sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Crônica, a dor

 Talvez este seja meu centésimo texto sobre dor. Se você não aguenta mais, imagine eu. Semana passada fui ao 20º médico perito em dor crônica —sendo que, na anterior, eu já tinha ido ao 30º chinês “se esse não resolver, ninguém resolverá”. Mês passado comecei a tomar muitas gotas de canabidiol. Toda semana o reumatologista aumenta a dose. Comecei com três gotas, fui pra cinco e agora estou em sete, três vezes ao dia. Daqui a pouco tatuo o rosto do Bob Marley na virilha, mas a dor segue igual.

O papa da fibromialgia, o pica das galáxias em cervicalgia, o tiozinho do Sírio, o professor da USP, a chefona do Einstein, o centro especializado mais especializado de todos os centros especializados, a osteopata que salva pessoas de cirurgias marcadas. Todos os dias as pessoas com dor crônica relatam algo que “mudou a vida delas”. Todos os dias alguém que foi atropelado e revirado do avesso melhora. Já eu sigo, há dez anos, com a MESMA dor no corpo.

Vou à acupuntura toda segunda. Antes eu ia duas vezes na semana. Faço isso há cinco anos ou mais. PAREM de me dizer que a acupuntura vai resolver. Já fui benzida por oito pessoas que oravam em uma ciranda, e uma delas começou a chorar dizendo que eu tinha sido violentada por muita gente no século 19.

Dói a lombar, o meio das costas, a escápula, o trapézio, a cervical, a cabeça, a mandíbula, o olho. Às vezes doem os joelhos e os pés. Não é insuportável ou grave. Mas é todo dia e o tempo todo. Em uma crise forte, me deram cortisona com morfina com relaxante muscular no hospital, e duas horas depois a dor voltou. De março pra cá a dor vem junto com enxaqueca. Todo ano, em toda declaração de imposto de renda, quando somo os gastos com médicos e tratamentos, lembro que poderia ter uma bela casa na praia. E talvez viver nela sem dor.

Há oito anos psicanalistas prometem que se eu falar bastante sobre minha dor metafísica e subjetiva e represada e inconsciente posso sarar. Falo até quase vomitar e, às vezes, com o fígado magoadíssimo pelos remédios, eu vomito. Não passa.

Quando alguém me indica RPG ou arnica tenho vontade de indicar um desenho da Nickelodeon. Já li dois livros sobre “alimentos que inflamam” e já tentei, por meses, parar com glúten, depois com açúcar, depois com lactose, depois com carne vermelha. Já tomei tanto sol que pareço um salame de tanta mancha branca no corpo, já trabalhei menos, já comprei vibrador, já entrei em ofurô pelando, já limitei o uso do celular, já borrifei um spray de água benzida pela Igreja de Santa Rita no corpo, já tive um personal chamado Paulão que me fez ficar gostosa pacas, mas era tanta dor que abracei a preguiça e a flacidez. Já passei tanto Dorflex Ice Hot no corpo que sonhei que minha casa estava pegando fogo. Já fui tão viciada em shiatsu que meu marido tinha certeza que era uma desculpa pra ver um amante. Quando alguém fala “ah, porque o pilates” ou “ah, porque a ioga” ou “ah, porque a constelação familiar” ou “ah, porque o reiki”, eu já quero deitar no chão e simular falecimento. Já passei por todos eles.

Por causa dessa dor, desisti de muitas viagens e encontros com amigos e entreguei trabalhos de merda e não terei outro filho de jeito nenhum. Eu quero dizer “estou com dor”, mas quero que essa informação seja nova e me escutem. Minha dor virou um “que saco, lá vem ela”. Ninguém ouve mais. E eu estou aqui, encoberta pela cadência da inflamação. Estou engasgada como se jamais tivesse falado sobre essa dor. E cansei de ser a culpada por ela. “Ah, mas olha como você senta!” “Olha como você anda!” Que jeito é esse de andar e de sentar que não usa pernas e bunda?

Me aconselham a parar de pensar muito, de escrever excessivamente, de querer tanto. O que me faz pensar que uma vida sem dor doeria ainda mais.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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