quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A vida em vão


Perdi quase 20 amigos na pandemia. Tão ruim quanto nunca mais vê-los era pensar que estavam morrendo na época mais triste da nossa história, num Brasil que jamais teriam imaginado chegar àquele ponto ---a caminho de uma ditadura pior que a de Getulio (1937-45) e a dos militares (1964-85).

O país a que dedicaram a vida, certos de que um dia teríamos desenvolvimento com liberdade, riqueza com justiça social e alegria com responsabilidade, não podia ser o de Bolsonaro. A morte naquele momento, e em condições tão cruéis, era a derrota, a sensação de que tinham vivido em vão.

Todo jovem faz fé no futuro. Na ditadura, fui preso numa passeata, estava no centro de um grupo que levou uma bomba da polícia e perdi três empregos, dois dos quais na noite do AI-5. Mas valeu a pena, nunca me queixei. Conheci ou morei em países sob ditadura, censura, prisões, desaparecimentos e tortura. Presenciei duas quedas de governo, uma delas em Portugal, em 1974. Em matéria de presidentes, incluindo os de fora, fui contemporâneo de deposições, renúncias, impeachments, suicídios e assassinatos. E vi o mundo se meter em pelo menos 20 guerras, com milhares de mortos de cada lado ---em todas, mesmo à distância, tomei partido e vibrei ou sofri com o resultado.

Precisei chegar à idade provecta para concluir que nenhum desses atos extremos resolveu os problemas que os causaram, e que a vitória ou derrota de qualquer dos lados não trouxe seus mortos de volta. Não estou dizendo que se deva ficar neutro ou indiferente, mas, hoje, mais do que a ideologia, o que me move é o martírio dos inocentes, sob qualquer bandeira, ao alcance dos tiros, mísseis, explosões, soterramentos, ferimentos, doenças, sede e fome. Se morrerem, eles, sim, terão vivido em vão.

Como de regra, esta guerra no Oriente Médio começou como sendo de vida ou morte para os dois lados. Mas ambos já perderam.


Reprodução de texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

A vitória dos extremistas


Há uma história por trás do massacre de israelenses pelo Hamas e da guerra terrível que certamente se seguirá à barbárie do 7/10.

É a história do fracasso de uma saída negociada capaz de permitir a convivência de dois povos que consideram seu o mesmo pedaço de terra —uma derrota devastadora para todos quantos por ela se bateram e nela ainda acreditam.

Pelo menos duas oportunidades foram perdidas. A primeira, em 1947, quando os países árabes rejeitaram a proposta de partilha da Palestina. Em consequência, no ano seguinte, tentaram varrer do mapa o recém-criado Estado de Israel. É bom que se diga: os territórios então destinados aos árabes dali eram maiores do que os em disputa hoje.

Em 1995, depois de duas guerras, anexações e múltiplos conflitos sangrentos, a segunda oportunidade surgiu com os Acordos de Oslo, que plantaram no horizonte a solução dos dois Estados, mediante a criação da Autoridade Palestina, passo inicial para o reconhecimento da sua completa soberania sobre Gaza e os territórios da Cisjordânia, sob ocupação israelense desde 1967.

Os acordos foram perdendo substância sob o ataque simultâneo da extrema direita israelense e dos fundamentalistas do Hamas. Saiu das fileiras dos ultras de Israel o assassino do premiê Yitzhak Rabin, a voz de seu país em Oslo. Foram eles ainda que multiplicaram os assentamentos na Cisjordânia, inviabilizando um Estado palestino com território contínuo. E são eles, ao fim e ao cabo, o pilar do governo racista de Netanyahu.

De seu lado, por quase uma década os militantes do Hamas perpetraram ataques terroristas em solo israelense, minando a autoridade das lideranças moderadas dos dois lados. Com elas foi por sangue abaixo o já difícil esforço de construção de confiança mútua necessária à troca de territórios por paz. (Entre os muitos relatos do desalento que se seguiu ao fracasso de Oslo está o duro documentário "A Oeste do Rio Jordão", do cineasta israelense Amos Gitai.)

Os ultradireitistas religiosos têm no Hamas sua imagem espelhada. Uns e outros só se saciarão com o aniquilamento do inimigo, pois são igualmente fundamentalistas, autoritários, misóginos, homofóbicos —numa palavra, extremistas. São eles os vitoriosos de hoje; é sua a responsabilidade por remeter a esperança de paz para um futuro remoto —e por despertar o antissemitismo mundo afora.

Entende-se o entusiasmo dos populistas de direita, em todo o mundo, com o radicalismo de Netanyahu. Mas a tolerância de certos progressistas com o terrorismo do Hamas é, no mínimo, sintoma de desorientação política e de perda de bússola moral.


Reprodução de texto de Maria Hermínia Tavares na Folha de São Paulo.

Congresso mira a Constituição, não o STF


Constituição de 1988 herdou cacoetes linguísticos da prolífica tradição brasileira de sete constituições anteriores. Um desses cacoetes foi a pretensão de "equilíbrio e harmonia" entre os Poderes.

Começou na Constituição de 1824, que atribuiu ao Imperador o Poder Moderador para a "manutenção da independência, equilíbrio e harmonia" dos Poderes. A ideia de Poderes "harmônicos e independentes entre si" é adotada na Constituição de 1891, desaparece das Constituições de 1934 e 1937, e volta na de 1946 para não sair mais. As Constituições da ditadura (1967 e 1969) a repetem. A Constituição de 1988 a consagra.

Ainda que independência seja critério para definir os limites de cada Poder, os ideais de harmonia e equilíbrio ficaram como penduricalhos estéticos que não cumprem papel nenhum, exceto na retórica política. Viraram pílula de autoengano para aliviar corações de cidadãos num país tão pouco harmônico. Ou pílula de cinismo para autoridades, em geral do Executivo ou Legislativo, justificarem interferência no Judiciário.

Bolsonaro e seus generais usaram e abusaram dessa fraseologia. Como nunca aceitaram limite jurídico ao poder político, aplicado por um Poder independente, ameaçaram o STF de intervenção. Diante de um Poder que, na avaliação do autocrata, rompia com a "harmonia", jogava fora das "quatro linhas" e saía do "seu quadrado", caberia ao presidente desobedecê-lo, talvez fechá-lo. E prender Alexandre de Moraes. E anular as eleições.

Os escritos de Montesquieu mencionavam "harmonia". Mas a palavra não servia para dizer que Poderes deveriam ser harmônicos. Apenas reconhecia a virtude do arranjo romano, que equilibrava forças sociais distintas. Era conceito empírico e descritivo, não normativo.

Os federalistas, outra referência, foram mais ao ponto. Na explicação da Constituição americana, não falam em harmonia, mas em freios e contrapesos, controle, fiscalização, accountability. Linguagem menos zen.

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, ao farejar seu futuro político em risco pela percepção do eleitorado mineiro de que não passa de "subalterno" ao STF, embarcou em ofensiva contra a corte. Alega querer resgatar "harmonia entre os Poderes" diante de tribunal que extrapola, pratica ativismo e legisla.

Deu andamento a projetos de lei e de emenda constitucional que afetam a autoridade do tribunal. Parte dessas iniciativas confrontam decisões já tomadas ou ainda na pauta do STF, como nos temas do porte de drogasmarco temporalaborto. Outra parte propõe reformar o STF por meio de limites a decisões monocráticas, pedidos de vista, duração de mandatos.

Esse emaranhado torna difícil formar um juízo a respeito. Quem pensa que deve escolher entre apoiar o STF ou a cruzada parlamentar está confuso.

Por um lado, ministros do STF fragilizam a instituição pelo abuso de poderes de obstrução, por técnicas de chicana individual, por escandalosos conflitos de interesse, por sua promiscuidade com parentes, amigos e lobistas, pela gestão arbitrária da agenda constitucional, pela recusa de aperfeiçoamentos relevantes. E escancaram patologias do tribunal que deveriam ser corrigidas.

Por outro, abrem o flanco para que o Congresso aproveite e desafie a autoridade que resta ao STF. É previsível que parlamentares tentem revogar decisões judiciais de proteção dos direitos não só de grupos vulneráveis, como de qualquer cidadão que busque exercer a cidadania.

Uma Constituição que aposta em transformação social, redução da desigualdade e promoção da liberdade, num país como o Brasil, jamais terá nada parecido com harmonia entre os Poderes.

Coube ao STF o papel de fazer esse projeto constitucional ser respeitado. Falta a muitos ministros, porém, o compromisso por se fazerem respeitar. Uma coisa não caminha sem a outra.

Ficou fácil para o Congresso mais conservador de nossa história democrática, a pretexto de corrigir falhas do STF, anular o projeto constitucional. No fundo, é isso que está em curso. Danem-se os indígenas, as mulheres, o descontrole das armas, a letalidade policial, a expansão da pobreza, da milícia e da insegurança.


Reprodução de texto de Conrado Hübner Mendes na Folha de São Paulo.

domingo, 1 de outubro de 2023

Ucranianos morrem para satisfazer elite americana pró-guerra


Há mais de 70 anos, as guerras travadas pelos EUA seguem um mesmo padrão: cada vez que uma nova guerra é proposta, o bombardeio de propaganda midiática e estatal é tão grande que a maioria do público se une em apoio.

Inevitavelmente, esse apoio vai se erodindo. Enquanto o conflito se arrasta, as promessas vão deixando de ser cumpridas e as previsões de uma vitória fácil são desmentidas pela realidade; a população começa a perceber que a guerra foi um erro, repensa o apoio e começa a exigir o seu fim.

Assim foi no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão, na Síria e na Líbia. Aos poucos, esse padrão lamentável se repete na Ucrânia. Enquanto um terço da população americana se dizia favorável a apoiar a Ucrânia nos meses seguintes à invasão russa, uma pesquisa recentemente realizada pela CNN traz um cenário diferente: "Maioria dos americanos são contra mais ajuda à Ucrânia na guerra com a Rússia".

Já o presidente Joe Biden segue comprometido com a manutenção do envolvimento dos EUA no conflito, tendo em agosto solicitado ao Congresso o envio de um novo pacote de US$ 24 bilhões —além dos mais de US$ 100 bilhões que os EUA já empenharam na manutenção desse conflito.

A participação no conflito na Ucrânia também obedece a outro padrão histórico nos EUA a respeito de guerras: não há diferença nenhuma entre os establishments republicano e democrata.

Todos os democratas —desde Bernie Sanders, senador independente de Vermont, à congressista "de esquerda" Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York— vêm sendo unânimes em seu apoio à política de Biden de envio de bilhões e bilhões de dólares para fabricantes de armas como Raytheon e Boeing (o chamado complexo industrial-militar), para a CIA e para o notoriamente corrupto sistema político ucraniano.

O mesmo é verdade quando se trata dos setores tradicionais do Partido Republicano, que vem apoiando Biden de forma igualmente fervorosa, postura que pode ser exemplificada pelo líder do Senado, Mitch McConnell, político conservador tradicional e histórico no partido. Não se ouve nenhuma sinalização, por superficial que seja, no sentido de resolver o conflito diplomaticamente.

Mas, se é possível identificar a repetição de velhas dinâmicas, há desta vez uma novidade: o surgimento de uma ala populista e, ao menos pretensamente, antiguerra no Partido Republicano, liderada pelo ex-presidente Donald Trump, que vem sendo o único setor na política dos EUA a se colocar contra esse conflito desde o princípio.

Cerca de 70 republicanos, na Câmara e no Senado —de modo geral, os que se colocam como alinhados a Trump— vêm manifestando sua oposição ao envolvimento na guerra, um número que só deve crescer à medida que mais e mais americanos comecem a se opor ao envio de mais recursos.

Essa estranha dinâmica política dos EUA pode ser vista no posicionamento dos candidatos presidenciais. Dois dos candidatos concorrendo à esquerda de Biden se opõem veementemente ao envio de mais armamentos e recursos para a Ucrânia: o desafiante democrata Robert F. Kennedy Jr. e o ativista e candidato independente Cornel West.

Por outro lado, os candidatos republicanos tradicionais, como o antigo vice de Trump, Mike Pence, e a governadora e ex-embaixadora na ONU Nikki Haley, apoiam fervorosamente a política de Biden.

Não é só na opinião pública que se pode perceber mudanças: a realidade da guerra em si mudou radicalmente desde a invasão russa. Desde o início de 2023, cerca de 20% do território ucraniano vem sendo ocupado pela Rússia, inclusive a península da Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014.

Para manter o apoio da opinião pública nos EUA e na Europa, "especialistas" insistiram que os ucranianos provavelmente reconquistariam grande parte de seu território neste ano. Porém, o que se vê é o oposto: "as linhas de frente na Ucrânia não mudaram quase nada no último inverno", reporta o New York Times, acrescentando que, "apesar de nove meses de conflito sangrento, menos de 1.300 km2 de território mudaram de lado desde o início do ano".

Enquanto o Ocidente estava soterrado em propaganda inspiradora sobre os bravos ucranianos ansiosos por lutar por sua liberdade, mais e mais homens ucranianos vêm tentando fugir do país desesperadamente para evitar uma guerra em que sabem que podem ser mortos.

O presidente do país, Volodimir Zelenski, luta não com um exército de voluntários, mas com um exército de conscritos. Ou seja: dezenas de milhares de jovens ucranianos que nunca quiseram participar da guerra foram mortos só neste ano em troca de nenhum benefício estratégico.

Os apoiadores da guerra nos EUA já nem se preocupam mais em fingir que essa é uma guerra virtuosa, visando defender a democracia: já se fala, cada vez mais abertamente, que a Ucrânia não está sendo salva, mas destruída, mas que isso deve ser apoiado assim mesmo porque ajuda no objetivo de enfraquecer a Rússia.

Em outras palavras, essa guerra é igual a todas as outras em sua dimensão mais importante: uma quantidade enorme de pessoas sem nenhum poder é levada a lutar e morrer, tudo para satisfazer os objetivos de uma parcela mínima das elites americanas, para quem a quantidade de mortos e os rastros de destruição não passam de uma nota de rodapé inconveniente.


Texto de Glenn Greenwald na Folha de São Paulo