quarta-feira, 16 de julho de 2014

Futebol


Terminou a orgia cívica do trintídio a que o mundo se entrega, a cada quatro anos, colonizado por uma instituição cujo poder transcendeu o saudável. Ela se aproxima perigosamente de uma organização inescrupulosa cujo objetivo é explorar a honesta paixão do homem pelo futebol. Trata-se da última lavanderia que ainda resiste ao controle de qualquer fiscalização. Como hospedeiro da diversão, o Brasil esforçou-se para fazer a sua parte, sob duras críticas internas e externas, algumas até procedentes. Fomos muito bem. Talvez menos do que gostaríamos, mas muito melhor do que supunham os censores.
Como era de se esperar, quando a "bola rolou" a emoção superou todas as dúvidas e reprimendas. O entusiasmo verde e amarelo tomou conta da sociedade. As esperanças foram crescendo a cada jogo. Nas vésperas de eleições, o governo tentou, imprudentemente, apropriar-se dos resultados e a oposição, desenxabida, fingiu alegria.
Infelizmente, tivemos um grave pânico quando internalizamos nossa inferioridade técnica coletiva, mas não terminamos tão mal. Afinal somos a quarta seleção no "ranking" mundial. A ideia divertida de que a seleção nacional é a "pátria de chuteiras" transformou a surpreendente derrota em "vergonha nacional", em lugar de vê-la como ela é: um acidente explicável num jogo que deve ser puro divertimento. Sábios cronistas exigiram "ao menos um gol de honra" para consolar a pátria "humilhada"! E não faltaram análises filosóficas sérias, capazes de tudo explicar quando o futuro já era passado...
Tudo de um ridículo assustador! A exceção foi o espetáculo do hino nacional cantado a capela pelos cidadãos de 5 a 90 anos que ocuparam os estádios. Isso sugere que debaixo do lúdico verniz superficial transitório, desperto enquanto a "bola rola", há um forte, sólido e permanente sentimento de pertinência à pátria.
Essa é a condição inicial necessária para enfrentarmos nosso verdadeiro problema: continuar a construir a sociedade civilizada sugerida na Constituição de 1988: 1º) uma República, em que todos, até o Estado e o poder incumbente que o representa, obedecem à mesma lei, sob o controle de um Supremo Tribunal Federal independente; 2º) uma democracia competitiva com eleições livres regulares e 3º) onde as políticas públicas têm como foco principal o aumento da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.
Foi prudente a presidente Dilma ao conter a apressada "modernização da estrutura do futebol" com estímulo oficial, porque não foi isso que a Alemanha fez. A Copa acabou e, a despeito de toda filosofia, o Brasil é o mesmo, com suas virtudes e seus problemas. A segunda-feira chegou. É hora de voltar a trabalhar!


Texto de Antonio Delfim Netto, na Folha de São Paulo

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