quarta-feira, 16 de julho de 2014

Disputa pelo poder reacende sectarismo

Disputa pelo poder reacende sectarismo

POR DAVID D. KIRKPATRICK

RIFFA, Bahrein - Barricadas de concreto bloqueiam os acessos rodoviários a este próspero enclave sunita, onde soldados em veículos blindados montam guarda nas mansões da família governante e da elite empresarial.
Mais além do enclave, há aldeias pobres de xiitas, os quais perfazem 70% da população de mais de 650 mil do Bahrein. É nessas aldeias que a polícia constantemente entra em conflito com jovens.
Essas batalhas expressam hostilidades sectárias quase tão antigas quanto o islã. Ao mesmo tempo, elas também evidenciam uma nova disputa pelo poder que assola toda a região em consequência da invasão americana no Iraque e das revoltas da Primavera Árabe.
O Bahrein foi o primeiro lugar onde as reivindicações por cidadania igualitária e governança democrática da Primavera Árabe degeneraram em uma rixa sectária, que a princípio parecia uma anomalia. Mas a experiência do país agora parece ter sido um prenúncio do que viria a ser o ressurgimento de rivalidades centenárias entre muçulmanos sunitas e xiitas em grande parte da região. A situação ameaça diluir as fronteiras de Estados como Síria e Iraque, desestabiliza o Bahrein e o Líbano e acelera uma disputa regional por poder e influência entre o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita.
Estudiosos e ativistas dizem que a atual onda de violência sectária no Oriente Médio não é apenas a eclosão de rivalidades religiosas outrora reprimidas pelos autocratas seculares no comando da região. Na opinião deles, os ressentimentos religiosos estão sendo explorados em uma luta muito terrena por poder. "Há forças que insuflam a tensão a fim de obter uma fatia maior do bolo", disse Maytham al-Salman, xeque xiita que foi torturado pela polícia bareinita em 2011 devido a seu apoio à revolta.
A Praça da Pérola, onde manifestantes se instalaram durante uma semana há três anos, tornou-se um acampamento militar permanente e teve a estátua homônima demolida, em uma recordação sombria do dia de março de 2011 em que veículos e tropas das monarquias sunitas vizinhas vieram da Arábia Saudita para esmagar o movimento pró-democracia, predominantemente xiita.
No entanto, após ser despertada, a fúria sectária pode ser imprevisível e difícil de controlar.
Desde os primeiros levantes da Primavera Árabe na Síria, por exemplo, o governo do ditador Bashar al-Assad e de seus apoiadores iranianos tentaram retratar o movimento como uma tentativa de tomar o poder por certos extremistas sunitas, a fim de insuflar cristãos e outras minorias religiosas contra ele. A Arábia Saudita e outros Estados do golfo Pérsico dominados por sunitas patrocinaram transmissões via satélite inflamando o ressentimento do Irã xiita e dos alauitas, ramo xiita ao qual pertencem os Assad. Árabes sunitas em monarquias do Golfo enviaram ajuda aos rebeldes sunitas que se tornavam cada vez mais violentos.
Agora, a revolta síria concretizou alguns dos piores temores sectários -e ameaça não só a segurança de Assad, como também a do Irã e da Arábia Saudita. Os jihadistas sunitas mais radicais, que formam o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), tomaram uma ampla faixa dos territórios iraquiano e sírio e se gabam de ter executado centenas de xiitas. Sua fúria os levou às portas do governo iraquiano em Bagdá, aliado dos iranianos, e da monarquia saudita, que há muito temia esses extremistas como uma ameaça a seu próprio poder interno.
Na região, porém, o ressurgimento de hostilidades sectárias entre sunitas e xiitas segue um padrão: o enfraquecimento de velhos Estados leva os cidadãos ansiosos a assumir o sectarismo, ao passo que os governantes inseguros se cercam de pessoas leais de seus clãs e denominações religiosas, sistematicamente alienando outros, muitas vezes seguindo linhas sectárias. Segundo analistas, no caso de aliados dos americanos como Bahrein e Iraque, os EUA e outras potências ocidentais fizeram vista grossa aos excessos e ao sectarismo dos governantes que apoiavam.
Os dois pesos-pesados geopolíticos da região, a teocracia xiita no Irã e a monarquia sunita na Arábia Saudita, têm buscado proteger seus interesses dando apoio a clérigos, redes de satélite, facções políticas e grupos armados seguindo linhas sectárias.
Vali Nasr, da Universidade Johns Hopkins em Maryland, disse que a Arábia Saudita e o Irã fazem uso de uma política externa sectária para atingir objetivos tipicamente seculares. "Eles fazem o jogo da política do grande poder, e as peças de xadrez que escolhem inflamam o sectarismo", afirmou.
O racha entre sunitas e xiitas começou no século 7°, após a morte do profeta Maomé. A facção dominante, que deu origem aos sunitas, queria que a liderança fosse passada a Abu Baker, sogro de Maomé. A facção que originou os xiitas era a favor de Ali, primo e genro de Maomé. Atualmente, os xiitas compõem cerca de 15% do 1,6 bilhão de muçulmanos no mundo, embora formem as maiorias no Irã, no Iraque, no Bahrein e no Azerbaijão e sejam numerosos no Líbano.
Sunitas e xiitas conviveram bem, casando-se entre si e fazendo alianças políticas, em várias épocas. Muitos sunitas, porém, ainda acham que os xiitas não são verdadeiros muçulmanos, ao passo que xiitas se queixam de séculos de perseguição.
No Iraque, que está de volta às manchetes, muitas pesquisas mostraram consistentemente que a maioria dos sunitas e dos xiitas era a favor da coexistência, descrevendo seu país como "na maior parte, unificado". Porém, com o monopólio do poder pelo primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki e o aumento dos abusos aos direitos humanos nos últimos anos, a unidade nacional enfraqueceu.
No Bahrein, há sinais de violência crescente e de envolvimento iraniano. Muitos integrantes dos partidos de oposição bareinitas dizem que sua única esperança é uma paz regional que inclua a Arábia Saudita e o Irã.
Certos líderes da oposição argumentam que, embora o Bahrein possa se tornar o próximo barril de pólvora a explodir, o emirado ainda tem chance de vir a ser um modelo de poder compartilhado.
Khalil al-Marzooq, do principal partido xiita, indaga: "Por que esperar até que haja um verdadeiro desastre?".


Notícia do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo

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