US$ 46,3 milhões nas atuais eleições, e para o Partido Republicano também, com US$ 67,7 milhões.
Essa dependência efetivamente exclui a exploração como tema para qualquer dos partidos desenvolver.
Mesmo que a polarização ofereça escolhas mais claras ao eleitor, questões urgentes continuam vetadas. Pobreza e fome foram tiradas da agenda.
A libertação de contribuição por parte dos interesses privados – em nome dos direitos da Primeira Emenda - de fato restringiu a liberdade de expressão de questões relativas àqueles que estão em desvantagem. Ela dá poder àqueles cujo objetivo é coibir a legislação de proteção ao consumidor, deter impostos mais progressivos e combater insurgências populistas.
Essa deturpação das chances em favor dos ricos acontece em uma época em que o Partido Democrata já está inibido por ser acusado de fomentar uma “guerra de classes” e de usar “a questão da raça”. O resultado tem sido uma transferência incansável do centro político da esquerda para a direita. Os dois mais recentes presidentes democratas, Bill Clinton e Barack Obama, perseguiram plataformas bem dentro desse terreno limitado. Há pouca razão para crer que Obama, se vencer em novembro, terá força para avançar muito mais em um território que os democratas praticamente abandonaram.
(Thomas B. Edsall, professor de jornalismo da Universidade Columbia, é autor do livro “The Age of Austerity: How Scarcity Will Remake American Politics”, ou “A era da austeridade: como a escassez vai reformar a política americana”, publicado no início do ano)
Texto de Thomas B. Edsall, para o The New York Times. Tradutor: Deborah Weinberg

Reproduzido no UOL

Perguntas e mais perguntas sobre mensalão


É incrível como surgem novas perguntas quando se trata de mensalão.
Cinco perguntas com sabor petista:
1) Por que o julgamento do mensalão do PT aconteceu antes do julgamento do mensalão mineiro, do PSDB, que o precedeu em sete anos, abrindo o caminho para a expansão dessa tecnologia genuinamente brasileira?
2) Joaquim Barbosa garantiu que o PT comprou votos do PP. Por que o mensalão não é do PT e do PP?
3) Quem compra é pior do que quem se vende?
4) Sobra algum partido que não tenha comprado ou se vendido?
5) O verossímil é sempre verdadeiro?
Cinco perguntas com sabor universal:
1)  Se a Veja tem a fita da entrevista com Marcos Valério, que enterra Lulla, por que não a divulga?
2) Se Marcos Valério firmou um acordo com a Veja e não o cumpriu, por que a Veja se sente comprometida com ele?
3) Por que Veja não rende ao Brasil o seu maior serviço provando o que todo mundo intui?
4) O mensalão foi só para comprar votos e pagar dívidas de campanha ou, como parece, serviu também para distribuir algum recursos a quem tinha dívidas sem campanha ou era devoto do partido no poder?
5) Irá mesmo algum cacique para a cadeia e o mesmo se aplicará aos demais mensalões?

Diário de Gaza: Em enclave miserável, o futuro insuportável já chegou



Diário de Gaza

Em enclave miserável, o futuro insuportável já chegou


Por JODI RUDOREN

CIDADE DE GAZA - As casas do Bairro Esquecido têm paredes, mas não têm piso no chão. As pessoas sentam, comem e dormem na areia.
Durante o Ramadã, em agosto, algumas famílias do lugar abateram um cavalo manco e consumiram sua carne em espetos, porque não tinham dinheiro para comprar carne de boi ou carneiro. Reem al Ghora não acordou suas filhas em alguns dias para a refeição permitida antes do amanhecer, "porque não havia o que comer".
Um relatório divulgado em 27 de agosto pela ONU questionou se a área de 360 km2 será "um lugar habitável" em 2012, citando a falta de alimentos, água, eletricidade, empregos, leitos hospitalares e salas de aula, em meio a uma explosão demográfica no enclave que já é um dos lugares mais densamente povoados do planeta. Mas, para milhares dos moradores mais pobres de Gaza, como os que vivem nos barracos erguidos em terrenos públicos, no chamado Bairro Esquecido, o lugar "será inabitável antes disso -já é inabitável hoje", nas palavras de uma moradora, Maliha Hijila.
Nos últimos quatro anos, 40 famílias foram viver no Bairro Esquecido. O governo do Hamas ordenou a demolição de seus barracos pouco depois de as famílias se assentarem no local, reiterando as ordens cinco meses atrás, mas as máquinas de demolição ainda não chegaram.
Um boom de construção está em curso em boa parte da faixa de Gaza desde que Israel reduziu o bloqueio do território, dois anos atrás, e os túneis pelos quais chega contrabando do Egito estão em plena atividade outra vez, depois de serem fechados brevemente em agosto em função de um ataque terrorista na fronteira.
Mas, a despeito dessas oportunidades econômicas maiores, o relatório das Nações Unidas diz que a situação está pior hoje que nos anos 1990 e que deve se agravar ainda mais à medida que a população do território se aproximar de 2,1 milhões de pessoas, nos próximos oito anos.
Sejam quais forem as razões dos problemas econômicos da faixa de Gaza, não há dúvida quanto ao sofrimento de alguns habitantes da região.
O relatório constatou que o PIB per capita caiu de US$ 1.327 em 1994 para US$ 1.165 em 2011, já contabilizada a inflação, enquanto o desemprego subiu, estando hoje em quase 30%, porcentagem que é muito mais alta entre as mulheres e os jovens.
No início de setembro, um jovem desesperado de 18 anos que não conseguia achar nenhum trabalho exceto vender saquinhos de batatas fritas ateou fogo ao próprio corpo em frente do hospital Al Shifa, morrendo mais tarde das queimaduras.
A situação desesperadora só não é ainda pior em grande medida graças à ajuda recebida do exterior e, especialmente, das Nações Unidas.
A cada três meses, Reem al Ghora, a mãe que não acordou suas filhas durante o Ramadã, recebe da ONU cinco sacos de farinha de trigo, três de açúcar e também arroz, óleo e outros alimentos básicos. Ela, seu marido, que aguarda uma cirurgia por uma lesão nas costas, e seus 11 filhos vivem em três cômodos. Eles não têm geladeira.
"Vivo os piores dias de minha vida", contou ela. "Nem gosto mais de visitar minhas irmãs, que têm móveis, geladeira, TV. Quando vejo pessoas que vivem bem, eu me pergunto o que fizemos de errado."
Fares Akram colaborou com reportagem


Letras em números


Letras em números

O que as estatísticas dizem sobre a "Granta"

LUÍS AUGUSTO FISCHER


RESUMO Numa análise quantitativa e comparativa com duas antologias publicadas na década passada, a seleção da "Granta" permite identificar mudanças no cenário literário brasileiro. Entre elas, mais autores nascidos nas metrópoles e mais enredos autorreferentes -terá o leitor mais interesse hoje na vida dos escritores?


Fez bastante barulho a antologia "Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros", da revista britânica "Granta", lançada em julho pelo selo Alfaguara. A repercussão foi pesada a ponto de Francisco Bosco, no jornal "O Globo", ter armado uma defesa da existência de antologias. Aqui na Folha, Marcelo Coelho percebeu novidades num relance: saíram de cena os pobres e os desajustados, assim como a prosa regionalista viciosa, dando lugar a personagens requintados, vivendo experiências na Europa.
A recepção crítica demonstra a força da iniciativa, que merece ainda outra apreciação, que busque detectar tendências de conjunto.
O júri tinha só leitores hábeis: Beatriz Bracher, Cristovão Tezza, Samuel Titan Jr., Manuel da Costa Pinto, Italo Moriconi, Benjamin Moser e Marcelo Ferroni, editor. Vamos contar com o pressuposto elementar de que elegeram o melhor entre os possíveis, sem pressão de qualquer outra natureza.
Por isso, vamos tomar a seleção como representativa do quadro atual no Brasil. Foram 247 inscrições, das quais saíram os 20 publicados; apresentaram-se candidatos de 17 Estados brasileiros, além de quatro que vivem fora do país, mas aqui nascidos.
Pelos currículos, vê-se que os selecionados nasceram entre as classes confortáveis e vivem como escritores, editores, colunistas, críticos, tradutores, roteiristas -em suma, gente do meio letrado, em larguíssima maioria.
Pode-se perceber também uma outra similaridade: dos 20, apenas um não publicou por (nem trabalha para) editora carioca ou paulista, mesmo que alguns tenham estreado em editoras de outros Estados. Nada mais eloquente em matéria de concentração espacial: um filtro invisível opera o tempo todo na seleção.
Essa seleção brasileira sub-40 tem dominâncias. Muitos dos autores têm de fato sólida vivência do exterior, na condição de estudantes ou por laços familiares. Há três filhos de imigrantes que vieram ao Brasil no ciclo das ditaduras militares recentes, matéria explícita de três dos contos; isso é praticamente tudo que há de política no volume.
Aliás, em 60% dos contos da "Granta" há, no centro do enredo, relações entre filhos e pais, talvez uma marca de geração e de classe. Em 55%, aparecem citações ou alusões "cult" (a mais notória é a reiteração da palavra alemã "Weltanschauung", visão de mundo, no texto de Luísa Geisler), a dar conta do registro letrado em que operam.
Na mão inversa, não há empenho em aproximar do escrito as modalidades de fala popular.

INTERNET 

Pela idade, é gente que na infância ou na adolescência passou a conviver com o computador e a internet; não estava ainda na universidade quando a URSS encerrou sua vida e Fernando Collor foi eleito, marcas ambas da enorme abertura de mercados experimentada mundo afora; aprendeu o sexo já com a sombra da Aids; terá sido assaltada uma ou mais vezes na rotina das cidades brasileiras.
Quanto à qualidade estética, bem: para este leitor aqui, dos 20, uns cinco ou seis pegariam titularidade pelo texto apresentado na antologia -pela ordem na publicação, Michel Laub, Daniel Galera, Antonio Prata, Julián Fuks, Leandro Sarmatz. Alguns não comprometem, mas não têm força.
E há contos com inconsistências mais e menos grosseiras, como anacronismos (Antônio Xerxenesky supõe consumo de maconha como comum no início dos anos 60), cosmopolitismo "à outrance" (Laura Erber, pelo exótico chique, e Luísa Geisler, pelo deslumbramento), erro factual puro e simples (Vinícius Jatobá, num texto verista, pôs pombas pousadas em fios de luz), além de clichês sobre a rotina da classe média trivial (Vanessa Barbara), sobre realismo mágico (Cristhiano Aguiar) e até sobre o Rio (Tatiana Levy, uma caricatura de si mesma).
A antologia rende mais. Como um exercício à moda de Franco Moretti, o criativo teórico italiano que tem posto em relevo modalidades de análise quantitativa da literatura (como em "A Literatura Vista de Longe", ed. Arquipélago), comparamos três antologias de grande impacto na opinião pública, em anos recentes.
Além da "Granta", com seus 20 autores, entraram na conta outras duas: "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", organizada pelo mesmo Italo Moriconi (Objetiva, 2000), e "Geração 90: Manuscritos de Computador", com organização de Nelson de Oliveira (Boitempo Editorial, 2001).
Da primeira, foi considerada a última seção, "Anos 90: Estranhos e Intrusos", que contém um total de 17 contos, de 17 diferentes autores. A segunda compilou textos de 17 autores, em número desigual de contos para cada um.
Primeiro, vamos ver traços da vida dos autores. O grupo de escritores da "Granta" é o mais metropolitano dos três, com 90% de nascidos em capitais, enquanto o "Geração 90" é o mais marcado pela presença de gente nascida no interior (41%) -mas, ao mesmo tempo, é o único conjunto sem ninguém nascido fora do Brasil.
Em nenhuma das três antologias há alguém nascido no Centro-Oeste ou no Norte. A tendência notável é de concentração na região Sudeste (64% na antologia de "Os Cem Melhores", 59% na "Geração 90", 50% em "Granta").
Chama a atenção, nesta última, a presença forte de gaúchos (25%, ou 30%, se considerarmos Daniel Galera, nascido em São Paulo, mas criado em Porto Alegre,) e a ausência de mineiros, um daqueles silêncios eloquentes, sabendo todos da longa tradição de Minas na revelação de levas de escritores.
A "Granta" dá mostras do avanço da luta feminista: há 30% de mulheres no grupo, contra 12% e 6%, respectivamente, nas duas antologias anteriores.
Contando pela idade dominante dos grupos, considerado o ano do lançamento de cada coletânea como critério, em "Os Cem Melhores" havia 63% com mais de 55 anos, plena maturidade, contra os 100% com até 45 anos no "Geração 90", enquanto na "Granta" todos estão, pelas regras da publicação, abaixo dos 40 anos -mas, atenção, 65% deles acima dos 30.

PROCEDIMENTOS 

Agora vejamos o material mais interessante, os dados colhidos nos enredos e nos procedimentos narrativos.
Entre 20 contos da "Granta", seis ou sete podem ser enquadrados no campo da autoficção, esta espécie de onda que se pode definir pelo aproveitamento ficcional de dados empíricos reais da vida do autor (o exemplo mais notável no país é o romance "O Filho Eterno", de Cristovão Tezza).
Onze deles têm narradores em primeira pessoa, testemunhais, e em 15 contos predomina o tempo presente nas ações (mas há dois contos situados no futuro imediato, daqui a um par de anos).
Esses dados, que botam luz no "eu" mais do que em um "outro", ficam realçados quando se constata que nada menos de 50% dos contos apresentam personagens escritores, marca clara deste tempo -na antologia de "Os Cem Melhores", nenhum dos enredos era assim autorreferente, e, na "Geração 90", apenas 18% das histórias envolviam personagens escritores.
O leitor terá de fato mais interesse hoje que há dez anos na vida dos escritores, nessa proporção?
Numa contagem de incidências do cenário rural em contraste com o urbano, acentua-se levemente na "Granta" uma tendência das outras duas antologias: agora, 95% dos enredos têm como cenário a cidade (em "Os Cem Melhores" esse número era de 88%, no "Geração 90", de 94%).
Mas a "Granta" se afasta de outra curva regular: nela, 90% dos personagens relevantes se encontram nas classes confortáveis (da classe média-média para cima, gente que não passa por apertos significativos de vida). Na antologia de Moriconi, a divisão era bem outra: 59% de gente confortável; na antologia de Nelson de Oliveira, apenas e tão somente 35%, a maioria sendo de gente das classes carentes.
Em contrapartida, a "Granta" ostenta, em 55% dos contos, cenas passadas fora do Brasil. Isso representa uma mudança de impacto, na tradição local: em "Os Cem Melhores", apenas 18% das histórias tratam do mundo não brasileiro, e no "Geração 90" simplesmente não aparece o exterior, sendo esta a mais rente à matéria direta da vida local, com autores empenhados na indagação sobre as mazelas sociais, como Luiz Ruffato, Rubens Figueiredo e Marçal Aquino.

COSMOPOLITIZANTE 

Na literatura brasileira, valerá lembrar que o maior, Machado de Assis, nunca concebeu cenas relevantes passadas fora do Brasil.
Erico Verissimo desenvolveu dois romances no exterior, e na geração seguinte isso se tornou menos raro, com Moacyr Scliar, João Ubaldo, Ignácio de Loyola, Caio Fernando Abreu. Em anos bem recentes, o exterior ganhou as manchetes, os títulos: João Gilberto Noll publicou "Berkeley em Bellaggio"; Bernardo Carvalho, "Mongólia"; Chico Buarque, "Budapeste".
A "Granta" parece ter fotografado um momento cosmopolitizante, antipovo e autorreferente, na geração mais nova, que surfa num mercado muito mais maduro do que jamais foi, em todos os níveis, na renda, nos circuitos de difusão, no consenso da importância da leitura.
Olhando panoramicamente, duas linhas se mostram. Uma convergente: a economia brasileira de fato se volta para fora, como um "global player", e a nova geração se afina com isso. Outra divergente: a nação segue chafurdada em mazelas, como por exemplo a corrupção sistêmica, para não mencionar as enormes desigualdades sociais já quase invisíveis de tão antigas, mas a nova geração parece passar ao largo disso.



sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Muçulmanos mancham mais uma vez a imagem de uma religião com estigma de violenta, sectária e intolerante


Qualquer que possa ter sido o pretexto, e existem várias hipóteses sobre isso, os homens que assassinaram o embaixador dos Estados Unidos na Líbia deram um golpe no islamismo e em seu país. Coveiros de sua fé e de seu próprio futuro.
Na primeira versão dos acontecimentos do dia, o ataque ao consulado americano em Benghazi, no leste do país, faria parte de um movimento de protesto contra um filme americano que insulta o islamismo. Destacando-se dos manifestantes, um comando armado de fuzis de assalto e de lança-foguetes entrou no consulado e abriu fogo. O embaixador Christopher Stevens foi morto, assim como três outros americanos.
Os manifestantes condenavam os trechos de um filme – "A Inocência dos Muçulmanos" - divulgado na internet no aniversário dos atentados do 11 de Setembro. Produzido na Califórnia por um incorporador imobiliário israelense-americano, o filme chama o islamismo de "câncer". Ele retrata o profeta Maomé com traços de especial vulgaridade.
A divulgação desses trechos no YouTube foi feita intencionalmente por seu autor-diretor, que atende pelo pseudônimo de Sam Bacile. Ela foi seguida de uma violenta manifestação contra a embaixada dos Estados Unidos no Cairo, além de passeatas de protesto no Marrocos, na Tunísia, no Sudão e no Iêmen.
Se ele pertence a esse conjunto de reações, a chacina de Benghazi faz parte de uma longa série criminosa que contribuiu muito para dar ao islamismo a imagem de uma religião de violência sectária e de intolerância. Isso vai desde o apelo lançado pelo Irã nos anos 1980 para matar o escritor Salman Rushdie até as ameaças proferidas contra um ou outro caricaturista do profeta Maomé.
Hillary Clinton, a secretária de Estado, disse muito bem: "Os Estados Unidos lamentam qualquer ataque à religião dos outros, mas que fique bem claro que nada, nenhuma justificativa, pode desculpar atos de violência desse gênero".
O debate que pode haver sobre o impacto na internet ou na questão dos limites a ser dado à liberdade de expressão vem depois - só depois. E, caso ocorra, ele não poderia atenuar em nada a condenação a esse tipo de violência.
As autoridades americanas seguiram outra pista. O ataque ao consulado teria sido planejado há muito tempo. O comando teria aproveitado a manifestação para agir, e pertenceria ao movimento islamita mais radical, identificado como uma "franquia" da Al-Qaeda.
O resultado é o mesmo. Levados por uma ortodoxia delirante de uma guerra a ser conduzida "contra os judeus e os cruzados", os jihadistas matam em nome de uma religião cuja imagem eles mancham continuamente. No Estado desordenado da Líbia pós-Gaddafi, é possível imaginá-los aliados com alguns partidários do antigo regime para semear a morte e o caos.
É próprio das ditaduras mais cruéis deixar como legado sociedades exauridas, uma vez abatidas. E que levam tempo para se recompor.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Na Síria, por trás de cada fuzil há uma potência estrangeira, diz intelectual libanês


"A Síria se transformou em um campo de batalha contra o poder unilateral dos EUA e da Europa que ultrapassa o Oriente Médio", afirma Georges Corm, cujo primeiro livro sobre o estudo das sociedades multiconfessionais abriu um campo de pesquisa complexo e essencial para entender o Oriente Médio. Nascido em Alexandria em 1940, estudante em Paris, esse intelectual libanês independente e corajoso é um dos melhores intérpretes dos intrincados conflitos não só da região, mas do mundo.
Corm é escritor, autor de uma novela - "La Mue" -, de numerosos livros, o último intitulado "O Novo Governo Mundial", sobre o empobrecimento da Europa, em breve nas livrarias espanholas, homem de letras e de arte. Seu escritório simples é decorado com belos óleos pintados por seu pai.
La Vanguardia: Há quase um ano o senhor se mostrou prudente ao julgar a situação na Síria, cauteloso na hora de avaliar as primaveras árabes. Qual é sua opinião hoje?
Georges Corm: Ganharam as revoluções pacíficas da Tunísia e do Egito, porque houve um movimento de união nacional. A primeira onda de protestos foi um êxito. O drama veio depois com as armas, as milícias violentas. A situação na Síria é terrível, lembra a guerra civil libanesa. Mas não se deve esquecer também a repressão em Bahrein, no Iêmen. A aliança fundamentalista árabe e o Ocidente fizeram abortar a revolução.
La Vanguardia: Qual é sua posição, como intelectual independente e laico, diante da polêmica em torno da atitude da esquerda árabe em relação à Síria?
Corm: Não é possível alinhar-se com o regime de El Assad nem com a aliança árabe-ocidental que promove a oposição armada. O drama dos grupos de esquerda árabes é que não estão inseridos no ambiente popular, como as ONGs islâmicas, e carecem de um discurso econômico válido. É preciso manter a chama da resistência da luta palestina contra a ocupação. Sou profundamente pessimista neste período histórico, porque a coalizão petro-monárquica parece invencível.
La Vanguardia: O senhor denunciou há anos corajosamente a política saudita que fomenta um islã tenebroso, seu poder sobre os meios de comunicação...
Corm: As redes de televisão e os jornais árabes estão a soldo agora tanto da Arábia Saudita quanto do Catar, que antes nem sempre coincidiram em seus objetivos. Quanto à imprensa estrangeira, se incrustou na Síria com os grupos rebeldes, como já aconteceu no Iraque, onde estiveram no meio do exército americano durante a guerra.
La Vanguardia: Como o senhor contempla o futuro da Síria?
Corm: Temo que se houver uma explosão do Estado o país fique dividido e preso em guerras intermináveis. No Iraque, apesar de tudo, ainda existe uma organização estatal, acima de xiitas, sunitas e curdos. O regime cometeu graves erros. A Síria se transformou em um campo de batalha contra o poder unilateral dos EUA e Europa que transborda o Oriente Médio. Na Síria, por trás de cada fuzil há uma potência estrangeira. Existe o risco de que a Síria seja destruída moral e fisicamente e depois comecem, como ocorreu no Líbano, as empresas de reconstrução. Não se deve esquecer, porém, o temperamento nacionalista de seus habitantes.
La Vanguardia: Com o enfraquecimento da Síria, poderia se reduzir a força do Hizbollah, a organização mais poderosa do Líbano?
Corm: Não creio em seu perigo de desaparecimento. Certamente a pergunta sobre o futuro do Hizbollah é a pergunta do milhão de dólares. Não se deve esquecer que conta com o apoio de importantes setores cristãos, como o dirigido pelo general Aun, partidos de esquerda, laicos, inclusive alguns grupos sunitas. Sem a ajuda da Síria, o Hizbollah pode continuar sendo uma força, evidentemente com o apoio do Irã e das organizações locais. Não há dúvida de que o Líbano pode ficar emaranhado na engrenagem da violência síria.

Por Tomas Alcoverro, para o La Vanguardia. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Reproduzido no UOL

Por temer futuro da região, intelectuais árabes passam a apoiar Assad


Quando a Primavera Árabe chegou à Jordânia no ano passado, o colunista de jornal Muwafaq Mahadin foi um dos primeiros a marchar com os manifestantes pró-democracia demandando reformas em seu país.
Ele também apoiou manifestantes sírios que começaram a tomar as ruas em março de 2011. Mas alguns meses depois, ele mudou de opinião, alinhando-se com o regime do presidente Bashar Assad. Como muitos outros intelectuais árabes, ele diz que fez isso por temer pelo futuro da região.
"Este é um Estado corrupto e não democrático, mas o que está acontecendo não é uma guerra na Síria, mas uma batalha entre atores de fora da Síria", disse ele numa entrevista em agosto num escritório no prédio do Sindicato dos Escritores em Amã.
Mahadin, uma importante figura da oposição que escreve para o jornal independente jordaniano Al-Arab Al-Yawm, têm extensas credenciais pró-democracia. Ele foi preso várias vezes por suas visões políticas e foi até forçado a fugir do país durante uma década, vivendo em exílio entre Beirute e Damasco.
Hoje alguns o criticam como um teórico da conspiração enquanto outros o chamam de corajoso. Independentemente disso, suas colunas aquecem o debate entre os intelectuais jordanianos.
Ao longo dos anos que passou em Damasco, Mahadin construiu laços fortes com a oposição síria. Ele diz que a revolta na Síria foi inicialmente um levante espontâneo nas ruas, mas que mais tarde foi sequestrada por poderes internacionais.
Mahadin é apenas um entre vários intelectuais esquerdistas e anti-imperialistas que acreditam que a rebelião síria está sendo liderada por islamistas alinhados com o Ocidente, manipulado por Estados do Golfo incluindo o Qatar e a Arábia Saudita em prol dos Estados Unidos e Israel, para ganhar domínio na região.
Um grupo de 230 figuras influentes assinou uma carta aberta à imprensa demandando que a Jordânia fique ao lado da Síria diante de uma conspiração global.
"Nós particularmente apreciamos a perseverança da liderança síria em manter o ritmo das reformas e aderir ao diálogo apesar dos crescentes atos terroristas contra a Síria - apesar das campanhas inflamatórias da mídia do Qatar, Arábia Saudita e do Ocidente, e apesar das intervenções que são contrárias à lei internacional - evidenciadas pelo contrabando de dinheiro e várias armas para dentro da Síria", dizia a declaração.
Mahadin diz que o conflito acontecendo na Síria ecoa a Guerra Fria, com rebeldes sendo financiados e armados - da mesma forma que os guerrilheiros mujahedin islamistas foram - pelo Ocidente para lutar contra o controle soviético no Afeganistão durante os anos 80.
"Sinto que é meu dever responsabilizar o regime sírio por seu papel na crise, especialmente quando eu considero a forma como o regime levou o país a um ponto em que terminou com as ruas e muros cobertos de sangue", escreveu Mahadin numa coluna no Al-Arab Al-Yawm em junho. "Mas toda vez que sinto a necessidade de escrever sobre isso, a voz da conspiração e o fato da intervenção estrangeira sobrepujam este desejo e necessidade."
Mahadin viajou para a Síria no ano passado numa visita para expressar solidariedade com o regime de Assad e escreveu uma série de colunas acusando a mídia internacional de mentir sobre o que estava acontecendo lá.
Em agosto de 2011, ele contestou notícias dos canais de satélite de que Homs estava cercada por tanques, dizendo que passou pela cidade sem ver um único tanque. No mesmo ano, ele ofendeu um grupo de artistas jordanianos protestando em Amã concluindo um discurso com o grito de protesto "Longa Vida a Bashar!"
De acordo com François Burgat, um pesquisador sênior especializado em Política do Oriente Médio no Centro Francês Nacional para Pesquisa Científica, a análise de Mahadin sobre o conflito sírio minimiza a força da revolta popular enquanto supervaloriza as influências internacionais.
Em sua visão, diz ele, "a oposição armada se resume a grupos de mercenários islamistas recrutados ou financiados pelas monarquias do petróleo a serviço de seus aliados ocidentais. Esses marxistas seculares não gostam do fato de que as forças de resistência recrutam entre islamistas."
Burgat acredita que os intelectuais de esquerda, que apoiam Assad, estão se rendendo a uma velha tentação árabe ou preferindo reter um regime autoritário em vez de arriscar aumentar a influência islâmica num novo governo como aconteceu no Egito, Líbia e Tunísia.
Esses pontos de vista conflitantes na Síria prejudicaram os esforços pró-democracia na Jordânia, criando uma divisão dentro do movimento de oposição lá, de acordo com Lamis Andoni, outro colunista jordaniano influente, que é de ascendência palestina.
Andoni diz que embora haja preocupações legítimas em relação ao impacto sobre a região caso o governo de Assad caia, isso não pode justificar o apoio para um regime que mata civis.
"Muitas pessoas apoiaram o regime sírio por causa de seu papel importante na região em combater o expansionismo israelense", disse ela.
"Mas no momento em que o povo sírio se levanta, a promessa de apoiar o regime por ele ser um Estado de resistência não é mais válida. Não dá ao Estado o direito de matar seu próprio povo."
Mahadin não está sozinho. Joseph Massad, que dá aula de política árabe moderna e história intelectual na Universidade de Columbia em Nova York argumenta que derrubar um ditador com a ajuda de aliados estrangeiros nunca é uma boa ideia.
Ziad Majer, professor de Estudos do Oriente Médio na Universidade Americana de Paris, diz que é legítimo para os sírios quererem terminar com um regime que governou brutalmente por mais de quatro décadas.
"Assad deveria partir e uma transição deveria acontecer", disse Majer. "Discussões sobre política internacional e regional podem ser legítimas e necessárias. Mas elas também podem não ser mais do que uma desculpa para defender um regime despótico e fechar os olhos diante de um massacre em andamento."
Enquanto isso, refugiados sírios, que fugiram da guerra em sua terra natal, querem qualquer tipo de ajuda que possam conseguir. Quando o ministro de Exterior da França, Laurent Fabius, visitou o campo de Al Zaatari no norte da Jordânia, na fronteira síria, em meados de agosto, refugiados fizeram um protesto pedindo à França para vir resgatar os civis sírios.
"É bom saber que vocês estão do nosso lado, mas isso não impede o massacre", gritou um refugiado durante a visita oficial francesa. "Não queremos ajuda humanitária, queremos lançadores de foguetes e armas."
Texto de Aida Alami, para o International Herald Tribune, tradução de Eloise de Vylder, reproduzido no UOL.