sábado, 31 de outubro de 2015

A Lava Jato e a nova classe dos intocáveis

No Judiciário há três linhas de conduta em relação aos crimes do colarinho branco.
Existe a linha dos garantistas, que privilegia os direitos individuais em relação à mão pesada do Estado. Existe a linha-dura, para quem o Estado - através dos códigos de processos - criou barreiras para impedir a aplicação das penas. E existe a corrupção, que se vale do suborno para obter sentenças favoráveis. Acima deles, uma legislação que permite postergar o máximo possível a punição.
O resultado final é um modelo em que o pobre é penalizado e o rico beneficiado.
Nesse lusco-fusco, cria-se um clima de animosidade entre linhas duras e garantistas. Respeitar direitos individuais significa se curvar a um modelo criado para impedir a punição dos culpados, segundo os linhas-duras.
Este é o cenário a ser considerado quando se analisam os episódios recentes. Para a maioria dos procuradores envolvidos com essas operações, a briga central é contra a impunidade.
A maneira encontrada para contornar o poder dos tribunais superiores foi recorrer a outro poder de fato, a mídia.  

As novas estratégias

Há muito tempo, procuradores e PF montam parcerias com repórteres policiais. Em vez do contraditório e de um juiz mediando a disputa, muitas vezes dificultando a apuração dos crimes, há apenas um repórter recebendo as informações de forma passiva e um editor buscando a manchete mais apelativa. É como disputar um jogo sem adversário.
O que era uma tática individual transformou-se em política de Estado na Lava Jato com a estratégia Sérgio Moro endossada pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot.
Em documento de 2004 – já analisado aqui no GGN – Moro expõe de forma magistral a estratégia, a partir das lições da Operação Mãos Limpas, da Itália. O foco central funda-se em três pontos:
            1. Assumir o protagonismo no noticiário, para criar o clamor das ruas e, através desse trabalho, superar as resistências políticas.
            2. Definir a delação premiada como peça central das investigações.
            3. Valer-se da cooperação internacional.
Depois da Lava Jato, todo vazamento deixa de ser coibido. Pelo contrário, passa a ser peça central na estratégia de cada investigação.

Os pontos obscuros

No entanto, há pontos obscuros nessa estratégia que, provavelmente, ainda não foram objetos de reflexão interna tanto no MPF quanto na Polícia Federal.
O primeiro, os limites entre cooperação internacional e interesse nacional. Até agora o MPF e, especialmente, o PGR não explicaram adequadamente a troca de informações com autoridades norte-americanas, visando alimentar inquéritos contra a Petrobras – que é um braço do estado brasileiro – em tribunais estrangeiros.
O segundo, os limites dos pactos tácitos com os grupos de mídia.
Grupos jornalísticos são empresas, com interesses comerciais e políticos. A extrema concentração do mercado jornalístico brasileiro transformou os grandes grupos de mídia em um dos poderes de fato, com privilégios, blindagens e práticas comerciais em nada diferentes de outros setores empresariais que mexem com o poder político.
O MPF montou uma estratégia eficaz para se beneficar dessa parceria, mas nenhuma estratégia para garantir autonomia em relação aos grupos de mídia.

As relações conflituosas com a mídia

A Satiagraha e a Castelo de Areia foram anuladas por pressões políticas. A Castelo de Areia respeitou o sigilo e morreu mesmo sendo juridicamente perfeita. A Monte Carlo caminhou sigilosamente e só  recebeu ampla divulgação devido à CPMI de Carlinhos Cachoeira. Mesmo com a profusão de provas levantadas, acabou abafada.
Por seu lado, a Lava Jato conseguiu amplo sucesso, recorrendo a métodos profissionais de vazamento de informações. Seu poder foi amplificado pela descoberta de valores inacreditáveis da corrupção na Petrobras.
O que a Lava Jato tem de diferente de todas as demais não é ter recorrido a uma comunicação profissional, mas a circunstância de se adequar aos interesses dos grupos de mídia.
A Satiagraha não interessava à mídia e morreu. A Castelo de Areia menos ainda, e acabou. A Monte Carlo incriminava diretamente a Editora Abril, como parceira de Cachoeira. Não gerou um indiciamento sequer de jornalistas ou executivos do grupo.
A Zelotes investiga a quadrilha que atuava na CARF (o conselhinho que analisa as multas fiscais) que beneficiou as maiores empresas nacionais e alguns grandes grupos jornalísticos. Nas fases iniciais não despertou nenhuma interesse da mídia e encontrou a resistência do juiz em autorizar pedidos de detenção provisória e busca e apreensão.
De repente, os procuradores e delegados fogem do script e passam a vazar informações sobre a tal Medida Provisória supostamente comprada que nada tinha a ver com o objeto inicial da Zelotes. Interrompem uma operação que envolve somas bilionárias para centrar fogo em um suposto suborno no qual, segundo as próprias informações do inquérito, os financiadores haviam interrompido os pagamentos ao suposto subornador, pelo fato do dinheiro não ter chegado ao seu destino.
Deixam de lado provas robustas de anistias fraudulentas envolvendo centenas de milhões de reais e vão atrás do indício de crime apontado em um e-mail do tal escritório do lobista (que tinha como cliente a RBS), mencionando duas bonecas de plástico dadas de presente para filhas de Gilberto Carvalho. “Bonecas” pode ser senha para suborno, alegam procuradores e delegados. Assim como “café”. Basta isso – e muita reportagem em cima de indícios vagos - para serem autorizados a avançar sobre o sigilo fiscal dos suspeitos, deixando os grandes grupos incólumes.
Se alguém considerar que essas discrepâncias são naturais nos inquéritos, que se apresente.
O resultado final foi esse: a mídia não deu aval para que a força tarefa da Zelotes invadisse grandes grupos, e ela não invadiu; autorizou que avançasse sobre as bonecas das filhas de Gilberto Carvalho e ela avançou.
Essa é a nova era da justiça, sem blindagens e com independência de atuação de procuradores e delegados?

Quando o promotor, o delegado e o editor tornam-se juiz

A exposição de qualquer pessoa à mídia é uma condenação em si. Não se trata de um ato indolor que poderá ser corrigido nas instâncias superiores. Mesmo que, no final do processo, a vítima seja inocentada, que a soma de indícios não permita sequer que seja indiciada, mesmo assim ela e seus familiares conviverão por anos com a marca da suspeita.
Além disso, quando esse festival de vazamentos atinge só um dos lados do jogo, tem repercussões políticas.
Mais que isso, a nova justiça confere um poder absurdo ao procurador e ao delegado para definir o alvo, impor o castigo público e até exercitar suas preferências partidárias.
Por que razão, tendo indícios de que Aécio Neves recebeu de Furnas e tendo informações concretas sobre o número de sua conta em Liechtenstein, o PGR brecou uma investigação e sentou em cima da outra? É evidente que o filho de Lula deve explicações sobre sua renda, sim. Mas qual a razão para blindar Aécio?
Fizeram bem procuradores e delegados de investir contra a impunidade. Mas devem satisfações à opinião pública mais esclarecida, cujo grau de compreensão não se limita à leitura de jornais: a Lava Jato veio para romper com toda forma de blindagem dos culpados, ou para criar uma nova casta de protegidos?
A prova dos nove será a delação premiada dos executivos da Andrade Gutierrez.
Além das obras em Minas, a Andrade raspou o caixa da Cemig, obrigada por seu controlador – o governo de Minas – a adquirir debêntures da construtora, enrolada com os problemas da usina de Belo Monte.
Se Aécio sair ileso desses depoimentos, não haverá como a Lava Jato se livrar do julgamento da história.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

Tchau, passado

Parece que foram umas 150 caixas. Minha vida em 150 caixas. Mudar de casa é fazer terapia intensiva e forçada. Sem ninguém sentado em frente, ao lado ou atrás para dizer que não é o fim do mundo, mesmo que pareça ser.
Não é o fim do mundo, mas é virar mais uma página da vida. A gente não fecha só a porta, mas também um ciclo. Deixa para trás um punhado de roupas datadas, sapatos velhos, panelas gastas, móveis surrados, guarda-chuvas quebrados e uma mala de emoções. Deixa também um pouco do que a gente não é mais.
Em cada armário desfeito uma sessão de tortura. Em cada caixa aberta uma sessão de vergonha. Em cada prateleira vazia uma sessão de descarrego. Em cada gaveta vasculhada uma nostalgia da boa.
E chora. E ri. E tem saudade. E sente alívio. E fica triste. Depois feliz de novo. E o estômago embrulha. E desembrulha.
Quando a gente muda de casa não engole só pó. Engole todos os erros e tropeços em fotografias antigas, cartas de amores falidos, roupas equivocadas, livros não lidos, objetos desnecessários, equipamentos que não funcionam mais.
Deixa para trás um punhado de lembranças boas, de tempos que não voltam mais, ainda que os novos tempos produzam mais lembranças que serão felizes no próximo futuro.
Ainda ontem eu morava sozinha. Mas quem padecia de solidão era a geladeira. Tinha água com gás, iogurte, gelo e cerveja. Um fogão italiano que brilhava como novo por falta de uso. Uma TV que estava sempre desligada. Uma cama onde eu dormia pouco e me divertia muito.
Eu era solteira, era feliz e sabia disso. Mas também sabia que um dia aquela casa não seria mais minha e nem aquela vida.
Ainda ontem, eu já não era apenas mais eu. A gente se apertava na cozinha pequena, fazia maratona de série de TV, comia sorvete no inverno, brigava pela mesa do escritório, dormia agarrado –socorro, acordava com o vento uivando, viajava sem parar. As plantas sempre morriam.
Com essa mudança vem nossa coleção de action figures, 20 caixas de utensílios de cozinha, uma girafa da Tailândia, outra de Jericoacoara, duas bicicletas, dois computadores, trocentos livros, trocentas revistas em quadrinhos, quadros, quadros, quadros.
Mais importante de tudo: nessa mudança de casa vem um casamento sólido, feito de muita trombada, muita paciência, uma tonelada de amor e amizade.
'A gente' foi a melhor coisa da minha vida nos últimos anos e na última casa. Passei a conjugar 'a gente' 24 horas por dia e nunca fui tão feliz.
Na nova casa, sinto como se estivesse no primeiro dia de um trabalho novo. Não sei onde fica a impressora, a máquina de café, se os vizinhos de baia são fofoqueiros, se tem um restaurante por quilo decente, se consigo uma manicure boa por perto.
Sinto como se fosse uma estranha fazendo uma visita. Nas primeiras noites acordei sem saber onde estava, tive que acender a luz do celular para achar o banheiro, dei cinco topadas nos armários até chegar lá.
Levei um banho da torneira da pia, não sei onde acendem as luzes, paguei peitinho e bundinha para geral na vizinhança, coloquei o lixo comum junto com o reciclado, derrubei água na varanda da vizinha, que já me odeia, mas fiz amizade com o porteiro, que é o que realmente importa.
Mudar de casa não é apenas levar suas coisas de um lugar para o outro. A gente tem que desencaixotar as bugigangas e também as emoções. Só vira casa quando nossos velhos cacarecos parecem à vontade com essas paredes pintadas e esse chão novinho. Quando o sono começa a dormir sem sustos. Quando a gente vai ao banheiro à noite sem tropeçar no escuro. Quando a gente olha mais para frente do que para trás.
Fica mais fácil mudar de casa quando a gente está pronto para mudar também.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Abolicionista que libertou mais de 500 escravos será reconhecido pela OAB

Negro liberto que se tornou libertador de negros, Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) ficou conhecido como um rábula que conseguiu alforriar, pela via judicial, mais de 500 escravos. O rábula exercia a advocacia sem ser advogado.
Numa reescrita tardia da história, sua designação vai mudar. Na noite da próxima terça-feira (3), em cerimônia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Luiz Gama deve receber da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 133 anos após a sua morte, o título de advogado. "No atual modelo da advocacia brasileira, é a primeira vez que tal homenagem é conferida", afirma o presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coelho.
"Já era hora de ele ter esse reconhecimento oficial", avalia o advogado Silvio Luiz de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama (ILG). "Além de ter sido um homem importante na questão do abolicionismo, foi grande jurista e advogado de teses brilhantes."
"Embora não fosse advogado, Gama era um grande defensor da abolição e sua atuação como rábula livrou inúmeras pessoas dos grilhões escravistas", pontua o presidente da OAB.
Na cerimônia, Luiz Gama será representado por um tataraneto, um de seus 20 e tantos descendentes vivos, o engenheiro e empresário Benemar França, 68. "Tomei contato com a biografia desse meu antepassado quando estava no 2º ano ginasial e um professor de história pediu que pesquisássemos, cada um, sobre as nossas famílias, a nossa genealogia", conta. "O que descobri encheu-me de orgulho." Além da condecoração póstuma, o evento Luiz Gama: Ideias e Legado do Líder Abolicionista prevê dois dias de palestras e debates no Mackenzie.
Autor da biografia "Luiz Gama: O Advogado dos Escravos", publicada pela editora Lettera.doc em 2010, o advogado Nelson Câmara acredita que a iniciativa da OAB é correta "embora serôdia", ou seja, tardia. "Era um sujeito de grande luminosidade", afirma Câmara.

Autodidata

Nascido em Salvador, filho de um português com uma escrava liberta, foi vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha dez anos. Alforriado sete anos mais tarde, estudou direito como autodidata e passou a exercer a função, defendendo escravos. Também foi ativista político, poeta e jornalista.
Ele bem que tentou cursar direito no largo São Francisco. "Mas a aristocracia cafeeira da época não permitiu, porque ele era negro", atesta Câmara. "Mesmo assim, era assíduo frequentador da biblioteca de lá." No prefácio do livro, o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, afirma que Gama foi "o negro mais importante do século 19".
Por complicações da diabete, o abolicionista Gama, entretanto, morreria seis anos antes de a Lei Áurea ser promulgada. Dez por cento da população paulistana, de acordo com estimativas da época, compareceu ao seu enterro - São Paulo contava então com 40 mil habitantes.
A multidão começou a chegar ao Cemitério da Consolação, onde ocorreu o sepultamento, ao meio-dia - o enterro estava marcado para as 16h. Não houve transporte oficial para o cortejo fúnebre. Do bairro do Brás, onde ele morava, o caixão veio passando de mão em mão até chegar à sepultura, num gesto coletivo. As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".

Reprodução do UOL Notícias

Com aval do Iphan, Prefeitura do Rio quebra pavimento de 200 anos

Com autorização do principal órgão de patrimônio do País, a Prefeitura do Rio de Janeiro destruiu 200 metros lineares do bicentenário calçamento pé de moleque, descobertos em agosto durante as escavações para a implementação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) na rua da Constituição, no centro. Tratores e máquinas pesadas devastaram o piso no fim de semana, o que revoltou historiadores.
Especialistas e preservacionistas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da UFF (Universidade Federal Fluminense) denunciaram a ação. "Em alguns trechos dava para perceber os pisos sobrepostos dos dois séculos. Em uma pequena parte era possível ver até o resto do trilho do bonde. Agora, tudo está coberto por terra", lamentou o historiador Marcus Alves, do Arquivo Nacional.
O slogan da prefeitura para as obras em regiões históricas do centro é: "Ao mesmo tempo em que o Rio se moderniza, a cidade redescobre o passado". O pé de moleque é formado por pedras arredondadas, de tamanhos variados e alinhadas de maneira desigual, como acontece, por exemplo, no centro histórico de Paraty (RJ).

Aval

Dos 200 metros expostos, apenas 15 metros quadrados foram mantidos. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) autorizou a retirada do calçamento, tradicional nas pioneiras cidades brasileiras a partir dos anos 1700. Em nota, o Iphan credita a autorização à "impossibilidade de permanência do calçamento por completo". De acordo com o órgão, as pedras usadas para o calçamento apresentam grandes dimensões, até em profundidade, o que torna "inviável a remoção de trechos por inteiro, causando a desintegração do piso em sua forma original".
Ainda conforme as explicações do Iphan, "15 metros quadrados do piso serão modelados, mapeados, desmontados e remontados em um vão central do VLT, em 10 metros lineares de via, na própria Rua da Constituição, onde poderão ser contemplados pela população".
Entidade da prefeitura, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), responsável pela obra do VLT, relatou que segue "a proposta aprovada pelo Iphan". De acordo com a Cdurp, a área selecionada "para desmonte e remontagem é o trecho mais antigo, que ainda mantém o desenho original e de maior representatividade histórica". As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".

Reprodução do UOL Notícias

Pontes que levam nomes de torturadores não realizam a devida travessia

O nome de um dos mais importantes poetas do mundo, vencedor do Nobel de Literatura de 1971 e militante do Partido Comunista, esteve em debate no Parlamento do Chile. Um projeto de lei visa homenagear Pablo Neruda dando seu nome ao aeroporto da capital Santiago.
O que teria tudo para ser uma votação tranquila e estreme de dúvida, dado a justeza da homenagem ao poeta e ex-senador, converteu-se em material de análise para compreensão da conjuntura atual latino-americana, a partir dos debates que o projeto suscitou.
Dois argumentos foram levantados pelos parlamentares para justificar a recusa ao projeto. O primeiro deles é relativo ao fato de o poeta ter sido militante do Partido Comunista. O deputado Ignacio Urrutia, do partido UDI (de extrema direita), chegou a dizer que "Neruda é uma figura que divide os chilenos, temos muitas figuras melhores, que são capazes de nos unir como país".
Jorge Rathgeb, do partido Renovação Nacional, também questionou o projeto, alegando que "Neruda poderia dar nome a um Centro Cultural, mas não a um aeroporto. Seria como batizar um hospital com o nome de Ivan Zamorano (jogador de futebol chileno dos anos 1990)".
A resistência em homenagear uma das figuras mais reconhecidas da literatura é um sintoma claro de que os espectros autoritários ainda nos rondam. A falta de uma efetiva reparação da verdade histórica daquilo que representou os regimes militares em nosso continente possibilita o regresso desses fantasmas do passado.
Por aqui não é diferente. O ranço autoritário se faz presente cotidianamente através de manifestações pela volta do regime militar, pelos números da violência policial contra jovens pobres e negros, pelos famigerados autos de resistência, pelos justiçamentos, pela aprovação de projetos de lei de claro conteúdo antidemocrático ou pelo fenômeno da espetacularização da justiça. 
Todos estes fatos levam à desvalorização da democracia como um valor de conquista histórica e patrimônio do povo brasileiro.
A falta de uma efetiva busca pela verdade histórica, a tibieza no cumprimento do relatório final da Comissão da Verdade e a ausência de responsabilização pelos crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura criam um perigoso vácuo histórico, que é o substrato para o ressurgimento do pensamento fascista que assistimos nos dias de hoje.
Em Lisboa, a ponte mais importante sobre o Tejo chamava-se António de Oliveira Salazar. Foi preciso a revolução dos Cravos para rebatizá-la com o nome de 25 de Abril. Aqui, na Câmara dos Deputados, projetos de lei tentam rebatizar a ponte Costa e Silva com os nomes de Betinho e Honestino Guimarães, ambos militantes do combate à ditadura.
Muitas estradas e pontes em nosso país ainda levam o nome de generais e torturadores. Símbolos de um passado sombrio ainda não devidamente esclarecido pela história.
O desapreço pela democracia leva a que forças políticas tentem, sem qualquer cerimônia, derrubar governos democraticamente eleitos. Seja em Honduras, Paraguai ou com as malfadadas tentativas de golpe por parte do DEM e PSDB, no Brasil.
Infelizmente, em vez de caminhar para um aprofundamento democrático, vivemos um contexto de retrocesso preocupante. É preciso compreender o passado para projetar o futuro. Atualmente, não temos elementos para compreender o primeiro, o que leva a uma incerteza e desesperança quanto ao segundo.
E aquele voo que poderia partir do aeroporto Tom Jobim e pousar no aeroporto Poeta Pablo Neruda ainda é um pouco distante de se tornar realidade.
E muitas pontes ainda esperam o devido rebatizado. Aguardam por Nerudas, Rubens Paivas e Iaras. Pontes e aeroportos que levam nomes de torturadores e figuras desonrosas de nossa história não realizam a devida travessia. São metáforas concretas da inacabada luta democrática dos países latino-americanos.

Texto de Wadih Damous, no UOL

"Legião Urbana - 30 anos" chega a Porto Alegre em dezembro

"Legião Urbana - 30 anos" chega a Porto Alegre em dezembro

O ator André Frateschi se junta aos remanescentes Dado Villa-Lobos e Bonfá
Três anos após a sua última apresentação ao vivo, num espetáculo tributo que teve a presença do ator Wagner Moura como vocalista do grupo, a Legião Urbana volta aos palcos para uma turnê pelo país. Em Porto Alegre, o show acontece dia 11 de dezembro no Pepsi on Stage (Severo Dullius, 1995), às 22h. Os ingressos estão à venda entre R$ 240 (inteira) e R$ 125 (promocional) no primeiro lote. 

O projeto “Legião Urbana – 30 Anos”, além de comemorar o aniversário de três décadas do álbum de estreia com um relançamento cheio de raridades, colocará Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá juntos na estrada,  e promete emocionar os fãs. 

O show será dividido em duas partes: na primeira, o disco “Legião Urbana” será executado na sua ordem original. Na segunda parte, alguns dos clássicos da banda também serão incluídos no repertório, junto com cantores e cantoras convidados. Irão acompanhar Dado e Bonfá no palco: Lucas Vasconcellos (guitarra), Mauro Berman (baixo) e Roberto Pollo (teclado). Quem vai dividir os vocais com o público será o ator e cantor André Frateschi.

Sem chance de um retorno definitivo e permanente, essa será, provavelmente, uma das raras oportunidades de assistir ao legado do Legião Urbana ao vivo, apresentado pelos seus próprios criadores. 

O projeto

No começo deste ano, Dado e Bonfá receberam da EMI a proposta de lançar uma edição especial do primeiro disco homônimo da banda, produzido em 1985. Surgia então o projeto “Legião Urbana – 30 Anos”, que além de trazer o álbum original remasterizado, irá ganhar um CD extra, contendo algumas pérolas e raridades do grupo. 

As três musicas que o então trio brasiliense gravou em 1983, ainda com Renato Russo cantando baixo e cantando, por exemplo, estão nesse material bônus. O lançamento está previsto para o final do ano.

O processo de mexer com todas essas fitas, de ver aquelas fotos e, principalmente, de ouvir aquelas primeiras versões das suas músicas exatamente como elas foram criadas, despertou a vontade do Dado e do Bonfá de estarem juntos tocando de novo. 

Desse interesse surgiu uma segunda ideia: chamar alguns amigos e tocar o primeiro disco na íntegra. Mas, para evitar erros ou mal-entendidos, sempre deixando claro que não existe possibilidade alguma de “volta” da Legião Urbana.

Reprodução do Correio do Povo

E se Verônica Serra fosse filha de Lula?

Um título do site Viomundo, trazido ao Diário pelo atilado leitor e comentarista Morus, merece reflexão.
E se o filho de Lula fosse sócio do homem mais rico do Brasil?
Antes do mais: certas perguntas têm mais força que mil repostas, e este é um caso.
Bem, o título se refere a Verônica Serra, filha de Serra. Ela foi notícia discreta nas seções de negócios recentemente quando foi publicado que uma empresa de investimentos da qual ela é sócia comprou por 100 milhões reais 20% de uma sorveteria chamada Diletto.
Os sócios de Verônica são Jorge Paulo Lehman e Marcel Telles. Lehman é o homem mais rico do Brasil. Daí a pergunta do Viomundo, e Marcel é um velho amigo e parceiro dele.
Lehman e Marcel, essencialmente, fizeram fortuna com cerveja. Compraram a envelhecida Brahma, no começo da década de 1980, e depois não pararam mais de adquirir cervejarias no Brasil e no mundo.
Se um dia o consumo de cerveja for cerceado como o de cigarro, Lehman e Marcel não terão muitas razões para erguer brindes.
Verônica se colocou no caminho de Lehman quando conseguiu dele uma bolsa de estudos para Harvard.
Eu a conheci mais ou menos naquela época. Eu era redator chefe da Exame, e Verônica durante algum tempo trabalhou na revista numa posição secundária.
Não tenho elementos para julgar se ela tinha talento para fazer uma carreira tão milionária.
Ela não me chamou a atenção em nenhum momento, e portanto jamais conversei mais detidamente com ela.
Mas ali, na Exame, ela já era um pequeno exemplo das relações perigosas entre políticos e empresários de mídia. Foi a amizade de Serra com a Abril que a colocou na Exame.
Depois, Verônica ganhou de Lehman uma bolsa para Harvard. Lehman, lembro bem de conversas com ele, escolhia em geral gente humilde e brilhante para, como um mecenas, patrocinar mestrados em negócios na Harvard, onde estudara.
Não sei se Verônica se encaixava na categoria dos humildes ou dos brilhantes, ou de nenhuma das duas, ou em ambas. Conhecendo o mundo como ele é, suponho que ela tenha entrado na cota de exceções por Serra ser quem é, ou melhor, era.
Serra pareceu, no passado, ter grandes possibilidades de se tornar presidente. Numa coluna antológica na Veja, Diogo Mainardi começou um texto em janeiro de 2001 mais ou menos assim: “Exatamente daqui a um ano Serra estará subindo a rampa do Planalto”. (Os jornalistas circularam durante muito tempo esta coluna, como fonte de piada e escárnio.)
Cotas para excluídos são contestadas pela mídia, mas cotas para amigos são consideradas absolutamente normais, e portanto não são notícia.
Bem, Verônica agradou Lehman, a ponto de se tornar, depois de Harvard, sócia dele.
O nome dela apareceu em denúncias – cabalmente rechaçadas por ela – ligadas às privatizações da era tucana.
Tenho para mim que ela não precisaria fazer nada errado, uma vez que já caíra nas graças de Lehman, mas ainda assim, a vontade da mídia de investigar as denúncias, como tantas vezes se fez com o filho de Lula, foi nenhuma.
Verônica é da turma. Essa a explicação. Serra é amigo dos empresários de mídia. E mesmo Lehman, evidentemente, não ficaria muito feliz em ver a sócia exposta em denúncias.
Lehman é discreto, exemplarmente ausente dos holofotes. Mas sabe se movimentar quando interessa.
Uma vez, pedi aos editores da Época Negócios um perfil dele depois da compra de uma grande cervejaria estrangeira. Recomendei que os repórteres falassem com amigos, uma vez que ele não dá entrevistas.
Rapidamente recebi um telefonema de João Roberto Marinho, o Marinho que cuida de assuntos editoriais. João queria saber o que estávamos fazendo.
Lehman ligara a ele desgostoso. Também telefonara a seus amigos mais próximos recomendando que não falassem com os repórteres da revista. Ninguém falou, até mais tarde Lehman autorizá-los depois de ver os bons propósitos da reportagem.
A influência de Lehman sobre João Roberto se deve, é verdade, à admiração que Lehman e seu lendário Grupo Garantia despertavam na família Marinho.
Mas é óbvio que a verba publicitária das cervejarias de Lehman falam alto também. Um amigo me conta que em Avenida Brasil os personagens tomavam cerveja sob qualquer pretexto.
Isto porque as cervejarias de Lehman pagaram um dinheiro especial pelo chamado ‘product placement’, ou mercham, na linguagem mais vulgar.
O consumidor é submetido a uma propaganda sem saber, abertamente, que é propaganda. Era como se realmente os personagens tivessem sempre motivos para tomar uma gelada.
Verônica Serra, por tudo isso, esteve sempre sob uma proteção, na grande mídia, que é para poucos. É para aqueles que ligam e são atendidos pelos donos das empresas jornalísticas.
O filho de Lula não.
Daí a diferença de tratamento. E daí também a força incômoda, por mostrar quanto somos uma terra de privilégios, da pergunta do site Viomundo.

Reprodução de texto de Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Padre morre ao dar bênção final durante missa em Porto Alegre

Padre morre ao dar bênção final durante missa em Porto Alegre

Pároco ergueu as mãos para dar a bênção, teve um infarte e tombou ao chão, já sem vida, em frente à comunidade






Um padre morreu enquanto celebrava a bênção final em missa no Bairro Tristeza, em Porto Alegre, na noite de domingo (26). Segundo a assessoria de imprensa da Cúria Metropolitana, o pároco ergueu as mãos para dar a bênção final, teve um infarte fulminante e tombou ao chão, já sem vida, em frente à comunidade.
José Werle tinha 80 anos, sendo que há 53 anos atuava como padre. Ele era pároco da Sagrado Coração desde a fundação da mesma, em 1982.
Conforme a assessoria de imprensa, as pessoas que estavam na missa ficaram impactadas com o ocorrido. "Durante a missa, ele falou que estava feliz. Convidou para rezar a oração após a comunhão e simplesmente desabou", disse Lúcia Soldera, presente na celebração. 
José Werle está sendo velado na Igreja Sagrado Coração de Jesus (Rua Padre João Batista Reus, 1133 - Bairro Tristeza). Às 14h, haverá uma missa de corpo presente, e depois o corpo seguirá para o Crematório Metropolitano, onde serão feitas as orações de encomendação e de despedida. 
Reprodução de notícia na Rádio Gaúcha


sábado, 24 de outubro de 2015

Um filme de horror

Alguém que tivesse ido embora do Brasil em 2011 e voltasse agora acreditaria ter errado de país. Nada sobrou daquele país que acreditava estar em marcha irresistível para se transformar na quinta economia mundial e cuja presidenta alcançava cumes de popularidade. País que se vangloriava de ter escapado da crise de 2008 com uma impressionante velocidade de recuperação, além de vender para o mundo a imagem de ser o único BRIC que poderia realmente dizer possuir uma democracia consolidada.
Aquele que vem hoje ao Brasil encontra um país completamente paralisado, cuja população assiste, com um misto de sentimento entre o horror e a paralisia, aos lances diários de uma política gangsterizada levada a cabo por um casta que luta entre si não para saber qual será o programa a ser implementado, mas simplesmente para saber quem usufruirá do botim. Uma política que chegou ao ápice maior da hipocrisia. Um nível de hipocrisia difícil de suportar até mesmo para nós, acostumados a ter de lidar com uma classe política conhecida por frequentar as páginas policiais.
Por exemplo, é só mesmo como uma pantomima circense que alguém pode abrir o jornal nesta semana e ver a foto de alguns "doutos" ligados ao PSDB e alguns "representantes" de movimentos "anticorrupção" entregar ao "ilibado" presidente da Câmara, o sr. Eduardo Cunha, um enésimo pedido de impeachment. O mesmo senhor que mentiu descaradamente a uma CPI sobre a existência de contas suas na Suíça, que luta desesperadamente para preservar-se no cargo a despeito de acusações da Justiça Federal sobre seu envolvimento orgânico em corrupção na Petrobras e que, agora, cria factoides para tentar desviar a opinião pública de sua situação espúria.
O último de seus factoides é uma lei que visa a dificultar as práticas de aborto em um país cujas leis sobre o assunto são de uma violência brutal e arcaica contra as mulheres. De acordo com as novas leis que podem passar no Congresso, ficará mais difícil e humilhante provar casos de estupros, e mesmo a pílula do dia seguinte poderia parar de ser vendida. Não é à toa que uma lei deste quilate seja apresentada por um senhor que não tem pudor sequer para mentir a uma CPI.
Muito de seu sentimento de carta branca para chantagear o país deve ser creditado a setores hegemônicos da imprensa brasileira que relutaram em fazer seu papel. Em vez de fornecer ao país a ficha pregressa deste senhor e de atentar a opinião pública para sua procedência das hostes de Collor e PC Farias, assim como para os múltiplos casos de corrupção nos quais ele aparecia envolvido, veículos de comunicação preferiram vender a imagem de um líder combativo, que poderia enfim emparedar um governo combalido e eivado de corrupção por todos os lados. Um pouco como quem pensa que pouco importa a cor do gato, desde que ele casse o rato. No entanto, ninguém nunca viu ratos caçarem ratos.
Mas mesmos aqueles que procuram defender o governo de um impeachment deveriam reconhecer o que realmente está em jogo. Não estamos assistindo a alguma tentativa de golpe contra um programa popular de esquerda. Desculpe-me, mas Dilma não é João Goulart, nem Joaquim Levy é Celso Furtado. Estamos assistindo a uma luta sangrenta para saber que grupo comandará um programa já decidido de véspera, e que não mudará. Mesmo as pequenas margens de diferença que existiam entre a versão petista do programa e a versão tucana foram queimadas. Ou seja, o cenário está mais para luta florentina pelo poder por meio de jogos de bastidores do que para embate realmente político a respeito de concepções distintas da vida econômica e social. Por isto, em vez de procurar justificativas para a defesa contra o impeachment, servindo assim de anteparo contra um governo morto, melhor seria se estivéssemos realmente comprometidos em construir alternativas para além deste cenário de filme de horror.
Tudo isto é o resultado do que ocorreu em 2013. Na verdade, 2013 foi um dos mais importantes acontecimentos da história brasileira não por aquilo que ele produziu, mas por aquilo que ele destruiu. O Brasil de 2011 está longe porque ocorreu 2013. Desde então, ficou claro como nenhum ator político brasileiro, à esquerda e à direita, estava à altura dos desafios postos pelas manifestações, de suas demandas de reinvenção da experiência política e de nova partilha das riquezas. 2013 destituiu todos os atores políticos. A partir de então, a política brasileira virou o ringue de atores destituídos que lutam desesperadamente para impedir que algo realmente novo aconteça. Mesmo que, para justificar a imobilidade, eles precisem inventar um impeachment.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

O personagem do escritor de literatura

Semana passada, me vi mais uma vez performando no palco de uma feira literária. Nos últimos dez anos, ganhei mais dinheiro falando sobre meus livros em eventos pelo país do que com a publicação deles. Depois, costumo beber num bar de esquina numa daquelas cidades muito parecidas e tristes no meio do vazio do Brasil, me sentindo uma fraude absoluta.
Sempre repito uma fala preparada onde faço uma defesa da literatura a partir da frágil e utilitária ideia de que leitores de romances seriam pessoas melhores porque nestes, ao contrário dos livros de entretenimento e autoajuda, não haveria respostas prontas e sim perguntas. Esses questionamentos atuariam como lanternas a iluminar as arestas da sociedade, com claros efeitos políticos e morais.
Ler os livros certos, portanto, seria uma espécie de antídoto afirmativo contra a crueldade e um acelerador em prol da cidadania. Eu completo, via Vargas Llosa, que a literatura é um "desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte", e às vezes cito Antonio Cândido: "Assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade".
O problema é que essas já me parecem ideias bastante ingênuas, para não dizer completamente despropositadas e absurdas. Não há qualquer evidência ou estudo relevante que confie qualquer um destes efeitos mágicos à leitura de um livro –muito ao contrário.
É por isso que, ao final dessas mesas e debates, tenho que resistir a ideia de interromper os hesitantes aplausos e confessar que romances de ficção são tóxicos e ambíguos –e que o progresso da humanidade deve pouco a eles. Que a Europa ilustrada com Cervantes, Shakespeare, Dante e Tolstói escravizou gerações de negros, índios, analfabetos ou dissidentes políticos. Que Hitler, fanático entre outras coisas por Dom Quixote e Robinson Crusoé, lia um livro por noite e tinha uma biblioteca pessoal de 16 mil volumes, superada, no entanto, pela de outro grande leitor, Stálin, com 20 mil. Que livros não são como suplementos alimentares contendo doses de empatia e inteligência. Que a literatura não é um acelerador moral, não oferece redenção e não tem sentido ético em si.
E, finalmente, que a literatura deve negar completamente qualquer responsabilidade sobre a formação de leitores se ainda quiser ter alguma relevância fora dos picadeiros erguidos com dinheiro estatal para sustentar a ilusão simultânea de que ela 1) tem ou deve ter alguma centralidade cultural, 2) precisa ser salva como o urso panda ou uma borboleta em extinção e 3) não é uma forma de arte elitista por natureza.
E, enfim, dizer que a literatura é morta um pouco cada vez que alguém levanta a voz para defendê-la num desses palcos construídos para que ainda acreditem na sua existência. Deixá-la morrer me parece uma ótima ideia para salvá-la de si mesma.


Texto de J. P. Cuenca, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Israel, o medo e as faxineiras

Judeus e palestinos chegaram a um ponto de não retorno: ou se separam o mais depressa possível, ou vão se matar aos poucos, ou, o que seria ainda mais dramático, entrarão em uma nova guerra de independência (dos palestinos, que perderam a primeira, em 1948).
A sinalização mais clara de que se atingiu tal situação nem é dada, a meu ver, pelos atentados diários contra judeus e pelas mortes de seus praticantes ou de outros manifestantes palestinos.
Está em um fato menor do cotidiano, relatado pelo sítio "The Times of Israel". Jessica Steinberg, a correspondente para assuntos dos sabras (os judeus nascidos em Israel), relata que as faxineiras (árabes) da escola Efrata, no sul de Jerusalém, foram proibidas de trabalhar no horário em que as crianças (judias) estão na escola, justamente o horário em que são mais necessárias, como é óbvio.
A mudança de horário é fruto do medo de que as faxineiras façam como outras palestinas e decidam atacar a facadas a criançada.
Não é um caso isolado: o Canal 2 da TV israelense informa que em Givatyim, subúrbio de Tel Aviv, as faxineiras árabes estão sendo substituídas por refugiados eritreus.
Quando o medo chega a esse ponto, em um lado, e quando a desesperança é tamanha, do outro lado, que leva jovens à desesperada decisão de matar e morrer no mesmo ato, a convivência lado a lado torna-se claramente impraticável.
Que os judeus estão convencidos de que os palestinos querem matá-los a todos dão testemunho dois depoimentos.
Primeiro, o oficial, a versão do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu de que foi um sacerdote muçulmano de Jerusalém quem sugeriu a Adolf Hitler o extermínio dos judeus.
É um claro delírio, mas mostra que a mais alta autoridade israelense despreza a ocupação israelense como fonte dos atentados, posto que acha que os palestinos queriam exterminar os judeus antes que Israel fosse criado.
O jornalista David Horovitz ("The Times of Israel"), sem chegar a essa heresia histórica, escreve:
"Em sangrentas e inconfundíveis letras maiúsculas, os que perpetram essa nova rodada de violência diabólica proclamam aos israelenses: Nós não queremos viver ao lado de vocês. Queremos matá-los e forçá-los a sair daqui".
Do lado palestino, o sítio "Al Monitor" informa que um funcionário-sênior do setor de segurança da Fatah (a facção que controla a Cisjordânia) disse que os atentados destes dias são um ponto de virada, "mudando de resolução do conflito para volta ao conflito armado".
O funcionário acredita que, logo mais, o Hamas (o movimento radical que governa a faixa de Gaza) aderirá ao combate, bem como o Hizbullah do Líbano.
"Contamos com que o Egito e a Jordânia ao menos rompam relações com Israel", acrescenta.
E termina com a sinistra observação de que o cenário desenhado "não é uma ameaça, são planos".
Bravata? Talvez, mas são demonstrados cotidianamente o medo invadindo o dia a dia de um lado e o desespero marcando a fogo o outro lado. Como podem conviver?


Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo

Briga por direitos autorais cancela lançamento de box especial da Legião Urbana

Briga por direitos autorais cancela lançamento de box especial da Legião Urbana

Filho de Renato Russo e remanescentes da banda discutem sobre canção "1977"
Quando descobriu o tamanho da criatura que havia ganhado vida própria por suas mãos, Renato Russo foi ao microfone e proclamou ao mar de fiéis à sua frente: "A gente está aqui no palco, mas a verdadeira Legião Urbana são vocês". Agora, a verdadeira Legião Urbana, ainda mais numerosa do que na década de 1980, não deve estar feliz com os últimos acontecimentos que envolvem a longa batalha por direitos autorais entre o filho e único herdeiro do líder, Giuliano Manfredini, e os dois legionários remanescentes, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá.

Além da turnê que começa nesta sexta-feira, em Santos, e segue por várias cidades do país, os dois músicos já tinham em mãos um segundo projeto fonográfico pronto e acabado. Um box que traria dois discos, um livreto e potencial para provocar êxtase nos fãs: uma remasterização do primeiro álbum da Legião que completa 30 anos, com "Será", "Geração Coca-Cola" e "Soldados", e um segundo disco com sobras de estúdio e versões de músicas como algumas que a Legião tocou para mostrar à gravadora EMI quando chegou de Brasília ao Rio. O diamante é "1977", gravada e nunca lançada porque Renato não gostou do resultado e acabou desmembrando-a para dar origem a outros dois futuros canhões: a melodia inspirou "Fábrica" e parte da letra deu vida a "Tempo Perdido".

Com o box pronto, Dado e Bonfá então receberam o comunicado de que "1977" pertencia não a eles, mas a Renato Russo e a seu filho, Giuliano Manfredini. Imediatamente, publicaram também um documento que provava o contrário. Carimbado pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, a letra da música em papel timbrado da EMI revela as assinaturas da autoria da canção: "Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá".

Mesmo com a comprovação, foram informados de que a música havia sido registrada em 2003 no Ecad por Giuliano e, assim, desistiram de lançar o box. "A questão não é dinheiro, mas moral. O herdeiro de Renato tem colocado a integridade deles em questão", diz uma fonte ligada aos músicos que não quer se identificar.

Na noite desta terça-feira, Giuliano divulgou um comunicado em nome da Legião Urbana Produções Artísticas, sua empresa: "A decisão foi tomada unilateralmente pelos demais integrantes da banda", dando a entender que apoiava o projeto. Em um segundo parágrafo, menciona o registro do Ecad: "Os demais integrantes questionaram a autoria em uma tentativa de apropriação da música '1977', composta integralmente por Renato Russo e cujos direitos estão divididos entre Renato Russo (75%) e Legião Urbana Produções Artísticas (25%), como atestam os registros do Ecad". Dado Villa-Lobos também se manifestou sobre a questão. "A família registrou os direitos e não devemos mais lançar. É lamentável", afirmou. 

Simples registros no Ecad não confirmam a autenticidade de uma autoria. No máximo, podem gerar duplicidade e provocar investigação. O assunto só seria mesmo desenrolado na Justiça, algo que os remanescentes da Legião já disseram não terem mais energia para fazer. O tom do terceiro parágrafo do comunicado de Giuliano joga o abacaxi no colo de Dado e Bonfá: "No ensejo de manter viva e divulgar permanentemente a obra de Renato Russo, como sempre foi manifesto desejo do artista, a Legião Urbana Produções Artísticas deu total apoio ao projeto do referido álbum e considera a decisão por parte dos demais integrantes da banda de cancelar o projeto como uma tentativa de ofuscar o trabalho de preservação da memória de Renato Russo e impedir a livre circulação de sua obra artística".

O dilema de "1977", no entanto, não interfere na temporada de shows que vão comemorar os 30 anos de lançamento do primeiro disco da banda - um alento aos seguidores. Por enquanto, quem mais perde com o álbum jogado na fogueira das ambições é uma das maiores bases de fãs que uma banda de rock já teve no Brasil. Ou, como diria Renato Russo, a verdadeira Legião Urbana.

Reprodução do Correio do Povo