domingo, 21 de fevereiro de 2016

Ironia marcou a trajetória singular do italiano Umberto Eco

A trajetória de Umberto Eco é uma das mais singulares da cena intelectual. Em alguma medida, seu percurso biográfico colocou em cena o hiato, para muitos um abismo, entre o universo acadêmico e o mundo do entretenimento da indústria cultural, que se tornou onipresente após a Segunda Guerra e que hoje assume dimensão planetária.
Aliás, em meados do ano passado, uma declaração de Eco teve grande repercussão, pois ele considerava que as redes sociais haviam criado um tipo nefasto, embora caricato: o "idiota de aldeia" convertido em "portador da verdade". A intolerância e a agressividade, característica do "ethos" predominante na internet, teriam como base essa alquimia desorientada, o milagre da multiplicação dos pequenos profetas de plantão.
Formado em filosofia em 1954, a carreira acadêmica de Umberto Eco é das mais ricas e fecundas do século 20. Professor catedrática de semiótica na Universidade de Bolonha, escreveu alguns dos livros mais influentes na sua área de estudos, produzindo com vigor e celeridade pouco comuns.
Em 1962, lançou "Obra Aberta", ensaio no qual chamava a atenção para o dispositivo formal da obra de arte, que, partindo de um campo já conhecido, tende a ampliar suas possibilidades. Para tanto, o concurso do receptor é fundamental, pois cabe a ele atualizar o potencial de uma obra. Por isso mesmo, aberta. Abertura estrutural, deve-se acrescentar. Ao travar conhecimento com a poesia concreta e, especialmente, com a ensaística de Haroldo de Campos, com grande correção e generosidade, Eco reconheceu que o brasileiro já havia empregado a expressão "obra aberta" com a mesma intuição.
Intuição aprofundada em livros seminais, "Lector in Fabula" (1979) e "Os Limites da Interpretação" (1990). Neles, a noção-chave sugere que todo texto é, por assim dizer, uma partitura à espera de seu intérprete: o leitor. Todo ato de leitura supõe a criação de verdadeiras comunidades virtuais de produção e transmissão de sentido. No limite, a interpretação "individual" de uma obra determinada também é o resultado de camadas e camadas de leituras prévias.
Um exemplo basta para mostrar a fecundidade da ideia: depois da invenção goetheana de Hamlet como alguém incapaz de tomar uma decisão, como recordar que o "jovem" Hamlet tem exatos 30 anos, como se diz com todas as letras na famosa cena com o coveiro Yorick. A obra de Eco esclarece o que está em jogo nessa "superinterpretação", tema tratado em livro de 1992.
Em 1964, Eco publicou "Apocalípticos e Integrados", refletindo acerca de qual atitude tomar numa sociedade que se via literalmente invadida pela cultura de massa. Não se tratava de recusar esse bravo mundo novo, tampouco de se entregar sem reservas. O desafio centrava-se em encontrar uma linha tênue entre os furiosos apocalípticos e os velozes integrados.
Em 1980, com "O Nome da Rosa", Eco fez o improvável, reunindo trama policial, filosofia e teologia medievais, teoria semiótica, e uma miríade de alusões literárias, compondo um arco onívoro, que se estende de Aristóteles a Jorge Luis Borges e James Joyce. Esse complexo romance tornou-se um grande êxito internacional, chegando às telas do cinema com Sean Connery.
Uma saborosa ironia que o autor de "O Super-Homem de Massas" (1978) certamente soube apreciar.


Texto de João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada na UERJ, publicado na Folha de São Paulo

Umberto Eco é caso raro de sucesso de vendas com respeito intelectual


Umberto Eco, morto nesta sexta (19), aos 84, foi um caso raro de intelectual respeitado no meio acadêmico cujos livros foram enorme sucesso de vendas. Um pensador que transitava com a mesma desenvoltura em universidades prestigiadas e programas de televisão populares.
Eco já tinha uma carreira de quase 25 anos como autor de trabalhos acadêmicos influentes sobre semiótica, mídia de massa e filosofia medieval quando lançou, em 1980, o primeiro de seus sete romances. E foi um marco: "O Nome da Rosa", um mistério sobre uma série de assassinatos de monges ocorridos num monastério italiano no século 14.
"O Nome da Rosa" estabeleceu, pelo menos para o grande público, o estilo do Umberto Eco romancista: um criador de histórias envolventes e intelectualmente ambiciosas. Para completar o sucesso, Hollywood bateu à porta e fez uma versão resumida e ultracomercial do livro, com Sean Connery no papel do frade William de Baskerville e Christian Slater interpretando seu pupilo.
Eco nunca escondeu que não gostou da adaptação. Em 2011, disse ao jornal inglês "The Guardian": "Um filme não pode fazer a mesma coisa que um livro. Um livro como aquele era um sanduíche com peru, salame, tomate, queijo e alface. Mas o filme precisa escolher só o queijo e o alface, eliminando todo o resto: o lado teológico, o lado político etc.".

CONSPIRAÇÕES

Os romances seguintes de Eco não atingiram a popularidade de "O Nome da Rosa", mas mantiveram as características de sua ficção, que explorou temas de interesse do autor -conspirações, ciência, história medieval, religião, misticismo, semiótica- em tramas intrincadas sobre personagens estranhos.
Desses, os dois mais famosos foram "O Pêndulo de Foucault" (1988) e "O Cemitério de Praga" (2010).
O último livro de Eco, "Número Zero", lançado em 2015, periga ser a história mais real e "jornalística" escrita por ele. Certamente é a mais desesperançada e evidencia a decepção do autor com a sociedade e política italianas.
Eco deixa de lado as divagações filosóficas e a "erudição pop" de seus romances anteriores para contar, de forma simples e direta, uma trama de intriga e poder passada na Itália nos anos 90. O personagem principal é Colonna, um jornalista contratado por um magnata para comandar um novo jornal, "Amanhã", que o ricaço quer usar como arma para destruir a reputação de inimigos e aumentar seu cacife político.
Eco criou uma trama passada em um Estado corrupto e marcado por escândalos, e em uma sociedade que parece ter perdido a capacidade de se indignar, de tanto conviver com crimes e negociatas. Em alguns trechos, a impressão é de que Eco está falando do Brasil.


Texto de André Barcinski, na Folha de São Paulo

Obra minuciosa relata escândalo de tabloide de Rupert Murdoch

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Nova edição mostra que Álvaro de Campos segue novinho em folha

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Reprodução da Folha de São Paulo

Morre escritor italiano Umberto Eco, autor de 'O Nome da Rosa', aos 84


Morreu nesta sexta-feira (19), aos 84 anos, em Milão, o escritor e ensaísta italiano Umberto Eco. A causa da morte do autor, que tinha um câncer, não foi revelada.
Filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo, Umberto Eco era personalidade de renome no meio acadêmico. Sua obra mais célebre foi "O Nome da Rosa", livro que mistura a estrutura de um romance policial com referências eruditas. A obra, lançada em 1980, foi adaptada para o cinema seis anos depois pelo diretor Jean-Jacques Annaud.
No longa, Sean Connery interpreta o frade franciscano Guilherme de Baskerville, enquanto Christian Slater vive o noviço Adso von Melk. Ambos os religiosos investigam mortes que ocorreram em uma abadia no século 14.
"O Nome da Rosa", que vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzido para cerca de 30 línguas, foi a primeira obra em que colocou em prática suas teorias sobre a literatura, tendência que seguiria em seus outros romances.
Seu último livro, "Número Zero", foi lançado no ano passado como uma crítica ao mau jornalismo e à manipulação de fatos. À época, Eco disse: "Essa é a minha maneira de contribuir para esclarecer algumas coisas. O intelectual não pode fazer nada, não pode fazer a revolução. As revoluções feitas por intelectuais são sempre muito perigosas".
Ele também escreveu obras como "O Pêndulo de Foucault" (1988) e "O Cemitério de Praga" (2010), lançados no Brasil pela editora Record, além de "Tratado Geral de Semiótica" (1975) e "Apocalípticos e Integrados" (1964), publicados no país pela editora Perspectiva. Seus trabalhos eram usados em cursos de comunicação em todo o mundo.
Umberto Eco nasceu na cidade de Alexandria, na região de Piemonte, norte da Itália, em 5 de janeiro de 1932.
Contrariando os desejos do pai, que queria que ele fosse advogado, Eco entrou na Universidade de Turim para estudar filosofia medieval. Escreveu sua tese sobre o teólogo Tomás de Aquino e se formou em 1954. Diz que, enquanto estava na universidade, deixou de acreditar em Deus -um dos pilares de sua educação- e abandonou a religião.
Foi editor de cultura para a emissora estatal italiana RAI e deu aulas na Universidade de Turim. Durante o ofício no meio cultural, entre os anos 1950 e 1960, conheceu artistas que tiveram forte influência em sua decisão de seguir com a literatura.
Entre eles, destaca-se o Gruppo 63, coletivo literário de neovanguarda criado em 1963 por Francesco Agnello.
Em setembro de 1962, casou-se com Renate Ramge, uma professora de arte alemã com quem teve um casal de filhos. Dividia o tempo entre sua residência em Milão -onde tinha uma biblioteca com 30 mil títulos- e sua casa de veraneio em Urbino.
Em 1988, fundou o departamento de comunicação da Universidade de San Marino e, 20 anos mais tarde, tornou-se professor e presidente da escola superior de humanidades da Universidade de Bolonha.

CRONOLOGIA
  • 1932: Nasce Umberto Eco, em Alexandria, na Itália
  • 1946: Vira militante da juventude católica italiana, que vai abandonar em 1954, quando abandona o catolicismo
  • 1954: Forma-se Ph.D na Universidade de Turim
  • 1956: Publica sua tese de doutorado sobre São Tomás de Aquino
  • 1954-1959: Começa a trabalhar na rede de TV italiana RAI
  • 1962: Casa-se com a alemã Renate Ramge e publica "Obra Abera", antologia com seus ensaios
  • 1963: Ajuda a fundar o Gruppo 63, grupo contracultural influenciado por Roland Barthes, que analisa a cultura de massa
  • 1964: Lança "Apocalípticos e Integrados", obra na qual analisa a cultura de massa e os meios de comunicação
  • 1971: Começa a ensinar na Universidade de Bolonha
  • 1976: Publica "Tratado Geral da Semiótica"
  • 1980: Lança "O Nome da Rosa", que vira um best-seller internacional, traduzido para mais de 30 línguas
  • 1981: Ganha o Prêmio Médicis Estrangeiro e o Prêmio Strega por "O Nome da Rosa"
  • 1986: "O Nome da Rosa" vira filme, dirigido Jean-Jacques Annaud
  • 1988: Lança "O Pêndulo de Foucault"
  • 1993: Funda o Instituto das Disciplinas de Comunicação, na Universidade de Bolonha
  • 1994: Publica "Ilha do Dia Anterior"
  • 2000: Publica "Baudolino"
  • 2004: Publica "A História da Beleza" e "A Misteriosa Chama da Rainha Loana"
  • 2010: Lança "O Cemitério de Praga"
  • 2015: Sai o romance o "O Número Zero"

Reprodução da Folha de São Paulo

Harper Lee, ganhadora do Pulitzer por 'O Sol É para Todos', morre aos 89

A escritora Harper Lee, que ganhou o prêmio Pulitzer de ficção em 1961 por seu livro "O Sol É para Todos", morreu aos 89 anos, informou o "The New York Times" e outras publicações americanas nesta sexta-feira (19).
A autora nasceu em 1926, em Monroeville, no Alabama. Se mudou em 1949 para Nova York, onde trabalhou como auxiliar em companhias aéreas enquanto seguia com a carreira de escritora.
Oito anos mais tarde, apresentou o manuscrito do romance sobre o racismo e a injustiça no sul dos Estados Unidos para a editora americana J. B. Lippincott & Co., que lhe pediu para reescrevê-lo.
Lançada em 1960, a obra foi um sucesso comercial —vendeu mais de 40 milhões de cópias— e de crítica.
Já no ano seguinte, o romance recebeu o Pulitzer, principal prêmio literário americano, transformando-a em uma celebridade literária. Reclusa, sempre fez poucas aparições —mas nas poucas entrevistas que deu costumava se dizer surpresa com o sucesso de "O Sol...".
O livro conta a história de Atticus Finch, um advogado de uma cidadezinha que vai defender um homem negro acusado injustamente de estuprar uma mulher. O livro é narrada por Scout, filha do advogado.
O romance se tornou filme em 1962, com Gregory Peck no papel do advogado engajado Atticus Finch. Foi adaptado para o teatro em várias cidades norte-americanas e em Londres e ganhará versão na Broadway na temporada 2017-2018.
Até ano passado, Lee era considerada autora de livro só —até que um manuscrito inédito com alguns do mesmos personagens de "O Sol..." ser encontrado e publicado no ano passado. No Brasil, a obra recebeu o título de "Vá, Coloque Um Vigia" (José Olympio).
O novo romance não chegou às prateleiras sem controvérsias. Como Harper Lee costumava garantir que nunca mais publicaria um novo livro, os advogados da autora começaram a ser acusados de publicar a obra à sua revelia —uma vez que, com a idade avançada, a escritora não poderia mais decidir sobre si.
Alguns críticos apontaram que a obra não passava de um rascunho de "O Sol é Para Todos". Um dos motivos é o fato de Atticus Finch, advogado que defende os negros no livro mais famoso da autora, surgir em "Vá, Coloque Um Vigia" como um racistas que apóia a segregação dos negros.
Harper Lee era amiga de infância de outro escritor crucial nas letras americanas, Truman Capote. O pai dele chegou a presentear a dupla com uma máquina de escrever —e eles começaram a ditar narrativas um ao outro. Não à toa, Capote escreveu a orelha de "O Sol É Para Todos" —e ela foi assistente do autor na apuração da reportagem que virou o livro "A Sangue Frio".
Na faculdade, a Huntingdon College, a escritora começou escrever artigos para jornais literários. Depois de lá, ela foi estudar direito na Universidade do Alabama, para agradar seu pai, que também era advogado. Ali, ela chegou a editora-chefe de uma revista de humor do campus.
Depois de uma temporada no Reino Unido, ela se mudou para Nova York, em 1949. Chegou a trabalhar como livreira e em uma companhia aérea.
No começo, Harper Lee escrevia contos, mas recebeu conselho de um agente literária que escrevesse um romance. "Vá, Coloque Um Vigia", era o primeiro nome da obra, que só mais tarde ganhou o título "O Sol É Para Todos".


Reprodução parcial do necrológio da escritora Harper Lee, na Folha de São Paulo

O MPF se tornou um partido político?


Já são três citações sobre Aécio Neves na Lava Jato.
A primeira foi quando o doleiro Alberto Yousseff passou informações detalhadas sobre as propinas de Furnas para Aécio. O Procurador Geral da República Rodrigo Janot mandou arquivar.
Ontem, o Ministro Teori Zavascki, do STF (Supremo Tribunal Federal) acatou novo pedido de Janot e arquivou o inquérito aberto para apurar as menções do delator Ceará a Aécio alegando contradições nos depoimentos.
Para ser arquivado, é porque foi aberto um inquérito. Só se soube do inquérito quando do anúncio do arquivamento. Sigilo absoluto, enquanto vazavam informações sobre o senador Fernando Collor (até objetos íntimos foram alvo de vazamento) e sobre o deputado Eduardo Cunha.
Em casos similares, de contradições nos depoimentos, como em relação ao senador Lindberg Farias, ocorreu o oposto. Paulo Roberto Costa disse que o ajudou através de Yousseff. Em delação, Yousseff garantiu que nunca viu o senador. O caso tornou-se público e Janot ordenou que o inquérito prosseguisse. Dois pesos, duas medidas.
Ao mesmo tempo, Janot mantém na gaveta da PGR o inquérito aberto contra Aécio em 2010, por lavagem de dinheiro em uma conta em Liechtenstein em nome de uma offshore com sede em Bahamas. E empenhou-se pessoalmente em derrubar o inquérito aberto contra o senador Antonio Anastasia.
Enquanto isto, a Lava Jato trata como escândalo instalação de torres de telefonia em Atibaia e os procuradores do Distrito Federal vazam inquérito sobre os financiamentos do BNDES, sem ouvir o outro lado, escandalizando até informações banais – como o fato de uma cliente contumaz do BNDES, como a Odebrecht, liberar financiamentos em prazo inferior ao de um novo cliente.
Na primeira fase, a Lava Jato identificou brilhantemente todo o esquema de corrupção, inclusive prendendo os corruptos. Foi um período saudado pela recuperação de parte do dinheiro roubado.
Na segunda fase, perdoou um a um os delatores que aceitaram entrar no jogo político – que consistia em delatar os políticos do lado de lá e nada falarem sobre os do lado de cá.
A luta contra a corrupção foi um álibi para a luta política. Agora poderão voltar à sua vida normal, como Yousseff depois da delação premiada no caso Banestado.
Lição que fica: você pode praticar tranquilamente sua corrupção, desde que aceite fazer o jogo político dos seus inquisidores.
O caso Fifa
Sobre a cooperação internacional nas investigações do FBI sobre a FIFA.
1.         A Globo é peça central nos episódios, pois fechou os maiores contratos de transmissão com Ricardo Teixeira e João Havelange. Em todos os países, a emissora e a empresa de marketing formam um todo único. É o caso da empresa de J.Hawila com a Globo.
2.         Os Ministérios Públicos da Argentina, Uruguai, Chile, México há mais de um ano enviam  regularmente informações ao FBI para apuração dos crimes da FIFA, dentro do modelo da cooperação internacional,. O Brasil é o mais atrasado dos países da América Latina, o que tem provocado estranheza no próprio FBI.
3.         O MPF solicitou ao FBI as informações levantadas sobre a conexão brasileira do escândalo. No Rio de Janeiro, uma juíza de primeira instância barrou o envio e ordenou a devolução do material. Esse episódio ocorreu há um ano. Até hoje o MPF não logrou derrubar a determinação.
O que separa países civilizados de republiquetas é o exercício da isonomia, a noção de que a aplicação da lei pressupõe o primado da isonomia.
Pergunto: por acaso o Brasil tornou-se uma republiqueta, para aceitar passivamente essa quebra total de isonomia?
Pode ser que sim. Pode ser que não.
Mas não dá mais para esconder-se das críticas sob o argumento de que há interesses ocultos da parte dos críticos. Pouco a pouco, a imagem do poder defensor da cidadania, dos direitos difusos, o avalista dos tratados internacionais, vai se diluindo e abrindo espaço para uma imagem pouco dignificante, dos que se deixam seduzir pelo excesso de poder.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Impostos angolanos, serviços públicos suecos


Impostos angolanos, serviços públicos suecos

A carga tributária no Brasil é de 34,4%. O que isso quer dizer? Nada. O problema tem muito mais a ver com a forma com que a cobrança é feita

carga tributária do Brasil é de 34,4%. O que isso quer dizer? Nada. A do Chade é 4,2%, de Angola 5,7% e Bangladesh 8,5%. A do Reino Unido é 39%, da Áustria 43,4% e da Suécia 47,9%.
Alguém pode vir com alguns poucos exemplos de países que pagam menos do que nós e estão melhor, mas isso também não quer dizer nada.
O problema real tem muito mais a ver com a forma como é cobrado. Como já escrevi em vários textos, o Brasil cobra muito no consumoe pouco na renda.
Isso na média. Porque mesmo na renda se cobra pouco de quem está em cima e muito de quem está embaixo.
O resultado: A galera de baixo é a que mais sente; A galera do meio é a que mais paga, A galera de cima não sente e (quase) não paga.
Como assim? 
Se você ganha até 1.900 reais, como 66% dos brasileiros, não paga imposto de renda. Mas todo o seu dinheiro vai para a subsistência, que é taxada. Absurdamente taxada. E ainda usa um serviço público ruim.
Se você ganha entre 2.000 reais e 6.800 reais, como 25% dos brasileiros, pode pagar até 27,5%. E também gasta muito para sobreviver, então paga alto. Sobra pouco. E não quer usar o serviço público ruim, então sobra menos ainda.
Bom mesmo é quem ganha muito. Mas muito, aquele 1% de cima, sabe? Esse reclama porque a empresa dele é taxada, mas embute isso no preço dos produtos – aquele imposto que mata o resto dos brasileiros – enquanto tem sua renda isenta. Chamam de lucros e dividendos.
Sabe quantos países isentam lucros e dividendos? Dois. Brasil e Estônia.
Quando muito, essa galera de cima paga aquela média de 3% sobre o patrimônio, enquanto a média mundial está entre 8% e 12%. 
E aí ficamos discutindo se a CPMF é boa ou ruim. E por quê? Porque a galera do meio compra facinho o discurso de que a carga tributária é alta.
Só que a Suécia tem sete vezes mais dinheiro por habitante para gastar no serviço público. Mas a galera de cima não usa serviço público. Ela quer mesmo é pagar ainda menos imposto.
Então, vende esse discurso para a galera do meio, que passa a querer imposto baixo angolano e serviço público sueco. 
É isso. Reflita.

Texto de Rogério Godinho, na CartaCapital

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Ator de "Loucademia de Polícia" morre aos 98 anos

Ator de "Loucademia de Polícia" morre aos 98 anos

Causa da morte não foi revelada pela família
O ator finlandês George Gaynes morreu nesta segunda-feira, na casa da filha em North Bend, Washington. Ele tinha 98 anos de idade. A causa da morte não foi divulgada.

Gaynes ficou conhecido no Brasil pelas atuações como o comandante Eric Lassard em todos os sete filmes da franquia "Loucademia de Polícia" e pelo papel de Henry Warnimont (Arthur Bicudo), o pai adotivo da protagonista Punky Brewste na série norte-americana dos anos 1980 "Punky, a Levada da Breca".

Ele também esteve no elenco do filme Tootsie (1983) e tem no currículo participações em longas como Nosso Amor de Ontem (1973) e Mera Coincidência (1998), sendo o último deles Recém-casados (2003). Gaynes também atuou em produções como Hawaii 5-0, Bonanza, O Homem de Seis Milhões de Dólares e Guerra, Sombra e Água Fresca.
Reprodução do Correio do Povo

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Lula: matar o mito para encerrar o ciclo

Quando Juscelino Kubitscheck morreu, em 1976, viu-se que deixou uma fazendinha em Luziânia e um apartamento no Rio de Janeiro. E, no entanto, nos anos que se seguiram ao golpe de 1964, a ditadura forjou a lenda de que fora cassado porque era corrupto e roubara muito durante a construção de Brasília. JK foi cassado porque era o mito eleitoral e político daquele tempo, o candidato mais forte às eleições presidenciais que estavam marcadas para 1965. O triunfo da nova ordem política erigida pelos militares exigia a destruição do mito JK, o presidente que mudara a face do Brasil acelerando a industrialização e interiorizando a capital. Mataram o mito. Depois, o pleito de 1965 foi desmarcado e os brasileiros só votaram novamente para presidente em 1989. Para visitar a cidade que criara, ele vinha a jantares clandestinos organizados pela amiga Vera Brant.

Na segunda morte de JK, a morte física em 1976, estudantes, candangos e centenas de brasilienses acompanharam o féretro da Catedral até o cemitério Campo da Esperança cantando o "peixe vivo" e gritando "abaixo a ditadura". Foi a primeira grande manifestação política de que participei.

Antes de JK, a caçada a outro mito também relacionado a mudanças sociais e econômicas de viés popular, havia terminado com o suicídio de Getúlio Vargas, que com o tiro no peito adiou em dez anos o golpe de 1964.

Há uma clara semelhança entre o assassinato político de JK pela ditadura e a caçada Lula para abrir caminho a uma troca de guarda no poder. Para colocar um fim à ordem política instaurada pelo PT com a chegada de Lula à presidência em 2002 é preciso acabar não apenas com a ideia de que os governos petistas promoveram os mais pobres à cidadania, reduziram a desigualdade, resgataram milhões da miséria e mitigaram, com políticas afirmativas a nossa dívida histórica para com os negros e afrodescendentes. É preciso apagar a ideia de que a Era Lula produziu um invejável ciclo de crescimento e instaurou, com Celso Amorim, uma política externa altiva que garantiu ao Brasil uma projeção internacional sem precedentes. Não basta também apenas a desqualificação eleitoral do próprio PT, por erros cometidos e por erros que são do sistema político. É preciso destruir o mito projetado por estas mudanças, o mito Lula.

Em janeiro, afastada das lides diárias do jornalismo, acompanhei de longe a abertura da temporada de caça a Lula. O que se prenunciava desde o início do ano ficou claro em 27 de janeiro com a Operação Triplo X, que a pretexto de investigar lavagem de dinheiro pela OAS através da venda de apartamentos no Edifício Solaris, mirou Lula e o tríplex que ele cogitou comprar mas nunca adquiriu. De lá para cá os caçadores se espalharam e se armaram, obtendo agora do juiz Sergio Moro a autorização para abrir um inquérito específico destinado a investigar se as empreiteiras beneficiaram Lula ilegalmente através de obras num sítio de amigos de sua família.

Se Lula não tem um tríplex, o crime estará em ter pensando em possuí-lo? Há muitos meses eu o ouvi contar a amigos o que dissera a sua mulher Marisa para que desistissem do apartamento e resgatassem o valor da cota já pago. "Marisa, eles nunca vão nos aceitar como vizinhos num prédio como aquele. Não vão querer andar de elevador com a gente. Vamos desistir disso antes que comecem os aborrecimentos". Era tarde, vieram mais que aborrecimentos. Vieram acusações difusas, sem forma clara, sem fundamentos sólidos mas corrosivas para o mito. O "tríplex do Lula" passou a existir no imaginário popular, embora não exista na escritura.

Agora, com o novo inquérito, querem provar que o sítio de Atibaia não é de seus donos, mas de Lula. E que empreiteiras investigadas pela Lava Jato investiram nele numa forma indireta de pagar propina ao ex-presidente. É isso que querem provar, embora não digam. Mas no imaginário popular a narrativa já colou. Outra ferida no mito.

Feri-lo porém não basta. A destruição de um mito exige mais, exige sua completa humilhação, exige a retirada de toda e qualquer aura de veneração e respeito. Para isso será preciso processar, condenar, trucidar. Será preciso prender Lula. É a este ponto que desejam chegar os caçadores de Lula, para que nada reste da admiração pelo presidente que saiu da miséria extrema do Nordeste, tornou-se operário, liderou greves, fundou um partido, aceitou as derrotas e um dia venceu a eleição presidencial, tornando-se o presidente brasileiro mais popular internamente e o mais conhecido e respeitado lá fora. "O cara", como disse Obama, precisa ser reduzido a pó.

Lula talvez tenha subestimado a sanha dos caçadores e se atrasado na defesa. Certamente cometeu alguns erros na estratégia de defesa. Do PT combalido, pouco pode esperar. Mas certamente algo ainda espera dos que ainda acreditam nele. Se planeja em algum momento denunciar à sua base política e social a natureza política da caçada que enfrenta, o momento chegou. A hora é de crise para todos e isso não favorece reações populares. Mas ainda que seja como prestação de contas aos que o levaram à glória e assistem à sua destruição sem ouvir um chamado, Lula precisa fazê-lo.


Reprodução do Brasil 24/7, via Jornal GGN

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Comunista e traidor

Cresci militando na esquerda. E sempre escutava o mesmo bordão: "Por que você não vai para a Rússia ou para a Bulgária (que era mais pobre ainda) ver o que é bom para a tosse?".
Eu sabia que detestaria viver em qualquer país do outro lado da Cortina de Ferro. Já tinha viajado por aquelas bandas, várias vezes. E juntara um catálogo de experiências que era suficiente para preferir a Itália –mesmo com a dita Democracia Cristã, a injustiça e a breguice dos emergentes do "milagre" do pós-guerra.
Melhor aquela Itália do que a Bulgária do começo dos anos 1960, em que uma menina tinha pedido para que eu lhe mostrasse uma coisa que ela não tinha, sonhava em ter e achava que nunca teria –nenhuma alusão ao órgão sexual: o que ela queria ver era meu passaporte.
No dia seguinte, no saguão do hotel, em Sófia, ela foi embora entre dois agentes que pareciam desenhados pela Marvel para assustar. De longe, ela me fez um sinal para não me preocupar. Essa história me dói ainda hoje. Onde está James Bond quando a gente precisa dele?
Em suma, eu queria que a Itália inventasse "seu" socialismo; não tinha a menor vontade de que o país atravessasse a Cortina de Ferro. E, se fosse mesmo para dividir o mundo em dois blocos, cada um com seus países satélites, preferiria que fôssemos um satélite dos Estados Unidos.
Tanto faz. O que importa é que, naquelas primeiras décadas depois da Segunda Guerra, falar sobre projetos de sociedade se tornou quase impossível.
Pensei nisso, intensamente, assistindo a "Trumbo: Lista Negra", de Jay Roach. Bryan Cranston (o protagonista de "Breaking Bad") é Dalton Trumbo, talvez o melhor roteirista de Hollywood no fim dos anos 1940.
A história é verdadeira: Trumbo e mais nove (quase todos roteiristas) foram investigados pelo Congresso dos Estados Unidos por terem sido ou serem comunistas ou socialistas. Como eles não cooperaram com a comissão do Congresso (uma espécie de CPI), eles foram presos por um ano.
Durante mais de uma década, a indústria de Hollywood colocou 300 roteiristas, atores, músicos, diretores (Charlie Chaplin e Orson Welles entre eles) numa lista negra de pessoas impedidas de trabalhar: o filme que os empregasse seria boicotado por uma associação de figuras sinistras, entre as quais se destacava John Wayne.
A perseguição acabou quando os "Studios" de Hollywood (começando por um grande ator e um grande diretor) decidiram não aceitar mais a chantagem da denúncia por "antiamericanismo".
Agora, a força dessa chantagem na opinião pública não tinha muito a ver com algum horror que inspirariam as ideias socialistas (a maioria dos cidadãos as ignorava totalmente).
Acontece que a Guerra Fria tinha conseguido impedir qualquer debate de ideias, porque transformara uma divergência de opinião num crime de traição. Você é comunista? Você é um agente soviético. Você é liberal? Você é um agente dos EUA.
Saí de "Trumbo" pensando três coisas: primeiro, que a coragem é sempre admirável –no caso, a coragem de não se desmentir.
Segundo, que é incrível que, hoje, Bernie Sanders, um candidato viável à presidência dos EUA, possa se declarar socialista, apresentar suas ideias e não ser acusado de traição. O fim da Guerra Fria serviu para alguma coisa.
Terceiro, que talvez Stálin tivesse razão. Essa vou ter que explicar.
Depois da morte de Lênin, em 1924, Trótski pensava que a revolução soviética deveria incentivar outras revoluções socialistas mundo afora (deu, como exemplo, Che Guevara e Régis Debray na Bolívia etc.), porque o comunismo só seria viável se o mundo inteiro fosse comunista. Stálin, ao contrário, achava possível construir o socialismo num só país.
Trótski foi derrotado, exilado e, mais tarde, em 1940, assassinado (sobre essa história, leia o lindo livro de Leonardo Padura, "O Homem que Amava os Cachorros", lançado pela Boitempo).
Mas, em sua grande maioria, a esquerda internacional pensou que Stálin trocava a esperança revolucionária de todos os povos pela constituição de uma burocracia nacional tacanha.
Claro, Stálin era detestável, mas, sem o espantalho do sonho internacional trotskista, quiçá tivesse sido possível, nas décadas passadas, pelo vasto mundo, ser socialista ou comunista discutindo ideias, sem ser demonizado como traidor da pátria. Aqui no Brasil, por exemplo, sem ouvir: se você não gosta do país, "ame-o ou deixe-o".


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Mea-culpa tucano


Depois de flertar com a irresponsabilidade fiscal em 2015, o PSDB promete não acender mais o pavio das pautas-bomba na Câmara. É o que diz o novo líder do partido, o baiano Antonio Imbassahy.
Em setembro passado, o deputado foi um dos 51 tucanos que votaram pela derrubada do fator previdenciário, regra criada no governo FHC para evitar as aposentadorias precoces.
O ex-presidente reclamou, e a sigla foi acusada, com razão, de apostar no "quanto pior, melhor" para desgastar o governo. Cinco meses depois, Imbassahy afirma que a bancada errou nessa e em outras votações com impacto nas contas públicas.
"Cometemos algumas extravagâncias no ano passado. Foi uma coisa fora da nossa história, nós reconhecemos isso", penitencia-se o deputado, que substituiu o paulista Carlos Sampaio na liderança do partido.
O tucano estende a autocrítica a outras propostas que atrapalharam o ajuste fiscal, como os aumentos indiscriminados para o funcionalismo. "Não cabe à oposição fazer coisas malucas. Essas pautas eram corporativas e fisiológicas. Apoiá-las foi um erro danoso ao partido", afirma.
Em 2016 a atitude do PSDB será diferente, diz Imbassahy. "Não faremos nada para sabotar o ajuste. Vamos facilitar o que for necessário para revigorar a economia, com a condição de não apoiar a criação de novos impostos, como a CPMF."
Apesar da promessa de colaboração com o Planalto, o tucano não desistiu de pedir o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ele reconhece que a tese perdeu força, mas conta com sua retomada em março.
Imbassahy também promete defender a queda de Eduardo Cunha, com quem o PSDB manteve uma aliança branca em 2015. "Nosso entendimento é que ele não tem mais condições de permanecer na presidência da Câmara", afirma. Perguntei se ele frequentará a residência oficial do peemedebista, como fazia o seu antecessor. "De forma alguma", prometeu o novo líder tucano.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

O xadrez da Lava Jato e a incógnita Janot

Vamos por partes, para fechar o raciocínio. Começando por questões já de conhecimento geral.
Peça 1 - a campanha contra Lula tem caráter eminentemente político.
No início os vazamentos da Lava jato se valiam do álibi de que era necessário criar a comoção popular para superar os obstáculos nas instâncias superiores. Hoje em dia, com a operação sendo amplamente avalizada nos tribunais superiores, a continuidade do vazamento há muito deixou de ser uma estratégia jurídica para se tornar uma arma política. Especialmente analisando-se o nível dos vazamentos, buscando muito mais expor a vida privada de Lula do que levantar aspectos jurídicos.
Peça 2 - a política de vazamentos é avalizada por toda a força tarefa da Lava Jato.
Desde o início, a Lava Jato tem pautado sua atuação por total disciplina e concordância de todas as partes em torno das estratégias traçadas. Portanto, as decisões - inclusive quanto aos vazamentos - são coletivas, tendo o endosso das partes.
Peça 3 - os vazamentos estão claramente articulados com a estratégia pro-impeachment da oposição.
O xadrez é nítido:
1.    A campanha do impeachment esfria no final do ano e com o desgaste dos opositores, devido ao fato, entre outros, da enxurrada de denúncia do ano passado ter virado notícia velha. Sem carne fresca não haverá como estimular a besta.
2.    Dilma tenta retomar o protagonismo, com o reinício do Conselhão, a mudança no Ministro da Fazenda, a articulação política com novo fôlego, com Jacques Wagner e Ricardo Berzoini.
3.    No dia 13 de março haverá o próximo desafio das manifestações de rua pró-impeachment. Se esvaziadas enterram de vez a tese do impeachment.
Nesse intervalo, procuradores e delegados articulados com a mídia garantem munição para um bombardeio incessante e diuturno.
E aqui se faz uma pequena pausa para relembrar alguns princípios de estratégia militar que foram largamente assimilados no século 20 na disputa política pelo mercado de opinião.
Inicia-se a guerra com as chamadas batalhas de exaustão, aquelas em que se recorre maciçamente a bombardeios aéreos ou em terra, visando exaurir as energias e a vontade de batalhar dos adversários. No caso do mercado de opinião, a artilharia de exaustão é a mídia com a chamada publicidade opressiva.
Depois, entram em cena a cavalaria (os tanques), abrindo espaço para a infantaria. No caso, a formalização dos inquéritos através de processos na Justiça e CPIs no Congresso.
A vitória final se dá apenas quando a infantaria consegue controlar o espaço adversário. Isto é, quando os aliados do grupo conseguem levar a cabo o impeachment.
Mídia, procuradores e delegados estão nitidamente na fase inicial, das chamadas guerras de exaustão.
Peça 4 – o principal beneficiário de um eventual impeachment seria o senador Aécio Neves.
Impeachments não se fazem no vazio. A não ser a besta – a massa de manobra – ninguém entra em um processo de impeachment sem ter noção clara sobre os vencedores. O PSDB tem três candidatos a candidatos em eleições presidenciais. O único deles que ganharia com a antecipação das eleições – na hipótese de impeachment – seria Aécio Neves.
Até aí, nenhuma novidade. São tão nítidos esses movimentos que não há prazer intelectual nenhum em desvendá-los. Os mistérios que rodeiam a Lava Jato estão alguns degraus acima, no Executivo e nas cúpulas do Ministério Público Federal, Polícia Federal e Poder Judiciário.

Os personagens dessa trama

Grosso modo, há cinco tipos de personagens nessa trama. Contra o impeachment os militantes do PT e os defensores da legalidade. A favor, os conspiradores ostensivos, os conspiradores que desempenham papel ativo na conspiração, mas sem se revelarem, e os intimidados pelo rugido da besta (a opinião pública nas ruas).
Não é tarefa difícil identificar em qual dos escaninhos da história colocar personagens como Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Ayres Britto, Globo, Folha, Estadão, Abril.
Enfrentar a besta – a voz das ruas -  exige mais coragem do que enfrentar as baionetas, especialmente para aqueles que prezam sua reputação.  Enfrentar as baionetas sujeita a pessoa até a torturas físicas, mas engrandece a reputação. Enfrentar as ruas, e os ataques à reputação, exige uma coragem e desprendimento apenas disponíveis nos grande homens, como o Ministro Luís Roberto Barroso.
Torna-se muito mais complicado analisar o papel de três personagens: a presidente Dilma Rousseff, o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o Procurador Geral da República Rodrigo Janot. Os três são responsáveis diretos pelo nível do abuso em que incorre diariamente o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, como partícipes do linchamento midiático de Lula.
Dilma e Cardozo são um pouco menos difíceis de entender.
Dilma é uma mulher de uma coragem à toda prova, mas desde que saiba o que fazer. As sutilezas do jogo político decididamente não são a sua praia. Ela está imobilizada não pela falta de coragem, mas por não saber como agir. Mais: é capaz de enfrentar as piores torturas físicas sem ceder. Mas não tem a menor estrutura psicológica para enfrentar ataques à reputação. Foi por aí que a frente pro-impeachment conseguiu imobiliza-la.
Quanto a Cardozo, não tem a menor vocação para tomar decisões. Perdeu o controle da Polícia Federal muito antes da Lava Jato. Por ocasião do episódio da Telexfree altos funcionários da PF já reclamavam quase abertamente do abandono a que foi relegado o órgão na sua gestão.
Aí ele escolheu a pior maneira de contemporizar. Em troca da PF não exigir nada dele, ele não exigiria nada da PF, nem controle administrativo. Não faz nada contra para não ter que fazer nada a favor. A liberdade dada não amainou as mágoas; e a autonomia conferida potencializou os atos de represália. E, assim, a PF tornou-se uma polícia política.
Jogou todo esse desastre na conta de um duvidoso republicanismo. Aparentemente, Dilma foi na sua conversa.

Janot, a grande interrogação

E aí se entra na grande interrogação: o Procurador Geral da República Rodrigo Janot.
Janot é fundamentalmente um procurador político. E não se imagine essa qualificação como depreciativa. Promoveu uma revolução no MPF ao acabar com a postura autárquica do PGR, implementar a modernização nos processos e procedimentos internos. Como se recorda, todos os inquéritos que versavam sobre políticos com prerrogativas de foro eram analisados exclusivamente por Roberto Gurgel, seu antecessor, e por sua esposa.
Instituiu uma série de decisões colegiadas e trouxe para sua assessoria pessoal um grupo conceituado de procuradores de todas as partes do país.
Também endossou uma série de temas relevantes, como a revisão da Lei da Anistia e outros temas que ajudaram na legitimação do MPF como defensor de bandeiras civilizatórias.
Peça 5 - Janot tem pleno domínio do MPF, não apenas hierárquico como de liderança.
Ao contrário de José Eduardo Cardozo e de Leandro Daiello, delegado-geral da PF, Janot é uma liderança incontestável.
Peça 6 – Janot é PGR por voto da maioria dos procuradores.
O fato de Lula e Dilma terem tornado automática a indicação do PGR mais votado pela categoria acabou subordinando o MPF ao chamado democratismo. Em vez de responder ao Presidente da República, tornando-se corresponsável pelo equilíbrio político-institucional do país – como ocorre nas democracias maduras - o Procurador passa a responder preponderantemente para sua própria categoria.
Peça 7 - Janot tem adotado medidas legais em defesa do mandato de Dilma
Nas arremetidas da oposição, assumiu posições fortes em defesa da legalidade, seja mantendo no TSE o procurador Eugênio Aragão – capaz de enfrentar as maiores baixarias de Gilmar Mendes sem mover um músculo da face e sem ceder – seja nos pareceres no STF, não embarcando nas teses golpistas.
Por outro lado, sua atuação em relação à Lava Jato é para lá de dúbia. E aí mais três peças no nosso xadrez para completar o jogo:
Começando o jogo
Temos, agora, 7 peças para jogar nosso jogo de interpretar Janot.
Peça 1 indica que o vazamento reiterado de notícias obedece a uma estratégia eminentemente política.
Peça 2 mostra que essa política de vazamentos é endossada pelos procuradores que participam da Lava Jato.
Peça 5 sustenta que Janot tem pleno domínio sobre as práticas dos procuradores da Lava Jato. Sendo assim, ele não pode interferir nas investigações, mas poderia disciplinar os vazamentos, especialmente quando ficou nítido seu caráter político.
Em outras palavras, se Janot quisesse, um mero gesto de sua parte interromperia esses abusos. Como nada faz, é evidente que é cúmplice dessa política.
Mas falta saber a razão.
Peça 6 – que versa sobre o democratismo no MPF – poderia ser uma explicação.  Como a Lava Jato conferiu um prestígio inédito ao MPF, Janot teria receio de se insurgir contra seus eleitores. A corporação dos procuradores é maciçamente anti-PT e anti-Lula. É só conferir as manifestações nas redes sociais e as diversas representações de procuradores em torno de factoides plantados pela mídia.
Entregando Lula às feras, Janot satisfaria a sede de sangue da oposição – e do seu eleitorado -, mas se preservaria para defender os direitos constitucionais de Dilma, na presidência da República.
É uma hipótese, mas que fica prejudicada pelas lances seguintes.
De acordo com a Peça 4,  Aécio Neves é o principal beneficiário do jogo do impeachment, agora ou em 2018.
Aí o quadro fica mais comlplicado para o lado de Janot.
Há pelo menos três medidas de Janot que blindaram Aécio:
1.    Não ter transformado em denúncia ao STF a delação de Alberto Yousseff, de que Aécio era um dos beneficiários do esquema de Furnas.
Em lugar de Aécio, alvo de denúncias meticulosas, denunciou o ex-governador Antônio Anastasia, em cima de uma denúncia imprecisa. Quem conhece a política mineira sabe que Anastasia é uma figura política impoluta e insuspeita. Seu envolvimento pareceu muito mais uma maneira de Janot dar satisfações à opinião pública por ter livrado Aécio, sem submeter o PSDB ao risco de se descobrir algo contra Anastasia.
Nao foi Sergio Moro e a Lava Jato que blindaram Aecio: foi Janot. A aceitação da denúncia teria permitido à Lava Jato entrar mais cedo no setor elétrico.  
Depois disso, a PF insistiu em continuar no pé de Anastasia e Janot empenhou-se – como a nenhum outro suspeito – em derrubar o processo.
2.    Ter mantido na gaveta do PGR denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, sobre uma conta em Liechtenstein, de titularidade de uma offshore das Bahamas, tendo como proprietários familiares de Aécio, a famosa Operação Norbert, que resultou na condenação do ex-corregedor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Carpena do Amorim.
Dois dos três procuradores autores da denúncia hoje em dia fazem parte do estado maior de Janot. No jantar de posse da Dilma, troquei algumas palavras com Janot e cobrei-lhe o prosseguimento dessa ação. No início, dizia não se lembrar. Depois, se lembrou e disse que daria um parecer até abril – de 2015, ou 9 meses atrás.
Em todo caso, o GGN recorreu a Lei de Acesso à Informação para saber o destino da denúncia.
3.    Ter endossado a posição dos procuradores de restringir as delações aos malfeitos do PT e da base aliada.
Faltam peças no jogo para entender essa sua posição de blindar Aécio.
A maneira quase íntima com que se dirigiu a Aécio em sua ida ao Senado – “como dizem lá no nosso estado, senador” – causou estranheza. Pode ser um tique mineiro.
Outra possibilidade seria uma estratégia política, de não pretender abrir duas frentes de desgaste, com o PT e contra o PSDB. Especialmente para não atrapalhar as relações com o maior aliado do MPF, a velha mídia. E sem a mídia, a Lava Jato morre na primeira instância.
Explica, mas não justifica, como se diz lá em Minas, conterrâneo.
Não se afasta a possibilidade do que se poderia denominar de “a lei da menor porrada”. Mostre o máximo de atrevimento possível contra quem não impõe nenhum risco de retaliação, para se poupar de ousar contra quem oferece risco.
Investir contra o governo de Dilma e Cardozo não exige nenhuma prova de coragem. Caso mirasse sua espingarda em Aécio, levaria tiros do PSDB, da mídia e da própria presidente e de seu Ministro da Justiça, que não perderiam a oportunidade de proclamar seu republicanismo.
E, por óbvio, não se pode afastar a hipótese de que esteja, de fato, articulado com o grupo de Aécio.
Permanece a incógnita da Peça 7, que alimentaria a visão conspiratória de que Janot poderia estar aliado a Dilma e Cardozo visando ajudar a enterrar a herança Lula, para dar lugar à era Dilma, tendo como bandeira a defesa intransigente da ética. Nessa versão, o crescimento da campanha do impeachment teria sido fruto da perda momentânea de controle. Nâo endosso a versão, mas tem a utilidade de trazer uma explicação para a manutenção de Cardozo no Ministério.
Lá atrás, a maneira como o MPF e a PF invadiram o escritório da presidência em São Paulo, teve como único objetivo escancarar as relações pessoais de Lula com a secretária Rosemary.
A prova do pudim de Janot
A prova do pudim será a segunda delação envolvendo Aécio com Furnas – agora, da parte de Fernando Baiano. E não se trata de vendetta ou coisa do gênero. Investigando Aécio se dará à Lava Jato sua verdadeira dimensão republicana: a de investir contra os vícios do modelo político como um todo, sem intocáveis, e não de se valer da luta contra a corrupção escolhendo lado.
E aqui vai uma historinha mineira para Janot, o conterrâneo de Aécio. 
Em 2004, houve a inauguração do PCH (Pequena Central Hidrelétrica) Padre Carlos, em Poços de Caldas. Compareceram o presidente Lula, a Ministra das Minas e Energia Dilma Rousseff e o governador de Minas Aécio Neves.
Aécio era uma alegria só. No palanque, até brincou de coçar a barriga do Lula, segundo me contaram testemunhas. Achei um certo exagero, mas pesquisando nos arquivos da Folha, conferi  que o repórter mencionou os “afagos” de Aécio a Lula (http://bit.ly/20U31Au). Chamou Dilma de “conterrânea” e saudou os inúmeros mineiros que participavam do Ministério de Lula.
Por sua vez, Lula lembrou os passeios de charrete, quando foi a Poços pela primeira vez em lua-de-mel. E elogiou as PCHs, lembrando que o país tem mais de 1.500 pequenas hidrelétricas desativadas, que poderiam ser reativadas.
Vendo o entusiasmo de Lula, o PT da cidade tentou emplacar um diretor em Furnas. Escolheu um conterrâneo, técnico, apolítico, dono de vasta reputação no setor, e apresentou o nome a Lula, como sugestão para a Diretoria de Operações.
A informação que receberam é que não daria. A Diretoria de Operações já estava prometida a Aécio Neves, e seria entregue a Dimas Toledo.
A delação dos executivos da Andrade Gutierrez é o caminho. Segundo a Lava Jato, a delação visará identificar a corrupção no setor elétrico. 
Dependendo de como Dimas, Furnas, a troca de ações entre Cemig e Andrade Gutierrez serão tratados, será possível colocar no nosso jogo a peça final sobre o conterrâneo Rodrigo Janot. E será possível, finalmente, saber qual escaninho a história reservará para Janot: se a casa dos conspiradores discretos, se dos que se assustaram com a besta ou se dos que resistiram à barbárie.

A herança da Lava Jato ao país

A vida política nacional não termina este ano, nem com as eleições de 2018. Virão outras eleições e outras lideranças. E as novas lideranças já estão nascendo nos movimentos na rua, na ação dos secundaristas, nos passes livres da rede. E sob o signo do ódio que o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e os grupos de mídia estão plantando na opinião pública, nessa busca desatinada de destruição de Lula.
A campanha não visa apenas apurar suspeitas contra Lula: trabalha diuturna e sistematicamente para enterrar o mito Lula.
Não será surpresa se um dos indicadores de sucesso acompanhado por procuradores e delegados não forem as pesquisas de opinião, analisando em que nível se encontra a destruição da imagem de Lula.
E, no entanto, em que pese todos os pecados do PT e de Lula, o lulismo - como ideologia - foi abraçado por defensores de direitos humanos, de políticas sociais universais, das políticas de cotas, os militantes do SUS e da educação e um amplo espectro de eleitores reunidos em torno de princípios da socialdemocracia e dos direitos sociais, temas que jamais frequentaram a pauta dos principais líderes da oposição. Em caso de destruição de Lula, a herança de ódio se voltará contra o MPF e contra a biografia de Janot.
É só conferir quais os aliados que a Lava Jato procura para atiçar novamente a bandeira do impeachment: é a besta, a multidão disposta a voltar às ruas tangidas pelo ódio e o preconceito, os filhotes de Bolsonaro, os playboys do Leblon, os grupos de mídia que se colocaram contra as políticas sociais, a FIESP de Paulo Skaf, a LIDE de João Dória. Esses são  os aliados preferenciais da Lava Jato e de Aécio. Janot tem a mais leve ilusão que manterá o espaço do MPF em uma quadra política dominado por essa coalizão ?
Hoje em dia, internacionalmente, o mito Lula é colocado no mesmo nível de outros grandes pacificadores que ajudaram a construir a civilização no século 20, como Ghandi, Mandela, Roosevelt.
Quando Obama chamou Lula de “o cara”, foi por ter conseguido o que ele, Obama, não conseguiu na política norte-americana: incluir pessoas, superando o profundo grau de intolerância criado nesses tempos de globalização, redes sociais e grupos de mídia desvairados. Com Lula, os pobres, os movimentos sociais, os sindicatos, entenderam que seria possível crescer econômica e politicamente seguindo as regras do jogo democrático e não apelando para a radicalização. Tornou-se um símbolo mundial da paz.
É essa noção de pax que está sendo varrida do mapa político brasileiro, sob os olhares acomodatícios de pessoas como Janot. É esse símbolo que está sendo pisoteado diariamente por procuradores e delegados incapazes de entender sequer a dimensão do personagem na história do século 20.
A história há de cobrar seu preço. E cobrança não será do procurador malicioso que fantasia-se de roupa a caráter para receber seu prêmio das Organizações Globo, e vocifera que existe um pacto das elites do outro lado do balcão. É um pequeno, cuja história se perderá nas dobras do tempo.
A cobrança virá sobre aqueles personagens que, podendo deter a barbárie, fugiram de seus compromissos.
No momento, Janot é a esperança do Brasil, mas não no sentido dado pelos manifestantes que foram aplaudi-lo em sua casa. Mas agindo de acordo com os valores que norteiam o que se pensava ser o pensamento majoritário do MPF, contra a barbárie.

Reprodução do Blog do Luís Nassif