segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Se os Farroupilhas tivessem vencido


As fronteiras do país farroupilha
Mário Maestri

“Após concentrar suas forças na luta contra as insurreições do Pará, do Maranhão e da Bahia, os exércitos imperiais conheceram graves derrotas no Sul, concluídas com a rendição do barão de Caxias, após o desastre brasileiro na batalha do serro de Porongos, em 15 de novembro de 1845. Dois anos mais tarde, o Brasil reconhecia a independência e estabelecia relações com a República do Pampa, nome assumido pela antiga província de São Pedro do Rio Grande do Sul”.
As tendências históricas, materializadas na ação concreta das classes embaladas pelas suas necessidades sociais, levaram a que o parágrafo inicial constitua mero exercício de imaginação sobre eventual registro, em manuais escolares brasileiros de 2009, da hipotética vitória da secessão farroupilha. Elucubração que talvez encontre justificativa na celebração privada e pública incessante e irrefletida do movimento separatista, promovido em 1835-45, pelos latifundiários escravistas do meridião rio-sulino.

A partir das grandes tendências históricas conhecidas pelo Rio Grande, pelo Brasil e pela América do Sul, traçaremos alguns dos prováveis e sempre hipotéticos cenários do desenvolvimento do atual Rio Grande do Sul, após 1845, caso Bento Gonçalves, David Canabarro, Antônio de Sousa Netto et caterva tivessem levado seus seguidores à vitória e não ao retumbante fracasso e aceitação, sem discussões, das condições da anistia imperial, em Ponche Verde.

As fronteiras pampianas não seriam as de hoje, demarcadas, ao norte, pelos rios Mampituba e Pelotas, e, ao sul, pelo arroio Chuí. Uma forte crise imperial permitiria que a eventual raia republicana setentrional abiscoitasse parte do território catarinense, já que mais não permitiriam os brasileiros de São Paulo. Porém, é mais provável que a jovem república tivesse seus limites nos rios Jacuí-Ibicuí, permanecendo brasileiros Porto Alegre e todo ou parte do norte da antiga província de São Pedro.

A população livre da capital libertou-se e resistiu às tropas farroupilhas, apoiada ativa ou passivamente pela comunidade colonial-camponesa alemã, que nada tinha a ganhar e muito a perder com os republicanos da Campanha. Pela indômita resistência, Porto Alegre, três vezes cercada e bombardeada pelos farroupilhas, ostenta, hoje, no seu brasão, a consigna de “leal” – ao Império – e “valorosa” – diante dos republicanos.
Os republicanos derrotados de 1845 só voltaram a adentrar simbolicamente os muros de Porto Alegre, um século e alguns dedos mais tarde, quando os neofarroupilhas e sua cavalhada passaram a acampar, na capital, sem qualquer ensaio de resistência, cada mês de setembro, enlameando e bostejando, respectivamente, o chão do Parque Harmonia e a memória já quase perdida da heroica resistência porto-alegrense às tropas dos latifundiários.

A República do Pampa possuiria população diminuta e de perfil étnico diverso que o atual. Como no resto do Brasil, os grandes proprietários fundiários sulinos sempre se opuseram ao assentamento de camponeses. A imigração alemã não seria retomada, com a fundação de Santa Cruz [1847], e as quatro colônias italianas imperiais [1875] seriam desviadas para territórios brasileiros. A república latifundiária não conheceria o impulso demográfico e a acumulação de capitais permitidos pela proliferação de economias familiares nascidas da vaga colonial-camponesa europeia. Portanto, nada de vinho, nada de cerveja, nada de polenta, nada de indústria!

A própria economia pastoril conheceria forte golpe com a secessão. Sem o apoio das províncias centrais brasileiras, o tráfico de trabalhadores escravizados seria abolido, sob a pressão inglesa. As fortes perdas de cativos para o Uruguai, durante a guerra de independência, seriam repostas com dificuldade e a necessidade de fortalecer os exércitos pampianos levaria à abolição da escravatura, como nas repúblicas vizinhas. Um ponto para os republicanos! A produção charqueadora-pastoril sofreria com a falta de mão de obra para ser explorada.

Os fazendeiros farroupilhas do norte do Uruguai, entre eles o general Netto e Francisco Pedro de Abreu, se submeteriam comportados às leis da nação vizinha, ou seriam expulsos a patadas, pelo presidente blanco, como Atanásio Aguirre, pois não poderiam esconder-se sob a bandeira dos exércitos imperiais, como fizeram em 1851 e 1865.

O estrangulamento da imigração camponesa alemã e a inexistência da italiana, polonesa, judia, etc. materializariam o destino pastoril sonhado pelos chefes e ideólogos farroupilhas para a antiga província. Como no Uruguai, na República do Pampa não brotariam as indústrias artificiais, contra as quais os descendentes políticos farroupilhas – liberais, federalistas, libertadores, udenistas, neoliberais etc. – mobilizaram-se e mobilizam-se. Cidades como Caxias, Marau, Santa Cruz do Sul não existiriam nas fronteiras da nação farroupilha.

Sem matérias-primas, sem petróleo, sem um porto decente como Montevidéu e, sobretudo, com uns raquíticos dois milhões de habitantes, restaria aos pampianos a produção de carne, de lã, os móveis e chocolates de Guaíba, uma raquítica agricultura, carente de implementos e agro-tóxicos, comprados a peso de ouro de São Paulo, e travada pelas barreiras alfandegárias sobretudo do Brasil. A saída seria transformar os pampas em um imenso deserto verde, igual que o Uruguai atual!

Os produtos industriais importados dos USA, da Europa, da Argentina e sobretudo do Brasil, seriam proibitivos para a maior parte dos pampianos, desempregados e subempregados, que partiriam aos magotes para trabalhar na construção civil e em metalúrgicas paulistas, onde seriam tratados como os nordestinos. Periodicamente, as autoridades brasileiras regulamentariam a permanência dessa mão de obra estrangeira barata.

Para terminar, não teríamos a Semana Farroupilha, já que seria a semana da Pátria, nem o Movimento Tradicionalista Gaúcho, substituído pelo Ministério da Cultura. A grande novidade seria o fortíssimo MOUBRAPAM (Movimento pela União do Brasil e do Pampa), nascido durante os motes populares ocorridos em Bagé, a capital e cidade mais populosa do Pampa, quando da quinta desvalorização do estribo, moeda nacional da República, após a crise de 2008. Tudo no início do segundo mandato do presidente Tonico Augustus Nico Fagulhas, que se encerra em 20 de setembro de 2010. Caso não modifique a constituição para concorrer ao terceiro.


* Mário Maestri, historiador, é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. E-mail: maestri@via-rs.net


Texto encontrado no blog do Luís Nassif

Também houve um texto de contraponto, mas acho que serviu mais como apologia do Uruguai. 

Generosidade gera colapso


Grande volume de doações cria colapso na Cruz Vermelha

Galpões da instituição no Rio têm material espalhado pelo chão e garrafas de água expostas ao sol forte

Desorganização e falta de espaço se devem à falta de voluntários e ao grande número de roupas, diz diretora 

FABIA PRATES
DO RIO

A grande quantidade de donativos que chega à Cruz Vermelha, no Rio, para ser entregue às vítimas das chuvas na região serrana está provocando caos e desorganização nos espaços usados para acomodar o material.
No pátio da sede da instituição, no centro , litros de água estavam expostos ao sol forte da tarde de ontem, quando a temperatura chegou aos 39,7 C. Havia ainda colchões e muitas sacolas espalhadas pelo chão.
Do lado de fora de um galpão usado como depósito na zona norte havia roupas penduradas, água exposta ao sol e sapatos jogados no chão.
Ali, o interior de dois galpões estava abarrotado de sacolas de roupa, mais água, colchões, alimentos, brinquedos, além de material de limpeza e higiene pessoal.
Rosely Sampaio, diretora-executiva da Cruz Vermelha, disse que o grande fluxo de doações interferiu na logística. "Normalmente, nossos parceiros que fazem doações avisam antes para que a gente se prepare para receber. Nesse caso, há uma comoção grande e todo mundo vem direto aqui. Criou um colapso."
Contêineres cedidos estão sendo usados para guardar doações no pátio do prédio.
A instituição busca outros espaços no Rio para armazenar o material e enviá-lo conforme a demanda dos municípios, que também estão com superlotação.
A estimativa da instituição é que as vítimas das enchentes continuem necessitando de ajuda pelos próximos oitos meses, mas não se sabe se a quantidade de doações recebida já seja suficiente.
Desde 13 de janeiro, a todo momento chegam carros e caminhões com donativos. Falta espaço, explica Sampaio, sobretudo por haver grande quantidade de roupas entre as doações. Além de não serem mais necessárias, elas ocupam muito espaço.
Ontem, um caminhão com donativos de funcionários da Petrobras voltou com 960 kg de roupa. Só alimentos, água e material de limpeza e higiene pessoal foram recebidos.
A redução dos voluntários, que apareceram em grande número logo após a tragédia, também é responsável pelo caos, diz Sampaio.
Outras entidades também recolhem donativos, mas o trabalho não tem coordenação do Estado.



sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Corrompa ou obedeça


Corrompa ou obedeça 

VAI TERMINANDO janeiro e, se você for como eu, já está se preocupando com o que deixou de fazer neste ano. Em especial em matéria de burocracia automotiva: IPVA, multas, licenciamentos e revisões. Digo isso porque, até agora, nada fiz no tocante à inspeção veicular do meu velho Astra, já veterano nessa espécie de Enem sobre quatro rodas.
Procurar novamente no mapa o lugar (inexistente, inacessível) onde há "agendamento disponível" para "efetuar" o "controle do meu veículo"? Como assim? Já não fiz isso no ano passado? Ou melhor, não fiz isso há coisa de um ou dois meses, nada mais?
Sim, responde, grave, a voz da consciência. Fizeste a inspeção em dezembro, porque consentiste com meses e meses de atraso descomunal. Viraste o ano, renasce o teu desleixo. Janeiro já faz a conta dos teus pecados.
Eis, entretanto, a boa notícia. Surgem na cidade mecânicas especializadas na inspeção veicular. Ou seja, previnem surpresas desagradáveis na hora da medição das emissões do seu veículo. Fazem mais: agendam a inspeção, levam o carro, devolvem-no perfeito e aprovado.
Não duvido da existência de profissionais honestos nessa nova área de atividade, como os há nas auto-escolas, nos exames psicotécnicos e em coisas do gênero.
Disseram-me, entretanto, que muitas oficinas sabem o truque para passar na inspeção. Desregulam o carro antes de levá-lo aos técnicos da Controlar, que aprovam tudo, e depois o cliente recebe o carro com a desregulagem desfeita, isto é, poluindo tanto quanto devia desde o início.
Muito trabalhoso e inverossímil, penso eu, quando, num bom sistema de agendamento terceirizado, a burla poderá ser feita de comum acordo entre a oficina e algum técnico mais camarada.
Honestas ou não, vejo que pipocam oficinas na própria vizinhança dos estabelecimentos de controle. Vejo também que, com isso, surgem dois tipos de cidadãos.
O primeiro tipo é aquele que entra de cara amarrada na inspeção, pronto a liderar algum movimento contra o sistema. Depois de dez minutos no máximo, recebe o laudo: foi aprovado.
Pude ver, esperando na fila, o sorriso de felicidade desse cidadão; sente-se limpo, cumpriu sua parte, não terá nova chatice antes do ano que vem, seu problema pessoal foi resolvido -e o escândalo, se escândalo havia, já não é mais da sua conta.
O segundo tipo de cidadão é aquele que já recorre direto à oficina especializada e não se incomoda se estiver acontecendo alguma coisa errada por baixo do pano.
Por mais opostos que pareçam, os dois se complementam. Quem paga propina está na verdade se vingando de um Estado que impôs, certamente com fins arrecadatórios, uma fiscalização nova, uma exigência a mais sobre os cidadãos.
Já tentaram tornar obrigatório o estojo de primeiros socorros, como o seguro contra terceiros, a cadeirinha das crianças, e não esqueçamos do próprio pedágio... O cidadão corrompe no varejo em reação ao que vê como corrupção no atacado -as grandes licitações e negociatas para impor legislações desse tipo.
Por sua vez, o sujeito que não paga propina e sai feliz com seu pequeno certificado de plástico padece de mentalidade parecida. Os assuntos públicos não lhe dizem respeito se consegue safar-se deles.
Nos dois casos, o Estado surge como uma entidade alienada, estrangeira, que não está sob nosso controle nem nasceu de nós.
Há outros exemplos disso: a nova tomada de três pontas, que ninguém sabe como foi imposta, e que temos agora de adotar ou de adaptar, para lucro de quem inventou a nova moda. E a nova ortografia, que, uma vez em vigor, todo cidadão de bem se preocupou em obedecer, gastando mais dinheiro e tempo em aprendê-la do que em protestar contra sua criação.
Quase 200 anos depois da Independência, ainda temos do Estado uma visão colonial. Trata-se de uma entidade arrecadatória, nascida de algum reino estrangeiro que inventa novas coisas para nos infernizar e que cumpre enganar do mesmo modo com que nos tapeia.
A corrosão ética da coisa toda nasce, a rigor, da política, e não o contrário: por se tratar de uma cidadania imperfeita, de um autoritarismo latente, de uma democracia sem participação e de um Estado, afinal, sem dono, mas com muitos gerentes e coronéis, é que corromper ou obedecer são as saídas que conhecemos. Não adianta reclamar depois.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 26 de janeiro de 2011.

E, a princípio são iniciativas de boa intenção, isto é, diminuir a poluição causada pelos automóveis, ou evitar o choque elétrico ou curtos-circuitos ( se bem que a tal reforma ortográfica, não tenho bem certeza para que serve, se a coisa fica sempre a meio caminho, não se acaba de vez com os hífens, se tira acentos de algumas palavras, e se deixa em outros). Mas talvez, de fato, como diz o Marcelo Coelho, a boa intenção apenas encubra “uma cidadania imperfeita”, “um autoritarismo latente” e “um estado sem dono mais com muitos gerentes e coronéis”, como diz o autor.

José Simão vê Berlusconi


“E a mais perfeita definição do Berlusconi: um Paulo Maluf pornô!”


Salário máximo


Salário máximo

Falta uma oposição de esquerda no país. A última eleição demonstrou que todos aqueles que procuraram fazer oposição à esquerda do governo acabaram se transformando em partidos nanicos. Uma das razões para tanto talvez esteja na incapacidade que tais setores demonstraram em pautar o debate político.
Contentando-se, muitas vezes, com diatribes genéricas contra o capitalismo, eles ganhariam mais se seguissem o exemplo do Die Linke, partido alemão de esquerda não social-democrata e único dentre os partidos europeus de seu gênero a conseguir mais que 10% dos votos.
Comandado, entre outros, por Oskar Lafontaine, um ex-ministro da economia que saiu do governo Schroeder por não concordar com sua guinada liberal, o partido demonstrou grande capacidade de especificação de suas propostas e de seus processos de aplicação. Eles convenceram parcelas expressivas do eleitorado de que suas propostas eram factíveis e eficazes.
Por outro lado, foram capazes de abraçar propostas que outros partidos recusaram, trazendo novas questões para o debate político, como a bandeira da retirada das tropas alemãs do Afeganistão.
Por fim, não temeram entrar em coalizões programáticas como aquela que governa Berlim. Isso demonstra que eles são capazes de administrar e que sua concepção de governo não é uma abstração espontaneísta. Esses três pontos deveriam guiar aqueles que gostariam de fazer oposição à esquerda no Brasil.
Um exemplo de novas pautas que poderiam animar o debate político brasileiro foi sugerida pelo provável candidato de uma coligação francesa de partidos de esquerda, Jean-Luc Mélenchon. Ela consiste na proposição de um "salário máximo". Trata-se de um teto salarial máximo que impediria que a diferença entre o maior e o menor salário fosse acima de 20 vezes. Uma lei específica também limitaria o pagamento de bonificações e stock-options.
Em uma realidade social de generalização mundial das situações de desigualdade extrema -outra face daquilo que certos sociólogos chamam de "brasialinização"-, propostas como essa têm a força de trazer, para o debate político, a necessidade de institucionalização de políticas contra a desigualdade.
Em um país como o Brasil, onde a diferença entre o maior e o menor salário em um grande banco chega facilmente a mais de 80 vezes, discussões dessa natureza são absolutamente necessárias. Elas permitem a revalorização de atividades desqualificadas economicamente e a criação da consciência de que a desigualdade impõe "balcanização social", com consequências profundas e caras. Discussões como essas, só uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome pode apresentar.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Israelenses em Berlim

Israelenses aprendem a amar a nova Berlim

Doron Halutz
Berlim (Alemanha)


Durante décadas, a sombra da historia e do Holocausto levou muitos israelenses a boicotarem a Alemanha. Atualmente, porém, uma nova geração de israelenses está descobrindo Berlim como um centro de artes e a capital europeia da diversão. Com a sua literatura, arte, cafés e vida noturna, os israelenses já se tornaram uma presença vibrante na cidade.



Toda sexta-feira à noite, os ouvintes da estação de rádio “Alex”, em Berlim, podem escutar o radialista falando em hebraico. A voz atrás do microfone no espaçoso estúdio situado no bairro de Wedding, na capital alemã, pertence a Aviv Russ, um israelense de 33 anos de idade que mudou-se para Berlim cinco anos atrás, e criou o programa de rádio “Kol Berlin”, ou “Voz de Berlim” em hebraico, um ano mais tarde.



Neste dia do início de dezembro, ele está sentado com o seu convidado de muitas ocasiões, Alexander Uhlmann, e fala sobre o escritor israelense David Grossman, o mercado Hanukkah, em Berlim, e a imigração, tudo isso em alemão fluente. De vez em quando Russ faz uma pausa para um resumo em hebraico, e, em determinado momento, ele faz uma interrupção para explicar algo aos seus ouvintes israelenses.



“O que Alex está tentando dizer”, explica ele, “é que os imigrantes russos em Israel vivem em guetos. Mas Alex não deseja usar essa palavra. Isso é compreensível – somente nós, israelenses, podemos usá-la. Bem, estou brincando”.



Esta é uma ótica unicamente israelense em uma cidade que no passado abrigou uma robusta comunidade judaica, repleta de intelectuais, escritores e músicos. Até recentemente, um número relativamente pequeno de israelenses vivia em Berlim, mas a comunidade israelense tem crescido consideravelmente nos últimos cinco anos. As estatísticas oficiais indicam que apenas alguns milhares deles proporcionam um registro dessa tendência, já que muitos israelenses entram na Alemanha com passaportes europeus (quando países europeus orientais passaram a integrar a União Europeia, muitos israelenses puderam obter passaportes europeus já que os seus pais ou avós moravam nesses países antes da Segunda Guerra Mundial).



Uma nova geração retorna a Berlim



Mesmo assim, Yinam Cohen, um porta-voz da Embaixada de Israel na Alemanha, calcula que entre 10 mil e 15 mil israelenses residam na cidade. “Este é um fenômeno relativamente novo”, diz ele. “Podemos apresentar todos os tipos de explicações pseudo psicológicas para isso, como, por exemplo, uma erosão das barreiras históricas, ou um entusiasmo exagerado em relação a um novo local ao qual existe boa acessibilidade”. Atualmente há 22 voos semanais entre Tel Aviv e Berlim, observa Cohen.



Berlim já abrigou algumas das figuras mais importantes da literatura hebraica, entre elas o ganhador do Prêmio Nobel, S.Y. Agnon, que emigrou da região que mais tarde tornar-se-ia o Estado de Israel para Berlim em 1912, e Leah Goldberg, ganhadora do Prêmio Israel de literatura, que estudou em Berlim e chegou a compor uma canção com o nome da cidade. A Orquestra Filarmônica de Israel foi criada em 1936 por músicos judeus que fugiram da Alemanha nazista.



A ferida aberta ainda existente entre a Alemanha e os judeus faz com que muitos israelenses boicotem o país até hoje: eles se recusam a visitar a Alemanha ou a comprar produtos alemães. No entanto, uma nova geração de israelenses está retornando à cidade, apesar da sombra lançada pela história.



Nirit Bialer, 32, que é uma berlinense há cinco anos, se considera uma germanófila. Aos 14 anos de idade, ela começou a aprender alemão no Instituto Goethe em Israel, em uma época em que existiam poucos cursos desse tipo. “As pessoas me perguntavam por que eu estava aprendendo a língua dos nazistas”, conta ela, com um sorriso.



“Atualmente as pessoas lutam por uma vaga em tais cursos”.



Clima de liberação sexual



Duas décadas após a queda do Muro de Berlim, a cidade ainda está em processo de cristalização da sua identidade.



Berlim é um local de aluguéis baratos, de um clima de liberação sexual e de agitação social e política que contribuíram para a criação de um cenário artístico e uma alternativa cultural vibrantes. Como o processo de reunificação ainda não está concluído, a cidade continua até hoje a se redefinir.



“É exatamente isso o que buscam os artistas e os homossexuais”, opina Russ, o radialista. “Em cidades como Londres e Paris, o cenário já está bem consolidado, e todos os espaços encontram-se tomados. Aqui, porém, ainda é possível fazer uma diferença”.



E, tendo vindo de um país que ainda se depara com conflitos militares e geopolíticos, muitos jovens israelenses são atraídos pela vida pacífica oferecida na Berlim moderna. “Quem visita a cidade como turista diz para si mesmo: 'Eu quero morar em um lugar no qual o noticiário tenha início com uma matéria sobre as condições meteorológicas'”.



“O clima aqui é de relaxamento”, diz a artista Keren Cytter, que nasceu no assentamento judeu de Ariel, no território palestino ocupado da Cisjordânia, e que se mudou para Berlim cinco anos atrás. “Isso é normal”.



70% dos israelenses adultos não perdoaram a Alemanha



No seu livro “Israelenses e Berlim”, escrito em 2001, a acadêmica israelense Fania Oz-Salzberger analisou se as relações entre Israel e a Alemanha poderiam algum dia tornarem-se “normais” tendo em vista os acontecimentos do século 21. Uma pesquisa realizada no mês passado pelo Instituto de Geocartografia de Israel revelou que 70% dos judeus israelenses adultos não perdoaram os alemães pelo Holocausto (23% perdoaram, e 7% permanecem indecisos).



“Eu não sei se 'perdoar' é o termo correto”, diz Gil Raveh. Raveh, que é maestro, veio para Berlim quatro anos atrás sob a recomendação do regente israelense consagrado Noam Sheriff, que também estudou na cidade. “Perdoar a quem? Angela Merkel? A garçonete que me serve café?”, questiona Raveh.



“Eu sou capaz de me sentar com os alemães sem ficar pensando que eles fizeram algo de ruim contra mim, pessoalmente”, diz Raveh, diante de uma xícara de cappuccino, em um dos seus cafés favoritos, na área alternativa e repleta de imigrantes no norte do distrito de Neukölln, que é frequentemente apelidado de “Kreuzkölln” devido à sua proximidade do distrito de Kreuzberg. “Por outro lado, perdoar significa que a pessoa não tem mais problemas quanto a uma determinada questão, e eu ainda tenho um problema em relação a isso. No entanto, a minha vida aqui é bem mais simples”.



“No início eu ficava pensando no que toda senhora idosa e educada que eu via havia feito naquela época”, diz a musicista Eleanor Cantor, 35, a principal vocalista das bandas “The Hunters” e “Sister Chain and Brother John”, que mora em Berlim há sete anos.



“Isso não quer dizer que toda vez que saio para comprar carvão eu pense, 'Ah, os judeus foram queimados aqui'. Porém, quando ouço jovens alemães falando em escolher uma escola para os filhos que tenha a menor quantidade possível de 'nicht-Deutsche Anteil' (pessoas de etnia não alemã), eu sinto calafrios”, diz Cantor. “E, obviamente, isso se deve ao passado”.



Parte dois: uma noitada “insana”



Na entrada do clube ZMF, perto da Rosenthaler Platz, no distrito de Mitte, no centro da cidade, um desconhecido alemão saúda o jornalista com um amigável “Shalom”. É uma noite de sábado e da festa gay mensal “Meschugge”, que em iídiche significa “insana”. Bandeiras israelenses estão dependuradas por toda parte no clube, e imagens da ex-primeira-ministra israelense Golda Meir, da cantora israelense Ofra Haza e um desenho de um porco são projetados em uma parede. O DJ Aviv Netter está encarregado da música, e ele toca sucessos populares internacionais e israelenses, desde Blondie e os Pet Shop Boys até o vencedor israelense do Festival da Canção Eurovision, Dana International e o Roni Superstar.



Netter, 26, nasceu e foi criado em um subúrbio de Tel Aviv e mudou-se para Berlim quatro anos atrás. “Obviamente, existem pessoas muito bonitas e inteligentes aqui, e uma deslumbrante vida noturna, e dá para visitar países vizinhos – o indivíduo não se vê preso entre nações hostis”, diz ele. “Mas eu deixei Israel devido ao desespero, e não porque achava legal mudar-me para Berlim”. Netter conta que em 2006 ele participava ativamente do fórum para gays e lésbicas do partido de esquerda Meretz, e estava convencido de que estava prestes a ver a ascensão da esquerda israelense. No entanto, esse sonho desmoronou, deixando Netter desiludido.



Os alemães são cheios de crises de identidade sérias”



Detentor de um passaporte europeu graças à sua mãe, que nasceu na Europa Oriental, Netter mudou-se para Berlim.



Ele conta que passou o seu primeiro ano na cidade imerso em diversões e gastando as suas economias. Depois disso ele criou o Meschugge como um evento único, que acabou transformando-se em uma atração periódica: “A Noite Judaica Não Kosher”, conforme ele chama o festival. Um quarto das pessoas que participa é israelense, e o restante consiste de alemães. Netter diz suspeitar que alguns alemães possam comparecer à festa como uma maneira de aliviar os seus próprios sentimentos de culpa.



“Nós, israelenses, não podemos entender como é não ter orgulho de si próprio, como uma nação”, diz ele. “Os alemães são cheios de crises de identidade sérias”.



Mas os imigrantes israelenses em Berlim têm as suas próprias crises de identidade. Por exemplo, quase todos eles preferem ser tratados como “israelenses em Berlim”, e não como “judeus na Alemanha”. “Até mesmo os próprios alemães dizem que Berlim não é a Alemanha”, diz Russ. “O componente judaico da minha identidade tem a ver com um passado cultural compartilhado, e não com uma crença religiosa. Eu não vou à sinagoga nem como alimentos kosher”.



Bialer, uma moradora de Berlim que atualmente é fluente em alemão, diz que ouvir a língua alemã todos os dias nas ruas e pensar na história da cidade só reforçou a sua identidade israelense. E ela já se deparou com um antissemitismo ostensivo. Bialer conta que já esbarrou algumas vezes com neonazistas e certa vez ouviu um grupo de alemães criticando os judeus.



Bialer relata que se aproximou- deles e disse: “Eu sou judia, neta de sobreviventes do Holocausto. Eu não posso acreditar que vocês falem desta forma na Alemanha de 2009”. Como resposta, um deles olhou para baixo e perguntou: “Quanto tempo nós devemos continuar te sustentando?”. Bialer respondeu: “Me sustentando? Eu tenho um emprego!”.
“O meu sangue ferveu”, diz ela. “Tudo é muito bom, você faz parte da cidade, e aí um alemão lhe diz que você não é nada”.



Humor negro sobre o Holocausto



Muitos israelenses em Berlim usam humor negro, manifestado em piadas sobre o Holocausto, como forma de lidar com o estresse decorrente de viver na terra dos carrascos dos seus avós. Keren Cytter diz que certa vez contou tais piadas ao seu namorado alemão, que a seguir as contou aos seus amigos, que, segundo ela, não entenderam. Uma das piadas é a seguinte: um sobrevivente do Holocausto pega um isqueiro, cheira-o e diz: “Ah, que nostalgia”. Cytter diz que quando seu namorado contou a piada aos seus amigos, nenhum deles riu.



Russ também ouviu a sua parcela de humor negro. “Um amigo israelense em Berlim certa vez me mostrou o seu apartamento”, conta Russ. “Quando entramos na cozinha, ele abriu o forno a gás e disse: 'E este é o chuveiro'. Mas na primeira vez que eu contei uma piada sobre o Holocausto aqui, um amigo me advertiu que isso é ilegal”.



Embora as piadas públicas sobre o Holocausto possam ser ilegais, a extrema-direita tem ganhado força na Europa nos últimos anos, incluindo na Alemanha, onde um debate sobre multiculturalismo abriu novas feridas em meados do ano passado. Alguns israelenses que moram em Berlim dizem que mesmo sendo fluentes na língua, é impossível atingir uma integração total.



A cantora Eleanor Cantor, exibindo longos cabelos negros e uma maquiagem sombria, diz que na Alemanha ela ainda é considerada, na melhor das hipóteses, exótica, e na pior, uma parasita da sociedade afluente. “Até mesmo em Berlim, quando alguém faz algo que é inaceitável para os alemães, estes fazem uma associação imediata entre o comportamento e a origem étnica do indivíduo”, diz Cantor.



Morando na antiga sede do Terceiro Reich, alguns israelenses se perguntam se a história poderia se repetir. “Eu não diria que isso jamais possa acontecer de novo”, diz Netter, o DJ. “O Holocausto nos ensinou que não é preciso que haja monstros para que aquilo aconteça”.



Café expresso e imóveis



Isso não impediu que empresários magnatas israelenses se juntassem ao fluxo de artistas, homossexuais e estudantes que descobriram Berlim. A Aroma, uma famosa rede israelense de bares especializados em café expresso, inaugurou a sua primeira unidade na Alemanha em 2008, no Friedrichstrasse, um distrito comercial e de teatro de Berlim. Magnatas israelenses do setor imobiliário também investiram em unidades habitacionais locais.
“Berlim é uma cidade barata, e cresce rapidamente”, diz Sagi Ginat, diretor da Aroma de Berlim. “O fato de haver muitos israelenses aqui não se constitui na verdade em um fator relevante”.



Yoni Margulies, 32, é consultor para potenciais investidores, incluindo israelenses, em Berlim. Margulies cresceu em Jerusalém, e aos 13 anos de idade mudou-se com a família para Nova York. Seis anos atrás, ele trocou Nova York por Berlim. Margulies diz que se mudou para a capital alemã devido a uma namorada. Ele acabou ficando porque adorou a cidade e a liberdade que ela proporciona.



Margulies é também proprietário do Tape Club, em Berlim, que ocasionalmente faz apresentações da equipe de Tel Aviv que protagoniza a festa dançante gay chamada “PAG”. Ele diz que não tenta usar um “complexo de culpa” no seu negócio ao lidar com os alemães por achar que isso seria um truque sujo.



“Na semana passada, eu fui ao funeral da minha avó, uma sobrevivente de Auschwitz, mas as pessoas com quem eu trabalho aqui não fizeram nada contra a minha família”, explica Margulies. “Talvez por causa dela é que eu deva estar aqui. Afinal de contas, eu estou caminhando, bebendo e ganhando dinheiro no lugar em que Hitler foi queimado”.



(Doron Halutz é repórter do jornal israelense “Haaretz”. Ele atualmente trabalha para o “Spiegel Online” em Berlim como detentor de uma bolsa de estudos Ernst Cramer para os Programas para Jornalistas Internacionais).



Tradução: UOL



Texto do semanário Der Spiegel, republicado no UOL.



Educação americana

EDUCAÇÃO AMERICANA

Sucesso nos EUA, documentário faz crítica à cultura da alta performance que impera nas escolas de classe média alta


HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

Com um orçamento em torno de US$ 500 mil (R$ 835 mil), o filme já arrecadou mais de US$ 6 milhões (R$ 10 milhões) nos EUA e conquistou um lugar entre os 20 documentários de maior sucesso da história.
Fez tudo isso sendo exibido em poucos cinemas. A maior parte da audiência estava em sessões comunitárias em escolas e templos.
Ainda mais notável, depois que as luzes se acendiam, as pessoas não iam embora, mas ficavam para debater o que tinham visto.
"Race to Nowhere" (corrida para lugar nenhum), da estreante Vicki Abeles, advogada e "mãe preocupada" convertida em cineasta, é um filme sobre educação. Mais especificamente, um filme com fortes críticas à cultura da alta performance que impera nos subúrbios de classe média alta dos EUA.
Ao longo das últimas décadas a população endinheirada que almeja colocar seus filhos numa universidade de elite cresceu mais do que a oferta de vagas nessas instituições. O resultado é uma competição cada vez mais acirrada, na qual até conceitos "A" tirados na 3ª série contam pontos e atividades extracurriculares como chinês e futebol podem fazer a diferença entre Harvard e uma faculdade "menor".
Muitos não aguentam tanta pressão. É esse lado menos brilhante da cultura da alta performance que o filme procura mostrar. E o faz interpolando comentários de especialistas a depoimentos de alunos que desenvolveram doenças psicossomáticas, abandonaram o curso, envolveram-se com drogas, aprenderam a colar nas provas. Há até a história de uma garota de 13 anos que se suicidou após fracassar num teste de matemática.
De um modo geral, tudo está bem encadeado e o documentário levanta várias questões importantes, algumas das quais valem não apenas para os EUA como também para o Brasil.
Será que não estamos impondo uma agenda muito apertada para nossos filhos? A questão do excesso de compromissos infantis, pelo menos nos estratos mais abastados, é um universal. A rotina típica inclui escola, curso de idiomas, atividade esportiva. Para os mais velhos, um pouco de voluntariado. No caso das grandes cidades brasileiras, ainda é preciso acrescentar o tempo perdido no trânsito.
Tudo isso é importante, mas o mesmo pode ser dito de ter algum tempo livre, até para que o cérebro possa processar o "input" que recebe.

PROVAS
Outro ponto relevante é o que o filme chama de excesso de provas. Não há dúvida de que é fundamental conseguir medidas tão objetivas quanto possível do desempenho de crianças, professores e escolas. Sem distinguir o que funciona do que não, é impossível melhorar.
Quando a avaliação se torna o ponto central da vida escolar, porém, surgem efeitos colaterais difíceis de lidar, como a cultura da "cola" e o estresse precoce experimentado por certas crianças.
Um capítulo à parte, mas que não vale tanto para o Brasil é o da lição de casa. Nos EUA, além de uma jornada escolar de sete horas, não raro seguida por três ou quatro horas de atividades extracurriculares, as escolas costumam exigir grande volume de leituras e tarefas para casa. Muitas vezes, um jovem no ensino médio precisa dedicar a elas mais três ou quatro horas diárias, que podem avançar madrugada adentro.
A carga parece tanto mais exagerada quando se considera que os testes comparativos internacionais mostram que não há uma correlação importante entre quantidade de lição de casa e desempenho acadêmico. Por essas e outras já há, nos EUA, um grupo de interesse voltado a acabar com a lição. Sua presidente é um dos personagens do documentário.

VIÉS DE CLASSE
Um ponto que o filme até menciona, mas ao qual talvez não dê a devida ênfase, é que existem recortes de classe social. A maioria dos norte-americanos não vive em subúrbios de classe média alta e, para eles, a situação é muito diferente. Para começar, esse grande contingente populacional nem cogita entrar nas universidades de elite. Suas ambições estão limitadas a instituições públicas e "community colleges".
O desafio para essas pessoas não é suportar a pressão, mas conseguir concluir o ensino médio e prosseguir mais com os estudos. É possível que, para essa população, os testes e lições de casa tenham um impacto mais positivo do que negativo.
Tal ponderação não tira o mérito do documentário de problematizar a cultura da alta performance. Embora limitada a uma classe social específica, ela gera dificuldades que precisam ser questionadas para dar lugar a aprimoramentos. E isso vale para qualquer lugar do mundo.
Os produtores de "Race to Nowhere" não têm por ora planos de trazer o filme ao Brasil. O DVD, entretanto, já pode ser encomendado no site do documentário:
www.racetonowhere.com.



Quem mandou nascer mulher?

QUEM MANDOU NASCER MULHER? (Texto extraído do blog de mesmo nome)

Essa talvez seja uma pergunta que muitos não entendam. Quem mandou nascer mulher?
Podemos começar a resposta para essa pergunta (apenas começar, dada a extensão de possibilidades abertas pela questão) com a máxima de Simone De Beauvoir: “Ninguém nasce mulher. Torna-se”.

Mas, afinal, o que é tornar-se mulher? Os seres humanos nascem, a rigor, machos ou fêmeas, tornando-se, a partir de sua educação, homens e mulheres. Diferentemente do que se apregoa, tornar-se homem ou mulher não é uma transição natural, constituida por hormônios: é uma questão social. Ao nascer, garotos e garotas têm cada um uma educação diferente. Garotas são criadas para cumprirem determinado papel social, enquanto os garotos são criados para outro. A educação diferenciada para meninos e meninas é algo que vai desde o ambiente familiar até a escola. Não é o objetivo, por hora, aprofundar-se nas contradições de nosso sistema educacional; mas, a título de exemplo, vale a pena citar alguns fatos de conhecimento mais ou menos geral: a divisão entre os sexos nas aulas de Educação Física (e inclusive a estigmatização de esportes como “femininos” e “masculinos”), meninas serem consideradas “mais comportadas” e “mais cuidadosas” do que os meninos, enquanto os garotos seriam mais bagunceiros, menos cuidadosos.

Em outras palavras, o gênero é a construção social do masculino e do feminino¹.Ou seja, o gênero não é natural. O papel atribuído a homens e mulheres é construído, é social, cultural, passível de mudança. Não existe uma lei natural, pretensamente biológica, que defina que mulheres devem agir de uma maneira e homens de outra.

Não é permitido à mulher sair dos padrões estabelecidos para seu comportamento (por ser considerado algo como uma quebra de contrato). Uma mulher que não siga determinados parâmetros corre o risco de ter sua “identidade” questionada, inclusive sua sexualidade (afinal, ela seria identificada como não sendo mulher – o que acarreta uma série de preconceitos que não rotulam somente a mulher heterossexual, mas também a homossexual, aproximando-a do que seria “masculino”). O raciocínio é mais ou menos o seguinte: se uma moça não se comporta como é esperado, concluí-se que ela é lésbica, um “homem”.

Vale lembrar que , se existe um modelo do que é “feminino”, também existe um modelo do que é “masculino”, modelos estes que atuam um em oposição ao outro. Essa relação, no que tange à liberdade de comportamento, acaba por também ser prejudicial para o homem - em diferentes níveis, que serão explicados mais adiante. Se um garoto é sensível ou frágil, sua identidade e sexualidade podem também ser colocadas em questão, afinal, sensibilidade e fragilidade seriam características estritamente femininas, enquanto as características masculinas seriam a força, a brutalidade etc.

Agora, o segundo ponto: Quem mandou nascer mulher?

Três em quatro mulheres um dia sofrerão algum tipo de violência, e esse não é um problema exclusivo de países subdesenvolvidos, ou de “terceiro mundo”. De acordo com estatísticas na Colômbia, a cada minuto pelo menos seis mulheres são agredidas; na Espanha, um estudo demonstra que durante o período de gestação a violência contra a mulher pode se intensificar, o que leva a abortos espontâneos, doenças físicas e psicológicas; a Nicarágua apresenta os mesmos índices de violência sexual que países ocupados militarmente (onde estupros são utilizados como armas).

Entre 40% e 70% das mulheres mortas são assassinadas por seus maridos ou namorados em países como Austrália, Canadá, EUA, Israel. Mais da metade de todas as mulheres assassinadas na África do Sul, em 1999, foram mortas por seus parceitos, resultando em um feminicído íntimo a cada seis horas.Entre 40% e 50% das mulheres na União Européia sofrem de assédio sexual em seu ambiente de trabalho.

A mutilação sexual contra mulheres em alguns países (como a Guiné, Egito e Eritréia) também é assombrosa: a percentagem de mulheres de 15-49 anos que sofreram e sofrem dessa violência é extremamente alta, aproximando-se de 100%.

Os dados apresentados são a forma escancarada do que apresentamos anteriormente: vivemos em uma sociedade que prima pela supremacia masculina em detrimento da liberdade feminina, uma sociedade patriarcal.

A luta pelo feminismo e direito das mulheres, mesmo com esses dados alarmantes, contudo, continua sendo ignorada. O machismo se prolifera como uma situação normal, entre piadas, músicas, postagens de blogs, anuncios de cerveja, mantendo um pensamento arcaico responsável pela morte anual de milhares de mulheres no mundo todo.

Esses preconceitos disseminados na sociedade podem ser visto inclusive na esquerda. Nós que temos uma pequena experiência no Movimento Estudantil podemos perceber que alguns militantes quando não negligenciam a referida pauta, tecem comentários machistas, opressores, muitas vezes ridicularizando a causa, sem perceber que o machismo e o sexismo estão no mesmo patamar que o racismo, a homofobia, e a xenofobia, cometendo o terrível deslize de criar uma hierarquia das opressões.

Mas, lembremos: os seres humanos fazem sua própria história. Dentro de determinadas condições, somos capazes de agir de maneira a mudar nossa realidade, e é essa a nossa intenção. Ajudar, de alguma maneira, no desenvolvimento teórico da luta feminista, não mantendo-se, porém, somente na teoria: é preciso transformá-la em prática, força material, ações concretas.

Ocupando todos os espaços possíveis, e resgatando a importância da pauta para a esquerda. Em um movimento feminista ambicioso e radical, consciente de que seu inimigo é uma constituição de sociedade, o patriarcado. Um movimento consciente de que a nossa meta é mudar toda uma configuração do que é ser mulher na sociedade. Expondo para quem quiser ver como fomos -machos e fêmeas- transformados em produtos de masculino e feminino com o passar dos séculos. Não sendo, essas, condições naturais.
Repetindo uma vez mais Simone De Beauvoir: ninguém nasce mulher, torna-se.

Por isso é sempre válido lembrar:

Meu nome é resistência. Leia-se: mulher


Visto no blog do Luís Nassif

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Henriqueta e os professores



Do Liniers, na Folha de São Paulo, de 18/01/2011.

A doença do crime


A doença do crime 
PORTUGAL PASSOU a semana em estado de choque. Não necessariamente por estar no limiar da bancarrota, preparando-se para receber o Fundo Monetário Internacional pela terceira vez em 37 anos de democracia. Mas pela morte de um conhecido jornalista luso barbaramente assassinado em Nova York. Eis os fatos: o jornalista, Carlos Castro, 65, era um "gadfly" social, que relatava nas páginas do diário "Correio da Manhã" (em que escrevo uma coluna política três vezes por semana) a vida dos famosos. Era também homossexual assumidíssimo e militantíssimo. E presença assídua na televisão portuguesa.
Depois do Natal, partiu para Nova York na companhia de um modelo, ou aspirante a modelo, de 21 anos. Paixão? Relação "profissional"?
A doutrina divide-se. Os familiares do rapaz juram publicamente a heterossexualidade dele.
Amigos do jornalista, pelo contrário, falam em paixão, namoro, quando muito relação "platônica".
Os mais céticos dizem simplesmente que o rapaz pretendia aproveitar-se do jornalista para subir na carreira. Não saberemos a verdade.
Porque a única verdade que interessa é a morte. No passado dia 7 de janeiro, em hotel de luxo da Broadway, Carlos Castro foi assassinado no quarto do hotel.
"Assassinado" é termo demasiado brando: foi espancado, estrangulado, desfigurado e, finalmente, castrado. Com um vulgar saca-rolhas.
O principal suspeito acabaria preso e está hoje internado no hospital psiquiátrico de Bellevue, após confissão dos atos.
Aguarda julgamento. Prisão perpétua é uma hipótese.
O caso horrorizou os portugueses pelos contornos lúgubres do homicídio e, claro, pela fama do jornalista.
Mas aquilo que me horrorizou a mim não foi propriamente o homicídio. Nem sequer as reações ao homicídio na internet, onde a boçalidade anônima só comprovou a quantidade de homossexuais reprimidos que existem em Portugal.
O que me horrorizou foram os médicos que assaltaram as televisões e os jornais para "explicar" o sucedido.
"Explicar", aqui, no sentido patológico do verbo: para todos eles, matar um ser humano com tal nível de brutalidade não é "normal". É a manifestação de uma doença, ou de várias, que privaram o jovem da sua racionalidade.
Ponto de ordem: não excluo tal hipótese. E admito que a defesa legal do rapaz acabe por alegar insanidade momentânea, embora a estratégia nem sempre seja a mais aconselhada: li algures que, nos Estados Unidos, é residual o número de casos onde é alegada a insanidade; e é ainda mais reduzido o número de sentenças baseadas na insanidade do réu, que normalmente passa mais tempo nos calabouços de um manicômio do que na prisão propriamente dita.
Mas o meu problema não é legal; é moral. É, no fundo, observar a forma como as nossas sociedades foram "medicalizando" o mal, negando-lhe a sua dimensão humana, demasiado humana.
Sempre foi assim, eu sei. A existência do mal é o problema teológico "par excellence": como conciliar a existência de um Deus onipotente e onisciente com a presença do mal no mundo?
Alguns brasileiros, confrontados com a inominável tragédia que se abateu sobre o país nestes dias, poderão mesmo repetir a frase de Voltaire da época do terremoto que dizimou Lisboa em 1755: "Como pode Deus permitir a morte de centenas, milhares de inocentes?"
Não tenho a pretensão de responder a tal questão. Duvido, aliás, que uma tal questão tenha resposta.
Prefiro lidar com tragédias menores, terrenas, domésticas. E perguntar, mais modestamente, por que motivo "medicalizamos" aquilo que nos é racionalmente aberrante?
Ou, dito de outra forma, por que razão nos recusamos a aceitar que o mal faz parte da nossa condição humana?
A resposta óbvia seria afirmar que a medicina, e em especial a neurologia e a psiquiatria, conquistaram novos e desconhecidos territórios: o assassino de ontem é o doente de hoje. E, quem sabe, será curado amanhã.
Talvez seja. Ou talvez não seja.
Mas no dia em que aceitarmos todos os crimes como meras manifestações de doença estaremos também a desculpar o criminoso e a subverter as categorias básicas da nossa vida comum.
Estaremos a apagar para sempre palavras como "liberdade", "responsabilidade", "culpa", "certo" e "errado".
Quem deseja mesmo viver num mundo assim?



Tempestade no deserto


Tempestade no deserto
Na semana passada, o mundo viu um evento capaz de abrir novos rumos numa das regiões mais turbulentas do planeta. Depois de 23 anos de um regime ditatorial apoiado de maneira incondicional pelo Ocidente, o povo tunisiano derrubou o governo Ben Ali.
Durante um mês de protestos reprimidos de maneira brutal pela polícia, com dezenas de mortos, não se ouviu uma única frase de dirigentes ocidentais cobrando respeito aos direitos humanos.
Ao contrário, depois de um dia particularmente sangrento de confronto, tudo o que o governo francês (antiga potencial colonial que ainda mantém sua influência sobre o país) sugeriu foi "uma cooperação policial". Talvez os franceses imaginassem assim colaborar com os direitos humanos, quem sabe ensinando os policiais tunisianos a usarem o cassetete sem estourar a cabeça de manifestantes.
O que se passou na Tunísia nos mostra claramente a real matriz dos problemas no mundo árabe. Regimes corruptos e ditatoriais como o do "presidente" Ben Ali são apoiados, sem reserva alguma, por aqueles que pregam "democracia" contra seus inimigos do dia. EUA, França, Reino Unido não veem problemas em tratar como aliados os autocratas instalados em Marrocos, Egito (com seu "presidente" no poder há 30 anos), Arábia Saudita, Jordânia, Paquistão, sem falar do vergonhoso governo do Afeganistão com suas eleições de fachada.
Ou seja, para um árabe, "democracia ocidental" é um sintagma associado necessariamente aos governos que apoiam ditaduras na região e que lutaram para destruir regimes nacionalistas como os de Mossadegh, no Irã.
Nos últimos anos, principalmente após a revolução iraniana, os árabes lutaram contra esse fechamento do universo político por meio do retorno à força de mobilização identitária da crença religiosa. Ou seja, longe de ser um arcaísmo dessas sociedades, o fundamentalismo é um fenômeno recente resultante do esvaziamento do campo político.
Conhecemos o resultado catastrófico desse retorno do teológico. Agora, os tunisianos mostram que outra via é possível. A revolta tunisiana é uma recuperação do campo político, que pode permitir, a essa parte do mundo, reconstruir o sentido de uma democracia com participação popular efetiva. A maneira silenciosa com que os países árabes receberam a notícia da revolta no país demonstra como esse é o verdadeiro medo de seus governos.
No entanto, essa é a única arma realmente eficaz contra o fundamentalismo islâmico.
Quanto mais o espaço do político for o verdadeiro campo dos conflitos sociais, menos as derivas identitárias religiosas terão força.



segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

União civil


Para franceses, felicidade não é conjugal, mas civil

Por SCOTT SAYARE MAÏA DE LA BAUME

PARIS - Com frequência cada vez maior, os casais franceses vêm evitando o casamento tradicional e optando pela união civil -a ponto de hoje serem celebradas duas uniões civis para cada três casamentos.
Quando a França criou seu sistema de uniões civis, em 1999, ele foi saudado como uma revolução nos direitos dos gays -um relacionamento quase igual ao casamento, mas não inteiramente igual. Mas ninguém previra quantos casais acabariam por fazer uso da lei. Tampouco se previu que, em 2009, a maioria avassaladora das uniões civis seria celebrada entre casais heterossexuais.
Ainda não está claro se a ideia da união civil -o pacto civil de solidariedade, ou Pacs- foi uma resposta a uma mudança nas atitudes sociais ou causa de tal mudança. Mas ela vem se mostrando muito apropriada para a França e para as particularidades do casamento, divórcio, religião e impostos no país. E pode ser dissolvida com uma simples carta registrada.
"Somos a geração dos pais divorciados", disse Maud Hugot, 32, assessora do Ministério da Saúde que firmou um Pacs com sua namorada, Nathalie Mondot, 33. Expressando um ponto de vista que, segundo pesquisadores, vem se tornando comum entre casais homossexuais e heterossexuais, ela acrescentou: "A noção do casamento eterno tornou-se obsoleta".
Mais de 75% das uniões civis assinadas em 2000 envolveram heterossexuais, e, das 173.045 uniões civis firmadas na França em 2009, 95% foram fechadas por parceiros heterossexuais.
Como é o caso do casamento tradicional, a união civil permite que os casais façam declarações conjuntas de impostos, isenta os cônjuges das taxas sobre herança, permite que os parceiros compartilhem apólices de seguros, facilita o acesso de estrangeiros a autorizações de residência no país e torna os parceiros responsáveis pelas dívidas uns dos outros. Encerrar uma união civil requer pouco mais que um comparecimento único diante de um oficial de justiça.
Ao mesmo tempo em que a popularidade das uniões civis aumenta, o número de casamentos continua em declínio na França e em toda a Europa, dando continuidade a uma tendência verificada há anos. Apenas 250 mil casais franceses se uniram em casamento em 2009, ou menos de quatro casamentos para cada 1.000 habitantes; em 1970, quase 400 mil casais franceses se casaram.
Também a Alemanha vem assistindo a uma queda semelhante. Em 2009, foram celebrados pouco mais de quatro casamentos para cada 1.000 pessoas, contra mais de sete para cada 1.000 pessoas em 1970.
Em Luxemburgo, em Andorra, na Holanda -os outros países europeus que autorizam as uniões civis entre heterossexuais-, a união civil não é tão comum. Na Holanda, por exemplo, apenas uma união civil foi assinada em 2009 para cada oito casamentos.
Na França, porém, se a tendência se mantiver, as novas uniões civis poderão em breve passar à frente dos casamentos, como já acontece no 11° distrito de Paris, bairro de população jovem.
A planejadora de eventos Sophie Lazzaro, 48, firmou uma união civil com seu companheiro de muitos anos, Thierry Galissant, 50, em 2006. Ela disse que se interessou pela união civil devido às proteções legais e à estabilidade que prometia. E, explicou, a união civil é ideologicamente condizente com sua geração, que chegou à maioridade após as rebeliões sociais dos anos 1960.
"Éramos muito livres", disse. "A Aids não existia, tínhamos a pílula, não precisávamos brigar. Fomos a primeira geração a desfrutar de tudo isso. O casamento é muito institucional, muito quadrado e religioso, coisas que não condiziam conosco."



Algozes da verdade


Algozes da verdade 

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

O passado não está nunca morto. Nem passado é ainda. No Brasil, em toda a República, se sucedem ciclos de violência política, com casos de assassinatos e tortura, sobre os quais paira o esquecimento, sem a luz da verdade. Especialmente nas transições políticas de regimes autoritários para a democracia, tudo se procura apagar e esquecer.
Assim foi na transição do Estado Novo (1937-1945) para o regime constitucional de 1946. Sobre sequestros, tortura por agentes públicos, justiça de exceção, condenações sem defesa, nada foi feito até hoje em termos de resgate da memória ou de reparação das vítimas.
Diante desses horrores cumpre esquecer, assim propõem o ditador Getulio Vargas, que anistia todos os seus sequazes que cometeram aqueles crimes, e o líder comunista Prestes, que declara: "A anistia é o esquecimento, e eu, da minha parte, estou disposto a esquecer".
Destoando dessa celebração do esquecimento, no início da Assembleia Nacional Constituinte de 1946, o deputado Euclydes Figueiredo (pai do general-presidente João Batista Figueiredo) requereu a criação de uma comissão de inquérito que examinasse os crimes do Estado Novo.
Também pediu investigações no Departamento Federal de Segurança Pública, "no sentido de conhecer e denunciar à nação o tratamento dado aos prisioneiros políticos", afirmando que "a matéria não é daquelas que podem ser esquecidas.
Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis por crimes inomináveis, praticados com a responsabilidade do governo; e, mais que isso, defender nossos foros de povo civilizado".
Em 7 de maio de 1946, foi criada aquela comissão para examinar o período de 1934 a 1945, que poderia ter sido a primeira "comissão da verdade" no continente. Mas a falta de quorum fez com que a comissão encerrasse suas atividades sem conclusões.
Na transição do regime militar para a Nova República, em 1985, reaviva-se a mesma cantilena do esquecimento pregado para os "dois lados", visando particularmente livrar o aparelho de Estado envolvido em sequestros, desaparecimentos, tortura e mortes.
Mas, ao contrário do que ocorreu em 1946, houve o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura, pela lei nº 9.140 de 1995, no governo FHC, que estabeleceu uma comissão que concedeu reparação aos desaparecidos políticos, por meio de indenização aos familiares.
A proposta de Comissão da Verdade encaminhada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso conclui o círculo virtuoso iniciado com a lei nº 9.140, pois visa o esclarecimento circunstanciado e histórico daquelas práticas arbitrárias cometidas sob responsabilidade do Estado na ditadura militar, situando-as no contexto mais amplo de luta política do período.
A Comissão Nacional da Verdade, projeto de lei integralmente aprovado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, não tem caráter revanchista nem mandato judicial ou persecutório, sendo falso afirmar, como tem sido alegado, que haverá réus sendo julgados.
O projeto acolhe o melhor da experiência de 40 comissões da verdade no mundo, como a composição transparente e pluralista dos membros, nomeados pela presidente da República, Dilma Rousseff, com plena legitimidade. Como ocorreu na Argentina, na Bolívia, no Chile e no Peru, sem participação das partes em causa, vítimas ou agentes do Estado.
Quanto mais cedo o Congresso discutir e aprovar a Comissão da Verdade, melhores condições teremos de consolidar o passado em passado de verdade.

PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 67, é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/ USP). Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.



Onde está o dr. Wally?


Onde está o dr. Wally? 

VOCÊ VIU O VOVÔ SMURF por aí, aquele que de tanto tomar Viagra acabou ficando azul? Ou melhor, alguém sabe do paradeiro do dr. Roger Abdelmassih, médico especializado em reprodução assistida, condenado a 278 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor?
Na véspera do Natal de 2009 o doutor recebeu um habeas corpus, bênção que rapidamente deve ter se convertido em tormento. Uma pessoa na situação dele, imagino, terá de gastar todas as horas do dia e da noite pensado no momento fatídico em que será recolhido para iniciar o cumprimento da pena.
No caso do dr. Roger, considerando os seus 67 anos, mesmo que computemos os descontos que a lei tapuia concede aos apenados de bom comportamento, os prognósticos de uma vida produtiva depois de completada a sentença não são dos mais animadores.
No início deste ano, o doutor foi surpreendido tentando renovar o passaporte. Mau indício para alguém na sua condição, e a juíza, avaliando as péssimas intenções embutidas no gesto e agindo com presteza e no melhor interesse da coletividade, imediatamente tratou de decretar contra ele uma ordem de prisão preventiva.
Está achando que somos todos otários, dr. Roger? Olhaí a onipotência que o mandou para trás das grades dando as caras novamente.
Do mesmo jeito que pensou que nunca seria chamado a prestar contas por colocar seu pênis na boca de dúzias de mulheres que estavam sob efeito de anestésico ou a se explicar sobre os métodos pelos quais conseguia obter índices de fertilização inigualáveis, o espertíssimo calculou que se safaria só mais esta vez.
Ou terá sido ele acometido por desespero nu e cru? Convenhamos, até para um sujeito capaz da sordidez pela qual o dr. Roger acabou sentenciado a pena tão expressiva, a opção pela fuga não parece ser uma via fácil.
Ao contrário. A existência do foragido vem a ser um suplício. Muitos se entregam no fim das forças por não suportar mais viver de atalaia, impossibilitados de ir a um dentista sequer, de manter residência, de fazer qualquer transação monetária que não seja em dinheiro vivo.
Para um Tommaso Buscetta, mafioso foragido e depois arrependido, viver na clandestinidade deve ter sido algo bem diferente do que seria para um médico.
O siciliano tinha intimidade com a via ilegal desde sempre, sabia a quem acionar, como se portar, o que esperar. E ainda possuía estômago de kevlar.
Na hora de um aperto maior, quem viveu na bandidagem a vida toda dá um golpe, pratica um assalto, coage alguém e está resolvido. No caso do dr. Roger, além de ser novato no dia a dia do crime, ele ainda tem as feições conhecidas de todos os telespectadores do "Jornal Nacional". Que tipo de rotina estabelecerá na vida sem volta que parece ter escolhido?
Debutar como fora da lei na idade avançada não pode ser um passeio no parque. É um engano pensar que, ao dar no pé, o doutor se livrou do pior. O que mudou foi o viés. Em vez de velhinho insaciável, eu agora faço a imagem de uma tirolesa de longas tranças esfregando o chão do "bierhalle" ou carregando baldes de leite montanha acima.
Ué? A Áustria não é um país com excelente qualidade de vida sem tratado de extradição com o Brasil nem voo direto da TAM?



As violações aos direitos humanos no Brasil (e em outros lugares)



BRUXELAS, 24 Jan 2011 (AFP) -A organização Human Rights Watch (HRW) critica em seu relatório sobre a situação dos direitos humanos em 2010 a situação no Brasil, com menções à violência policial e às penitenciárias, consideradas "desumanas".
No documento sobre a América Latina, a HRW critica as ações de governos como os de Cuba e Venezuela, assim como a situação provocada pelo crime organizado no México e Guatemala.
Ao analisar a situação do Brasil, a ONG destaca a violência policial como um dos problemas mais graves.
Apenas no estado do Rio de Janeiro, a polícia foi responsável por 505 mortes violentas no primeiro semestre de 2010, o que representa uma média de quase três por dia.
O documento também denuncia as condições desumanas das prisões brasileiras, onde predominam a violência e a superlotação.
"O uso de tortura é um problema crônico no sistema carcerário", afirma o relatório.
A respeito dos demais países da região, a Human Rights Watch considera "precária" a situação dos direitos humanos na Venezuela, pelo "domínio por parte do governo venezuelano do Poder Judiciário e pela fragilidade dos controles e equilíbrios democráticos".
"Sem controle judicial sobre suas ações, o governo do presidente Hugo Chávez tem minado sistematicamente a liberdade de expressão e imprensa, a liberdade dos trabalhadores de associação e a capacidade dos grupos de defesa dos direitos humanos de realizar seu trabalho".
Além disso, a ONG questiona o panorama em Cuba, que para a HRW continua sendo "o único país da América Latina que reprime quase todas as formas de dissidência política".
"Em 2010, o governo continuou impondo o discurso único por meio de processos penais, agressões, assédio, a negação do emprego e restrições de viagem", observa.
A ONG critica ainda a situação no México, onde muitos problemas dos direitos humanos são provocados pelos confrontos violentos entre as forças de segurança do Estado e do crime organizado, assim como os enfrentamentos entre grupos criminosos.
"O Exército mexicano continua cometendo graves abusos nas operações de segurança pública. Mas as autoridades praticamente nunca prestam contas", afirma a HRW.
A organização também destaca o caso dos milhares de imigrantes que passam pelo México a cada ano na tentativa de chegar aos Estados Unidos - e que, segundo a HRW, "são submetidos a abusos graves na viagem, que incluem agressão física e sexual, extorsão e roubo".
Outro país criticado é a Guatemala, onde "as forças de segurança se mostram incapazes de conter os poderosos grupos do crime organizado e as facções criminais", o que contribui para uma das maiores taxas de crimes do continente.


sábado, 22 de janeiro de 2011

Tortura nunca poderá ser considerada crime político



"O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos justos". (Matir Luther King)

Muito se vem discutindo sobre a abertura dos arquivos militares. Em meio à polêmica, há setores do governo resistindo à criação da Comissão Nacional da Verdade, que deverá apurar a atuação dos que agiram no regime ditatorial e qual seria a correta interpretação jurídica em relação à Lei de Anistia. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, perante o Supremo Tribunal Federal, cujo pedido cuidava de interpretação da Lei de Anistia, para julgamento dos acusados de tortura durante a ditadura militar, buscando-se um posicionamento jurisprudencial a respeito do tema. No julgamento realizado no dia 29 de abril de 2010 ficou decidido, pela maioria dos ministros, que a Lei de Anistia abrangeria também os crimes praticados pelos autores da repressão ditatorial.

A decisão, em resumo, fundamentou-se no entendimento de que a Lei 6.683/79 é compatível com a Constituição Federal de 1988 e a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados no período compreendido entre 1964 e 1979, por ter sido sua publicação um acordo político entre a sociedade civil e o governo desse período. Entendeu-se, ainda, que o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei de Anistia definiu os crimes conexos como sendo as infrações de qualquer natureza que estivessem relacionadas à prática por motivação política, ou seja, incluindo os delitos comuns.



Após fazer alusão a crimes políticos e conexos existentes na concessão de anistia por vários decretos, observou-se que as expressões delitos conexos e políticos tiveram uma conotação no sentido do momento histórico da lei. Aduziu-se que o legislador realmente teria procurado estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes públicos e aos que lutavam contra o governo de exceção.

Portanto, decidiu a maioria dos ministros pelo caráter bilateral da anistia, ampla, geral, e pela abrangência da conexão criminal entre os agentes públicos que praticaram crimes comuns contra os opositores do regime militar. Destacou-se, finalmente, que o Poder Judiciário não estaria autorizado a alterar, a dar outra redação diversa da contemplada no diploma legal, incumbindo ao Supremo Tribunal Federal tão somente apurar a compatibilidade do texto normativo, concessivo de anistia com a Constituição Federal. A revisão da referida legislação, segundo o STF, caberia ao Poder Legislativo. 

Entretanto, é preciso esclarecer alguns pontos. Em primeiro lugar, o simples exame da Lei 6.683/79 demonstra que os agentes do governo que cometeram crimes comuns contra presos políticos jamais foram anistiados. Concedeu-se anistia aos que “...cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares...”

Além do texto legal, convém ressaltar o teor da Mensagem 59/79, que encaminhou o projeto de Lei de Anistia ao Congresso pelo presidente da República à época, João Baptista Figueiredo: “O projeto.... contempla quantos tenham sido afastados da atividade política por sentença da Justiça, ou por ato revolucionário.” [1]
Por outro lado, sustentam, equivocadamente, que houve um acordo no Brasil, para que houvesse a anistia. Logo, o crime de tortura seria conexo ao cometido pelo perseguido político, o que tecnicamente isso nunca ocorreu. Basta uma simples consulta aos textos doutrinários para saber que esse tipo de delito praticado de modo algum significa crime conexo à infração praticada por este. Diz-se crime conexo: é aquele que apresenta um liame subjetivo com outro delito cometido para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação ou a impunidade ou vantagem de outro crime.

Jamais se estendeu a anistia aos crimes de tortura. A questão versada diz respeito à interpretação da lei. O debate trazido foi para saber se a legislação da anistia se aplicava ou não àqueles que, em nome do Estado, cometeram os já mencionados crimes contra os presos políticos. Portanto, é dispensável qualquer discussão acerca da mudança da Lei de Anistia para retirar o benefício do torturador, conforme entendeu a Suprema Corte.

A Lei 6.683/1979 concedeu anistia estritamente aos delitos praticados com motivação política e, também, àqueles conexos a estes, em nenhum momento mencionando dentre eles os crimes comuns. E tortura nunca poderá ser considerada um crime político.

A tortura, prática repugnante e covarde, constitui crime contra a humanidade. O Brasil é signatário de Convenções e Tratados Internacionais, ratificados pelo Congresso Nacional, como o Pacto de San Jose da Costa Rica, que asseguram o respeito a direitos políticos, civis e humanos, considerando, ainda, as violências praticadas, em razão de perseguições políticas, delitos contra a humanidade, sendo, assim, imprescritíveis. Além disso, a impunidade que se estabeleceu aos torturadores não pode significar isentá-los de responsabilidade criminal pelas barbaridades cometidas.

Aliás, atualmente, o Estado brasileiro encontra-se condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o determinou a fazer a investigação penal das responsabilidades penais para aplicação das sanções previstas na Lei pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre eles camponeses da região, envolvidos na Guerrilha do Araguaia, no período da ditadura militar. Cabe ao Brasil acatar a referida determinação, uma vez que é membro da OEA e signatário das Convenções Internacionais, podendo vir a sofrer sérias consequências penais e econômicas.

Ademais, a Constituição de 1988 absolutamente não estende a anistia aos torturadores. Ao contrário, o artigo 5º, inciso XLIII de nossa Carta Magna proíbe que a Lei conceda anistia, graça ou indulto para a prática de tortura e no inciso XXXV, do mesmo artigo, impede que a lei exclua da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.

Assim, os episódios ocorridos podem ainda ser apreciados pela Justiça, iniciando o exame, nos casos de sequestros, quando ou não seguidos de homicídios, enquanto a vítima estiver em cativeiro ou seu corpo não for encontrado, já que, segundo já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal, tais delitos têm o caráter permanente, prolongando-se no tempo sua consumação. Por isso, fica inviabilizado o início da contagem do prazo prescricional.

A decisão da ADPF 153 pela Suprema Corte, rejeitando o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, para a punição dos torturadores durante o regime militar teve péssima repercussão externa, principalmente na ONU, diante da situação jurídica adotada por outros países latino-americanos os quais revisaram suas Leis de Anistia e puniram àqueles que cometeram crimes durante suas ditaduras. Assim, os governantes que lá se impuseram pelo regime de exceção, a partir dos anos 70 no século passado, submeteram-se ao devido processo legal, e muitos deles já se encontram condenados.

Na Argentina, por exemplo, os julgamentos dos acusados de tortura durante a ditadura militar foram retomados a partir 2005, depois da revogação das Leis do Perdão (Ponto Final e Obediência devida), aprovadas na década de 1980. A Corte Suprema revogou há alguns anos as Leis de Anistia que protegiam ex-oficiais de serem julgados por violações de direitos humanos, dando início às ações em diversas instâncias movidas por familiares e vítimas da ditadura. Isso permitiu que os Tribunais argentinos impusessem duras penas a ex-militares e policiais condenados por sequestros, torturas e homicídios. Nesse contexto, o ex-presidente Néstor Kirchner afirmou que, em sociedades autenticamente democráticas, não se admitiam Constituições que contemplem tutelas fardadas sobre o Estado Democrático de Direito e os poderes conferidos à República.
Ressalte-se, em 1983, a sociedade civil argentina reagiu de forma absolutamente contrária à Lei de Anistia, que o regime militar acabara de proclamar. Várias organizações de Direitos Humanos mantiveram centenas de pessoas nas ruas, durante anos, pedindo a aparição com vida dos desaparecidos e a punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade praticados pelos ditadores militares argentinos. Como no Brasil, não se poderiam investigar o destino das vítimas e sequer punir os envolvidos no desaparecimento dos militantes políticos. A Lei de Anistia beneficiava, fundamentalmente, os autores de "todos os fatos de natureza penal realizados na ocasião ou por motivos de ações dirigidas a prevenir, conjurar, ou acabar com as atividades terroristas, qualquer que seja o bem jurídico lesado", compreendendo "os delitos comuns conexos e os delitos militares conexos". Determinava, ainda, que ninguém poderia ser "interrogado, investigado, convocado a depor ou inquirido" sobre aqueles fatos.

Não fosse a persistência e o inconformismo da sociedade argentina, este dispositivo legal impossibilitaria às famílias dos desaparecidos saberem por que estes foram presos ou mortos e, em última análise, que se buscassem o surgimento da verdade, para recuperação das memórias autoritariamente colocadas no esquecimento. Por isso, a resistência democrática na Argentina sustentou seus princípios, preservando a Justiça ao rejeitar um diploma legal que não se coadunava com os Direitos Humanos e com a sua realidade política. Foi o passo decisivo e histórico para a consolidação de uma cultura democrática, elegendo os direitos humanos sua política de Estado no país.

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da abrangência da Lei de Anistia aos torturadores no Brasil não significa um posicionamento definitivo, ou seja, que foi colocado ponto final, encerrando essa história. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a qual o país está subordinado por Convenções Internacionais já conseguiu a anulação de Leis de Anistia do Peru e do Chile, que isentavam o Estado e seus subordinados de responsabilidades criminais pelo cometimento de tortura ocorrido em suas ditaduras.
Portanto, o entendimento do STF acerca da Lei da Anistia poderá ser revisto brevemente. Seremos um país democrático quando aprendermos com a lição dada pelos argentinos. Essa luta não é apenas de um de grupo de direitos humanos ou de alguns membros do governo, mas de toda a sociedade. É preciso que o gigante adormecido em berço esplêndido se torne um país maduro, como tantos outros que chegaram a apurar, bem como a punir os genocídios cometidos por eles, assumindo, também, os seus erros durante o regime ditatorial. Por isso, é necessário abrir os arquivos militares, pois lembrar é combater, reprovar, ao passo que esquecer é permitir, tolerar e aceitar a prática da tortura. No dizer do insuperável mestre Piero Calamandei: “O esforço despendido por aquele que procura a justiça não é nunca infrutífero, ainda que a sua sede fique por saciar: Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de Justiça!"[2]

[1] Discurso proferido por Humerto Jansen, como Orador Oficial do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 13.08.2008.
[2] Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados.