quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Com algoritmos e outras traquitandas, renova-se a fantasia de vencer a morte

Depois de certa idade, é bom ir tomando providências.
Não se trata só de testamento. Nem de instruções para o funeral. É preciso cuidar de suas contas na internet. O Facebook, por exemplo, oferece diversas opções. Já escolhi a minha, que é morrer e pronto.
Mas você pode transformar a sua conta em “memorial”. O Facebook guarda todas as suas informações, acrescentando ao perfil uma frasezinha compungida: “Em memória de… (ponha seu nome)”. Será um túmulo inviolável. Ainda bem. Imagine se pudessem mexer nas suas coisas, fazer de você amigo de Donald Trump, palmeirense ou são-paulino.
Não está satisfeito? Clique em “configurações de herdeiro” e nomeie um administrador para sua página.
Segundo o Facebook, ele “pode aceitar solicitações de amizade em nome de uma conta transformada em memorial, fixar uma publicação de homenagem no perfil, bem como alterar a foto do perfil e a foto da capa”.
Bela linguagem. Só falta registrar tudo isso em cartório.
Mas os advogados do Facebook se esqueceram de um probleminha. Talvez o Facebook morra antes de mim. Pelo que ouço, com o Instagram e outras geringonças, o nosso querido “Face” já é coisa “de velho”, encaminhando-se para o vasto cemitério onde repousam o email, o Orkut, o fax, o telegrama, o orelhão e os aparelhos de baquelite.
Natural. A tecnologia avança. Veja o estranho caso de James, o robô fantasma. Foi recentemente criado por uma firma de tecnologia britânica.
James Dunn manda mensagens, faz piadinhas, dá “likes”, briga, faz as pazes, chora e dá risada. Os amigos reconhecem seu estilo, seus gostos, seu vocabulário.
Mas o verdadeiro James morreu em 2018. Para ele, foi uma diferença, claro. Para os amigos, nem tanto. Com a quantidade de informações que James deixou na sua vida online, é possível prever e fabricar suas atividades póstumas.
Sem recurso ao espiritismo, torna-se possível conversar com o morto a qualquer hora. Desaparece o médium, e a mídia entra em cena. O robô James é apenas um primeiro passo, uma intelectualização, um algoritmo semovente.
Na Coreia do Sul o jogo é mais pesado. Com ajuda daqueles óculos de realidade virtual, foi possível à pobre Jang Ji-sung interagir com a projeção de sua filha, uma menina que morreu aos sete anos. 
É o que leio no jornal The Sunday Times do dia 16 de fevereiro. Não é impossível que, em breve, inventem um jeito de fazer a menina aparecer mais crescida, absorvendo as modas, comportamentos, roupas e cosméticos dos anos que virão. 
Até o momento, certamente, em que sua mãe venha a morrer, e ambas se encontrem nos subterrâneos de um circuito de silício.
Pode-se rejeitar esse tipo de exagero tecnológico. De resto, a fantasmagoria virtual serve, em tese, para consolar os vivos. Não resolve, é claro, o problema do morto. Por definição, é a minha própria sobrevida o que mais me interessa.
Voltamos, então, à prancheta de projetos. Ou melhor, ao velho papel e lápis.
Sim, porque no sempre ativo mercado educacional americano já existem os “workshops” de obituário. Você aprende a escrever sua própria nota fúnebre. 
Para que se preocupar com uma autobiografia, queixando-se das discriminações e injustiças que você experimentou ao longo da existência?
Faça justiça desde já. O curso te habilita a escrever uma notícia fictícia de como foi que você morreu, o que naturalmente é uma ajuda para quem precisa se acostumar com a coisa. 
Além disso, ao escrever um obituário antecipado, cada pessoa pode avaliar desde já o que fez e o que está deixando de fazer na própria vida. Cai a ficha de todos os sonhos que não concretizou, de todas as oportunidades que perdeu, e de todas as horas que passou sem fazer nada. Corrijo. 
De todas as horas que passou sem fazer nada na internet.
Mas —surpresa!—  todo aquele tempo perdido se guardou na memória do computador. É capaz de ressuscitar, pela fabricação de um outro eu, um eu virtual e eterno. 
Um eu proustiano, só que com o grave defeito de ser um eu sem consciência.
Nasce uma múmia eletrônica, que fala, pisca, conversa e dá lições (“de vida”?) para quem ainda está com a bateria carregada.
Uma última questão. A sobrevivência eletrônica talvez só seja possível porque, mesmo em vida, cada pessoa já está meio morta. Emite sinais robóticos, reage em bits; é um feixe de informações —e, quando morrer, talvez ninguém perceba de cara.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Saga dos aposentados

Nas reformas previdenciárias quase sempre aparece na boca dos proponentes um argumento que me choca: mexer no passado para não comprometer o futuro. O aposentado surge como um usurpador, aquele que, com seus ganhos, impediria novos investimentos e melhores salários para os trabalhadores na ativa. Sempre achei cedo alguém se aposentar aos 55 anos de idade. Mas considero, para muitos, tarde ter de esperar até os 65. Num país como o Brasil parte considerável da população está gasta aos 60 anos de idade. As reformas já passaram. Se falo disso é por ter ficado com esse incômodo latejando na cabeça.
      O aposentado não é um traste nem um parasita. Trabalhou, contribuiu, não veio ao mundo somente para produzir. Vivemos nossos fracassos cotidianos. O socialismo real mostrou-se incapaz de entregar o prometido. O capitalismo contenta-se em colocar todos contra todos. A aposentadoria por repartição patina na medida em que as pessoas vivem mais. A aposentadoria por capitalização vira distopia, como no Chile, quando chega a hora de parar de trabalhar. A tecnologia indica que caminhamos para um mundo do pós-trabalho. Como será? O que faremos? Adestrados para o produtivismo, temos medo de um mundo de pleno tempo livre. Se as máquinas fizerem o que fazemos, especialmente o menos interessante, qual será o nosso destino, a nossa utilidade?
      Essas perguntas revelam o nosso imaginário. Praticamente não sabemos pensar fora do caixa da produção de mercadorias. Marchamos para a aposentadoria e para a morte. Quando reformas previdenciárias aparecem, os preconceitos com a figura do aposentado se escancaram. Como pode um aposentado querer ter o mesmo salário ou o mesmo padrão de vida de quando estava na ativa? Como pode pretender ter os mesmos aumentos? O aposentado vira o inimigo das contas públicas. Os neoliberais sugerem que cada um deve se virar por conta própria. Se não poupou, que se dane. Ou que sobreviva com o máximo que o Estado deveria lhe dar: um salário mínimo. Ouve-se que se a educação não é melhor a causa estaria nos privilégios dos aposentados. Que inferno!
      Cheguei a uma conclusão tétrica: a melhor maneira de se aposentar, do povo de vista de todos os tecnocratas, é morrer na véspera de parar. Na minha utopia, o aposentado deveria ganhar mais do que na ativa para ter condições de viver melhor os seus últimos anos de vida. A sociedade deveria encontrar a fórmula necessária para que fosse assim. Se as cidades estão engarrafadas, o transporte coletivo deve prevalecer sobre o individual. Se a vida é curta, o bem-estar geral deve se sobrepor à ganância particular. Tenho minhas definições. Capitalista: indivíduo que acredita ser eterno. Por isso, quer acumular para sempre. Nada contra os capitalistas. Mas são estranhos.
A certeza da morte me faz concluir que é fundamental ter alguns anos de aposentadoria em plena saúde com boas condições materiais. Se cada um não consegue alcançar esse patamar, caberia à sociedade organizar-se para oferecer esse benefício. Foi o que me sugeriu, na República Dominicana, uma porto-riquenha radicada nos Estados Unidos.

Texto de Juremir Machado da Silva, em seu blog no Correio do Povo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Eu sou racista

No primeiro dia de aula da minha filha, eu e meu marido notamos que não havia uma única criança negra brincando pelo pátio. Isso nos causou um misto de tristeza com culpa.
Lamentamos o mundo ser assim e, ao mesmo tempo, nos incluímos nas pústulas do país em que vivemos.
Aquela correria alegre e saltitante de crianças brancas nos dizia tanto e era ensurdecedor: ou estávamos na escola errada ou erramos ininterruptamente por mais de cem anos e ainda não aprendemos nada com isso. 
De repente, uma garotinha negra passou por nós e parou a poucos metros, brincando de amarelinha. Eu e meu marido nos olhamos.
Nem tudo estava perdido em nossas vidas de adultos brancos tentando fazer do mundo um lugar menos medíocre para aplacar nossa culpa branca e medíocre.
Pobres de nós, consumistas desenfreados de memes de esquerda e pílulas de sabedoria rápida para não apodrecer no inferno. 
Eu não me aguentei e fui até a menina. “Bárbara”, ela me disse. E eu, esfuziante, dizendo que nunca tinha ouvido nome mais maravilhoso. Elogiei seu cabelo, seu sapato, seu colarzinho. Ela me achou uma idiota e foi correndo encontrar a professora e seus amigos de classe. Sim, Bárbara, eu sou uma completa idiota!
Voltei pra casa me sentindo um lixo. Fui ao encontro de Bárbara movida por contentamento e também por uma necessidade de estimular aquela criança a se sentir amada e acolhida.
E quem disse que ela precisava disso? E quem sou eu pra achar que posso dar tudo isso para ela? Do alto de que patamar de imbecilidade branca acho que posso entregar a uma garotinha negra, que só queria brincar em paz, o bastão da igualdade, a estátua do pertencimento?
Quem sou eu pra achar que uma criança, igual a todas as outras ali, precisava ser destacada pela minha histeria caridosa?
Por que frequento somente lugares em que o negro, quando presente, é alvo de nossos olhares vulgares de “ufa, pelo menos um”?
Por que, por Deus, tratei Bárbara como uma flor rara, delicada e frágil enquanto outras crianças ralavam joelhos na minha frente e estavam ali justamente pra isso? O nome disso, vai ver, é racismo. 
Eu vivo de cara feia. Eu sou a clássica “white people problems”, tipo “ai, meu marido isso, meu marido aquilo”. Sendo que Pedro é ótimo. “Ai, meu emprego”. Sendo que tenho ótimos trabalhos.
Mas eu vivo com uma carinha de bosta porque, além de ter dor crônica nas costas e viver com enxaqueca, sou uma idiota entediada pelas rasas imperfeições da minha bolha de privilégios.
Porém, se você cruzar comigo e for negra, automaticamente meu rosto se iluminará, minha voz ganhará doçura e eu vou começar a te elogiar tanto que periga você me falar que, desculpa aí, tem namorado ou namorada. 
Eu tenho tanto horror em imaginar que a minha “cara de nada” possa soar como arrogância que passei a, forçosamente, derramar amabilidade pelas ruas. Sabe que nome tem isso? Vai ver que é arrogância. Justamente. A estupidez é viciante e quentinha.
Meus antepassados racistas deixaram uma dívida tão infinita que nem 100 bilhões das minhas risadas e delicadezas pagariam.
Então, sigo nervosa, tola, culpada, forçada, sem saber onde enfiar minha alva cara de tacho. E isso é porque sou uma queridona legalzona de esquerda? Humana pacas?
Não, isso é porque sou uma babaca branca e, como já disse acima, provavelmente racista. Esse texto é um jeito de pedir socorro.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Os ignorantes, os ignorábimus e os simples de espírito

Ignorantes somos todos, porque é sempre pouco o tempo que temos para estudar, ler e tentar entender. 
Os menos ignorantes, aliás, concordam com Sócrates (segundo Cícero): “Só sei que nada sei”. Agora, há uma diferença grande entre ignorantes e ignorábimus (com acento, como substantivo da língua portuguesa). O que é um ignorábimus?
“Ignorabimus”, em latim, é uma voz verbal, que significa ignoraremos, e que ficou famosa por causa de um fisiologista alemão que, no fim do século 19, escreveu que sempre haveria coisas que a ciência não alcança: ignoramos e ignoraremos, foram as palavras dele. Isso pode parecer uma banalidade: afinal, o campo do saber é infinito. 
Mas eis que um grande matemático, David Hilbert, ao se aposentar em 1930, achou bom responder com uma frase que está hoje na lápide da tumba dele, no cemitério de Göttingen, na Alemanha, que visitei (iniciativa de meu pai) no fim dos anos 1950: “Wir müssen wissen, Wir werden wissen”, devemos saber e saberemos.
Hilbert aparentemente achava que qualquer fatalismo da ignorância podia estar ao serviço de um obscurantismo preguiçoso.
Falando em ignorância, Nicolau de Cusa, filósofo cristão, em 1440, publicou o famoso “De Docta Ignorantia”, sobre a douta ignorância. Para o cusano, que simpatizava com Sócrates, saber que somos ignorantes é o que alimenta nossa paixão de saber e entender mais.
Sem entrar em detalhes, o que importa é que nem Nicolau de Cusa acreditava na ignorância como virtude, longe disso. Trocadilho irresistível: o cusano não justificava os cuzões.
Mas quem faz, então, a apologia da ignorância? Quem acha a ignorância legal? Não acredito que o Deus cristão seja apologista da ignorância, mas certamente ele serviu e serve de boa desculpa. Veja-se o começo do sermão da montanha:
“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5:1-3).
Entendo que Cristo dava o passe do paraíso para os pobres de espírito porque eles não puderam estudar numa escola boa, ou não tiveram um professor decente ou cresceram numa casa tosca, em que o saber não tinha valor, ou algo parecido ou pior. 
Mas houve os que entenderam que Cristo, no sermão da montanha, fazia a apologia dos preguiçosos. Por exemplo, entre os séculos 12 e 16, houve cristãos para pensar que a ignorância e a burrice deles fossem uma bênção. Eles achavam, aliás, que, se cultivassem bem sua ignorância, Cristo lhes garantiria mais que um passe: um verdadeiro “hall pass” —um passe livre para a suruba. Ou seja, os simplórios, como já ganharam o paraíso por sua ignorância, podiam fornicar livremente. 
A Igreja não gostou, e eles foram eliminados.
Hoje, parece que os pobres de espírito voltaram. Só que, desta vez, a pobreza de espírito não serve para fornicar livremente (quem dera), mas para reprimir os outros. A lógica é: do alto de minha ignorância (que mantenho inalterada pois ela me garante o paraíso), imponho a todos o que acho certo ou errado.
Esses novos pobres de espírito têm a ignorância como programa de vida (de governo deles mesmos e dos outros). Não sabem e não querem se instruir. Eles são os ignorábimus. Como reconhecê-los?
São os mentecaptos que proíbem livros que nunca leram, aqueles que desprezam filmes que nunca viram, aqueles que organizam testes de conhecimentos nos quais eles mesmos nunca passariam, são os mentirosos (ou as mentirosas) que se declaram mestres e especialistas, mas não têm diploma algum, são aqueles que acham que nos livros de texto para crianças há palavras demais e é preciso “aliviar”, são aqueles (ou aquelas) que declaram que, lendo o Gênesis, os alunos aprendem geografia, história e matemática —por que estudar mais?
Os ignorábimus têm uma verdadeira paixão da ignorância. Talvez seja esta a maior descoberta da psicanálise —o que sobrará dela daqui um século ou dois: a paixão da ignorância começa, em cada um, pela vontade de ele ignorar seu próprio desejo e suas fantasias, sobretudo (mas não só) sexuais. 
Por isso, o ignorábimus odeia a cultura, porque a cultura sempre nos revela coisas que ignoramos sobre nós mesmos. 
Mas talvez essa explicação toda da paixão da ignorância não seja necessária. Talvez o ignorábimus, vestindo a carapuça do pobre de espírito do evangelho, esteja apenas procurando uma desculpa para sua infindável preguiça.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Justiça em vertigem

Nosso passado político recente aqueceu o tempo histórico. Um dos consensos dessa conversa coletiva é que junho de 2013 marcou aceleração dos tremores institucionais e sociais. O impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro são flashes do período, pontos culminantes a serem dissecados, interpretados e julgados.
A indicação ao Oscar do documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, revigorou o embate sectário a respeito do impeachment. Até o governo se prestou a fazer campanha ilegal contra o filme e a diretora. Qualidades e defeitos do testemunho foram ofuscados pela camisa de força binária que engole todo esforço de contar essa história.
Apenas duas versões explicativas, mutuamente excludentes, encontram eco. Quem mete a colher nesse imbróglio está fadado a ser classificado: ou se é contra o impeachment, ou se é a favor, e não sobram outras distinções relevantes dentro de cada grupo. Cada um que pegue a sua “narrativa” conforme sua preferência e simpatia.
Permanece interditado o debate desarmado, que acredite em interpretações melhores que outras, em leituras mais fiéis aos fatos, aos atos e às leis. Nem que para isso tenham de fazer concessões e encontrar versões híbridas fora da dicotomia sectária.
O protagonismo judicial, direto e indireto, no processo de impeachment é uma dessas facetas mal contadas e mal disfarçadas.
Um dos mais frágeis argumentos em favor da legalidade e legitimidade do impeachment invoca a participação do STF como atestado de regularidade. Frágil porque o STF restringiu-se a fiscalizar o procedimento do impeachment e não tocou no mérito.
A divisão funcional entre STF e Congresso não impede avaliação técnica do julgamento do Senado (a demonstração do crime de responsabilidade). E por favor não apele à ideia de que o impeachment é processo político-jurídico, ou jurídico-político, para desviar dessa avaliação. Crime de responsabilidade não é pastel de vento.
Frágil, em segundo lugar, porque no exame do procedimento, o STF omitiu-se em julgar atos de Eduardo Cunha na presidência da Câmara enquanto o impeachment corria. Aprovada a abertura do processo em 17 de abril de 2016, dias depois uma decisão monocrática do STF suspendeu o mandato de Cunha por obstrução de investigações.
Não ocorreu ao STF que o impeachment pudesse ser contaminado por presidente da Câmara que tinha motivos escusos para manipular o processo (os mesmos motivos que justificaram sua suspensão logo depois). “Se havia urgência, por que levou seis meses?”, perguntou Cunha. Ninguém respondeu.
O protagonismo judicial indireto esteve no cozimento do caldo do impeachment, estado de temperatura e pressão na esfera pública que bloqueou alternativas institucionais ao impasse.
Havia duas plataformas. De um lado, a Operação Lava Jato, que sincronizava seus atos e as fases do processo de impeachment metodicamente. Não foi coincidência. A sincronia com o tempo político-eleitoral permaneceu até as eleições de 2018. A outra plataforma era encarnada por Gilmar Mendes, que se sentava tanto no STF quanto no TSE.
Gilmar oferece um compêndio de comportamentos judiciais impróprios: trocou ideias com Aécio sobre o questionamento das eleições de 2014 no TSE (além das interações telefônicas enquanto cuidava de casos de Aécio); reuniu-se com Cunha para falar sobre impeachment; reuniu-se com Temer para falar 
sobre o julgamento do TSE. 
Tem mais, mas não precisa. Na biografia intelectual de Gilmar, o impeachment é um divisor de águas: suas teorias jurídicas, tanto da Lava Jato quanto do caso Dilma/Temer no TSE, passaram por duplo twist carpado entre o antes e o depois. Hoje, ele acusa os outros pelos males da “desinstitucionalização”.
O cozimento foi administrado pelo sistema de justiça, e não há nada de natural nisso. No Judiciário da política partidária ou magistocrática, a degradação avança. Abusos continuam a ser abusos mesmo quando favorecem tua posição política. E abusos mudam de lado, sem te explicar o porquê.

Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo

A impunidade nos crimes contra a vida

Toda morte importa. De acordo com o Monitor da Violência, o país teve 30.864 mortes violentas de janeiro a setembro de 2019, uma queda de 22% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Apesar da diminuição, o número ainda é muito alto e se traduz em uma morte a cada 13 minutos.
A redução dos homicídios, no entanto, não se estendeu às mortes violentas cometidas por policiais.
Ainda não há dado nacional para 2019, mas estatísticas de estados como Rio de Janeiro e São Paulo mostram que se acentuou a tendência de alta no número de mortes decorrentes de intervenções policiais já detectada em 2018, quando 6.220 pessoas morreram após intervenção policial, uma média de 
17 pessoas mortas por dia.
No caso dos homicídios, 15 unidades da federação ainda não são capazes de indicar quantos assassinatos são punidos, como mostra pesquisa do Instituto Sou da Paz.
Em 2016, somente 10% dos homicídios dolosos no Pará e 24% no Piauí foram convertidos em denúncias à Justiça. A falta de transparência e eficiência sobre as investigações das mortes decorrentes de intervenções policiais é ainda mais gritante.
Na maioria dos casos, o Ministério Público se isenta de buscar mais informações para esclarecer as circunstâncias e a legitimidade do uso letal da força por agentes do Estado.
A ausência de resposta para assassinatos brutais e a falta de transparência sobre as mortes violentas cometidas por policiais diminuem a credibilidade do poder público e passam a sensação de que tirar uma vida sai barato.
Adicionalmente, a impunidade é usada como justificativa por pessoas que defendem fazer justiça com as próprias mãos e buscam soluções extralegais. Essa combinação representa a quebra da relação de confiança entre Estado e indivíduos, base do que chamamos de contrato social.
Casos emblemáticos ajudam a chamar a atenção para a importância de se priorizar o esclarecimento dos crimes violentos.
Quase dois anos depois do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, sabe-se que houve tentativas de atrapalhar a investigação e ainda não se sabe quem é o mandante.
Os suspeitos presos pela execução das mortes são milicianos e ex-policiais. As munições usadas foram desviadas da Polícia Federal.
É inaceitável a Câmara ter aprovado o projeto de lei que extingue a marcação de munições compradas pelas polícias e as Forças Armadas.
O Senado precisa rejeitar a proposta e cobrar a marcação em lotes menores, fundamental para o trabalho de investigação.
Um episódio mais recente, a morte do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, em operação conjunta entre policiais da Bahia e do Rio de Janeiro, levantou perguntas que precisam ser respondidas.
O miliciano era testemunha de diversos crimes de corrupção que envolvem autoridades do alto escalão e de assassinatos cometidos pelo seu grupo criminoso, o Escritório do Crime.
Há poucos dias, Adriano disse ao seu advogado que seria vítima de uma possível queima de arquivo.
É essencial cobrar transparência nas investigações de sua morte para que não haja dúvidas que possam fragilizar a legitimidade da ação.
Há um debate em curso sobre a capacidade das instituições democráticas de resistirem às tendências autoritárias do atual governo do Brasil.
Para provar sua robustez e independência, as instituições precisam priorizar as respostas sobre crimes violentos.
A sociedade brasileira já sinalizou que não tolera mais certos tipos de crime, em especial a corrupção.
Para proteger a democracia, a indignação e a mobilização popular que colocaram esse crime na pauta prioritária do país podem e devem inspirar a população a ir além, e exigir soluções para os crimes contra a vida.
Afinal, esses atingem nosso bem mais valioso e o único que não pode ser restituído.

Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo

Incêndio que matou dezenas em Londres, em 2017, vira poesia

O fogo começou à 0h50, no quarto andar do prédio.
Era um curto-circuito na geladeira. Saía fumaça, e o alarme de incêndio tocou na hora. Foi fácil chamar os bombeiros. 
Eles chegaram seis minutos depois. Seria absurdo reclamar de atraso. Do lado de fora do edifício, que tinha 24 andares, só se via um pequeno clarão amarelo na janela do apartamento. Os moradores foram orientados a ter calma. 
Depois de entrar na cozinha, à 1h07, os bombeiros trataram de apagar o fogo, que entretanto tinha encostado no batente da janela.
Dentro do apartamento, eles não chegaram a perceber o que acontecia do lado de fora, com as paredes do prédio.
A torre Grenfell, no oeste de Londres, tinha se transformado numa coluna de fogo. Morreram 72 pessoas; cerca de 70 ficaram feridas. 
Os moradores eram na sua maioria imigrantes pobres. A primeira morte registrada foi de Mohammed Al-Haj Ali, um refugiado sírio.
Só no fim do ano passado as autoridades britânicas divulgaram o primeiro relatório da investigação sobre o acidente, ocorrido em junho de 2017. 
Uma coisa já se sabia, entretanto. O prédio tinha passado por uma reforma no ano anterior. Havia sido instalado um revestimento externo de alumínio. Ou melhor, de duas lâminas de alumínio com um recheio de polietileno (que é plástico, afinal de contas). 
Fico achando que aquilo era pouco diferente do que besuntar de graxa ou gasolina as paredes do edifício.
Muitos prédios na Inglaterra —no Brasil, nem pergunto— têm esse tipo de cobertura, e quem mora neles não sabe o que fazer. Vender o apartamento é impossível, trocar a fachada custa caro.
Temos tragédias suficientes em nosso país; não é o caso de perder o sono com o problema dos outros. 
Com as chuvas em Minas Gerais no mês passado, foram mais de 50 mortos. Enquanto escrevo, São Paulo está coberta de água e lama. Nem é preciso falar de Brumadinho. 
Chamo a atenção para o fogo na torre Grenfell porque a tragédia motivou uma resposta diferente daquilo que costumamos ver por aqui.
Recentemente, dois ótimos poetas britânicos lançaram livros tratando do caso. O primeiro, Roger Robinson, está perto dos 70 anos e é uma voz consagrada entre os escritores negros do Reino Unido. O segundo, Jay Bernard, é estreante.
Em “A Portable Paradise” (um paraíso portátil), da editora Peepal Tree Press, Roger Robinson escreve sobre “os desaparecidos”. São os que, durante o funeral das vítimas do incêndio, “começaram a flutuar/ e depois ficaram na horizontal, como se/ na cama.”
Eles passaram então “pelo corredor da igreja/ como se numa esteira rolante feita de ar”. Robinson descreve a ascensão desses mortos, que atravessam as portas góticas e “sobem para o céu, com os pardais dando exímios/ mergulhos entre eles.”
Dez ruas adiante, continua Robinson, “um marido tenta segurar pelos pés/ sua mulher que flutua”. 
A imagem recupera e transfigura a lembrança terrível de um incêndio vertical, de um prédio em chamas de onde pessoas pulavam em desespero.
Outro poema de Roger Robinson fala dos que, da calçada, assistiam à tragédia, com a luz dos seus celulares brilhando na noite. “E então o mergulho de alguns corpos, como cisnes.”
Também negro, e não-binário, Jay Bernard talvez seja ainda mais impressionante. 
Seu primeiro livro, que em inglês tem o título de “Surge” (levante) e foi publicado pela Chatto & Windus, compara o prédio queimado a um dique na frente de uma praia preta.
Quem passa pela calçada encontra os resquícios do incêndio, como coisas jogadas pela maré. Concha quebrada ou fragmento de osso? Pedra transparente ou olho de vidro? Com tudo carbonizado, seria isto “um lençol de cama”? Ou “a pele de um escravo”? 
No livro, Bernard fala de outro grande incêndio, ocorrido em 1981, em que morreram adolescentes negros numa festa de aniversário. Não há espectadores para a tragédia.
Há apenas uma voz que diz: “Papai, você veio. Fiquei aqui deitado a noite toda —e não conseguia me mexer [...] fiquei na festa por um tempo e eu não sei mais o que aconteceu —vi que alguém me segurou e eu estava rígido [...] e agora fiquei esperando por você aqui, papai, nessa mesa, com corpos e mais corpos do meu lado”. 
O Brasil, é claro, não é a Inglaterra. Sem dúvida, temos tragédias demais, e isso diminui nossa capacidade de reação. Mas, depois de ler Robinson e Bernard, espero que não tenhamos poetas de menos.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Posso criticar uma mulher sem ser considerado machista?

Com o objetivo de evitar vexames como as recentes declarações de Pedro Bial sobre a indicação de Petra Costa ao Oscar, os tuítes de José de Abreu sobre Regina Duarte e o vazamento tóxico ocasionado pelos “chernoboys” do BBB 20, o movimento feminista acaba de inaugurar um FAQ voltado para o público masculino. 
A ideia é responder a dúvidas comuns, diminuindo a taxa de cancelamentos e, de quebra, poupando a paciência de mulheres de todo o Brasil.
Posso criticar uma obra de arte feita por uma mulher sem ser considerado machista?
Pode, claro. Basta ter o mínimo de embasamento e alguns cuidados básicos. Observe se a sua crítica sugere que a artista é louca porque você não conseguiu extrair sentido da obra. Também evite menosprezar as motivações da autora dizendo que ela quis “chamar a atenção” ou “agradar a mamãe”.
Posso criticar uma mulher sem ser considerado machista?
Com certeza. É só fazer um pequeno esforço para enxergar o alvo da crítica para além de sua aparência física ou de sua sexualidade. Por exemplo, quando um homem diz que “não comeria” ou que “já comeu” uma mulher com o objetivo de diminuí-la, o feitiço acaba se voltando contra o feiticeiro. Elaborando melhor sua crítica, você também contribui com a luta das mulheres pelo direito de serem ofendidas apropriadamente enquanto nós priorizamos causas mais urgentes.
Posso flertar sem ser considerado um assediador?
Sim. O segredo é estar atento aos sinais. Um deles é quando a mulher se utiliza do advérbio de negação “não”, que significa recusa. Parece bobagem, mas muitos homens interpretam o não como um talvez ou até como um jogo de sedução. É mais simples do que parece: não é não. A segunda regra de ouro é evitar o contato físico. Você não está no hortifrúti para ficar apalpando, alisando e cheirando o que pretende comer. Se dê ao respeito se quiser ser respeitado.
Como posso ser machista se amo a minha mãe?
As estatísticas não mentem: cerca de 100% dos homens considerados machistas foram gerados em um útero. O fato de você ter mãe, avó, irmã, filha, namorada e até amigas, não anula erros, nem justifica acertos. É o tratamento que você reserva a mulheres com quem não possui um laço afetivo que vai revelar se você respeita ou não o sexo feminino.
Se você ainda tem dúvidas ou quer enviar sua sugestão sobre como o feminismo pode melhor atendê-lo, não perca tempo. Acesse agora nosso Fale Conosco —afinal, a cada dia que passa, sua opinião é menos importante para nós.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Para Steiner, um homem pode ler Goethe e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos

Será que George Steiner era “um completo charlatão”? O jornal Daily Telegraph dedicou um obituário ao escritor, que morreu no dia 3 de fevereiro. É um texto jocoso, cruel, displicente. E, a certa altura, o jornalista cita um acadêmico judeu (sem o identificar) que classificou Steiner nesses termos.
O acadêmico judeu, para que conste, era Isaiah Berlin, um pensador importante que, “malgré tout”, sempre teve alguns probleminhas de caráter.
Não sei se Steiner foi “um completo charlatão” em assuntos que não domino. Mas se Isaiah Berlin formulou questões de natureza política que entretanto assumi como minhas (“por que motivo a utopia não funciona?”; “a liberdade deve ter sempre prioridade sobre os demais valores?”; “em que sentido o pluralismo se distingue do relativismo?”), o mesmo posso afirmar sobre George Steiner.
Para ser mais preciso, existem duas questões que, depois dele, passaram a pairar sobre a minha cabeça agitada.
A primeira é conhecida: será que a alta cultura é uma barreira contra a barbárie? 
A tradição racionalista do Ocidente afirma que sim: conhecimento é virtude. O que significa que o mal provém da ignorância.
George Steiner nunca aceitou esse otimismo socrático-platônico. Como repetidamente afirmou, um homem pode ler Goethe ou saborear trechos de Schubert —e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos sem o mínimo abalo da consciência.
Pior ainda: como explicar que as instituições tradicionais nas quais repousa a alta cultura —as universidades, as artes, as editoras— tenham sido igualmente incapazes de evitar as catástrofes do século 20? Como explicar que elas tenham marchado voluntariamente com os carrascos?
George Steiner nunca nos deu uma resposta satisfatória para essas perplexidades. Mais: em doloroso paradoxo, Steiner era capaz de depositar toda a sua fé e esperança nas virtudes da alta cultura ao mesmo tempo que admitia as possibilidades de desumanização que a alta cultura encerra.
Em teoria, é importante ler Tolstói ou Dostoiévski. Mas até que ponto o contato com formas superiores de existência não nos torna imunes às formas mais banais de realidade ou sofrimento?
Como escreveu Steiner em “No Castelo do Barba Azul”, a loucura e a morte podem ser preferíveis ao tédio da vida burguesa. Raskólnikov, o personagem central de “Crime e Castigo”, escreve um ensaio sobre Napoleão —e, a seguir, “sai para matar a velha”.
As meditações humanistas (e anti-humanistas) de Steiner são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais. Mas existe uma faca maior: os judeus. Eles são a faca cravada na garganta da humanidade. 
Na versão tradicional, o antissemitismo ocidental, pelo menos até inícios do século 20 e envenenado pela pseudociência rácica, sempre bebeu na fonte bíblica.
Os judeus eram os assassinos de Deus, na figura do Seu filho; as perseguições e os “pogroms” antijudaicos partiam desse “crime” primordial.
Steiner discordava. O verdadeiro “crime” dos judeus não foi terem matado Deus; foi terem-no criado. Como é possível criar um Deus onipotente, onipresente, vigilante, exigente, castigador, quando os homens apenas desejam “voltar ao estábulo” para se espojarem “no seu politeísmo pagão, orgânico e permissivo”?
Quando Hitler afirmava que a consciência é uma invenção judaica, ele sabia do que falava. E falava com ódio, muito ódio, contra aqueles que tinham cometido semelhante afronta.
O ódio aos judeus, em Steiner, começa por ser um cansaço com os judeus (“judenmüde”), um cansaço com as expectativas elevadas que repousam sobre matéria tão animalesca. Entre Nietzsche (“torna-te aquilo que és”) e Deus (“torna-te em algo melhor do que aquilo que és”), o bárbaro não hesita.
Um completo charlatão? Direi apenas isso: se Steiner é um charlatão, Isaiah Berlin também é. Porque, ironicamente, o melhor desses dois pensadores judeus é bastante semelhante: um retrato contraditório, complexo, agônico da natureza humana.
Mas também um convite para sermos decentes —e, apesar de tudo, para cultivarmos a esperança melancólica dos céticos.
P.S.: Uma das melhores introduções ao pensamento de Steiner encontra-se no livro “George Steiner: À Luz de Si Mesmo” (Perspectiva), no qual é entrevistado por Ramin Jahanbegloo, que tem outro grande livro de entrevistas. Com Isaiah Berlin.

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Pobre de direita

Eu entendo você torcer o nariz para o rico de esquerda. “Então o cara mora num cinco quartos com pé-direito a perder de vista, de frente para a praça Vilaboim, e fica cagando regra sobre os direitos dos índios, dos mendigos e dos bandidos? Quero ver ele meter um menor infrator no sofá-cama da biblioteca.” Você me fala isso, e eu balanço a cabeça. Não gosto de você, não te convido para tomar kombucha em restaurante cabeça de Pinheiros, mas no fundo, lá no fundo, eu te entendo. A ignorância em mim saúda a ignorância em você. Até porque, talvez, apenas talvez, eu já tenha pensado assim.

Agora veja o caso de Estelita, empregada doméstica que trabalha para um casal morador do meu prédio. A “patroa” de Estelita comenta, no elevador, que a nova funcionária é “muito dócil, mas tem dias que dá trabalho”. Cogito lembrá-la de que Estelita não é um cachorro, mas para que dar continuidade a essa conversa horrorosa se posso simplesmente expor a vizinha escrota no jornal? Muito melhor! Diz também que Estelita veio cheia de “vontades”, porque “essas pessoas, depois do PT, ficam achando que têm mais direitos do que deveres”. Penso em pedir a essa criatura que se cale porque acabou o meu Vonau​ sublingual, mas, afortunadamente, alcançamos o andar térreo, e já posso respirar o ar podre de São Paulo. Qualquer fim de mundo é melhor do que essa senhora.  
Estelita é uma mulher cheia de graça e de charme. Usa piercing no nariz e exibe uma pequena constelação de estrelas na nuca. Tem um corpo com belas formas, ou seja: seria considerada gorda no shopping Cidade Jardim. Estelita, aos 14 anos, foi estuprada, a três quadras de casa. Aos 27 anos, quase morreu tentando abortar de um “casinho de dois dias” que bebeu todas e bateu em sua irmã mais nova. Aos 32, se casou, engravidou e, cansada de pagar sozinha as contas da casa e de sustentar vagabundo, pediu a separação. Apanhou na frente da filha.
Estelita, meus amigos, é de direita. E agora eu pergunto a você, a pessoa lá do primeiro parágrafo, que torce o nariz para o tiozinho que fuma charuto cubano enquanto ouve jazz e pede à cozinheira, que ele considera da família (mas faz trabalhar umas horinhas a mais sem pagar extra), que prepare algo leve para o jantar porque ele tem sofrido muito com gases. A cozinheira enfrenta uma úlcera há meses e perdeu o irmão com câncer recentemente. Mas os gases do tiozinho, ah, que problema! O tiozinho que estuda meios para que a nossa cultura não morra (porém, se for pagode ou funk, por Deus, que descanse em paz). Esse tiozinho, claro, tem defeitos. O aristocrata intelectual amigão dos desvalidos, óbvio, tem furos no discurso. A filha dele, feminista fervorosa, posso apostar, tem mais raiva quando o fiu-fiu vem do motoboy. Sim, você pode citar uma ou outra coisa real e relevante sobre a desonestidade cotidiana das boas e belas intenções. Mas, como eu dizia, agora eu pergunto a você: não o choca muito mais saber que Estelita é de direita? Não lhe parece infinitamente mais esquisito, maluco e triste que essa mulher, que tanto sofreu com o racismo, a pobreza, o machismo e a violência, defenda o partido (não apenas de direita, mas de extrema direita) dos preconceituosos, dos ricos, dos machões e das armas?
O tiozinho tem furos em seu discurso; Estelita tem furos em sua alma. Que façamos muitas crônicas para rir do tiozinho, mas, por ora, é urgente devolver a cada pessoa a exclusividade humana e tirar de suas costas o peso das massas (de manobra).

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O filme 'A Melhor Juventude' é de longe a melhor representação de uma geração de italianos

 Não perca, sob nenhum pretexto, “La Meglio Gioventú” (“A Melhor Juventude”), de Marco Tullio Giordana. O filme, de 2003, voltou recentemente aos cinemas. São seis horas, mas vi tudo no mesmo dia e queria mais.

“La Meglio Gioventú”, num italiano dialetal, significa “os melhores dos nossos jovens” e evoca um canto dos alpinos (tropas de montanha do Exército italiano). Mais de uma vez, com amigos, no breu e no frio, subi uma montanha para descer do outro lado, quando o sol nascia, deslizando entre as árvores, na neve intacta. Cantávamos a meia-voz “Sul Ponte di Bassano”: a música condizia com a abnegação no esforço.
“Sul Ponte di Bassano” fala do adeus dos alpinos que atravessavam o rio Brenta para enfrentar os austríacos, na Primeira Guerra Mundial. Entre 1915 e 1918, morreram mais de 600 mil soldados italianos. 
Vinte e poucos anos depois, nova versão, “Sul Ponte di Perati”: a divisão alpina Julia teve que invadir a Grécia, e a ponte de Perati marcava a passagem entre Albânia (na época, “italiana”) e Grécia: era a ponte sem volta. 
A primeira estrofe diz: “Sobre a ponte de Bassano [ou de Perati], bandeira preta, é o luto dos alpinos que vão para a guerra, a ‘meglio gioventú’ vai para baixo da terra”. 
A mesma música e mesma menção à “meglio gioventú” serviu para “Pietá l’é Morta” (a piedade é morta), canto dos “partigiani” em 1944-1945.
Duas vezes, a 20 e poucos anos de distância, os jovens da “meglio gioventú”, soldados, resistentes ou fascistas que fossem, foram para baixo da terra.
E o que aconteceu a seguir com “la meglio gioventú”, que tinha 20 anos no fim da década de 1960? O filme de Giordana é de longe a melhor, mais comovente e mais certeira representação dessa geração de italianos. Reflexões na margem, sem spoilers:
1) Em 1966, um jovem viaja pelo norte da Europa e escreve cartas.
Aos 13 anos, passei dois meses em Londres, para cultivar meu inglês. Meu irmão (que tinha 18) estava na praia, perto de Veneza, com a namorada. E meus pais davam uma volta ao mundo.
Ninguém sabia o telefone de ninguém. Eu tinha um dinheiro, que devia bastar, e só. Escrevi três cartas a posta-restante de cidades que meus pais visitariam. Recebi três cartas. Se adoecesse, se o dinheiro acabasse (acabou, de fato), se me sentisse triste, nada: vire-se —como gente grande.
Houve mais uma geração que conheceu a liberdade de ter que se virar. Depois disso, as crianças passaram a crescer num mundo acovardado, em que todos aceitam serem constantemente controlados em troca da sensação de que, graças ao celular, sempre dará para pedir socorro.
Fomos a penúltima geração sem celular. Sorte nossa. 
2) O filme começa com três jovens universitários preparando-se para os exames. Não era preciso ser universitário para que o estudo fosse prioridade absoluta. Uma vez, aos 11 anos, manifestei que estava com sono para terminar o dever de casa depois do jantar; meu pai sugeriu que tomasse um café forte. 
Estudávamos para acumular um patrimônio comum que nos permitiria um dia ler um manuscrito medieval iluminado junto com um amigo, reconhecer o velho Firs do “Jardim das Cerejeiras” num mordomo que aparecesse com duas crianças ou explicar a um menino órfão que seu pai era triste como Aquiles. Sem esse patrimônio, a vida é infinitamente mais chata, menos complexa, diversa e bela (diria Nicola, no filme). 
A cultura não evita que a gente tome as piores decisões. É possível tocar uma sonata em A menor de Mozart e, mesmo assim, cair na sedução da luta armada. A cultura apenas garante que, seja qual for a escolha, ela será intensa, parte de uma vida levada a sério.
Em 1940, um tenente da divisão Julia, antes de embarcar para a Grécia, passou a noite recitando líricos gregos, com meu pai. Ele foi morto no primeiro combate. Meu pai dizia que ele preferira ser morto a invadir a Grécia. 
3) Os quatro filhos de uma família sem riqueza estudam. Isso só era possível porque a escola pública era a melhor e aberta a todos. O ensino era conteudista, sem dúvidas pedagógicas. Senta a bunda e estuda —porque é interessante, e tua vida será mais interessante com conteúdo do que sem. 
4) Apesar dos processos de fascistas, brigadistas vermelhos e mafiosos que encerraram os anos de chumbo, entre 1969 e 1985, continuamos num mundo corrupto, vivendo uma história que nos escapa.
Mas, nos interstícios de infundáveis ignorâncias e ambições sórdidas, sempre é possível inventar vidas que valham a pena.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo