quinta-feira, 24 de julho de 2014

Índios, agricultores, palestinos e judeus

Encontro um amigo.
Ele está exaltado.
Já avisa: “Não bota meu nome”.
Simplifico: em quê?
Ele acerta: “No que vais escrever”.
Resumo da sua fúria: os ataques do Hamas a Israel. Digo que o mundo é complicado. Tento voltar às causas do conflito. Meu amigo muda de assunto. Fica ainda mais exaltado. É contra a demarcação de terras para índios. Pressinto uma contradição: a pessoa que defende o direito milenar de Israel a terras nas quais viviam árabes, que hoje se veem como palestinos, não deveria ser também a favor do direito dos índios a terras que eram deles antes de os portugueses chegarem? Não é o mesmo princípio, o da origem, da precedência, da história? Por extensão, os defensores dos palestinos não deveriam ficar do lado dos pequenos agricultores que ocupam há muito tempo terras indígenas?
Meu amigo quase explode. Considera a comparação absurda. Meto o dedo na ferida. Digo: pessoas que nunca viveram no atual território de Israel, nem seus pais, nem seus avós, nem seus bisavós, mas, quem sabe, seus antepassados remotos, há dois mil, entendem que têm direito a viver nesse lugar, ampliando pela Lei do Retorno essa possibilidade aos seus filhos e netos nascidos em qualquer lugar. Já os que dali foram obrigados a sair em 1947 para dar lugar ao Estado de Israel não podem voltar. Pode isso? Faz sentido? Tem lógica? Meu amigo parece que vai ter um ataque cardíaco. Por que um brasileiro filho de judeus pode se instalar em Jerusalém e um “refugiado” palestino não pode voltar para o lugar onde vivia há menos de 80 anos? Meu amigo começa a gritar. Lembro-lhe que o historiador israelense Shlomo Sand assegura que grande parte dos judeus espalhados pelo mundo não descende de qualquer pessoa que tenha vivido algum dia na “Terra Prometida”, mas de um povo turcomeno, os cázaros, convertido ao judaísmo. A unidade genômica judaica é um ponto altamente controvertido entre especialistas.
Meu amigo bufa.
Digo-lhe que isso nada tem ver com antissemitismo nem com ser contra a existência de Israel. O problema, com origem teológica e mitológica num passado vagamente histórico, tem suas principais dificuldades em questões recentes, o desalojamento de uns, cujas gerações se sucederam no lugar nos últimos séculos, para a instalação de outros por razões milenares. É certo que há quem se aproveite da situação para destilar ódio aos judeus e quem se aproveite para odiar os palestinos. Há quem diga que judeus não existem, salvo como religião, e quem diga que palestinos não existem. A chantagem predomina. A sombra terrível do holocausto não pode impedir críticas a atitudes do governo atual de Israel. Meu amigo dá pinotes. Exala certezas. Judeus são pessoas como todas as outras. Não podem nem devem ser odiados ou amados como totalidade. O mesmo vale para gaúchos, brasileiros, franceses, alemães. A totalidade não existe.
Tenho outro amigo, um carioca, que fala assim:
– O carioca não gosta de sinal fechado.
Ninguém gosta. Mas “o” carioca não existe. Existem cariocas. Uns são simpáticos, outros são antipáticos. Há bacanas e chatos. Pode existir uma cultura, traços compartilhados, estilos, o espírito de uma época, de um lugar, etc. Mas isso sempre tem limites. O principal limite é a singularidade, que jamais desaparece na totalidade.
Tento acalmar meu amigo. Quero a paz. Defendo um Estado binacional no Oriente Médio ou dois Estados bem constituídos. Meu amigo começa a rir. Ataca os demarcadores de terra para índios. Pessoas ouvem a nossa conversa. Aproxima-se um homem. Apresenta-se. Diz-se palestino. Está horrorizado com o massacre de Israel na Faixa de Gaza. Puxo o assunto da comparação com as terras indígenas. Ele é totalmente a favor da demarcação das reservas. Considera ilegítima a posse dos pequenos ou grandes agricultores brancos. Pergunto se não há contradição no seu raciocínio. Responde assim: “É diferente”.
Meu amigo bate em retirada. Quer se salvar de um infarto.
Volto para casa com muita coisa para pensar.
É preciso evitar generalizações impertinentes. Existem judeus a favor dos índios brasileiros e palestinos a favor dos agricultores que vivem nas terras indígenas. E agricultores instalados em terra de índios favoráveis a Israel.
E quem não tenha o menor interesse por essa questão.
A vida não cabe na lógica. É feita de mitos, imaginários e racionalizações. Muitos buscam na ciência a coerência que tudo resolveria. Por exemplo, a prova do DNA de que todos os judeus teriam a mesma origem. Especialistas, como sempre, dividem-se quanto a isso. A divisão pode seguir um critério: sionistas e seus adversários. Mas nem sempre. Sand e Noam Chomsky são judeus. Conhecem de cor a questão. Mas não acreditam nessa origem comum nem nessa prova científica. Uma boa leitura de críticas de um judeu ao comportamento de Israel em relação aos palestinos são os textos de Chomsky e Edgar Morin. O judeu Morin, que participou da resistência francesa ao nazismo, foi processado há pouco tempo por criticar Israel.
Arthur Sofiatti escreveu: “Em 4 de junho de 2002, o judeu Edgar Nahoun publicou no periódico francês Le Monde, juntamente com Danielle Sallenave e Sami Naïr, um artigo intitulado “Israel-Palestina: o câncer”. O advogado Gilles-William Goldnadel, em nome da associação “Advogados Sem Fronteiras”, processou os autores por apologia ao terrorismo. Seu pedido foi considerado improcedente, e ele recorreu em segunda instância com outra acusação: a de difamação racial. A sentença deu ganho de causa aos três, argumentando que palavras retiradas do contexto ganhavam um outro sentido”.
Edgar Nahoum é meu amigo e mestre Edgar Morin.
Shlomo Sand contestou a alegação de que seu livro foi refutado por uma pesquisa recente publicada na revista Nature. Em um novo posfácio para a edição americana do bolso de “A invenção do povo judeu”, Sand escreveu: “Esta tentativa de justificar o sionismo pela genética não é diferente dos procedimentos do final do século XIX, quando antropólogos, muito cientificamente, buscavam localizar as especificidades dos europeus. Até hoje, nenhum estudo baseado em amostras de DNA anônimo conseguiu identificar um marcador genético específico para os judeus, e é improvável que uma pesquisa consiga isso algum dia. É uma amarga ironia ver os descendentes de sobreviventes do Holocausto procurarem uma identidade biológica judia. Hitler certamente ficaria muito feliz com isso! E é ainda mais repugnante que esse tipo de pesquisa seja realizada em um Estado que durante anos conduziu uma política declarada de “judeização “, no qual, ainda hoje, não é permitido a um judeu casar-se com um não-judeu”. O conflito vai continuar. O buraco é muito mais embaixo.
– FDP! – ouço o grito do meu amigo.
Considero esse tipo de argumento inválido na esfera pública.
Passível de exclusão definitiva.

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