domingo, 22 de fevereiro de 2015

Morre fundador da igreja pentecostal Deus É Amor

Morre fundador da igreja pentecostal Deus É Amor

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Um país em decomposição

O Brasil enfrenta um momento de grave divisão interna, e o caso da Petrobras envergonha a todos, mas nossos problemas estão longe da crise profunda, estrutural, em que se encontra mergulhado o México.
O fato desencadeador da crise foi o trágico massacre --em setembro do ano passado-- de estudantes da escola de professores Ayotzinapa, da cidade de Iguala, pela polícia municipal em conluio com criminosos sob a direção do prefeito.
O massacre provocou uma grande onda de protestos no México, enquanto a popularidade do presidente Enrique Peña Nieto caia vertiginosamente, dada sua incapacidade de reagir. Não é uma crise apenas do presidente mexicano ou do sistema político do país.
A jornalista desta Folha Sylvia Colombo escreveu à época que a crise revelava "dois Méxicos" --o moderno, industrial e o "que opera pela lógica do crime organizado, na qual imperam a extorsão, o sequestro e a pistolagem".
Não estou seguro que existam dois Méxicos. Existe um México rico e "moderno", americanizado, mas que está longe de apresentar taxas de crescimento satisfatórias que mostrem um país voltado para o futuro. Desde que o México aderiu ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), em 1994, é o país que menos cresceu na América Latina. O México que eu vejo é o do crime organizado, da falência do Estado e, mais do que isto, da destruição da nação.
As sociedades antigas eram organizadas em tribos, cidades e impérios. As sociedades modernas, em nações, cada uma com seu respectivo país ou Estado-nação. É nesse contexto histórico que nação e Estado se constroem mutuamente. É no quadro da nação que os grandes valores e objetivos sociais são definidos. O Estado nas sociedades modernas só existe realmente quando seu poder é dotado da legitimidade que só a nação lhe pode dar.
Considerados esses princípios, quando uma sociedade perde a ideia de nação e se torna colônia, ela entra em decomposição. Foi isso que ocorreu com o México. Com sua integração ao Nafta, o país tornou-se, na prática, uma colônia dos EUA. Suas elites deixaram de se identificar com seu povo e passaram a se associar de forma subordinada às elites do vizinho ao norte.
Ora, sem nação ou sociedade civil nacional, o país perde rumo. Seu povo perde referências, suas elites limitam-se a procurar reproduzir por todos os meios os padrões de consumo dos países ricos.
Não há mais a ideia de uma nação que se renova todos os dias diante dos novos desafios que estão sempre surgindo. Não há mais critérios para enfrentar os novos problemas que surgem, não há mais a solidariedade básica que é necessária para uma nação poder afirmar seus valores e fazê-los valer.
É triste ver tudo isso acontecer a um povo orgulhoso por sua origem, um país cuja grande revolução de 1910 fazia inveja aos demais povos da América Latina. No passado, quando visitava o México, eu sentia ali uma nação forte e um país pujante, via a nação de Diego Rivera e de Octavio Paz. Hoje vejo uma nação dividida e perplexa, e um país que é uma sombra do passado.
Haverá uma saída para uma situação com essa gravidade? Poderá o México refundar sua nação e se renovar? Creio que sim, mas não existem receitas simples para um problema tão difícil. A solução terá que ser encontrada no quadro da própria nação mexicana a ser reconstruída.

Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira, publicado na Folha de São Paulo

Retrato do artista quando...

Retrato do artista quando...

Em seu novo livro, Sarah Thornton, autora do best-seller 'Sete Dias no Mundo da Arte', perfila de Damien Hirst a Beatriz Milhazes para definir o que faz um artista hoje
SILAS MARTÍENVIADO ESPECIAL A MIAMI

"Quando entro no ateliê de um artista, sinto uma energia estranha", diz Sarah Thornton. "É como outro planeta."
No burburinho do lounge VIP da feira Art Basel Miami Beach, longe dos artistas e esbarrando nos colecionadores, a autora do best-seller "Sete Dias no Mundo da Arte" tenta me explicar o que motivou a escrita de seu mais novo livro.
Depois de dissecar com acidez os bastidores desse universo em "Sete Dias", a jornalista canadense, que escreve sobre arte para revistas como a "The Economist" e a "New Yorker", passou os últimos sete anos visitando ateliês de artistas visuais no mundo todo - de Beatriz Milhazes, no Rio, a Ai Weiwei, em Pequim- fazendo uma única pergunta.
"Queria saber o que é um artista real, autêntico, crível", diz Thornton. "É impossível explicar como um artista ascende à fama global olhando só para seu trabalho. Era preciso ver como eles navegam pelo mundo da arte, como tratam colecionadores e críticos, como tiram selfies com os fãs. Tudo isso é parte da obra."
Ou seja, Thornton acredita ter descoberto no jogo de aparências que domina a arte contemporânea uma chave para entender sua real essência.
Estruturado como um roteiro cinematográfico, "O Que É um Artista?", livro que sai no Brasil pela editora Zahar em abril, retrata 33 artistas em cenas, entre prosaicas e bizarras, ao redor do mundo, da abertura de uma retrospectiva de Jeff Koons, em Londres, a uma conversa com a mulher de Ai Weiwei, em Pequim, quando o artista estava preso.
Thornton, que é também socióloga, não chegou a uma resposta definitiva para a sua pergunta. Mas as tentativas de descrever o papel de um artista visual na sociedade contemporânea encheram mais de 400 páginas com ponderações e provocações.
Em alguns casos, o diálogo virou briga. Infeliz com seu retrato no livro, a artista norte-americana Cady Noland decidiu processar a autora.
Outros, como Damien Hirst, alvo de várias entrevistas no livro, preferiram não mais falar com ela, tentando barrar a ida de Thornton à sua retrospectiva em Doha, há dois anos, o maior gesto do artista para conquistar um novo mercado diante da queda de seus preços em países desenvolvidos.

MITOS E DÓLARES

Essa dimensão mercadológica, aliás, não fica de fora do radar de Thornton, mas ela amplia a ideia de quanto vale um artista ou uma obra para enquadrar também o que considera a moeda mais valiosa da indústria da arte.
"O que está em jogo nesse mundo é a credibilidade", diz a autora. "É a forma como os artistas contemporâneos comandam um séquito que faz com que alcancem preços tão altos. Não há meios objetivos para mensurar a qualidade do que fazem. Artistas precisam de mitos, porque dão mais energia, ímpeto e poder à obra."
Um mito poderoso, na opinião de Thornton, é a aura de inimigo do Estado que envolve Ai Weiwei, artista e ativista político chinês que está impedido de deixar seu país desde 2011, quando foi agredido pela polícia e passou três meses atrás das grades acusado de crimes como evasão fiscal e difusão de pornografia.
"Ele me disse que um artista é um inimigo das sensibilidades generalizadas, o que é uma ideia muito bonita", diz Thornton, sobre Weiwei. "Se fosse um cara no Brooklyn me falando isso, pareceria uma alucinação, porque o máximo que pode acontecer ali é apagarem seu perfil no Instagram. Mas ele vive sem liberdade de expressão."
Em contraponto, artistas histriônicos, como Damien Hirst e Jeff Koons, que viraram celebridades zombando do mercado com obras achincalhadas pela crítica, renderam retratos mais impiedosos.
"Talvez tenha me irritado mais com o Koons, mas ele me deixou escrever o que eu queria. Ele não parece real, só que é o jeito dele. De qualquer forma, não estou interessada nas máscaras rasas que eles usam, e sim na vida pública como um todo", diz Thornton. "O livro gira em torno dessas personalidades antagônicas."
Nesse ponto, nada parece mais contrastante que o retrato de Hirst como um bad boy de meia idade, incapaz de falar uma frase sem a palavra "fuck", e seu encontro em Nova York com a diva da performance Marina Abramovic, que manteve a pose esotérica, falando do artista como o "oxigênio da sociedade", enquanto discorria sobre moda.
Thornton também faz um retrato diferente de Beatriz Milhazes. No ateliê da artista no Jardim Botânico, no Rio, a autora enxerga além dos arroubos hedonistas e ultracoloridos de sua pintura e a descreve com uma postura ultradisciplinada, de exímia criadora de quadros ao mesmo tempo "barrocos e turbulentos" mas com grande "rigor estrutural".
Minutos antes de me encontrar em Miami, Thornton, aliás, estava no lançamento de um catálogo de Milhazes perto dali. Voltou com uma cópia autografada do livro e postou um selfie com a artista.
"Há um vício entre críticos que insistem em ver só as obras", diz. "Mas não sei como fingem não ver o que acontece ao redor. É impossível ignorar a presença do artista."

Ginástica íntima

Ginástica íntima

Aulas de pompoarismo na terceira idade ajudam a tratar incontinência urinária e dão um 'up' na vida sexual
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIERDE SÃO PAULO

O que é pompoarismo? Não se acanhe se sua resposta parecer à que Elisabete Rigetti daria um ano atrás. "Algo que prostitutas tailandesas usam para soltar bolinha, né?"
Repetida mais recentemente, a pergunta provoca um sorriso na aplicada aluna da técnica oriental. "É bom para a saúde também."
Toda quarta-feira, a aposentada de 62 anos sai de casa para aprender a controlar os músculos vaginais, numa classe voltada à terceira idade. Elisabete chegou à Escola Lu Pompoar pesquisando na internet por tratamentos para incontinência urinária.
O espaço na Vila Mariana (zona sul de São Paulo) atende a mulheres de 20 a 84 anos interessadas em tonificar a região pélvica.
"Pompoarismo é algo sério", afirma a professora Lu Riva, 36, que considera o corpo um "templo de Deus".
Claro que os truques à la "Cirque du Soleil para maiores de idade" chamam atenção. Em 2003, a russa Tatiana Kozhevnikova entrou no Guiness como "a vagina mais forte do mundo". Após ter tido filho, ela sentira os "músculos íntimos" enfraquecerem. Para ficar com tudo literalmente em cima, suspendeu um peso de 14 kg com ajuda do pompoarismo.
Saúde é o que interessa para a classe de alunas na terceira idade, mas sexo é bom e elas gostam também. "Fica mais prazeroso", conta Elisabete, casada há 40 anos.
Não é nenhum demérito associar o pompoar ao prazer, diz Lu Riva. Só não vale restringir sua função à promessa de orgasmos melhores e mais frequentes.
Para a ginecologista Fernanda Leoni, 30, o pompoarismo é sobretudo um a catapulta para a autoestima. "A mulher começa a conhecer mais seu corpo", afirma.
Ela recomenda a prática para pacientes grávidas que optem pelo parto normal e quem sofre com prolapso genital, popularmente conhecido como "bexiga caída" (quanto mais flacidez muscular, mais "escorregadio" fica o órgão na cavidade vaginal)."Na terceira idade, ajuda a produzir melhor lubrificação vaginal."
No fim das contas, Lu Riva acha difícil separar uma vida sexual saudável do bem estar físico. Ela publicou um livro sobre o assunto, "Pompoar - Prazer e Saúde", que sugere quatro semanas de treinamento.

EXERCÍCIOS

Para as iniciadas no pompoar, um dos exercícios é colocar um vibrador desligado na entrada da vagina e tentar sugá-lo. O curso in loco promete ensinar mais movimentos, como prender o pênis dentro do canal vaginal, o que retarda a ejaculação do parceiro. Há ainda a "dança vaginal", para "aprender o pompoar dançando".
A aluna inscrita ganha um kit com bolinhas de plástico para, quando estiver num estágio mais avançado, tentar segurá-las só com a força da vagina. Há técnicas semelhantes, batizadas com o nome do ginecologista alemão Arnold Kegel (1894-1981).
Na frente da sala de aula, há um frigobar vermelho com licores e destilados para "quem quiser se soltar", explica a professora. Ninguém vira uma dose nem fica nua: as pupilas usam calças coladas ao corpo, para que a professora possa verificar se mexem a musculatura certa.
Os exercícios são ritmados ao passo de "um, dois, três" e envolvem vagina, quadris e tronco. Treino caseiro para entender: tentar conter o jato de xixi por dez segundos.
Discípulas veteranas são capazes de realizar uma espécie de "squash vaginal", arremessando bolas na parede, garante a instrutora.
Uma série de estudos já comprovou os benefícios dos exercícios fisioterápicos para a vida sexual e, principalmente, para o tratamento da incontinência urinária no pós-parto. Pesquisadores da USP agora pretendem medir o impacto do pompoarismo sobre o assoalho pélvico.
Para Lu Riva, o valor científico do pompoarismo já está comprovado na prática. "Brinco que estou devolvendo a vagina para suas donas."


Reprodução da Folha de São Paulo

Carlos Urbim (1948-2015) - O gaúcho da fronteira e a literatura infantil

CARLOS MARINO SILVA URBIM (1948-2015)

O gaúcho da fronteira e a literatura infantil

ANDRESSA TAFFARELDE SÃO PAULO

As incursões do pequeno Carlos Urbim pela uruguaia Rivera para comprar retróses de linha para a mãe revelaram que aquele guri de Santana do Livramento tinha algo de diferente dos demais.
Ao longo da vida, porém, não foi o daltonismo, que tantas vezes o fez levar a encomenda errada, que o destacou. O talento para as letras é que realmente o distinguia.
Aquela infância em portunhol, o vai e volta entre a cidade gaúcha e a uruguaia, os brinquedos artesanais e a impossibilidade de identificar certas cores permeavam as histórias que fizeram de Carlos um dos principais escritores da literatura infantil no Rio Grande do Sul. Seu primeiro livro, "Um Guri Daltônico", é um exemplo disso.
Morador de Porto Alegre desde os tempos da faculdade de jornalismo na UFRGS (Federal do Rio Grande do Sul), nunca perdeu o "sotaque fronteiriço", que ficava mais forte, propositalmente, quando falava com crianças.
A leitura diária de poesias de Mario Quintana, de "As Aventuras do Avião Vermelho", de Erico Verissimo, e de clássicos infantis para os dois filhos pequenos despertaram seu lado escritor.
Antes conhecido nas principais redações gaúchas, tornou-se membro da Academia de Letras do Estado e patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, além de inspiração para os novos leitores.
Na sexta (13), quando embarcaria para o Rio para assistir aos desfiles na Sapucaí, deixou Alice, ex-aluna e sua mulher desde 1975, os filhos, Emiliano e Glauco, o neto, Miguel, e dois livros inéditos.
Aos 67 anos de idade, não resistiu a mais um aneurisma.


Reprodução da Folha de São Paulo

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Lalá maior

O Carnaval brasileiro teria muito menos graça se não tivessem existido Lamartine Babo (1904-1963) e Braguinha (1907-2006), nossos dois maiores criadores de músicas para a festa. Às vezes, no entanto, parece que, exatamente por serem os reis das marchinhas (embora tenham feito de tudo um pouco), eles são vistos como compositores menores, superficiais.
Talvez o politicamente correto atrapalhe. Deve haver hoje quem se constranja em cantar "O Teu Cabelo Não Nega", por considerá-la racista. No mesmo ano desse estouro, 1932, Lamartine também fez sucesso com "Só Dando com uma Pedra Nela", cujo título já diz tudo. Outros tempos, outros Carnavais.
Recebeu atenção muito inferior à merecida o lançamento, em 2014, de "Tra-la-lá - Vida e Obra de Lamartine Babo". Em suas quase 900 páginas, há tudo o que é preciso saber sobre o autor de "Joujoux e Balangandãs".
O pesquisador Suetônio Soares Valença fizera edições do livro em 1981 e 1989. Morreu em 2006 sem concluir a definitiva. A missão ficou com sua ex-mulher, a também perfeccionista pesquisadora Rachel Valença. O resultado está à altura da grandeza de Lamartine.
Para completar, falta agora outro pesquisador, Omar Jubran, conseguir patrocínio e lançar a caixa de 15 CDs com as gravações originais de 252 composições de Lamartine, trabalho feito ao longo de dez anos (2003 a 2013). Jubran já realizou caixas com as primeiras interpretações de músicas de Noel Rosa e Ary Barroso. Tem pronta a de Adoniran Barbosa e está começando a pesquisa para a de Wilson Baptista.
Nos próximos quatro dias, ao menos, não será difícil se lembrar de Lamartine. Ele estará pelas ruas representado por "Linda Morena", "História do Brasil", "Cantores do Rádio", "Grau Dez" e outras odes à alegria. E, ainda, pelos hinos de todos os grandes clubes de futebol do Rio.

Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O xis do problema


O gráfico que ilustra a coluna expressa o que está em jogo no atual debate político-econômico brasileiro.
Ele mostra a evolução do salário médio real no Brasil de 2000 a 2013 e é parte do texto "Mercado de trabalho e evolução dos salários no Brasil" (www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/discussao/2014/TD_IE_013_2014_SUMMA.pdf), do professor da UFRJ Ricardo Summa.
Desde 2006, o país vive pequena era dourada no mercado de trabalho, com aumento persistente dos salários reais (descontada a inflação).
Summa apresenta razões para tal desempenho. O crescimento econômico criou uma relativa escassez de trabalho. O desemprego, após um pico em 2003, reduziu-se a taxas expressivas até atingir patamares historicamente baixos. Além disso, o longo período de queda reforçou a sensação de segurança dos trabalhadores e, assim, seu poder de barganha, revertendo a situação de fragilidade que vigorou nos anos 1990.
Esse poder de barganha foi ainda alavancado por duas políticas públicas. Uma foi a de valorização real do salário mínimo, que dobrou no período 2000-2013. Além de atingir diretamente 26,5 milhões de trabalhadores, sem contar os benefícios do INSS, o mínimo é referência para os pisos salariais e para o trabalho informal e o autônomo.
Também o seguro-desemprego contribuiu para reforçar a posição dos trabalhadores, em particular os de mais baixa qualificação, que puderam usá-lo nas trocas de empregos em busca de maior rendimentos De 2000 a 2012, além de ter tido ganhos reais nos benefícios, o número de seus beneficiários cresceu 100%.
Finalmente, embora a sindicalização não tenha subido, o Brasil é um raro país em que ela não caiu na década passada. Isso permitiu a retomada silenciosa de certo ativismo sindical, que garantiu a continuidade das elevações reais de salários mesmo quando o crescimento do PIB caiu, a partir de 2011. As greves, com destaque para o setor privado, aumentaram, e o número de horas paradas, que até 2009 não passara de 30 mil, superou 60 mil em 2011 e quase chegou a 90 mil em 2012.
É verdade que os ganhos salariais não foram tão arrebatadores: até 2010 houve só a recuperação das perdas acumuladas de 2000 a 2004. Contudo, é patente a diferença de seu comportamento entre os períodos de 2000-2005 e de 2006-2013.
A inflação dos salários explica em grande medida por que a política econômica do PT, após a saída de Palocci da Fazenda e até recentemente, foi crescentemente atacada, em especial depois de 2010. E ainda dizem que qualquer inflação é sempre ruim e pior para os mais pobres.
A conjugação de crescimento mais baixo com poder de barganha dos trabalhadores mais elevado provoca a revolta das elites econômicas e impulsiona o clamor por austeridade (para os outros).
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. A estagflação da década de 1970, após a longa idade de ouro que vinha desde o pós-Guerra, gerou no mundo desenvolvido uma reação parecida e que tem sido duradoura.
Só que no Brasil a participação dos salários no PIB continua baixa em relação ao padrão internacional (superior a 60%): de 1995 a 2003 ela caiu de 42,6% para 39,5%, subindo para 43,6% em 2009, o dado mais recente disponível.
No entanto, num país fundado pela escravidão, a breve era dourada a partir de 2006 soa para muitos como uma profunda e indesejada subversão da hierarquia social.
A coluna "A questão do juro", de 29/1/2015, discutiu estratégias de redução da taxa de juro brasileira. Na introdução, disse que a ortodoxia entende que o juro é alto porque a poupança é baixa e que isso está relacionado a uma controvérsia teórica.
A opinião convencional crê nisso porque vê a poupança como requisito (prévio, portanto) do investimento. A heterodoxia acredita que a atividade alavancada pelo investimento gera a poupança que o financia.
Samuel Pessôa, em coluna homônima de três dias depois, pontificou: a "afirmação de Marcelo está errada. Não há essa controvérsia teórica. (...) Todos sabemos que, na relação entre poupança e investimento, este é soberano".
Porém, um pouco depois, sua conclusão foi que "não há alternativa para arrumarmos a casa que dispense a recuperação da poupança pública. Esse é o único caminho para conseguirmos baixar os juros". Poupança antes de tudo, então?!
Bom Carnaval a todos.


Texto de Marcelo Miterhof, na Folha de São Paulo

Aves de rapina


Nestes dias de Carnaval e de investigação histórica no setor público, a corrupção invade o cotidiano nas ruas, no noticiário e na programação cultural. Muitas vezes a arte é canal de lavagem de recursos de origem ilícita. Poucas vezes, como agora, acaba sendo beneficiada por eles.
Nesta quarta (11), mais 48 obras de arte apreendidas na última fase da Operação Lava Jato foram entregues ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Entre elas, há quadros de Salvador Dalí, Vik Muniz, Amilcar de Castro e Romero Britto. Desde janeiro, o museu já expõe 15 obras, de nomes como Di Cavalcanti, Iberê Camargo, Cícero Dias, Aldemir Martins e Heitor dos Prazeres, entre outros. A maioria apreendida na casa da doleira Nelma Kodama.
No Rio, está em cartaz no Museu Nacional de Belas Artes a exposição "Apreensões e Objetos do Desejo: Obras doadas pela Receita Federal ao MNBA". A visita vale como restituição do IR. São 20 obras de arte apreendidas em dois contêineres vindos dos EUA, avaliadas em cerca de R$ 10 milhões. Os donos, não identificados, tentavam burlar o fisco importando-as como tranqueiras.
Em uma grande sala é possível ver produção do indiano Anish Kapoor declarada à Receita como reles "antena parabólica", por exemplo. Ou a instalação de Niki de Saint Phalle batizada de "Falcão Azul", bela imagem da ave de rapina, símbolo dos que tentaram importá-la. Há quadros ou serigrafias de Beatriz Milhazes, Sérgio Camargo, Victor Vasarely, Jorge Guinle, Ivan Navarro e outros.
Entre os absurdos das operações contra corruptos e corruptores, a possibilidade de contemplar em espaço público obras adquiridas por malversação e vaidade é reconfortante. Pena que, assim como a maioria dos museus da cidade, o MNBA despreze milhares de turistas que poderiam gostar de algo mais do que Carnaval. Fechará nos dias de folia.

Texto de Paula Cesarino Costa, na Folha de São Paulo.

Partidos árabes fazem aliança histórica em Israel

Eles ergueram os braços e fizeram o "V" de vitória, sendo que a campanha mal começou. Nunca na história política de Israel os partidos que representam os eleitores árabes (minoria que constitui 20% da população do país) haviam conseguido apresentar uma lista única nas eleições legislativas, como acontecerá no dia 17 de março. O partido comunista Hadash e os três partidos árabes - Movimento Islâmico, Ta'al (Movimento Árabe para  Renovação) e os nacionalistas do Balad – oficializaram sua aliança no dia 22 de janeiro, após longas semanas de negociações. As rivalidades e as diferenças históricas continuam, uma estratégia em comum custa a surgir, mas essa é uma rara boa notícia para esse eleitorado esquecido.
Era uma questão de sobrevivência. Em 2014, o mínimo exigido para entrar na Knesset (o Parlamento israelense) passou de 2% para 3,25%, ameaçando os pequenos partidos. "A união se tornou para nós um caso de força maior", explica Ahmed Tibi, líder do partido Ta'al. As pesquisas indicam que a lista unificada teria um resultado superior às 11 cadeiras que os partidos árabes detinham separadamente na atual Knesset. Mas o Likud, do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, e o Campo Sionista (centro-esquerda), composto por trabalhistas e pela Hatnuah, estão empatados. Os deputados árabes poderiam então ter um papel determinante na formação de uma coalizão, logo após a eleição.
No entanto, a lista unificada não está disposta a se unir a um governo de centro-esquerda. "Nesse caso eu teria de assumir a responsabilidade por todas as ações do governo", ressalta Ahmed Tibi. "Por exemplo, se ele continuar destruindo casas árabes em Israel, confiscando nossas terras, ou se ele decidir bombardear Gaza novamente". Em compensação, a lista árabe poderia negociar seu apoio a tal governo, para pôr um fim à era Netanyahu. "Podemos discutir essa possibilidade após a eleição", diz Tibi, "como parte das negociações sobre o orçamento, a infraestrutura, a moradia, a questão dos prisioneiros, a mesquita de Al-Aqsa".
A situação de Haneen Zoabi (Balad) por enquanto impede qualquer aproximação entre o Campo Sionista e a lista árabe unida. O Campo Sionista quer impedir o mandato dessa polêmica deputada. Ela ficou conhecida em 2010 ao subir a bordo do navio turco Mavi-Marmara, que havia tentado romper o bloqueio de Israel à Faixa de Gaza. Devido às suas excentricidades, Haneen Zoabi serve como um pretexto perfeito para a direita nacionalista dar mostras de patriotismo sem grande esforço, criticando-a. No fim de julho de 2014, o comitê de ética da Knesset proibiu que ela se dirigisse a seus pares durante seis meses. Ela havia declarado que os sequestradores de três adolescentes na Cisjordânia, cujo destino comoveu o país, não eram terroristas.

Frustração

Nos últimos quinze anos, uma dupla frustração tem afetado os árabes israelenses. A primeira vem do Estado, que os exclui dos empregos nas empresas públicas e na administração, não respeita sua memória e seus direitos à propriedade, e não garante sua segurança. Esses cidadãos se creem discriminados e ainda suspeitos de uma falta de lealdade em relação à comunidade nacional. Eles também entendem que a criação cada vez mais hipotética de um Estado palestino não resolveria seus problemas.
A outra frustração vem de seus próprios representantes árabes. Apesar de uma dinâmica unitária, seus partidos parecem condenados a um papel tradicional de figurantes. Eles não participam do governo. A maioria judaica os tolera, mas não questiona seu próprio monopólio político e simbólico. O Sétimo Olho, site especializado em análise crítica da mídia, observou um detalhe significativo. Foi só no começo de fevereiro que o rosto de Ayman Odeh, líder da lista árabe unida, passou a aparecer no banner de apresentação da cobertura sobre a campanha do jornal "Israel Hayom".
"Os deputados árabes não têm influência na política de Israel", observa Amal Jamal, professor de ciência política na Universidade de Tel-Aviv. "Eles vão às eleições unicamente para debater a alocação de recursos. Eles chegam à Knesset sem a experiência de grandes grupos industriais, nem do exército. Então eles não têm redes e não conseguem influenciar na política da eletricidade, da água e da saúde. É por isso que eles se refugiam na ideologia: para mascarar sua impotência".

Reportagem de Piotr Smolar, para o Le Monde, republicada no UOL

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Aprender a aprender


Se não caiu a ficha, está na hora de cair: a maior parte do conhecimento teórico e prático já produzido pela humanidade está disponível na internet, de graça e abertamente. Quem tiver a curiosidade e a energia necessárias pode tomar nas mãos os caminhos do próprio aprendizado. Esse é um desafio para o sistema educacional: a missão da escola nos dias de hoje passa a ser ensinar a aprender dentro desse novo contexto em que vivemos.
Quem viu o documentário sobre Aaron Swartz ("O Menino da Internet"), disponível também de graça e abertamente no YouTube, deve se lembrar da cena em que ele, com poucos anos de idade, aprende a ler sozinho. Em depoimento para a câmera, seus pais dizem: "Aaron aprendeu muito cedo a aprender". Apesar de nunca ter completado a faculdade, circulava entre professores das melhores universidades e conversava com eles como igual.
Swartz aprendeu no mesmo lugar --a internet-- tanto a programar quanto a ler clássicos da filosofia política (como Henry David Thoreau, um dos seus favoritos). Qualquer um pode seguir seu caminho.
Não importa onde você mora, quão boa ou ruim é a sua escola, qual é sua condição socioeconômica: se você estiver conectado à rede e se organizar, pode ter acesso à mesma informação disponível nas melhores escolas do planeta.
Dá para aprender tudo na rede. Matemática, química e física para os ensinos médio e fundamental estão disponíveis na Khan Academy (já traduzida em português). Cursos universitários inteiros de Harvard e do MIT estão também na rede, por meio de iniciativas como o Open Courseware e o HarvardX. Os "syllabi" --programas dos cursos-- de várias universidades de ponta também estão on-line (e suas leituras indicadas estão também na maioria na rede).
Quer aprender habilidades práticas? Sites com o Wikihow ensinam a, literalmente, fazer qualquer coisa. De consertar a bicicleta a fazer uma planilha em Excel.
Além desses "sites-ilha" que organizam conteúdos, há também um vasto oceano de partículas de informação espalhadas pela rede, todas facilmente encontráveis. De vídeos postados por voluntários no YouTube com tutoriais de desenho industrial a aulas de agronomia.
Se algo não estiver disponível, basta entrar em um dos fóruns especializados de cada campo do conhecimento, que reúnem usuários dispostos a se ajudar.
Muita gente vai dizer que boa parte desse conteúdo só está disponível em inglês. Não tem problema. Dá para aprender inglês (e várias outras línguas) pela internet. Sites como o Duolingo --com modelos de aprendizado gratuito-- têm se tornado cada vez mais populares justamente por sua eficácia.
Claro que não dá para ignorar o papel dos professores, que mais do que nunca são essenciais. Mas entramos no momento em que o aprendizado tornou-se mais importante do que a educação. Isso gera enorme pressão sobre o sistema educacional. E pressão ainda maior sobre cada um nós. Não temos mais desculpa para não aprender.


Texto de Ronaldo Lemos, publicado na Folha de São Paulo

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O HSBC e o futuro


Quando você sai de um avião e entra no "finger" de quase todos os aeroporto do mundo, normalmente a primeira coisa que vê são frases edificantes sobre as oportunidades do futuro, a sinergia produzida pelos criativos e empreendedores, a necessidade de estar preparado para novos desafios e toda essas frases feitas vindas de manual de autoajuda de administradores de empresas à procura de uma "recolocação". As frases são uma contribuição desinteressada das campanhas publicitárias do banco HSBC para um mundo melhor.
Bem, enquanto um dos maiores bancos do mundo gastava uma pequena fortuna para criar a imagem de uma corporação preocupada com algo mais do que seus próprios interesses, sua filial suíça ajudava toda a escória do rentismo mundial a burlar impostos, operar fraudes fiscais por meio da abertura de empresas "offshores", lavar dinheiro de tráfico de armas e drogas e de desvios de verbas públicas feitos por ditadores, déspotas e seus asseclas, além de outras formas singelas de crimes.
Só entre 9 de novembro de 2006 e 31 de março de 2007, 180,6 bilhões de euros circularam por cem clientes de sua filial em Genebra e por 20 empresas offshore.
Desta forma, o sistema financeiro mundial mostra como é composto de corporações especializadas em destruir toda perspectiva de futuro, isto ao viabilizar crimes os mais variados possíveis e fornecer proteção mafiosa àqueles que acumulam fortunas, muitas vezes de forma criminosa.
Enquanto isso, seus países não têm mais dinheiro para subvencionar saúde decente e educação pública de qualidade para seus cidadãos.
Enquanto você paga impostos em cima de partes substantivas de sua renda sob uma fiscalização implacável, o pessoal do topo conta com o auxílio inestimável de corporações como o HSBC para defender seu dinheiro, venha ele de onde vier.
Um dos capítulos mais interessantes dessa história se passa, para variar, aqui mesmo. O Brasil aparece como o nono país em número de clientes envolvidos em tais operações. No entanto, nenhum nome de brasileiro foi divulgado.
Sabemos de nomes dos mais variados: do rei do Marrocos ao ator John Malkovich; do primo do presidente sírio Bashar Al-Assad ao dono de salões de beleza Jacques Dessange.
Porém, dos 8.667 clientes com vínculos com o Brasil, sendo 55% de nacionalidade pátria, não se sabe, por enquanto, absolutamente nada.
Como sempre, o Brasil é especialista em blindar os negócios escusos de sua classe de sonegadores e em defender seus rendimentos.
Mas as peças publicitárias do HSBC continuam sorrindo para nós em todos os grandes aeroportos do país.

Texto de Vladimir Safatle, publicado na Folha de São Paulo

Brasília para maiores: confissões de uma acompanhante de luxo

"Danny Bond sou eu", diz Juliana, no primeiro contato por telefone para comentar "Felizes para Sempre?". A brasiliense de 38 anos contabiliza 22 deles numa terra parecida com a retratada na minissérie dirigida por Fernando Meirelles, cujo último capítulo foi exibido pela Rede Globo na sexta-feira (6).
Ao longo dos dez episódios e a convite da coluna, Juliana (nome fictício) passou em revista sua vida em uma "Brasília para maiores", contrapondo ficção e realidade.
A fina estampa e o carisma ("Sou bem articulada, espirituosa e sei me comportar em qualquer ambiente") carimbaram o passaporte da loura de 1,60m, 54 kg e olhos castanhos para o território do poder.
Uma Brasília habitada por autoridades e políticos –de todos os partidos e matizes ideológicos, do baixo ao alto clero do Congresso Nacional, passando pelos primeiros escalões de sucessivos governos–, além de empresários, empreiteiros e lobistas que orbitam em torno dos poderosos.
Juliana mergulhou em reminiscências de seu debute, ao acompanhar a personagem de Paolla Oliveira, uma garota de programa de luxo que seduz um empreiteiro corrupto e sua mulher, ao ser contratada pelo casal para um "ménage à trois".
"Eu tinha 16 anos, era estudante do ensino médio, filha de uma família classe média, quando comecei a me relacionar com homens mais velhos, todos ricos e poderosos. Eles pagavam as minhas contas. Eu não gostava da minha vida, do lugar onde morava no Plano Piloto e sempre almejei mais.
Fui vendedora de uma butique de luxo, atendia mulheres ricas, socialites e sonhava em ser como elas. Como era muito bonita, sempre fui assediada e me destacava pela personalidade.
Então, fui montando uma personagem: a menina bonita, liberal e moderna. Era diferenciada na cor e no corte de cabelo. Era fashion e a mais popular. Sempre transitei entre as classes de A a Z. Sei atuar em todos os lugares e tudo era descoberta: o sexo, o meu poder de sedução e o luxo."
Como Danny Bond na minissérie, a personagem real agradou um importante empresário local. Juliana teve um Cláudio Drummond (o empreiteiro vivido por Enrique Diaz) para chamar de seu. Aos 20 anos, conquistava o coração e as benesses de um homem que a promoveu de recepcionista em uma de suas empresas a amante.
Com ele, viveu no centro do poder os primeiros capítulos de um romance que teve como cenário a Academia de Tênis de Brasília. Nos anos 1990, em plena Era Collor, a estrutura hoteleira e esportiva era a mais requintada da Capital Federal.
"Por quase dez anos vivi na `vibe' de mulher de milionário. Ele tinha 56 anos, quando começamos a nos relacionar. Logo no começo do nosso caso, ele colocou as cartas na mesa: `Sou casado, tenho filhos. Minha vida é complicada. Se topar a parada, não vai se arrepender'. O que eu tinha a perder?"
Na ficção, Danny Bond ganha 3.000 euros por uma tarde de sexo em um hotel de luxo com vista para o Lago Paranoá, paisagem ofuscada pelo comentado bumbum da atriz. Ao final da transa, o cliente declara: 'O que você quer? Aliança? Apartamento?' O céu era o limite também para Juliana.
"Eu topei na hora. No dia seguinte, saí da casa de minha avó, com quem estava morando, pois briguei com minha mãe por causa do meu estilo de vida. Fiquei rica da noite para o dia. Tinha cartão de crédito ilimitado, ganhei uma BMW, quando antes circulava com um carro popular. Os filhos dele tinham a minha idade.
Fomos morar juntos. De cara, ele me botou em um chalé na Academia de Tênis. Era vizinha da então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, que morava lá. Tomava café da manhã com ministros do Collor. Imagina tudo isso na cabeça de uma menina de 20 anos."
Apesar da narrativa de contos de fadas, Juliana diz sempre ter tido consciência de que era uma história fadada a não ter final feliz, a exemplo da vida bandida de Danny Bond. A fila sempre anda, diz Juliana.
"No meu caso, depois de sete anos juntos, ele se apaixonou por outra. Nessa altura, eu já tinha engravidado e tido um filho dele. Luciana Gimenez não teve um filho de Mick Jagger? Comigo foi a mesma coisa. Minha vida mudou. Ele era um homem muito generoso. Adora nosso filho, é um ótimo pai. Fui uma mulher exemplar, recompensada com uma pensão e uma casa que vale US$ 1 milhão.
Vivi o fim do caso com dignidade. Você é um troféu e logo eles vão querer conquistar outro. É o ciclo natural. Esse tipo de homem é movido a conquistas, ao poder de bancar a mulher mais bonita da noite. Sou pé no chão. Tenho um sensor apurado, sei sair bem das situações."
Juliana passou quase uma década levando uma vida de classe média, namorando caras da sua idade e longe dos engravatados da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Há dois anos, voltou a circular entre políticos, recomeçando as baladas de uma segunda encarnação na pele de uma Danny Bond de carne e osso.
"Todas as terças e quartas, quando os políticos começam a chegar de suas cidades, nosso grupo se reúne em algum restaurante badalado de Brasília. Você vai para esses encontros para ser avaliada e se submete a isso à espera do prêmio maior, que é ser uma das escolhidas da noite.
É uma coisa discreta, como se fosse um jantar entre amigos. Só que é organizado por uma espécie de cafetina, que deve ter uns 50 anos e faz o estilo amigona deles e das mulheres. O que está em jogo ali não é só ser escolhida por um político ou empresário por uma noite, mas o desejo de que um cara desses se apaixone por você. É uma roleta russa. Dá adrenalina. Mexe com a vaidade.
_Foi assim que conheci um deputado, com quem me relaciono há oito meses. Antes, fiquei com outros, inclusive com um amigo do atual. Não fui escolhida de cara pelo meu ficante. Só saímos depois do terceiro encontro. Tenho essa tranquilidade. Não saio à caça, nem faço por necessidade. _
Quando era mais jovem, meu objetivo era casar com um milionário. Foquei e consegui. Não busco mais um apartamento ou um carro, coisas que já conquistei. Meu objetivo hoje é aproveitar a vida com estilo. Fazer viagens nos fins de semana, ganhar presentes caros, como uma bolsa Gucci, uma sandália Christian Louboutin, uma joia da Tiffany. Não é uma troca imediata, são ganhos de longo prazo. É um empreendimento, como tudo o mais. Você pode fazer sucesso ou falir. Tem que focar."
A exemplo da personagem criada por Euclydes Marinho, Juliana se orgulha do estilo sofisticado de se vestir, de sua casa muito bem decorada, credenciais que a fazem circular com segurança entre os abastados. E se diferenciar da concorrência.
"Antigamente, a coisa rolava entre um grupo de patricinhas, universitárias, como é o caso protagonista da minissérie. Hoje, a proliferação dessas garotas é tão grande, que existe para todos os gostos e idades. A concorrência aumentou. Tem desde a funcionária pública concursada, atraída por frequentar restaurantes caros, até as vagabundas que vivem só disso.
Apesar de estar com quase 40 anos, tenho tido sucesso nessa minha segunda fase. Uma acompanhante de um homem poderoso tem que saber falar, ter um mínimo de conhecimento. Eles gostam de mulher de atitude, que possam exibir.
A cama é o segundo momento. Depois da primeira transa, se o cara te procura para uma segunda, você sobe um degrau. As outras já ficam olhando. Rola muito ciúme e briga entre as meninas."
Elas entram em cena em fuso e calendário próprios, sempre à noite e entre terças e quintas, a semana parlamentar. Os encontros vespertinos, como o protagonizado por Danny Bond em tarde de sexo nos ares, são excepcionais, assim como fins de semana de sexo em outras paragens. Juliana carimbou o passaporte para Miami há uns três meses. Já a personagem de Paolla Oliveira teve o embarque para Paris abortado pela Polícia Federal que, na ficção, impediu a saída do seu acompanhante do país.
"Depois de uns cinco encontros com esse deputado com quem estou ficando, ele me convidou para uma viagem a Miami. Passamos cinco dias na casa de um milionário amigo dele. Fiquei impressionada com tanto luxo e riqueza. Não rola grana, mas presentes. Os caras bancam tudo. Nem precisa ser boa de cama. Todos usam Viagra ou Cialis. Passam a noite inteira ligados.
Transamos em todos os ambientes da mansão. Fizemos um filme pornô atrás do outro. Como tinha câmera para todo lado, fiquei bem conhecida dos porteiros. Imagina se uma fita dessa for parar na internet ou numa comissão de decoro parlamentar? Todo mundo ia querer saber quem era a loura misteriosa.
É claro que você fica imaginando o custo daquilo tudo. Fiquei passada quando mexi no closet do dono da casa de Miami. Achei uma gaveta cheia de relógios. Abri outra e contei US$ 15 mil em cash. Era a grana para o fim de semana. Esses caras não pagam nada com cartão nem cheque. Não deixam pistas da gastança. Isso me diverte, dá adrenalina. Mexe com minhas fantasias e me excita.
Dispara um gatilho. Quando a vaidade se mistura com futilidade é uma bomba. Tinha um iPhone 5 novinho e troquei pelo 6 para ficar no mesmo nível dele e da turma de milionários.
É preciso muita estrutura emocional para não pirar e também para não se apaixonar. Quem acha que tudo ali é real se ferra ou enlouquece. Já vi casos horrorosos de meninas que invadem gabinetes, xingam secretárias e infernizam a vida do cara."
Como a arte imita a vida, Juliana conta histórias de glamour e de sacanagem protagonizadas por ela ou amigas e que poderiam ter sido roteirizadas em "Felizes para Sempre?".
"Já ouvi muita história de transas em aviões e helicópteros. Um ex-senador era conhecido por transar enquanto sobrevoava Brasília em seu jatinho, assim como um conhecido empresário que fazia festinhas aéreas regadas a cocaína.
Uma amiga foi contratada por um casal por R$ 2.000 para um programa, mas quando chegou ao restaurante rolou uma atração forte entre as duas mulheres. Assim como na minissérie, o cara foi colocado para escanteio e elas tiveram um casinho por um tempo. A menina é poliglota, morou na Inglaterra, chegou toda montada em grifes, nada do estereótipo de puta.
Você vive também situações engraçadas e até constrangedoras. Saí com um deputado que na hora de transar fazia de conta que eu era a melhor amiga da mulher dele. O cara gritou tanto o nome das duas que eu escapei do hotel na madrugada. Mas você pode acabar uma noitada também na mesa de um futuro candidato a Presidência da República ou de um novo ministro.
Ano passado fui convidada para uma festa de aniversário em outra capital. Foi organizada pela amante de um parlamentar importante que chamou 30 meninas. Ele levou dez amigos. Fui contemplada com o mais bonito e poderoso deles."
Juliana aponta uma falha no roteiro da minissérie, quando o empreiteiro inescrupuloso dispensa uma amante com um cheque pelos "serviços prestados". Nos últimos episódios, a distância entre ficção e realidade aumentou, segundo ela.
"Não gostei do desfecho da minissérie. Do meio para o final enfeitaram muito. Achei moralista essa coisa de o crime não compensa? Acabar em morte ou prisão. Não é o que vejo acontecer. Não vejo as acompanhantes participarem de negociatas, por exemplo, nem distribuírem dossiês por aí.
Na vida real, para se dar bem nesse esquema, a mulher tem que que segurar a onda e saber a hora de sair de cena. Só sobrevive e tem sucesso que tem cuidado com o que fala, vê e escuta.
Estou escrevendo minha história. Já penso em outras possibilidades. A minha cartada agora é conseguir um emprego de assessora parlamentar na Câmara dos Deputados. Posso dar um `up grade' no mandato do meu ficante, decorar o apartamento dele, ser uma personal.
A crise política chegou para todo mundo. O dinheiro fácil vai sumir de Brasília. Não que a maracutaia vá acabar, mas eles estão mais temerosos. Nos próximos anos, a farra tende a diminuir com todas essas operações da Polícia Federal. Quero me garantir com salário e gratificações.
Antes, nunca tive vontade de estudar para concurso, mas agora ando pensando. Já imaginou a Danny Bond aprovada em um concurso público? Seria uma reviravolta e tanto na ficção e na realidade, não é mesmo?. Meu foco agora é trabalhar com crachá, batendo ponto no Congresso. Por que não?" 


Reprodução do blog Rede Social, na Folha de São Paulo.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Solte a franga no Carnaval

Nunca pensei que viver em 2015 seria tão careta e tão –ou mais– difícil do que nos anos 1990, ou antes disso.
Seja homem ou mulher, sempre tem alguém pra dizer que você é errado, é depravado, é contra os princípios da família, tradição e propriedade. Nunca imaginei que a pelada do Carnaval de hoje fosse mais coberta e censurada que a dos anos 1980, que homem passando o rodo seria estimulado, e mulher rodando aquela baiana que há em seu ventre poderia ser ainda hostilizada ou rotulada.
Dedico esta coluna a duas mulheres que peitaram com muita inteligência, coragem e senso de humor a babaquice generalizada e entranhada em nossas vidas. Renata de Carvalho Rodrigues e Debora Thome compraram uma briga, que nem mesmo elas sabiam que seria uma briga. Ao criarem o Bloco das Mulheres Rodadas, o que era para ser uma manifestação bem-humorada, começou a ganhar contornos políticos, com gente mais disposta a vomitar regras do que a se divertir.
O bloco surgiu depois de uma coluna publicada por mim, aqui no site daFolha, que satirizava um post da página Jovens de Direita, no Facebook. Os defensores da honra postaram uma foto de um cara segurando um cartaz que dizia: Não mereço mulher rodada.
Fez-me rir. O que é uma mulher rodada? Onde vivem? Do que se alimentam? Usam IOS ou Android?
O bloco, que sai na Quarta-Feira de Cinzas, no Largo do Machado, no Rio de Janeiro, já tem quase 10 mil adesões. Sim, estou aqui divulgando o bloco por uma boa causa e por minha causa também. Renata e Debora quiseram chamar atenção para um problema velho, que continua muito atual: o machismo. Escolheram uma maneira lúdica, tentando fazer com que todo mundo, mulheres e homens, pensem sobre a hipocrisia que ainda reina nas relações e permeia a vida das mulheres.
Quando publiquei "Você é uma mulher rodada?", fui chamada de puta, vagabunda e vários outros adjetivos nada simpáticos. Renata e Debora foram acusadas de estimular o machismo porque deram espaço a um texto de um homem, que se dizia fascinado por mulheres rodadas e vividas. Ele dizia claramente que preferia uma assim. E daí? Eu detesto o tipo cafa, ou que more com a mãe, ou que curta música sertaneja, ou não saiba quem é Coltrane. Vão me acusar do que?
As feministas mais xiitas caíram de pau no autor do texto, nas criadoras do bloco e em mim, que não vi nada de errado no que estava escrito, ainda que nem tenha gostado. Quiseram politizar um bloco de Carnaval.
Tentaram excluir os homens da conversa (na cabeça dessas engajadas, se você é homem, não tem que se meter). Fui acusada de branca, elitista e preconceituosa. Pois é, sou branca, trabalho muito e fui tratada com um preconceito muito pior do que aquele pelo qual fui acusada. Preguiça.
Todo esse trololó é pra dizer que o mundo está chato, mas tem gente se esforçando para deixá-lo mais divertido. Se você gosta de Carnaval, se garante no samba, na igualdade de gêneros, sem mimimi e chororô, vem com a gente, solte a franga, o chapeuzinho vermelho, a índia-guarani, o pau de selfie. Sim, o bloco é um protesto, mas o inusitado dele está justamente em usar a brincadeira e aproveitar o Carnaval pra falar de coisa séria.
Tem os que prefiram passeata, cartaz e megafone. O Bloco das Mulheres Rodadas diz um não bem grande ao machismo com música e samba no pé. Prefiro desse jeito.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Aceleração versus política

O sociólogo alemão Hartmut Rosa é um dos pensadores atuais que merecem atenção. Ele publicou poucos livros até agora, mas o debate de suas ideias cresce a cada dia, em especial as expostas em "Aceleração Social: Uma Nova Teoria da Modernidade" (na tradução do título da edição americana de "Beschleunigung: Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne").
O título já antecipa o conteúdo rico e complexo do estudo, que aqui evoco livremente. Rosa propõe uma "sociologia sistemática do tempo" para explicar a era moderna como o confronto entre as forças de aceleração (as revoluções técnicas, as mudanças sociais e o ritmo de vida) e as instituições (direito, mecanismos de governança, família etc.).
As instituições servem para tornar a experiência da aceleração capitalista tolerável aos indivíduos e para garantir a eles segurança no presente e confiança nas expectativas de futuro. Quando se tornam um entrave à aceleração, as instituições são forçadas a se transformar, adaptando-se às mudanças sociais e gerando novas estabilizações.
Hoje, porém, a aceleração do ritmo de vida ganha tal proporção que as instituições, incapazes de se transformar e impor qualquer resistência às forças desestabilizadoras, começam a entrar em colapso.
A aceleração também intensifica a alienação do indivíduo, presa que ele é de uma celeridade que não controla, esvazia seus conteúdos, o impede de aprofundar relações e dificulta o planejamento da vida no longo prazo. É o curto prazo que predomina, seja no cotidiano pessoal e coletivo, seja no exercício institucional da política.
A impossibilidade de submeter todas as esferas sociais a uma aceleração idêntica à do ritmo dominante de vida gera uma série de "dessincronizações" --principalmente entre as esferas técnico-científica e econômica, de um lado, e política e educacional, de outro.
Escreve Hartmut Rosa: "O ritmo acentuado das mutações socioeconômicas e tecnológicas excede permanentemente as possibilidades das estruturas e dos horizontes temporais da política democrática e deliberativa, que tende ela mesma, na sociedade da aceleração, e justamente em razão da forte dinâmica social, a reduzir o ritmo dos processos de formação da vontade e da tomada de decisão".
Isso explicaria talvez o desânimo de muita gente com a lentidão da classe política e o crescente alheamento desta classe em relação às urgências do mundo atual. Também explicaria tanto a expansão do conservadorismo no mundo --devido, em parte, à dificuldade de as pessoas entenderem a realidade complexa e mutante--, quanto a impotência das esquerdas para fixar um projeto de futuro comum para grupos sociais com demandas tão imediatas e heterogêneas.

Texto de Alcino Leite Neto, na Folha de São Paulo

Alemanha obrigará uso de preservativos nos prostíbulos


O governo federal alemão aprovou uma medida para tornar mais digna a vida das prostitutas: exigir o uso de preservativos nos prostíbulos. A medida é a conclusão de uma acalorada discussão no Executivo para aprovar uma nova lei destinada a regulamentar o complexo mundo da prostituição na Alemanha, um negócio que movimenta cerca de 15 bilhões de euros por ano.
O debate durou vários meses, e a conclusão chegou depois de uma maratona que terminou na madrugada de quarta-feira (4), em Berlim, quando os responsáveis pelos três partidos que integram a coalizão de governo (CDU, CSU da Baviera e SPD) se deram as mãos, satisfeitos por poder enviar a nova lei ao Parlamento.
A medida não está isenta de problemas, já que os legisladores ainda não veem claramente como poderão vigiar o cumprimento estrito da lei na intimidade de um quarto. Os legisladores também concordaram em não mais exigir um mínimo de 21 anos para exercer o trabalho sexual, "para não discriminar as mais jovens". Poderão fazê-lo desde os 18.
A prostituição é regulamentada na Alemanha por uma lei aprovada em 2002 que reconheceu às trabalhadoras do sexo direitos trabalhistas e cobertura social como prestadoras de um serviço, mas também as obrigou a pagar impostos, assim como os locais onde exercem seu ofício.
Quando assumiu o novo Executivo, em dezembro de 2013, a coalizão se propôs a revisar a velha lei para proteger as prostitutas da violência, da exploração e das doenças.
"Pela primeira vez haverá no país uma clara regulamentação da prostituição legal na Alemanha, que servirá para proteger as mulheres", disse a ministra da Família, Manuela Schwesig (SPD). A lei indica que para abrir um prostíbulo será necessária uma autorização legal que obrigará os proprietários a aceitarem as visitas de inspeção para controlar o negócio.
A lei também exigirá um registro obrigatório das prostitutas, medida que pretende eliminar o anonimato no negócio e portanto a exploração das mulheres pelos cafetões. Outro ponto de discórdia foi a exigência por parte da democracia cristã de submeter as prostitutas a um exame médico obrigatório.
O acordo alcançado ontem introduz a figura de uma assessoria médica que será realizada uma vez por ano, mas as menores de 21 anos terão que se submeter a ela a cada seis meses. A medida deixa nas mãos das prostitutas de uma idade superior a decisão de "aconselhar-se" ou submeter-se ao exame médico.
Para impedir a exploração das mulheres, o governo concordou em proibir a chamada "tarifa plana de sexo", medida que se tornara muito popular e que possibilitava que um cliente desfrutasse, pelo pagamento de uma tarifa reduzida, dos serviços de um prostíbulo todas as vezes que quisesse em uma noitada.

Reportagem de Enrique Müller, para o El País, reproduzida no UOLTradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Plataformas eletrônicas conseguem rastrear hábitos de leitura

A plataforma de leitura eletrônica Kobo divulgou as estatísticas de 2014 acompanhando seus livros eletrônicos de maior venda e com que frequência os leitores terminaram os títulos que adquiriram.
No ano passado, o lançamento da adaptação feita por Hollywood do romance de Gillian Flynn "Garota exemplar", de 2012, impulsionou o livro para a lista dos mais vendidos em vários países pelo mundo. Milhões de pessoas o compraram, mas quantas realmente leram o livro até o fim?
Kobo é uma plataforma de leitura com sede em Toronto, que oferece livros digitais para 23 milhões de pessoas em 190 países e é concorrente do Kindle, da Amazon. A empresa divulgou recentemente as estatísticas de 2014 mostrando seus livros mais vendidos e com que frequência os leitores terminaram os títulos que compraram.
No Reino Unido, por exemplo, "Garota exemplar" foi o terceiro título mais vendido da Kobo, mas apenas 46% dos leitores que compraram o livro chegaram ao fim. Índices de conclusão semelhantes foram registrados para outros best-sellers, como o romance erótico de James E.L. "Cinquenta tons de cinza" (48%) e o suspense literário de Donna Tartt "O pintassilgo" (44%).
Na França, o lamento provocativo de Éric Zemmour sobre o declínio cultural e geopolítico do país, "Le Suicide Français" (em tradução livre, "o suicídio francês"), pode ter sido um grande sucesso em termos de vendas, mas apenas 7% dos leitores franceses da Kobo conseguiram terminar o livro.
Os índices de conclusão variam muito, dependendo do gênero: romance e mistério apresentam os maiores índices, enquanto religião e não-ficção apresentam os menores.
Na Itália, 74% dos romances comprados via Kobo foram terminados --o melhor índice de conclusão de qualquer gênero em todos os mercados da Kobo, em comparação com 62% na América do Norte e 60% na Austrália e Nova Zelândia.
Michael Tamblyn, presidente da Kobo e diretor de conteúdo, observou que cada gênero é lido de forma diferente, o que pode explicar algumas das disparidades. "Diferentes tipos de livros têm diferentes padrões de leitura", disse ele. "Os romances são lidos da capa à contracapa, mas uma obra de não-ficção talvez seja apenas folheada em busca de dados e não totalmente lida."
Do ponto de vista empresarial, pode parecer irrelevante entender quais livros os leitores tendem a terminar. "Pode-se argumentar que, uma vez vendido o livro, pouco importa o que os leitores acharam dele?", questiona o relatório da empresa divulgado junto com os dados. "Mas conhecer aquilo que os leitores acham envolvente e aquilo que não acham pode ajudar os editores a liberar títulos de suas listas de publicação e tomar decisões informadas na hora de investir em autores e franquias."
A empresa deu um exemplo de livros que, apesar das vendas baixas, tiveram índices de conclusão muito elevados. "É evidente que os leitores que se depararam com estes livros os adoraram. Ou seja, talvez a equipe de marketing ou o departamento editorial não tivesse vislumbrado um vencedor entre esses títulos, mas o leitor sim."
Mas nem todos na comunidade literária consideram uma coisa boa a capacidade de rastrear o envolvimento do leitor. Francine Prose imaginou um futuro não muito distante, no "New York Review of Books", em que "os autores (e seus editores) enfrentam reuniões nas quais o departamento de marketing informa-lhes que 82% dos leitores perderam o interesse em suas memórias na página 272. E que se quiserem ter outro livro publicado, aquilo que acontece naquela página nunca deverá se repetir".

Texto de Stephen Heyman, para o International New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Deborah Weinberg

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Reino do 'nonsense'

Se a Petrobras ainda estivesse sob a ação ignorada e tranquila de gatunos, a realidade dos últimos 11 meses seria assim: suas ações em altas cotações na Bolsa, bafejadas pelo crescimento da produção a despeito da queda de preço do petróleo, os corruptos embolsando seus ganhos com a segurança de sempre, e bancos e corretoras festejando em vez de derrubar os dirigentes da empresa. Ou seja, toda a desgraça lançada sobre a Petrobras decorre de que a gatunagem foi constatada, abriram-se inquéritos com numerosas prisões de corruptores e corrompidos.
Era possível, anteontem, ouvir a notícia da reunião de Dilma Rousseff e Graça Foster, para o afastamento da presidente da Petrobras, e logo a notícia de que "a Petrobras bateu o recorde de produção em dezembro". Que associação se poderia fazer entre os dois fatos tão íntimos entre si, a não ser sua naturalidade brasileira?
Pior para quem ouviu tais notícias e no mesmo dia leu, do autor pago de um parecer favorável a impeachment de Dilma, que a "insistência, no seu primeiro e segundo mandatos, em manter a mesma diretoria que levou à destruição da Petrobras" caracterizou improbidade. Essa Petrobras "levada à destruição" conseguiu em 2014, portanto quando os diretores a destruíam, o recorde da produção de derivados com 2,17 milhões de barris de petróleo por dia. O sexto recorde anual seguido, sendo este último, deduz-se, de produção fantasmagórica.
A "insistência" de Dilma, "no seu primeiro e segundo mandatos", em "manter a mesma diretoria que levou à destruição da Petrobras" contém importante revelação: a empresa tinha duas diretorias paralelas. Uma, presidida por Graça Foster, substituiu a existente no governo Lula. A outra, imperceptível a olhos comuns como os nossos, mas captada pela visão de pareceristas bem-aventurados e ficcionistas consagrados.
Neste último caso se encontrou a também novidadeira informação, por um dos nossos cronistas, de que "o maior acontecimento" do governo Dilma "foi o rombo criminoso da Petrobras". Não creio (bem, só porque não sou homem de fé) haver alguma ponta de intenção na constante falta de clareza, quando citada uma gatunagem, sobre o período em que se deu. Nem por isso se fica impedido de ver que o maior acontecimento do governo Dilma deu-se no governo Lula. À primeira vista, só um escorregão crônico, mas que põe Graça Foster, uma pessoa a ser respeitada, sob a acusação de presidir "o rombo criminoso da Petrobras".
Não se sabia que o petróleo torna as pessoas sentimentais. Mas ontem se teve a notícia de que a Petrobras recebeu o OTC-2015, o Distinguished Achievement Award for Companies, Organizations and Institutions, "o mais importante para operadoras off-shore". O prêmio foi em reconhecimento ao "conjunto de tecnologias desenvolvidas para a produção na camada pré-sal". Mas, percebe-se, foi só por nostalgia, para uma empresa que deixou de existir, para a destruída Petrobras.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo