sexta-feira, 21 de março de 2014

Morre o humorista Canarinho, de "A Praça é Nossa"

Faleceu nesta sexta (21), aos 86 anos, o humorista Aloísio Ferreira Gomes, mais conhecido como o Canarinho de "A Praça é Nossa". Ele teve um infarto fulminante.

Procurada pelo NaTelinha, a assessoria de imprensa do SBT confirmou a informação. A emissora soltará uma nota de pesar nos próximos instantes.

Canarinho nasceu em Salvador no dia 29 de dezembro de 1927. Começou sua carreira em 1947, se mudou para São Paulo em 1955 e em 56 passou a fazer parte da "Praça da Alegria", de Manoel de Nóbrega, que mais tarde viria a se tornar "A Praça é Nossa", comandada pelo filho de Manoel, Carlos Alberto de Nóbrega.

O humorista participou de quase toda a história do humorístico, mas entre os anos 70 e 80 esteve na primeira versão do "Sítio do Picapau Amarelo", onde viveu o Gamizé.

No último domingo (16), Canarinho apareceu em um depoimento no programa "Eliana", que homenageou os 60 anos de carreira de Carlos Alberto. Na ocasião, Eliana chegou a falar que as portas da atração estavam abertas para ele.


Reprodução do sítio "Na Telinha", do UOL.

quinta-feira, 20 de março de 2014

SP: morre capitão de primeiro título mundial do Brasil

Morreu nesta quinta-feira Hilderaldo Luís Bellini, capitão do primeiro título mundial da Seleção Brasileira de futebol, em 1958. O ex-zagueiro, que também se sagrou campeão em 62, teve problemas devido ao Mal de Alzheimer e não resistiu.

Bellini foi internado na noite de quarta-feira (19 de março), no Hospital Nove de Julho, em São Paulo, aos 83 anos de idade. Ele sofria há mais de 10 anos com o Mal de Alzheimer.
No mês passado, após ficar hospitalizado por 60 dias, passou a receber acompanhamento médico em casa. O quadro da doença estava piorando gradativamente e, há cerca de três anos, o ex-zagueiro perdeu a fala.
No fim do ano passado, por exemplo, o capitão da conquista de 58, na Suécia, havia sido internado, mas voltou a sentir os mesmos problemas agora. Bellini foi campeão mundial pela Seleção também em 1962, no Chile, quando cedeu a faixa de capitão a Mauro.
Bellini, o eterno capitão verde-amarelo
Bellini foi o primeiro capitão da Seleção Brasileira a conquistar uma Copa do Mundo, em 1958. Ele ficou conhecido no mundo todo como o precursor do gesto de levantar a taça. Segundo relatos, após a conquista de 58, o capitão recebeu a Jules Rimet e os fotógrafos, que não conseguiam ver o troféu, pediram para que ele o levantasse, imortalizando assim tal ato.
Nascido em Itapira-SP, em 7 de junho de 1930, Hilderado Luiz Bellini começou a jogar em 1949, na Esportiva São Joanense. Transferiu-se ao Vasco da Gama em 1952, onde permaneceu até 1961. Foi jogando pelo time de São Januário que o zagueiro conquistou os únicos títulos em clubes: três Campeonatos Cariocas, em 1952, 1956 e 1958, e um Torneio Rio-São Paulo, em 1958.
Em 1962, o zagueiro foi para o São Paulo, onde ficou até 1968. Mesmo não conquistando nenhum título com a camisa do time do Morumbi, Bellini jogou com a mesma garra e seriedade que sempre foram a marca registrada dele. Em 1969, encerrou a carreira no Atlético-PR.
Com a camisa da Seleção Brasileira, o zagueiro conquistou as Copas do Mundo de 1958 e 1962. Apesar de não ser dos mais habilidosos da história, Bellini se destacava por ser um jogador com muita raça e força. Até por isso, foi o capitão da conquista de 58.
A foto levantando a Taça Jules Rimet com as mãos sobre a cabeça é uma das marcas do futebol brasileiro, e passou a ser repetida por todo capitão em caso de título. Bellini, que tem uma estátua na porta do Estádio Maracanã em  homenagem e simbolizando o gesto, deixa mulher e dois filhos.

Reprodução do Terra.

A Grã-Bretanha trata jornalistas como terroristas


A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa estão sendo atacadas na Grã-Bretanha. Não posso voltar à Inglaterra, meu país, devido ao meu trabalho jornalístico com o denunciante da NSA, Edward Snowden, no WikiLeaks. Há coisas que eu sinto que nem posso escrever. Por exemplo, se eu dissesse que teria esperança de que meu trabalho no WikiLeaks mudasse o comportamento do governo, esse trabalho jornalístico seria considerado um crime, de acordo com a Lei de Terrorismo de 2000.
A lei define terrorismo como uma ação ou uma ameaça “projetada para influenciar o governo”, que “é realizada com o objetivo de promover uma causa política, religiosa, racial ou ideológica” e que representaria um “sério risco” para a saúde ou segurança de uma parcela do público. As autoridades governamentais do Reino Unido afirmam constantemente que esse risco está presente com a divulgação de qualquer documento “confidencial”.
Além disso, a lei diz que “o governo” significa o governo de qualquer país – inclusive dos Estados Unidos. A Grã-Bretanha usou essa lei para abrir uma investigação de terrorismo em relação a Snowden e aos jornalistas que trabalhavam com ele e como pretexto para entrar nos escritórios do Guardian e exigir a destruição de seus discos rígidos relacionados a Snowden. A Grã-Bretanha está se transformando num país que não sabe a diferença entre seus terroristas e seus jornalistas.
Definição bizarra de terrorismo
O recente julgamento do caso de David Miranda é uma prova disso. Miranda ajudava o jornalista Glenn Greenwald e viajava, no verão passado, com documentos do jornalista. Quando seu avião fez escala no aeroporto de Heathrow, ele foi detido com base no item 7 da Lei de Terrorismo. O item 7 significa que uma pessoa pode ser detida por até nove horas num ponto de entrada no Reino Unido e não tem direito ao silêncio. Obriga a pessoa a responder a perguntas e entregar documentos que estejam consigo, e, portanto, David Miranda foi obrigado a entregar seus documentos de Snowden. Posteriormente, Miranda entrou com um processo contra o governo do Reino Unido sobre a legalidade de sua detenção, para mostrar como essa lei representa uma transgressão à capacidade de um jornalista trabalhar livremente. De forma ultrajante, o tribunal encontrou desculpas políticas para ignorar as bem definidas proteções à liberdade de expressão que constam da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Se a Grã-Bretanha for investigar jornalistas como terroristas, tomar e destruir nossos documentos, obrigar-nos a entregar senhas e responder a perguntas, como poderemos garantir proteção às nossas fontes? O precedente já existe; nenhum jornalista pode ter certeza de que se sair, entrar ou fizer escala no Reino Unido isso não lhe acontecerá. Meus advogados aconselharam-me a não voltar ao meu país.
A assessora jurídica de Edward Snowden, Jesselyn Radack, norte-americana, foi questionada sobre Julian Assange e seu cliente quando entrou recentemente no Reino Unido. Sou bastante ligada aos dois: trabalho para um deles e salvei e acompanhei o outro por quatro meses. Além disso, se eu tentasse entrar no país e o item 7 fosse ativado para me parar, eu não teria como responder a essas perguntas nem como ceder, uma vez que isso representaria um risco para o trabalho jornalístico do WikiLeaks, para o nosso pessoal e para as nossas fontes. Como, de acordo com essa lei, eu não teria direito ao silêncio, para o governo eu estaria cometendo um crime. Uma condenação por “terrorismo” teria sérias consequências no exterior com os movimentos internacionais pela liberdade.
O item 7 da lei não trata de pegar terroristas, nem em seus próprios termos. O julgamento de David Miranda afirma que, neste caso, ele “constituiu uma interferência indireta à liberdade de imprensa” e esta é reconhecidamente “capaz, dependendo dos fatos, de ser desdobrada de forma a interferir com a liberdade jornalística”. As autoridades podem deter uma pessoa, não por suspeitarem que ela esteja envolvida com terrorismo, e sim para ver “se alguém parece” – mesmo de maneira indireta – facilitar a definição bizarra de terrorismo usada nesta lei.
Direitos e liberdades
O juiz Ouseley, que também presidiu o caso de extradição de Julian Assange, declarou em seu julgamento que uma autoridade pode agir por “não mais que uma suspeita ou intuição”. Portanto, agora foi determinado por nossos tribunais que é aceitável interferir com a liberdade de imprensa com base numa suspeita – tudo em nome da “segurança nacional”. Atualmente, ao invés de significar “a garantia de estabilidade de uma nação para seu povo”, a segurança nacional é um slogan usado por governos para justificar suas próprias ilegalidades, sejam elas invadir outro país ou espionar seus próprios cidadãos. Esta lei – e isso agora é cristalinamente claro – está sendo usada, de forma consciente e estratégica, para ameaçar jornalistas. Tornou-se uma ferramenta para garantir a escuridão atrás da qual nosso governo pode construir um Big Brother do século 21, totalmente novo.
Esta erosão dos direitos humanos mais elementares é uma ladeira escorregadia. Se o governo conseguir se dar bem espionando-nos – não apenas com a cumplicidade, mas com a exigência dos Estados Unidos –, então, a que tipo de sistema de controle e equilíbrio ainda podemos recorrer? Poucos de nossos parlamentares estão fazendo alguma coisa no sentido de agir contra esta restrição abusiva de nossa liberdade de imprensa. A deputada (PV) Caroline Lucas entrou com uma moção no dia 29 de janeiro, mas até agora somente 18 outros parlamentares a assinaram.
Desde meu refúgio em Berlim, isso cheira mais a adotar o passado da Alemanha do que seu futuro. Tenho pensado sobre até onde a história da Grã-Bretanha teria sido mais pobre se seus governos dispusessem de um instrumento abusivo. O que teria acontecido a todas as campanhas públicas realizadas numa tentativa de “influenciar o governo”? Vejo as mulheres que lutavam pelo direito ao voto sendo ameaçadas, vejo os manifestantes da marcha de Jarrow sendo rotulados como terroristas, vejo Dickens sendo encarcerado na prisão de Newgate.
Em sua disposição de atropelar nossas tradições sem qualquer consideração, as autoridades britânicas e as agências do Estado estão agarradas a um extremismo que é tão perigoso para a vida pública britânica quanto a ameaça (real ou imaginária) de terrorismo. Como declarou o juiz Ouseley, o jornalismo não possui um “status constitucional” no Reino Unido. Mas não pode haver dúvida de que este país precisa de um plano de liberdade de expressão para os próximos anos. O povo da Grã-Bretanha deveria lutar para mostrar ao governo que iremos preservar nossos direitos e nossas liberdades, sejam quais forem as medidas repressivas e ameaças que lancem contra nós.
Texto da britânica Sarah Harrison, para o The Guardian, reproduzido no Observatório da Imprensa

Não Eleitoral


Sem ser jornalista profissional, o economista Paul Krugman, Nobel de 2008, há anos é a palavra mais importante no jornalismo americano. Tanto no que se refere à política interna como à internacional, a numerosos países e, claro, à economia em todos os sentidos. A proporção de acerto das suas percepções e ponderações impressiona, e é única hoje em dia.
Por alguma razão, ou, mais provável, por várias, sua participação no "Fórum Brasil: diálogos para o futuro", realizado pela "Carta Capital", não provocou nos jornais, tevês e rádios o desejo de dar-lhe o destaque das coisas importantes ou interessantes. Por exemplo:
"Há um bom tempo o Brasil não é mais um país tão vulnerável, e o que aconteceu (ao real) foi uma depreciação benigna. Sim, houve um aumento da inflação, mas não há descontrole. E disciplina fiscal e dívida externa não são mais fatores importantes, como no passado".
Ou: "Desta vez, a América Latina e o Brasil conduziram-se muito bem na crise [da economia americana e dos efeitos que os problemas americanos produziam na América Latina, e desta vez produziram na Europa].
Parece com a multidão de opiniões que jornais, rádios e tevês lançam sobre o país todos os dias, em todas as horas, por seus comentaristas de economia? Calma, não generalizo. Há ressalva: uma.


Trecho da coluna de Jânio de Freitas na Folha de São Paulo

Por amor, casal afegão vive sob ameaças

Por amor, casal afegão vive sob ameaças
Por ROD NORDLAND

BAMIAN, Afeganistão - Ela é a sua Julieta, ele é o seu Romeu. E a família dela ameaçou matar os dois. Zakia tem 18 anos, e Mohammad Ali, 21. Ambos são filhos de agricultores nesta remota província montanhosa. Se eles pudessem ficar juntos, formariam um casal adorável.
Ela se veste com roupas coloridas e dá risadinhas ao falar dele. Ele tem cabelos pretos penteados para cima e costuma usar uma echarpe branca de seda. Os dois têm olhos cor de âmbar. Nunca ficaram juntos sozinhos, mas querem se casar, apesar de serem de diferentes etnias e seitas religiosas. Eles dizem que foram marginalizados e marcados para morrer por desonrarem suas famílias.
Zakia está refugiada em um abrigo para mulheres. Embora pela lei afegã ela seja legalmente adulta, um tribunal local ordenou que ela voltasse para a sua família, o que não aconteceu graças à intervenção de Fatima Kazimi, da Secretaria da Mulher de Bamian. "Se eles me pegarem", disse Zakia, "vão me matar".
Nenhum dos dois sabe ler, e eles nunca ouviram falar da trama de Shakespeare sobre um amor condenado. Mas há uma porção de histórias similares com as quais eles se deparam, e estas também terminam de modo trágico.
Praticamente todos os casamentos afegãos são arranjados pelos pais. As garotas trazem para suas famílias o pagamento do chamado "preço da noiva", que pode ser considerável -embora para famílias pobres, como as de Zakia e Mohammad, possa ser de apenas algumas cabras.
Zakia e Mohammad Ali se conhecem desde a infância, já que trabalharam em lavouras próximas no vilarejo de Khame Kalak. "Infelizmente, ela cresceu, e não pude mais vê-la", disse ele. Depois de entrar na puberdade, as meninas têm de permanecer cobertas e normalmente só podem sair à rua na companhia de parentes próximos do sexo masculino.
Para complicar o problema, Mohammad Ali é da etnia hazara, majoritariamente muçulmana xiita. Zakia é uma tadjique, grupo étnico muçulmano sunita.
Ocasionalmente, porém, Mohammad Ali avistava Zakia nos campos e seus olhares se cruzavam. Ele tinha certeza de que era correspondido. Então ele encontrou uma menina para servir de intermediária e lhe deu um celular para que levasse a Zakia.
Zakia escondeu o telefone e, na maior parte dos últimos quatro anos, eles conversaram um com o outro mais ou menos uma vez por semana. Quando Zakia, que tem nove irmãos, conseguia alguma privacidade, ela telefonava para ele, deixava o aparelho tocar uma vez e ele ligava de volta.
Por intermédio de seu pai, ele enviou duas vezes emissários ao pai de Zakia pedindo permissão para cortejá-la. Foi rejeitado, mesmo depois da oferta de dar parte das terras da família como pagamento do "preço da noiva".
Zakia tomou então a iniciativa e apareceu na casa de Mohammad Ali, implorando para ser aceita na família e se casar com ele. A família de Mohammad Ali a mandou de volta não apenas uma, mas duas vezes. O pai e o irmão mais velho dele o espancaram tanto que ele teve de ser hospitalizado.
Da segunda vez, contou Zakia, ela também apanhou muito de sua família, e seu celular foi descoberto e confiscado. Ela fugiu pela terceira vez para a casa de Mohammad Ali. "Vi que não havia nenhum lugar aonde ir, por isso a levei à Secretaria da Mulher", disse ele. O caso foi encaminhado à Justiça.
Os parentes de Zakia disseram que ela já estava comprometida com um primo. No entanto, os depoimentos de familiares não coincidiam sobre que primo era esse. Além disso, Zakia negava estar noiva. "O juiz me disse: 'Nós somos tadjiques, e é uma desonra para nós se você se casar com um hazara'", contou Zakia.
O juiz então fez com que Zakia, que não sabe ler, assinasse um documento em que ela se comprometia a voltar para a sua família.
No entanto, com a intervenção de Fatima Kazimi, da Secretaria da Mulher de Bamian, Zakia conseguiu ir para um abrigo.
Quando a polícia escoltou Zakia para fora da corte, a família dela se descontrolou. A mãe gritou com ela, chamando-a de prostituta.
Ela não tem permissão para telefonar no abrigo, onde vive há cinco meses, e não pôde falar com Ali na secretaria. "Se ele morresse, eu também morreria", disse.
A Justiça conseguiu que Fatima Kazimi fosse destituída de seu cargo por intervir no caso de Zakia e disse que o documento em que Zakia se comprometia a voltar para casa era válido. Porém, a Secretaria da Mulher recorreu da sentença e a investigação sobre o caso de Zakia e Ali foi reaberta.
"Se me separassem dela, se alguma coisa acontecesse a ela, eu cometeria suicídio", disse Mohammad Ali.

Reprodução de notícia do The New York Times, na Folha de São Paulo.

Silêncios


No Sul, trabalhadores do Uruguai são importados para suprir a carência de mão de obra em várias atividades. O Paraná, informou a Folha de domingo, está importando caminhoneiros da Colômbia.
Mas, que estranho, não se ouvem os discursos patrióticos do PSDB sobre a entrega a estrangeiros de oportunidades de emprego, em detrimento de brasileiros --como esbravejaram discursos na Câmara e no Senado e escreveram vários jornalistas a propósito dos médicos cubanos.
Se há intermediação, também nessas novas importações há perda de remuneração do trabalhador, em favor dos intermediários. Mas nem essa alegada exploração leva aos indignados de antes. Se o ser humano não for cubano, nem com rima os move ou comove.


Outro trecho da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.

A fonte da rebelião

Na hostilidade dos deputados do PMDB ao governo há um impulso maior do que a "insatisfação com o tratamento injusto" dispensado ao partido por Dilma Rousseff. A própria bancada não precisou, porém, de mais do que esse argumento para rebelar-se, porque nele estava implícito o objetivo principal, quando não único, da maioria dos seus integrantes: receber mais nomeações e verbas federais.
Líder e inspirador da bancada, o deputado Eduardo Cunha deu sentido prático à rebelião alinhando poucas mas suficientes recusas a projetos apoiados pelo governo. Para todos os efeitos, esta atitude é um desdobramento da rebelião, e não a sua causa. Mesmo para a bancada, é assim que se explica. Mas não é assim na realidade.
A força por trás da rebelião são as empresas de telefonia. As suas objeções e as do deputado Eduardo Cunha ao projeto do Marco Civil da Internet são idênticas. Incidem sobre as mesmas partes que desejam ver retiradas, umas, e outras modificadas no projeto. Motivo que levou a rebelião a exigir o adiamento da votação e a reabertura das discussões. Contra a posição do governo, que defendeu o projeto aprovado tal como está e tão depressa quanto possível.
A falta do Marco Civil da Internet é um atraso brasileiro. Há inúmeros manifestos por sua aprovação. O deputado e relator Alessandro Molon trabalhou com seriedade e minúcia na formulação final do projeto. Argumenta que as modificações de interesse das empresas de telefonia e defendidas por Eduardo Cunha resultariam na "exclusão digital de milhões de usuários brasileiros da internet, beneficiando só os mais ricos".
Rebelião do PMDB é pseudônimo de manobra das telefônicas. Mas a esperteza que a propôs não é delas, não.


Trecho da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.

Negacionismo


"Há quase 50 anos, o Brasil assistiu a um golpe militar que impôs a pior ditadura de sua história, responsável por crimes contra a humanidade, terrorismo de Estado, censura e arbítrio."
Essa frase deveria ser atualmente a descrição de fatos históricos, aceitos como evidências. Fatos que, por si só, teriam a força de provocar a indignação coletiva e o rechaço dos restos dessa época que ainda permanecem entre nós.
No entanto, para setores expressivos, tanto da população quanto daquilo que um dia foi chamado de "formadores de opinião", a frase "não é bem assim". Ela deve ser nuançada e colocada melhor em seu contexto.
O resultado da ausência de uma política forte baseada na justiça de transição e no dever de memória fez com que o Brasil fosse obrigado a ver, no limiar dos 50 anos do golpe militar, análises que procuram nos levar a crer que a ditadura não foi tão ditadura assim, que no fundo ela começou mesmo em 1969, com o Ato Institucional nº 5, e que não faz muito sentido processar torturadores, exigir mea culpa das Forças Armadas e das empresas que financiaram o regime. Não faz muito sentido exigir o reconhecimento da culpa e o pedido de perdão.
Tais análises são dignas do puro e simples negacionismo. Pois será sempre negacionista toda historiografia que visa minimizar crimes contra a humanidade, servindo-se de leituras tortas para dirimir o ímpeto social por punição e justiça contra os que se serviram do Estado para impor um regime assentado na violência bruta e na eliminação de setores descontentes da população.
Sim, agora temos uma literatura negacionista "made in Brazil". Ela se traveste de argumentos do tipo "os dois lados tiveram excessos" para fazer o pior de todos os exercícios: a relativização do governo ilegal e criminoso que tomou de assalto o Brasil por duas décadas.
Assim, já faz algum tempo que os interessados na história brasileira alertam para a repetição a qual as sociedades estão submetidas quando são incapazes de elaborar seu passado. Essa lei é tão forte quanto a lei da gravidade.
Não é de se estranhar que, dos esgotos do conservadorismo nacional, apareça novamente esse cortejo de fetichistas de quarteis, apolíticos amantes de políticos de direita, defensores da família brasileira com sua produção em série de neuróticos e membros do Grupo Armado do Menino Jesus.
Sim, para aqueles que diziam que a reconciliação já tinha sido alcançada milagrosamente no Brasil, a história apresenta a mais nova edição da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade".
Um agradecimento especial aos negacionistas por esse desrecalque.


Texto de Vladimir Safatle, publicado na Folha de São Paulo

terça-feira, 18 de março de 2014

Organização israelense contrabandeava órgãos de costarriquenhos por US$ 20 mil


Uma empresa israelense se comprometeu a pagar US$ 20 mil (cerca de R$ 64 mil) a um casal de costarriquenhos para comprar o rim esquerdo da mulher, trasladar a ambos para Israel e realizar o transplante em março de 2013 em um hospital desse país, em uma negociação coordenada durante vários meses por um médico da Costa Rica que foi preso em junho anterior por tráfico de pessoas com fins de extração de órgãos.
A revelação está contida em uma declaração que o casal - morador em um povoado da província de Cartago, a leste de San José, capital da Costa Rica - prestou em 18 de março de 2013 no centro de detenção do aeroporto Ben Gurion em Tel Aviv, diante do Consulado Geral da Costa Rica em Israel.
O caso faz parte de um grande negócio de tráfico de órgãos que, encoberto como turismo de transplantes, foi desenvolvido pelo menos desde 2009 por uma rede transnacional com ligações na Costa Rica, em Israel e em países da Europa oriental que foi desarticulada no ano passado pelas autoridades do país centro-americano. Os primeiros detalhes do escândalo foram revelados em maio do ano anterior pelo jornal mexicano "El Universal".
Entre junho e outubro de 2013, o Ministério Público da Costa Rica deteve quatro médicos - de sobrenomes Mora, Mauro, Fonseca e Monge -, uma policial - de sobrenome Cordero - e um empresário - Katisgiannis - que fariam parte da rede de contrabando de órgãos. A policial e o empresário eram recrutadores de vítimas que, precisando de dinheiro, aceitavam vender algum órgão. Mora foi indicado pela promotoria como o organizador do negócio.
Segundo a promotoria, o grupo fazia parte de uma organização transnacional baseada em Israel que mobilizou grande quantidade de dinheiro e nos últimos anos utilizou a Costa Rica como "país anfitrião" do turismo de transplantes para ocultar o contrabando de órgãos. O caso continua aberto, embora alguns dos envolvidos estejam livres.
"Eles encheram as mãos de sangue e encheram as mãos de dinheiro", relatou o promotor Carlos María Jiménez, um dos responsáveis pelas investigações no Ministério Público.
O fenômeno do contrabando de órgãos chamou a atenção recentemente na Espanha depois da detenção em 12 de março de cinco estrangeiros supostamente envolvidos em uma tentativa de compra e venda de um fígado que seria transplantado em um magnata libanês.
A Organização Mundial da Saúde calcula que 10% dos mais de 100 mil transplantes anuais no mundo são praticados com órgãos procedentes do comércio ilegal.

Em silêncio

A confissão que o casal da Costa Rica prestou em Tel Aviv revelou parte dos meandros da rede transnacional de tráfico de pessoas com fins de extração ilegal de órgãos. De acordo com o testemunho, as negociações se realizaram desde 2012 no hospital Calderón Guardia, nesta cidade, um dos principais centros médicos da Costa Rica.
O médico de sobrenome Mora "nos advertiu que não comentássemos nada sobre o que foi discutido, a extração do rim nem o suposto pagamento que ele faria", relatou o casal em uma declaração que entregaram "de maneira livre e espontânea" e "sob fé de juramento".
Em seu depoimento explicaram que em maio de 2012 conheceram o médico por meio de "referências de terceiros que já tinham vendido órgãos". O médico fez um exame de sangue na mulher e explicou a ambos que oferecia o pagamento de cerca de US$ 20 mil "pela extração do rim esquerdo" em Israel. O pagamento seria feito por "uma suposta empresa israelense".
O texto, em poder de "El País", afirma que a paciente foi submetida a vários exames médicos de compatibilidade, pagos pelo doutor Mora. "Em um dos encontros", prossegue o depoimento, o médico Mora "ofereceu atendimento por toda a vida por qualquer causa não relacionada à operação". "Nenhum documento foi assinado", explicou o casal às autoridades.
"O doutor Mora organizou o pagamento das passagens de ida e volta. No entanto, nos mandou para Israel sem nenhum dinheiro e sem nos dar qualquer contato nesse país, sem termos meios para nos hospedar por nossa conta", explicaram.
A entrada do casal em Israel foi impedida. "Devido às condições em que viemos, as autoridades migratórias suspeitaram que vínhamos para trabalhar ilegalmente, e por isso nos informaram que seríamos deportados para a Costa Rica em 19 de março, disseram.

Mudança legal

Depois da revelação do escândalo, a Assembleia Legislativa da Costa Rica começou a buscar vias para fechar as portas ao tráfico internacional de órgãos e aprovou no início deste mês uma lei que impõe severas sanções penais ao contrabando local ou internacional de partes do corpo humano.
O Ministério Público confirmou que a rede funcionou desde 2009. Há vídeos nos quais um médico promove a Costa Rica como um lugar barato para os transplantes, além das ofertas que aparecem em sites da Internet.
A promotoria disse que foram identificados "pelo menos" 20 vendedores ou "vítimas" que, confrontadas com uma difícil situação econômica, optaram por ceder um órgão. Embora o pagamento individual dos doadores tenha chegado a US$ 20 mil, o custo total de cada transação superou US$ 100 mil, pagos por receptores costarriquenhos e estrangeiros, com altos lucros para a rede, segundo o Ministério Público.
 

Reportagem de José Melendez, para o El País, reproduzido no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

terça-feira, 11 de março de 2014

Maconha legal nos EUA põe em xeque política antidrogas no continente

No Estado de Washington, quase na fronteira entre EUA e Canadá, um farmacêutico chamado Sean Green, cujo nome criou um trocadilho que a imprensa americana não deixou passar, recebeu na semana passada a primeira licença estadual para vender maconha com fins recreativos.

Menos de dois meses antes, 11 mil quilômetros ao sul do continente, o Uruguai se tornava o primeiro país do mundo a embarcar na experiência de legalizar e regulamentar o mercado da marijuana "limpa".

Para analistas, não são coincidências, mas elementos que retratam a mudança de atitude dos países do hemisfério ocidental em relação às drogas.
Eles acreditam que outro elemento importante neste cenário --a oposição americana a permitir a legalização de drogas para fins recreativos em acordos internacionais-- também possa mudar à medida que a legalização avance dentro dos próprios EUA.

"O fato de o país estar vivenciando uma grande mudança interna nas suas políticas para as drogas já está claramente afetando a maneira como os EUA lidam com outros países", disse à BBC Brasil John Walsh, diretor do programa de drogas da organização Escritório de Washington para a América Latina (Wola, na sigla em inglês).
"Por muito tempo --décadas-- outros países corretamente entenderam que seriam criticados pelos EUA se tomassem medidas para liberalizar as suas leis. Mas no caso do Uruguai, os EUA se deram conta de que não estão na posição de criticar abertamente o governo uruguaio, e de fato não criticaram."

Mudança de atitude

O sucesso inicial da venda de cannabis para fins recreativos no Estado do Colorado reforçou a posição dos que defendem um mercado regulamentado para esta substância.

O governo estadual prevê que a taxação de 12,9% sobre maconha legal engordará os cofres públicos em US$ 100 milhões neste ano fiscal. Dinheiro suficiente para enriquecer o Estado e implantar programas de saúde para mitigar os efeitos de abusos, argumenta o governo.

Estimativas contidas no orçamento do Executivo estadual indicam que a indústria local alcance US$ 1 bilhão por ano, com as vendas para fins recreativos respondendo por mais de 60% disto.

No Estado de Washington, as vendas de maconha com fins recreativos começará em junho. Os defensores da legalização acreditam poder conseguir algum tipo de liberalização também no Alasca, Arizona e Oregon, e talvez uma espécie de referendo nos próximos anos na Califórnia.

'Irresponsável'

Porém, o avanço destas iniciativas ainda é polêmico e está longe de ser considerado irreversível.

Na semana passada, Thomas Harrigan, vice-diretor do departamento antidrogas americano, DEA, pediu durante uma audiência na Câmara que os parlamentares "não abandonem a ciência em favor da opinião pública". Ele disse que os experimentos de legalização da maconha são "irresponsáveis".

A legislação federal americana proíbe o uso de maconha, considerada uma droga perigosa e sem valor medicinal.

"Ela cria dependência e requer tratamento, além de abrir a porta para o uso de outras drogas, problemas de saúde, comportamento delinquente e direção perigosa", sustentou um porta-voz da DEA na época da legalização da maconha no Uruguai.

Porém, o governo do presidente Barack Obama já anunciou que o Executivo federal não vai tentar impedir as experiências estaduais no campo da legalização.

Para John Walsh, esta posição coloca a Casa Branca em um "dilema".

"Considerando a mudança evidente de atitude do público interno, estamos nos distanciando de uma lógica proibicionista", opina o especialista.

"Mas vai demorar para que a lei nacional reflita a mudança que está acontecendo. Os EUA permanecerão nesta posição desconfortável por algum tempo."

segunda-feira, 10 de março de 2014

O ornitorrinco e a agente literária

O ornitorrinco e a agente literária
O "autor local" escreve para o mundo
J. P. CUENCA

RESUMO O escritor J.P. Cuenca responde a texto de Luciana Villas-Boas publicado na "Ilustríssima" de 23/2, no qual a agente apontava a obsessão do autor nacional em obter projeção no exterior, antes de consolidar-se no Brasil. Para Cuenca, dimensionar a pretensão artística pela demanda do leitor médio é mediocrizar a literatura.

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Foi numa sala de embarque que li "A Tradução, essa Faminta Quimera - Para Quem Escreve o Autor Local?", artigo de Luciana Villas-Boas publicado nesta "Ilustríssima" há dois domingos. Estava nos Estados Unidos para divulgar a tradução de um romance, convidado pelas universidades de Stanford, UCLA, Princeton, Yale, Brown, Illinois, Indiana e NYU. Apesar da lista elegante, foram leituras de alcance restrito, para turmas de pós-graduação. Ainda não cheguei ao sofá da Oprah ou à lista de mais vendidos do "New York Times".
Foram necessários três anos e meio para que se esgotasse a primeira fornada, de 3.000 exemplares, de meu livro mais recente, que agora terá nova edição. Embora não seja um estrondo comercial, "O Único Final Feliz para uma História de Amor É um Acidente" (Companhia das Letras, 2010) já chegou às livrarias de Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, França e EUA, ainda que em distribuição restrita. Até junho, será editado na Finlândia e na Romênia.
O mérito é de cada um dos tradutores que se apaixonou pelo livro, normalmente propondo a tradução e antecipando-se a acordos editoriais. É da agência e dos editores estrangeiros que acreditaram nas excentricidades deste escritor. Mas nada disso seria possível sem o programa de traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Sua retomada foi fundamental para a difusão da nossa literatura no exterior nos últimos anos. (Importante lembrar que não se trata de invenção brasileira. Muitas das traduções que consumimos no Brasil são fruto de iniciativas similares, já bastante tradicionais em mercados como a Europa.)
Diferentemente de Villas-Boas e de Raquel Cozer, que também publicou texto na penúltima edição deste caderno, não sou grande conhecedor dos números de exemplares vendidos meus ou dos meus colegas de geração --numa mesa de literatos brasileiros dos anos 10, falar disso é tabu maior do que teorizar sobre a própria produção (ou do que confessar a inveja que temos dos escritores gaúchos).
Por isso não tenho o número total de vendas do meu livro fora do Brasil, mas desconfio que seja maior que o doméstico. Se contarmos pelas tiragens, ele foi impresso três ou quatro vezes mais no exterior. Também foi mais resenhado fora. Agora a imprensa argentina e francesa começam a falar dele, apontando aspectos que a crítica brasileira, portuguesa ou alemã não tinham levantado. E o romance começa a ser lido com atenção por alguns estudantes estrangeiros. Essas novas camadas de leitura jogam luzes diferentes à obra e oxigenam o seu autor.
Em termos absolutos, são números ainda pequenos. É um começo e uma aposta. Deixo, no entanto, ao departamento comercial das editoras e agências o papel de julgar produção literária e sua repercussão ao longo da história por desempenho das vendas.

ESTOURO 

Ao contrário do que alguns colegas e editores sugerem, não acredito que um escritor deva moldar sua literatura com o objetivo de ser acessível e virar um "estouro de mercado". Num país que transformou autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector em cânone, dimensionar pretensão artística sob a demanda do leitor médio seria fruto de uma inversão lógica que, no limite, nos levaria ao grunhido.
Continuo a escrever exatamente o que quero, mas sempre me disponho ao embate. Nos últimos anos tive a sorte de vender livros em vilarejos ao norte da Alemanha, em balneários caribenhos, em Macau e no Meio-Oeste americano. Também o fiz em dezenas de cidades do meu país, de Foz do Iguaçu ao interior do Maranhão.
O trabalho de arregimentar novos leitores --para mim e para a literatura brasileira-- é um corpo a corpo ao qual tenho dedicado boa parte do meu tempo na última década, dentro e fora do Brasil. É o foco do meu trabalho? Não. Escrevo para isso? Não. Ganho dinheiro com isso? Aqui, pouco. No exterior, nenhum. Mas esses encontros ajudam a entender o que faço. E, ainda que entre a espetacularização da figura do escritor e uma difusão efetiva do hábito da leitura exista um abismo por trás de uma cortina de fumaça de boas intenções, com sorte ganho um ou outro leitor ao final dessas performances. Por isso, continuo.
Cada leitor é tão importante quanto o próximo. "20 leitores locais são mais preciosos que uma edição na Bulgária"? Não. A não ser que a edição búlgara tenha menos de 20 exemplares vendidos. O "autor local", como Luciana Villas-Boas gosta de chamar, escreve para o mundo, onde buscará seus leitores. Nem mesmo o seu país irá reconhecê-lo se ele não tiver essa pretensão.

OBSESSÃO 

Luciana Villas-Boas começa seu artigo com uma assertiva meio grosseira: "O autor brasileiro é vidrado numa tradução". Depois, ao traçar com detalhe os motivos do divórcio entre literatura e sociedade nas últimas décadas, dá a dica que poderia explicar nossa estranha obsessão, mas deixa a ponta meio solta.
O autor brasileiro não é vidrado numa tradução por "cultivar o sonho colonizado e aprisionador do sucesso no Primeiro Mundo'", como o texto diz. Ele é vidrado numa tradução porque quer ser lido. E porque nasceu num país que tem lido muito pouco literatura contemporânea.
A tiragem inicial média de um romance em Portugal é a mesma que aqui, ainda que nossa população seja quase 20 vezes a de lá. Nossos números podem ser ainda mais vergonhosos: em 2011, quase quatro em cada dez universitários não podiam ser considerados plenamente alfabetizados --os dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM). Não há ação editorial que resolva tal problema.
Talvez seja por isso que escritores brasileiros precisem repetir como um mantra: escrevo exatamente o livro que posso e desejo escrever. Se a obra pronta se transformará numa "aposta ousada" ou convidará novos brasileiros ao hábito da leitura é algo que está totalmente fora da minha lista de prioridades quando escrevo. Para a ira de alguns, não apenas escrevemos o que queremos, mas também queremos ser lidos sem nenhum tipo de concessão às necessidades do mercado editorial ou à última onda anglo-saxônica. A lógica por trás do artigo de Villas-Boas sucumbe ao provincianismo que ela credita ao autor brasileiro.
A mesmice não está na produção literária dos contemporâneos. É só ler seus livros com os olhos abertos, o que alguns "scouts" de agência e críticos literários com pedigree não costumam fazer, sempre procurando neles outros que já foram escritos.
O "mais do mesmo" está nesse tom acusatório, vindo de certos editores, acadêmicos e escritores que tentam corresponsabilizar a produção contemporânea por um problema estrutural de educação no país. O desprestígio da ficção brasileira no mercado local é fruto do desprestígio da leitura como um todo no Brasil. Creditá-lo aos livros publicados ou aos interesses dos seus autores é um erro que ajuda a intoxicar ainda mais um ambiente não muito conhecido pela sua lisura.
O editor e escritor Paulo Roberto Pires, num seminário em que estivemos juntos na Universidade Brown no ano passado, terminou seu panorama sobre a literatura brasileira contemporânea com uma imagem arrasadora:
"O crítico marxista Francisco de Oliveira certa vez definiu o capitalismo brasileiro como um ornitorrinco, aquele estranho animal que é ao mesmo tempo da terra e da água, mamífero e ovíparo, uma exceção eterna no conceito da evolução das espécies. Eu acho que é uma boa metáfora para pensar a literatura brasileira hoje. Nós somos ornitorrincos literários: temos público, mas não temos leitores, nós viajamos ao redor do mundo, mas não temos reconhecimento no nosso país, nós somos the next big thing', mas não ganhamos dinheiro com isso, nós ganhamos a vida falando para muita gente sobre livros lidos por apenas alguns deles. Nós somos, mesmo contra a nossa vontade, um espelho do nosso país."
O ornitorrinco não tem culpa de ser ornitorrinco, Luciana. Libertemos o escritor brasileiro de mais essa.


Reprodução da Folha de São Paulo

sábado, 8 de março de 2014

Pesquisa exalta direitos das mulheres soviéticas

Pesquisa exalta direitos das mulheres soviéticas

Estudo da historiadora Wendy Goldman chega ao Brasil no fim deste mês

Para pesquisadora, mulheres de hoje precisam se organizar para conquistar condições justas
 
ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO

Mulheres ganham só uma fração do que ganham os homens. Na separação, ficam com os filhos e estão mais pobres. Não têm acesso a boas creches e sofrem com a violência em boa parte do mundo.
"Mudar essa situação é tarefa das mulheres. Elas precisam falar de aborto, estupro, da insegurança de andar à noite na rua. A violência contra a mulher precisar ser inaceitável socialmente. É muito difícil mudar individualmente; é preciso mudar coletivamente."
A avaliação é da historiadora americana Wendy Goldman, 57. Professora da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh (Pensilvânia, EUA), ela é autora de "Mulher, Estado e Revolução: Política Familiar e Vida Social Soviéticas, 1917-1936", que sai no fim do mês no Brasil.
O livro, de 1993, aborda as enormes transformações sociais ocorridas na União Soviética nos primeiros anos da revolução de 1917.
Naquele ano, foi estabelecido o divórcio a pedido de qualquer um dos cônjuges (no Brasil o direito só vigoraria 60 anos depois) e o casamento civil substituiu o religioso. A URSS foi o primeiro país do mundo a dar a todas as mulheres a possibilidade legal e gratuita do aborto.
"Operários e camponeses haviam tomado o poder e podiam pensar como construir um mundo melhor. Hoje o sentimento revolucionário, o otimismo e a esperança no futuro não existem da mesma forma. Só, talvez, em pequenos grupos", diz Goldman em entrevista à Folha.
Ela conta que a maior surpresa na sua pesquisa histórica foi constatar que "mesmo camponesas que não haviam tido educação tinham sentimentos fortes sobre igualdade e opressão. Não é preciso ter educação para ter consciência do que está errado".
Naquela época, relata ela, os bolcheviques buscavam formas de transferir para a esfera pública as tarefas domésticas como forma de liberar as mulheres do trabalho "banal, torturante e atrofiante", nas palavras de Lênin. A ideia era multiplicar a criação de lavanderias públicas, comedouros coletivos e creches.
"Os bolcheviques tiveram uma boa ideia, que era tirar o trabalho de casa. Aqui hoje homens e mulheres têm de dividir o trabalho e brigam pelas tarefas domésticas e pelos cuidados com as crianças", afirma Goldman.
Naquele momento, houve muito debate sobre o papel da família. "Eles acreditavam que a família desapareceria em boas condições no socialismo. A família hoje está desaparecendo no capitalismo, mas em condições muito ruins", avalia a historiadora.
"As mulheres são abandonadas com os filhos; se criam famílias só de mulheres: mães, avós, netas. Com baixos salários é muito difícil sustentar uma família. Hoje há mais crianças vivendo na pobreza nos EUA do que há 25 anos", diz.
Para ela, as mulheres precisam de bons salários para que possam ter independência para criar seus filhos e ter participação na vida pública. Condenando a publicidade, ela declara: "Corporações usam os corpos das mulheres jovens para vender seus produtos. Numa sociedade melhor, isso não seria feito".
E qual seria o papel da família no futuro? Goldman responde: "Se a família continuar a se desfazer, será muito ruim. Se homens e mulheres têm bons salários e são capazes de sustentar seus filhos, se têm acesso a uma boa educação, a controles da natalidade e o aborto é legal, não importa se a família continuar a existir ou não, se são casados ou não".

Zelda Fitzgerald busca seu lugar em mundo masculino

Zelda Fitzgerald busca seu lugar em mundo masculino

MARCELO PEN ESPECIAL PARA A FOLHA

"É engraçado como as associações envolvem a nossa vida", observa Alabama, ao notar que nunca pode ouvir um rouxinol sem pensar no "Decameron", de Boccaccio.
A associação fálico-ornitológica é a resposta ao comentário do marido David, para quem eles estão no paraíso. O casal passa uma temporada na Riviera Francesa, numa época em que os europeus fogem para as praias do norte durante o verão, em busca de um clima mais ameno.
O veraneio na Côte d'Azur não deixa de ser uma invenção dos expatriados americanos nos anos de 1920. E Zelda e F. Scott Fitzgerald contribuíram para isso.
O arrogante David e a voluntariosa Alabama Knight são alter egos do célebre casal da era do jazz. Essa é outra das muitas associações do semiautobiográfico "Esta Valsa É Minha".
A terceira é que a obra seria uma contrapartida do magnífico "Suave É a Noite". Trata-se de uma injustiça.
O livro de Zelda foi publicado anos antes do romance do marido, mais respeitado. Mas a versão do título para o português reforça o nexo, com o verbo de ligação inexistente no original.
"Save me the Waltz" (literalmente "reserve-me a valsa") tem ar bem mais súplice, um tom bem menor de proprietário do que sugere a tradução.
O etos do livro carrega um quê desse pleito (dirigido a Scott? à sociedade que não a levou à sério?) sobre seu direito de exibir no salão (o mercado literário) o seu desempenho dançarino (a sua expressão literária, a sua voz).
A metáfora do título vai além, pois traz algo de antiquado, que o romance conserva nas referências clássicas, na obsessiva descrição da flora, nas imagens especiosas, um tanto "art nouveau" ("o sol de lalique das dez horas"), que se misturam a procedimentos mais modernistas e inovadores: o ritmo decupado, lacunar; a técnica de colagem na elaboração das cenas.
Alabama/Zelda está entre dois mundos e dois homens (a fortaleza de seu pai e armadura do marido, Knight/cavaleiro). Ela precisa configurar seu Estado, como o nome sugere, com o instrumento dos que a subjugam: a arte fálica conduzida por homens.
Sua fragilidade é sua força neste romance que muitas vezes parece implodir, tal o desejo de romper com o molde que a um só tempo lhe garante o rendimento artístico e a despedaça.
A crítica foi injustamente implacável no lançamento. Zelda nunca mais publicou outra ficção. Morreu aos 47 anos, em um incêndio no hospital psiquiátrico onde estava internada. Mas esta valsa, com suas falhas e qualidades, ainda é exclusivamente sua.

Livro escrito por sobrevivente narra resistência pacífica ao terror nazista

Livro escrito por sobrevivente narra resistência pacífica ao terror nazista
 
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia 22 de fevereiro de 1943, dois estudantes alemães, os irmãos Hans, de 25 anos, e Sophie Scholl, 22, foram condenados à morte pelo Tribunal do Povo de Munique (uma espécie de tribunal de exceção, dirigido pelo juiz "carrasco" Freisler). No mesmo dia, foram guilhotinados.
Esse evento trágico representou o desfecho das atividades do movimento de resistência pacífico antinazista conhecido como A Rosa Branca. O movimento fora criado por Hans e por seu colega no curso de medicina Alexander Schmorell, também condenado à morte.
Em 1955, a irmã mais velha de Hans e Sophie, Inge Scholl, publicou um livro no qual contava a história da Rosa Branca, destacando as atividades de seus irmãos. O volume posteriormente foi acrescido de uma importante documentação.
Hoje, conta não apenas com o relato dos fatos (feito no ritmo da rememoração) como contém os panfletos da Rosa Branca, o discurso de defesa do professor de filosofia Kurt Huber, as sentenças do Tribunal do Povo e os testemunhos de sobreviventes.
Tal versão, acrescida de um posfácio do historiador Rainer Hudemann, é agora publicada com o competente trabalho editorial de Juliana Perez e Tinka Reichmann.
A resistência na Alemanha, durante a guerra, estava praticamente restrita a iniciativas de conservadores que, decepcionados com os rumos do nazismo, decidiram se engajar em movimentos. Por outro lado, a obra também põe a nu o que foi a vida sob o terror do totalitarismo nazista e deveria constituir uma leitura obrigatória.
A Rosa Branca, na verdade, surgiu da elite (seus membros eram quase todos estudantes de medicina) e se voltava para essa mesma elite, visando sua parcela mais culta, que deveria se movimentar contra os absurdos da violência institucionalizada.
Nos panfletos, fica claro também que os alemães estavam bem conscientes do que se passava com os judeus nos campos de extermínio.
Os membros da Rosa Branca foram heróis que sacrificaram suas vidas pela libertação de seu país e, por isso, são ainda hoje justamente homenageados e relembrados.

terça-feira, 4 de março de 2014

Sociologia do ateísmo


Semanas atrás, escrevi nesta coluna ("Quem Herdará a Terra?") sobre uma disciplina chamada demografia das religiões. A tese do autor em questão, Eric Kaufmann, é que os seculares têm muitas ideias, mas têm poucos filhos, e por isso em breve o Ocidente perderá em muito seu perfil secular.
Mesmo aqueles seculares que adotam a teoria da seleção natural de Darwin como visão de mundo, adotam-na apenas na teoria, porque na prática não o fazem: seleção natural, no limite, é reprodução; quem não reproduz desaparece. E as mulheres seculares são inférteis por conta dos valores individualistas que carregam.
Recebi muitos e-mails (não imaginei que esse assunto seria um blockbuster) e alguns me chamaram a atenção para um fato interessante: os ateus (que não são a mesma coisa que os seculares, porque posso crer numa inteligência organizadora do universo e não crer que ela seja Jesus ou similar, e viver sem referência a qualquer código religioso) creem firmemente que dominarão o mundo por meio da educação, das ciências e da tecnologia. Podem estar bem errados.
O ateísmo vem muitas vezes acompanhado de uma crença num processo histórico inexorável em direção ao ateísmo universal, uma vez dadas "educação e cultura" para todos. Esquece, esta querida tribo, que as pessoas, sim, fazem escolhas baseadas em modos distintos de valorar a vida e seus sucessos, e que, sim, muitas comunidades religiosas usam ciência e tecnologias da informação ao seu favor e com grande habilidade.
Antes de tudo, é importante reconhecer que a sociologia do ateísmo, sim, pode nos fazer crer, em alguma medida, que há uma relação entre alta formação cultural, boa educação universitária e "ateísmo orgânico", aquele tipo de ateísmo a que você chega por meio da escolha livre --e não porque algum regime totalitário (como o de Cuba) ou pais autoritários proíbem você de crer em Deus ou similar.
Mas o tema transcende essa teoria e é por demais importante para ser pego nas redes de "pregações" disso ou daquilo, pelo menos para quem acredita que a sociedade secular deve ser cuidada, mas não iludida com seus próprios fantasmas de sucesso no futuro.
Vejamos alguns dados dos pesquisadores Norris, Inglehart, Davie, Greeley, Bondenson e Peterson. Peguemos países estatisticamente apontados como possuidores de alta percentagem de ateus orgânicos da Europa ocidental:
Suécia: em 1999, 85% se diziam ateus; em 2001, 69%; em 2003, 74%; em 2004, 64%. De 1999 até 2004 há uma variação para baixo dos ateus assumidos.
Dinamarca: em 2000, 80% se diziam ateus; em 2003, 43%, e em 2004, 48%. Ainda que tenha havido um pequeno crescimento entre 2003 e 2004, a queda entre 2000 e 2004 é evidente.
Noruega: em 2000, 72% se diziam ateus; em 2003, entre 54% e 41%; em 2004, 31%. Também queda.
Finlândia: em 2000, 60% se diziam ateus; em 2001, 41%; em 2004, 28%. Também vemos uma redução dos ateus assumidos.
Entretanto, sabemos que pesquisas nem sempre são precisas e que seus métodos variam e, portanto, seus resultados podem não ser tão autoevidentes.
Esses países têm visto um número crescente de grupos cristãos fundamentalistas, mas o importante é entender que esse crescimento se dá, diferentemente do caso dos EUA, ainda sob grande discrição. Sem ruídos, mas com determinação.
O caso dos luteranos laestadianos finlandeses (comunidade luterana fundamentalista na vila de Larsmö) é de chamar a atenção.
A relação entre a fertilidade de suas mulheres e a das finlandesas seculares é a seguinte, respectivamente: 1940, dois bebês contra um; 1960, três bebês contra um; 1980, quatro bebês contra um. Em 1985, a taxa de fertilidade de cada grupo era 5,47 para as fundamentalistas e 1,45 para as seculares.
A maioria das instâncias de razão pública (tribunais, universidades, escolas, mídia) é, ainda, tomada por seculares. Isso nos faz pensar que o mundo é "nossa bolha".
Veja que, no Brasil, nem o poderoso movimento gay conseguiu derrubar o pastor Feliciano. O "lifestyle" individualista secular é autocentrado e dado a "causas do Face", e por isso não tem defesa contra mulheres férteis e homens determinados.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

Histórias de verdade


Seis dos nove candidatos ao Oscar se basearam em histórias verdadeiras. Uma delas, a do músico sequestrado e escravizado por doze anos, me chamou a atenção pela semelhança com uma das raras histórias da escravidão brasileira que conhecemos pela pena do principal protagonista.
Trata-se da longa carta em que Luiz Gama conta sua vida. Resgatada do esquecimento em 1989 num artigo de Roberto Schwarz na revista do Cebrap, ela faz pensar, como observou o apresentador, na literatura brasileira que podia ter sido e não foi.
O documento começa desafiador: "Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã." O pai "fidalgo" esbanjou a fortuna em jogatina, não hesitando em vender o próprio filho com 10 anos. Assim como o protagonista do filme, foi reduzido à escravidão criminosamente.
Trazido a São Paulo, onde viveria até sua morte aos 52 anos, em 1882, aprendeu a ler graças a um estudante de quem se tornou amigo. A leitura abriu-lhe o acesso à autoeducação, pela qual conseguiu as provas para a libertação, que deve a si mesmo como primeiro ato de sujeito de seu destino.
Na excelente tese que defendeu em Paris, Ligia Fonseca Ferreira resume a singularidade de Gama: "Ele foi dos raros intelectuais autodidatas do século 19 e o único a ter pessoalmente vivido a escravidão, experiência que lhe devia inspirar a missão de vida: libertar os escravos e fazer valer seus direitos."
Encarnou o abolicionismo radical, popular, do meio urbano de São Paulo, ativo nos tribunais e na ação direta. Sua vida foi marcada por algumas constantes. A primeira, a insubmissão, da fuga do cativeiro até a demissão da Secretaria de Polícia "por turbulento e sedicioso". A turbulência consistia em "promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas" porque "detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis".
Gama ressuscitou lei que "não tinha pegado", a de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos introduzidos a partir daquela data. Como se tratava da quase totalidade dos escravos existentes, sua simples aplicação teria sido uma revolução, liquidando praticamente a escravatura.
Não fosse, é claro, a dificuldade de vencer a parcialidade e má vontade de juízes e governo identificados com os senhores. Essa é, portanto, a segunda constante da vida do rábula, do prático que nunca pisou academia, mas foi o maior advogado do Brasil: ter colocado todo seu conhecimento de Direito a serviço da liberdade de escravos que não tinham como pagá-lo.
Sílvio Romero o consagrou como "o mais apaixonado, o mais entusiasta, o mais sincero abolicionista brasileiro." Seu maior título de glória, porém, é o que fixou no fecho da carta autobiográfica: "Saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes, e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime". Uma história gloriosamente verdadeira e bem superior à do filme.


Texto de Rubens Ricupero, na Folha de São Paulo

Começar de novo


Se o Supremo Tribunal Federal pretende recuperar sua respeitabilidade, só há uma saída: refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado mensalão petista. A admissão, pelo presidente do STF, de que penas foram aumentadas artificialmente em prejuízo dos réus fez transbordar o copo de irregularidades da Ação Penal 470.
Relembrando algumas: a obrigatoriedade de foro privilegiado para acusados com direito a percorrer várias instâncias da Justiça; a adoção do princípio de que todos são culpados até prova em contrário, cerne da teoria do "domínio do fato"; o fatiamento de sentenças conforme conveniências da relatoria. E, talvez a mais espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações.
A jabuticaba jurídica tem nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470.
Não é um documento qualquer. Por intermédio dos 78 volumes do inquérito 2474, repleto de laudos oficiais e baseado em investigações da Polícia Federal, réus poderiam rebater argumentos decisivos para sua condenação.
A negativa do acesso ao inquérito foi justificada da seguinte forma: "razões de ordem prática demonstram que a manutenção, nos presente autos, das diligências relativas à continuidade das investigações [...], em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, pode gerar confusão e ser prejudicial ao regular desenvolvimento das investigações." O autor do despacho, de outubro de 2006, foi ele mesmo, Joaquim Barbosa.
Imagine a situação: o sujeito é acusado de homicídio, o julgamento do réu começa e, durante os trabalhos da corte, antes mesmo de qualquer decisão do júri, a suposta vítima aparece vivinha da silva. "Ah, mas outra investigação afirma que ele estava morto", argumenta o promotor. "Isto vai criar confusão". O julgamento continua. O vivo respira, mas nos autos está morto. E o réu, que não matou ninguém, é condenado por assassinato.
O paralelo parece absurdo, mas absurdo é o que fez o STF. A existência do inquérito 2474 tornou-se pública em 2012, em reportagem desta Folha sobre o caso de um executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos.
A conexão com a AP 470 era evidente, pois focava o mesmo Visanet apontado como irrigador do mensalão. O processo havia sido aberto seis anos antes, em 2006, portanto em tempo mais do que hábil para ser examinado.
Nenhum desses fatos é propriamente novidade. Eles ressurgiram em janeiro deste ano, quando o ministro Ricardo Lewandovski liberou a papelada aos advogados de Henrique Pizzolato. Estranhamente, ou convenientemente, o assunto passou quase despercebido.
É hora de acender a luz. O comportamento ao mesmo tempo espalhafatoso e indecoroso do presidente do STF tende a concentrar as atenções no desfecho da AP 470. Neste momento, por razões diversas, pode ser confortável jogar nas costas de Joaquim Barbosa o ônus, ou o bônus, do julgamento. É claro que seu papel é inapagável, mas ele tem razão ao lembrar que o fundamental foi decidido em plenário.
No final das contas, há gente condenada e presa num processo que tem tudo para ser contestado. O país continua sem saber realmente se houve e, se houve, o que foi realmente o chamado mensalão.
Conformar-se, ou não, com o veredicto da inexistência de formação de quadrilha é muito pouco diante das excentricidades jurídicas, para dizer o menos, que cercaram o julgamento e têm orientado a execução das penas.
Embora desperte curiosidade justificada, o que menos importa é o futuro de Barbosa. Quem está na berlinda é o STF como um todo: importa saber se o país possui uma instância jurídica com credibilidade para fazer valer suas decisões.


Texto de Ricardo Melo, publicado na Folha de São Paulo.

domingo, 2 de março de 2014

Um pouquinho de Brasil


Um pouquinho de Brasil
Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de "12 Anos de Escravidão"
LILIA MORITZ SCHWARCZMARIA HELENA P. T. MACHADO

RESUMO

Narrativa de Solomon Northup, que inspirou filme concorrente ao Oscar, enseja ensaio sobre as condições da escravatura no Brasil e nos EUA. Ao contrário do que parecem supor as plateias, as sevícias impostas aos cativos eram tão ferozes aqui como nos EUA, assim como era comum a captura de homens livres por direito.

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Há situações que parecem estar além de qualquer racionalização: diante delas quem sabe a única resposta seja a profunda indignação. Esse é o caso do sistema escravista recriado em bases mercantis a partir do século 16, que instituiu um modelo de trabalho pautado na naturalização da violência, na compra e no tráfico de viventes. Difícil descrever por meio de interpretações objetivas um cotidiano que invadia a todos e se esmerava na aplicação de uma cartografia de castigos, vexações e punições.
"12 Anos de Escravidão" procura traduzir em imagens o que é praticamente indizível em palavras. O filme, que chegou há pouco às nossas telas, foi precedido por debates e críticas, aqui como no contexto norte-americano. Não foram poucos os que acusaram o diretor Steve McQueen de fazer um filme vocacionado para o Oscar --o longa concorre hoje a nove prêmios. Outros destacaram o exagero sentimental, cenas apelativas e o recurso a um fundo musical que tem por objetivo deixar ainda mais tenso um assunto já por si nervoso.
Não por acaso a escravidão permaneceu por muito tempo no silêncio, nos EUA e no Brasil, ou foi tratada como um não tema. Talvez este seja um bom momento para fazer do passado uma indagação. Por que tantos e por tanto tempo sustentaram tal sistema?
O filme se baseia na narrativa de vida de Solomon Northup --negro livre de Nova York, sequestrado e vendido na década de 1840 como escravo para trabalhar nas fazendas nas fronteiras do sul do país. A publicação de sua história, em 1853, serviu como veículo para a difusão das novas ideias abolicionistas. Esquecido desde então, o relato de Northup voltou às livrarias propelido pelo lançamento do filme --no Brasil, saíram duas edições (pela Penguin/Companhia das Letras e pela Seoman).
A reconstituição feita no cinema, minuciosa, realista e muito colada ao livro, se detém nos aspectos sombrios do funcionamento da escravidão no sul dos EUA, trazendo para a tela as engrenagens do tráfico interno e ilegal, a organização do trabalho compulsório nas "plantations", as políticas senhoriais de controle, punição e compensação de escravizados, as regras de submissão, as relações inter-raciais e, sobretudo, a violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro.
Para completar a fatura, "12 Anos" ainda mostra como era frágil a situação civil dos negros livres e libertos --assim como a própria noção de liberdade. A sensação que fica é a de que nada era seguro no período anterior à Guerra Civil, com os negros livres norte-americanos contando apenas com direitos sociais limitados. Tal perfil valia até para o norte dos EUA, que exaltava valores republicanos e cidadãos. O direito ao voto para negros era um privilégio raro e a política de segregação já começava ser implantada em muitos lugares. Sem ter o direito de testemunhar contra brancos ou de a eles igualar-se constitucionalmente, o negro livre era entendido --como bem notou a historiadora Barbara Fields em ensaio clássico-- quase como um estrangeiro. A fronteira entre cativeiro e liberdade era mais fluida do que se podia esperar.
No contexto norte-americano, existe uma considerável tradição de narrativas escritas por escravizados e libertos; no cinema, porém, é novidade apresentar a escravidão a partir do ângulo dos afro-americanos. O filme de McQueen, por economia de argumentos ou conservadorismo, optou por deixar a trama mais previsível, conferindo o papel de libertador a um homem branco, educado e canadense --certamente remetendo-se à tradição daquele país de acolher escravos fugidos.

REAÇÕES

O díptico livro-filme fez estourar nos Estados Unidos um debate volumoso. Voltando os olhos para a recepção que o longa de McQueen recebeu por aqui, podemos dizer que é no mínimo revelador observar as reações da plateia, que, entre entristecida e atônita diante da dureza das imagens, sai do cinema com questões do tipo: "Como era dura a escravidão nos Estados Unidos! Os senhores lá eram mesmo cruéis --no Brasil não era assim, não é?".
Esse tipo de resposta denuncia uma espécie de política de compensação e certo "alívio" tentador: joga-se a sensação incômoda sempre para o lado do outro, para bem longe de nós. No entanto o que hoje se sabe é que a escravidão no Brasil não foi essencialmente diferente da retratada em "12 Anos de Escravidão". Ao contrário, foi maior em número de africanos entrados no país, assim como tomou todo o território e por um período de tempo ainda mais extenso.
As similaridades entre os regimes escravocratas de lá e de cá são muitas, a começar pela notável porosidade das fronteiras entre cativeiro e liberdade que são tema de "12 Anos" (o sequestro, aprisionamento, transporte, venda e revenda do protagonista se concretizam quase sem estorvo por parte das autoridades ou da população).
Novos estudos nos EUA e no Brasil têm demonstrado a escandalosa ilegitimidade da escravidão. Amparada firmemente no costume e fazendo vistas grossas a sua flagrante ilegalidade, a escravidão, concluem muitos pesquisadores, foi um sistema marcado pela bastardia jurídica.
Em artigo publicado em 2012 na revista "Afro-Ásia", Rebecca Scott e Jean Hébrard, ao acompanhar a trajetória de Rosalie, da nação poulard, do Haiti dos finais do século 18 até Nova Orleans, nos EUA, passando por Cuba, desvelam os pés de barro da legislação escravista em três contextos jurídicos.
No Brasil, é conhecido o proverbial desrespeito à lei de 1831 que proibia o tráfico atlântico. Tal atitude política produziu gerações de africanos e descendentes submetidos à escravidão ilegal, como denunciou pioneiramente o rábula negro Luiz Gama (1830-82) --ele próprio mantido em cativeiro ilegal por anos de sua juventude--, seguido por muitos outros abolicionistas. A precarização da liberdade foi, assim, o pão de cada dia de negros livres, libertos e africanos livres na sociedade brasileira.
O notável desprezo das sociedades escravistas pelas leis se espraiava por toda a sociedade, facilitando a reescravização. No Brasil, a exigência de passaportes, passes e bilhetes senhoriais que deveriam acompanhar o deslocamento dos cativos comprova a preocupação das autoridades em manter o controle dos escravos --e sobre qualquer indivíduo que apresentasse possíveis traços de pertencimento à escravidão.
Situação comuníssima era a detenção de negros e negras para a conferência dos documentos de deslocamento e comprovação de identidade. Nestas ocasiões, muitos homens livres, detidos fora de seu meio social imediato, foram facilmente aprisionados e vendidos como escravos, conforme mostra uma série de investigações, sugerindo que, no Brasil, existiram milhares de Northups.

TRANSFORMAÇÃO

Outro aspecto a ser lembrado é o da transformação de Northup, homem livre, de certas posses, bem educado e alfabetizado, exímio violinista e carpinteiro --um gentleman negro integrado à burguesia branca-- em escravo do eito, degradado, quebrado por castigos, e que passa ao anonimato como cativo.
Tal mudança encontra paralelo, no Brasil, no quebra-negro, castigo muito utilizado para sazonar escravos novos ou recém-adquiridos, que obrigava os cativos a sempre olhar para o chão diante de qualquer autoridade e, sobretudo, a esconder sua identidade e aptidões. O escravo devia se apresentar como ser ignorante, desprovido de conhecimentos ou especialidades, sendo a obediência e a lealdade qualidades muito apreciadas. Lealdade, por sinal, era atributo necessário também para libertos, sendo que a falta de deferência a um antigo senhor poderia levar à recondução ao cativeiro.
A despeito das altas doses de sadismo, é claro que a violência do sistema tinha um sentido econômico claro: a de moldar a prontidão do escravo e fazê-lo trabalhar ao máximo. Northup recebeu sua dose de sevícias pedagógicas e disciplinares, à semelhança do que ocorria no Brasil, conforme atestam uma série de processos criminais envolvendo escravos.
David de Angola, por exemplo, morador de Campinas no ano de 1861, foi chicoteado por juntar café apenas com uma mão, fazendo o serviço demorar mais. O escravo Caetano de Taubaté, quando voltava da roça no ano de 1885, foi surrado por quebrar uma espiga de milho verde para comer.
Não há como esquecer, ainda, os anúncios de fuga de escravos, presentes cotidianamente nos jornais do país. Neles, os escravizados eram descritos a partir de seus corpos maltratados, das pejas e ganchos ainda neles presas na ocasião das fugas, sendo todos esses detalhes convertidos em formas de reconhecimento e apreensão. Tudo sem peja ou vergonha.
Aliás, se podemos notar uma significativa diferença estrutural entre a escravidão nos EUA e aqui, esta seria contrária ao que espera o público dos nossos cinemas.
No Brasil --e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos severo-- os escravos reagiram mais, mataram mais os seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e, finalmente, também se revoltaram mais. A provável explicação dessas diferentes reações pode repousar na fragilidade de nossas instituições policiais e jurídicas bem como em uma menor coesão da classe senhorial, dividida entre pequenos, médios e grandes proprietários, espraiados por todo o país. Com certeza mostra, também, como violência chama sempre mais violência.
O filme permite ainda explorar ambivalências que cercaram a escravidão, cuja realidade era atravessada pelo paternalismo e por toda forma de intimidação.
Entre tantas histórias, sobressai no longa a de Patsey, jovem escrava e exímia colhedora de algodão. Seu corpo não é apenas apropriado como produtor de riqueza mas também enquanto instrumento de prazer, gozo e culpa por parte de seu proprietário --e de ódio por conta do ciúmes da senhora.
Aqui aparece pintada, e com tintas ainda mais fortes, a clássica análise de Gilberto Freyre sobre a sexualidade exercida na intimidade da alcova escravista: o autoritarismo senhorial aí se encontrava com a "aparente" passividade da mulher escravizada, a qual era antes uma rendição aterrorizada.
Nada mais angustiante do que o silêncio de Patsey e sua vontade de ser assassinada por outro escravo, que ao menos reconhece sua dor. Pesada é a ironia anotada pela feminista afro-americana Bell Hooks, que critica a incapacidade do filme de dar voz à escrava, já que é Northup quem vocaliza o sofrimento de Patsey. Segundo Hooks, as narrativas de escravas seguem silenciadas e silenciosas.
Não há escravidão melhor ou pior. Sempre e em qualquer lugar ela gera o sadismo, a naturalização da violência e a perversão social. O que resta, nos EUA ou aqui, é a má consciência, a culpa da perpetuação de um sistema como esse por tanto tempo. Pesa na nossa agenda nacional o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Marca pesada, ela ainda é vista como um descuido, uma circunstância. Não foi.
Talvez por isso o Hino da Proclamação da República, criado apenas um ano e meio após a abolição da escravidão em 1888, ainda entoe um envergonhado e indireto apelo: "Nós nem cremos que escravos outrora/tenha havido em tão nobre país". Outrora era ontem, e o país, ao menos no que se refere a essa questão, nada tinha de "nobre". "Crer", nesse caso, não implica no ato libertador de imaginar, mas de esconder.

Lilia Moritz Schwarcz, 56, é professora titular de antropologia da USP e "global scholar" da Universidade de Princeton
Maria Helena Pereira Toledo Machado, 58, é professora titular de história da USP