domingo, 31 de janeiro de 2016

Um esforço tão grande para nada

O consumo de cultura em Cuba sempre foi um fenômeno polêmico e complexo. As eternas dificuldades econômicas da estrutura socialista da ilha raramente possibilitaram que se gastassem os recursos necessários para levar ao cidadão as criações artísticas mais recentes e reconhecidas consumidas no resto do mundo (pelo menos no resto do mundo com possibilidades de fazê-lo).
Mesmo assim, graças a programas culturais e educativos, o espectador cubano teve oportunidade de consumir cultura de alta qualidade oferecida pelas instituições oficiais. Nos últimos tempos, por vias alternativas, também circularam as mais recentes séries da Netflix ou HBO, os últimos filmes de Alejandro González Iñárritu e Woody Allen, e o PDF pirata de algum livro recém-chegado ao mercado.
É algo diferente –ao longo de quase seis décadas, as instituições políticas cubanas decidiram o que o cidadão deve consumir culturalmente.
Assim, desde as proibições ou barreiras ao rock e beat nos anos 1960 até a decisão de não publicar autores cubanos que vivem no exílio, sempre existiu um mecanismo institucional que pensa na melhor educação ideológica, cultural e artística do cidadão, desestimulando ou censurando o que alguém com poder decide ser prejudicial ou impróprio.
Dessa última lista constam desde livros a filmes, de partidas de beisebol profissional a shows de TV de produção local. É o que parece ter acontecido com alguns episódios do programa "Vivir del Cuento", comédia de costumes que tem a maior audiência da televisão nacional cubana (estatal, evidentemente).
Seria possível supor que um sistema tão esmerado de controle educativo e ideológico, praticado por instituições políticas e culturais oficiais, garantiria a criação entre os cubanos de uma alta capacidade de discernimento no consumo cultural, levando-os a dar preferência a produtos de alto nível estético, conceitual, ético e humanista.
Mas os meios de comunicação nem sempre alcançam essas metas previstas, nem sequer nas condições acima descritas. Hoje, em Cuba, por exemplo, a música mais ouvida pelo povo é o chamado reggaeton ou alguma de suas variantes, uma música elementar e cansativa, com letras geralmente de enorme pobreza lírica e, às vezes, obscenas.
E não apenas o reggaeton é consumido, como se adotou o hábito de as pessoas o tocarem em suas casas em volumes altíssimos, para o incômodo de quem preferiria outra música ou o silêncio. E isso é feito com total impunidade, como se fosse sinal de identidade e até de poder.
Algo semelhante ocorre com os programas de televisão. Muitas das pessoas que conseguem acessar programas estrangeiros privilegiam os piores programas da televisão "trash" gerados por alguns dos canais hispânicos do sul da Flórida, como o célebre "Caso Cerrado", em que algumas pessoas levam a público suas misérias éticas, pessoais e familiares diante de uma espécie de juíza.
Mas uma das maiores aberrações foi a recente promoção do "livro do ano" em Cuba. Entre os títulos preferidos pelos cubanos em 2015, o mais destacado e divulgado foi um livro de receitas culinárias! Para escancarar ainda mais a pobreza cultural desse fato, um programa jornalístico da TV oficial cubana difundiu o acontecimento e, segundo pude ler, dedicou vários minutos a uma entrevista com o "escritor" vitorioso.
O que acontece nas entranhas e na inteligência de uma sociedade quando seus cidadãos escolhem como um de seus livros do ano um livro de receitas? E quando sua televisão oficial dá mais destaque a esse fato que a grande parte da produção literária do país? Simplesmente ocorreu um processo de degradação da capacidade intelectual dessa sociedade. Ou então se está manipulando a trama cultural para que um texto sem conflitos alcance essa distinção e seja, além disso, exaltado pela altamente politizada imprensa oficial do país.
Para quem se dedica ao trabalho literário em Cuba, não é apenas ofensivo que tais manifestações se produzam à nossa volta. Os leitores cubanos não puderam encontrar em seu país um único livro ao qual dar sua preferência?
Para onde se encaminha uma sociedade na qual, com certeza, a comida nunca foi suficiente para satisfazer as necessidades da população, e, ao mesmo tempo, um livro de receitas culinárias é o paradigma da leitura que mais e melhor se difunde, consome e promove? Quais são as escolhas possíveis para os leitores cubanos quando sua principal instituição editorial, o Instituto Cubano do Livro, se propõe a editar 624 títulos no ano e só consegue imprimir 231?
Depois de tanto controlar e decidir o que devíamos consumir culturalmente, será que vamos acabar assistindo a televisão "trash", ouvindo baixarias de reggaeton em alto volume e lendo livros de receitas de cozinha em lugar de literatura? Depois de tanto esforço e controle, estaríamos vivendo uma alarmante regressão à banalidade e ao mau gosto?


Texto de Leonardo Padura, na Folha de São Paulo

A estranha sensação de resgatar um cão à beira da morte


Não era  meu amigo. Mas certamente foi o grande amigo de alguém. Durante o dia  em que tive de esperar para fazer algo por ele, algumas teorias sobre seu passado chegaram a frequentar minha cabeça. Teria sido o cão de um mendigo viajante, amigo de um desses párias cujo domicílio fixo é a garrafa de cachaça? Teria o amigo morrido e deixado-o para trás?
Seria velho? Quão velho? Não conheço sobre cães o quanto gostaria mas ouvi dizer que quando os de pelo preto e curto ficam salpicados de branco na cabeça e nas patas, é sinal de que estas últimas já cavaram muito e pedem descanso. Velhos sem dúvida eram seus olhos. Fiz questão de ter certeza se ele ainda enxergava quando nos vimos pela primeira vez. Nem precisava tê-lo feito seguir minha mão com o olhar. Dentro do preto das pupilas havia atenção, havia o suave alerta do bicho de que olha outro bicho nos olhos.
Não preciso nem vou me estender na descrição do estado físico de seu corpo. É triste o suficiente saber que moscas e formigas já haviam começado seu trabalho no grande esquema das coisas que chamamos cadeia alimentar. Basta também saber que o dei por morto quando lhe vi primeira vez em frente à árvore sob a qual se deitara na manhã sufocante do domingo de verão. Quando olhei para trás, metros adiante, quase caí da bicicleta ao perceber que sua cabeça havia se mexido. Ele a ergueu como se um fio invisível puxasse apenas um de um lado. Um instante depois, o fio imaginário estourou e a cabeça caiu de volta ao estado inicial entre as patas dianteiras estendidas no chão.
Alguns minutos depois, ainda pedalando para longe dele, estava decidido a fazer algo. Voltei e… cadê cachorro?  Não sei se inspirado por nossa troca de olhares — mas fato é que havia se escondido entre o mato mais alto atrás da árvore. Fui até lá: vivo, sem dúvida. A cabeca grande e retangular assumiu a posição mais altiva que a saúde do dono permitia e acabou produzindo um latido abafado. Quase cômico, o latido.
Não seria digno rir na hora mas, lembrando depois, sorrio com essa qualquer coisa de engraçado no bicho danado que mesmo na pior não cede e late até para a mão que alimenta. Esta comunicação verbal permitiu que eu avaliasse sua dentição: perfeita, com caninos avantajados que brilharam no sol. Seguiu-se uma pausa para respirar e, juro, um menear de ombros antes de voltar a deitar a cabeça. Uma esnonada.
Uma hora depois eu voltava com água e ração. Comeu, levantou-se para comer e pude ver que uma pata estava retraída e não tocava o chão, herança de um atropelamento. Tentei ajeitar o pote de ração e recebi um aviso na forma de um rosnar que se intensificava à medida que a mão se aproximava e terminava num latido corajoso. Coloquei água e bebeu um litro. Como, pensei, os barraqueiros que vendem banana e abacaxi a cinqüenta metros daqui não tiveram esta ideia antes? Um boiadeiro negro se aproximou de mim e disse que não sabia que o cachorro ainda comia. Disse que levaria leite para ele no outro dia.
Voltei mais tarde no mesmo domingo mais duas vezes para levar mais ração e água. Em casa, tentava contato com algum veterinário na cidade pequena de praia. Nada. Pela internet, no entanto, recebi de um grupo de mulheres que salvam cães na região com o próprio dinheiro e sem qualquer ajuda oficial a esperança de que ele seria consultado.
A história já está me saindo muito longa, então vamos lá: dormi pouco de domingo para segunda. Não tinha carro ou ajuda para tirá-lo de lá e esperar era a única escolha. Dia seguinte, o tenaz grupo de salvadoras conseguiu veterinária para a tarde. Esperei na chuva algumas horas e acabou que uma cesárea de emergência tomou o lugar do cão. Sem saber o que fazer, decidi que o cachorro não ficaria ao relento: peguei um carro de carroceria emprestado com um conhecido de um conhecido ao fim de seu expediente, comprei focinheira e lá fui sem um plano decente. Rodando o bicho, ainda tentando imaginar por onde pegar o corpo frágil (e com medo dos caninos), eis que ocorre um pequeno milagre para animar um pouco a história: estacionou atrás de mim um carro e dele saiu uma mulher falando meu nome.
Eu havia compartilhado o endereço do cão com as mulheres e uma delas apareceu com uma caixa de papelão e disposta a colocar o cachorro em seu próprio carro de passeio. Sem piscar, ela entrou no mato (de salto, acabara de sair do trabalho no escritório) e quando reparei já passava a mão na cabeça do cão que nem fez menção de latir. Distraiu-o enquanto meti nele a focinheira e comigo colocamos o velhinho na caixa. Minutos depois o cão estava na garagem de minha casa.
Nao é exagero dizer que fiquei feliz como há muito não acontecia; a noite avançava, o socorro ficava mais próximo e o cão parecia sorrir para mim. Sentado a seu lado, vigiando sua respiração, imaginava de novo as aventuras que ele havia vivido. Quantos filhos, netos e bisnetos nao teria pelo mundo? Quantas rodas de carro não teriam passado maus bocados com sua presença, seja com os jatos que demarcam território ou com os latidos das perseguições desembestadas?
Quantas pessoas chatas não teria mordido? Será que conheceu muitos lugares? Gostava do mar? Podia muito bem ter sido o cão de um pescador, coisa comum na cidade. De repente, a imagem de seu perfil elegante (era bonito e esguio de pé, mesmo naquela condição deletéria) na proa de um barco de pesca passou por minha mente e aqueceu meu coração. Disse para mim mesmo que o chamaria de Lázaro, como na Bíblia, se melhorasse. Mas não ainda. Ter esperança pode ser algo perigoso.
No dia seguinte, oito horas da manhã, seria consultado numa clínica das mais bem equipadas do lugar. Sonhei com ele. Era um sonho em que eu fazia ajustes em minha vida para tomar conta do animal doente. Vocês sabem como são essas coisas de sonho; o cachorro andava de cadeira de rodas num certo momento, depois corria num morro de grama verde, chegava a dizer algo, enfim, mas o importante é que era de minha responsabilidade. Nunca foi este o plano no mundo dos acordados (pensei em fazer campanha para achar outro lar para ele) mas eu já fazia carinho em sua cabeça e suas costas sem medo, então…
Seis da manhã, minha mãe diz que ele havia saído do canto em que o deixei. Está se mexendo, que ótimo, pensei. Sim, ele não respirava quando cheguei mais perto para ver. Estava morto e ainda um pouco quente. Algum tempo depois, eu mesmo o enterrei na terra preta de um descampado nos limites da cidade.
Não contei mais cedo o que disse a mulher que me ajudou a reagatá-lo. Ele está morrendo, ela disse, sem desesperança nem tristeza na voz, como se fosse uma informação óbvia. A verdade é que ele morreria sozinho no mato com ou sem os cuidados que dei durante um dia e meio.
Mas se eu não tivesse feito o que fiz, jamais recuperaria o direito de passar em frente àquela árvore sem sentir no coração a dor de ter abandonado um amigo para morrer. Mesmo que amigo por apenas um dia.

Reprodução de texto de Marcelo Zorzanelli, no Diário do Centro do Mundo

A festa


Eu tinha uns nove anos. O irmão da minha amiga, que comemorava aniversário de dez, tinha uns 11. Todos os outros garotos eram barulhentos, frenéticos e tinham cheiro de sola de tênis. Ele era sério, um pouco bravo e já tinha pelos nas coxas. Ele não me notava. Tentei beliscar, gritar, sujar meus dentes com brigadeiro pra fazer a piada "tô banguela", mas ele não me olhava. Nunca tive paciência pra nada, então parei na frente dele, no meio da festa, na frente de todos e levantei meu vestido. Mostrei minha calcinha pra ele. A mãe deles me pegou pelo braço e disse que assim não se faz. Não pode. Eu disse que podia sim, era só uma brincadeira, eu era criança. Até hoje dou essa desculpa. Por isso mesmo, a mãe disse. Justamente porque você é criança. Então quando eu tiver a sua idade vou poder levantar uma saia no meio de uma festa e mostrar minha calcinha, talvez eu tenha respondido.
E levantei a saia pra ele, de novo. Ele fugiu. Eu corri atrás dele com a saia levantada. Ele chamou pelo pai. Os amigos riram dele. Os homens adultos riram, alguns saíram de perto. Um dos homens adultos falou que assim não se faz, você é menina. Eu odiei ser menina, odiei ter nove anos, odiei que aquele garoto besta tivesse 11 anos. Odiei que homens adultos saíram da sala. Eu segurei o rosto do menino, a essa altura todo melecado de muco nasal e lágrimas, e pressionei meu lábio contra o dele. Pronto, dane-se, tava resolvido. Nem era meu primeiro beijo. Eu já tinha agarrado à força outros garotos na escola e já tinham chamado minha mãe e minha mãe me perguntou por que eu fazia isso se eram meninos feios. Foi alguma técnica que até hoje não entendi. O pai dele apareceu e perguntou, querendo rir, se eu tinha bebido. Eu ri, mas estava muito triste. Talvez agora a urgência parasse, mas ela havia se transformado em um cinema inteiro vazio com uma tela em manutenção. Que foi isso tudo que eu fiz e por quê? A mãe resolveu ligar pra minha mãe. As pessoas olhavam com raiva. Era pra ser a noite da minha amiga e não da maluca que correu atrás de um garoto com as saias levantadas. Se eu fosse um garoto, eu apanhava, mas eu sendo uma menina, o que fariam? Ficava um desejo de tabefe no ar, eu sei porque estavam todos de braços cruzados, tensos em esconder as mãos. Minha amiga pedia: "Ela tem que ir embora". Alguém comentou: "É filha de pais separados". A mãe chamou pro parabéns, naquele clima de "então vamos ao que interessa e esquecer isso". Ele correu pra comer bolo, como se nada tivesse acontecido. Homens são sempre iguais. De repente é como se nada tivesse acontecido com eles. Todo mundo esqueceu ou fez força pra esquecer. Batiam palmas, queriam roubar docinhos, mais uma festa de aniversário como todas as outras. Eu odiava a coisa igual, as pessoas sempre iguais, mas porque ainda estava em idade de teatralizar extrema ansiedade por açúcar, resolvi correr para a mesa com as pessoas, como se me importasse com elas ou com seus doces. No meio do caminho vi um corredor, um quarto escuro, e pensei que seria mesmo muito estranho ficar deitada no chão daquele quarto, no breu completo, enquanto todos cantavam na sala. E fiz isso para me punir. Começou com uma alergia do carpete, um chorinho baixo e de repente afluiu um tsunami aquoso de dentro da minha cabeça. Eu berrava "mãe" com a mesma violência surda com que os outros batiam palmas. E aquele medo, aquele exato medo, é uma coisa que nunca mais parei de sentir. 


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Viaje com sua mãe


Sentadas à beira do Canal de Veneza, cada uma com sua Birra Moretti, ficamos ali, descansando as pernas das longas caminhadas, admirando as gôndolas –e os gondoleiros, vendo o sol do verão italiano brilhar naquelas águas romanticamente poluídas.
- Mãe, você não disse que estava sem grana para viajar?
- Estava. Vendi meu carro.
Enquanto eu quase engasgava com a cerveja, ela me explicou, sem tirar os olhos das gôndolas e dos gondoleiros. "Vendi o Vectra, comprei um Gol e, com a diferença, vim."
Eu fazia um mochilão na Europa, que duraria no total seis meses e numa dessas conversas, minha mãe, que nunca havia estado na Europa, falou da vontade de me encontrar, mas estava sem grana para uma viagem dessas.
Uma semana depois da conversa, ela disse que iria e ficaria comigo durante três semanas. "Venha, mas será do meu jeito." Nem me lembrei da questão "dinheiro".
"Meu jeito" significava uma viagem bem econômica. Dei um tempo aos albergues, que cederam lugar a hotéis simples. Um deles, coitada, nem banheiro no quarto tinha. Não foi uma economia muito inteligente, mas temos histórias para contar.
Desde que acordávamos até a hora de dormir, era eu quem decidia os caminhos, os passeios, os melhores horários, se era seguro, se valia a pena, quanto tempo ficar. Quase toda a comunicação era feita por mim, porque o inglês dela acabava no "nice to meet you'.
Preciso dizer o quanto é cansativo uma pessoa depender de você o tempo todo? Preciso dizer que perdi a paciência algumas vezes e deu briga? Preciso dizer que me senti uma idiota quando percebi que estava cansada e sem paciência para cuidar da minha mãe?
Talvez, nessa viagem, eu tenha entendido pela primeira vez o quanto ela deve ter se sentido exausta por trabalhar e cuidar de três filhos, o quanto ela precisou de paciência quando talvez não tivesse nenhuma. Eu nem era mais uma adolescente, mas agia como uma, sendo horrível com a pessoa que deu duro pra me criar à base de leite Ninho, escola particular, aulas de balé, de violão e férias na praia.
Ela também me fez usar botinhas ortopédicas e aparelho nos dentes e eu a odiei por isso, mas hoje agradeço. A gente leva tempo para entender que mães quase sempre têm razão. A minha ainda tem crédito porque nunca foi adepta do "eu avisei".
Estava sendo horrível com a pessoa que teve coragem de vender um carro para estar comigo. O que diz muito sobre ela, mas sobretudo me dava respostas sobre eu mesma e a pessoa que eu me tornava.
Foi nessa viagem que descobri muitas coisas sobre minha mãe e que a enxerguei menos como minha progenitora e mais como mulher, como uma grande amiga e uma ótima companheira de viagem. Adorei ser mochileira, foi uma experiência maravilhosa, me disse ainda ontem.
Lembra do garçom em Roma, que nos mandava aperitivos e sobremesas de graça apenas porque acertei que o rei de Roma era Falcão? Lembro, mami. E quando fiquei sentada em um café em Veneza, com nossas malas, enquanto você procurava uma hotel? Um dos cafés mais caros da vida. Não esqueço do anão nórdico de cuecas no corredor do hotel. E as belgas de topless na praia, que maravilha? Você deveria ter feito também. E você chorando de soluçar quando demos de cara com as ruínas do Fórum Romano? E quando aquele italiano lhe tirou pra dançar na Piazza San Marco? Achei que seu pai me mataria, ainda bem que você me obrigou.
Ainda bem, mãe. Ainda bem que você vendeu seu carro. Ainda bem que você foi. Ainda bem que pude cuidar de você. Ainda bem que vivemos todos aqueles momentos. Ainda bem, mãe.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Deserto


Ando com uma sensação de déjà-vu preocupante. O colapso recente parece a reedição torta de algo que já vivi.
À bonança financeira da era Lula, seguiu-se à crise institucional, agravada pela queda do valor do petróleo. A reviravolta tem potencial tão desastroso quanto a subida vertiginosa do barril, que deu cabo do milagre econômico nos anos 1970: a inflação atingiu dois dígitos, brasileiros optam pelo aeroporto, a polícia baixa o cacete nas ruas de São Paulo e até a palavra golpe foi ressuscitada.
Voltei a experimentar um isolamento que há muito não sentia. Como se o Brasil estivesse condenado, por um imperativo geográfico que impregna a política, a educação, as artes e a economia, a viver à margem das demais sociedades.
Eu tinha nove anos quando viajei pela primeira vez para o dito primeiro mundo. O português, língua universal da zona sul carioca, descobri ali, era ignorado no restante do planeta.
Meus pais estavam na casa dos 40 e nunca haviam pisado no Hemisfério Norte. Graças ao prêmio Molière de teatro, que dava direito a duas passagens de econômica para cada um, o casal planejou o giro.
Para sanar a lacuna de uma vida inteira, cumprimos uma maratona exaustiva. Em 45 dias, visitamos Paris, Londres, Siena, Pádua, Verona, Assis, Florença, Veneza, Roma, o Vaticano, Pompeia, a Costa Amalfitana, Nápoles, Sardenha, Lisboa, Nova York, o Cabo Canaveral e a Disney.
Apesar do desespero, a viagem me deu uma ideia da enormidade do mundo e da ilha em que eu vivia.
Nossa condição era reflexo da distância eterna e do fechamento do país continental, governado por um nacionalismo de caserna, que exigia depósitos compulsórios para cruzar a fronteira e coibia o livre trânsito de mercadorias, dinheiro e ideias.
Meu desconforto no além-mar custou 20 anos para ser vencido. Os mesmos 20 que o país levou para se abrir e se democratizar.
Passaram-se décadas até que a anistia fizesse efeito e os intelectuais do exílio voltassem à ativa, até que os sindicatos produzissem um líder carismático, a China abrisse uma nova linha de comércio, a moeda se tornasse confiável e usufruíssemos de um sentimento de futuro.
Economistas arriscam uma estimativa de dois a três anos para sairmos do atual buraco. Meu pessimismo pressente a chegada de um ciclo que costuma levar de 15 a 20 para se completar. A ditadura persistiu de 1964 a 1979; a penúria, de 1979 a 1995; e a estabilidade, de 1995 a 2010.
Já atravessamos cinco natais com Dilma, faltam no mínimo dez para a próxima guinada.
Deus fez os hebreus vagarem durante quatro décadas pelo deserto, à espera de que os que nasceram no Egito passassem dessa para a melhor, livrando Canaã das antigas influências.
Salmo 95, versículo 10: "Quarenta anos estive desgostado com esta geração e disse: é um povo que erra de coração e não tem conhecimento dos meus caminhos".
Eu morro aqui, sem Terra Prometida, ao lado de Moisés, Aarão, Lula, FHC, Dilma, Sarney, Cunha, Temer, Renan e Collor, enquanto olho para os meus filhos e pergunto:
"Quem será o Josué que atravessará o rio Jordão com eles, carregando o andor com as tábuas?"
A chance é grande de ser um discípulo de "Os Dez Mandamentos", da TV Record.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

A pequena África da 24 de Maio

A região central de São Paulo é um novelo de atalhos para universos paralelos, muitos invisíveis para o cidadão apressado. O Centro Comercial Presidente é um deles. Trata-se de uma das galerias modernistas que pautaram o boom imobiliário do centro velho entre os anos 50 e 60, quando essa parte da cidade era signo de progresso e grana. Esses centros comerciais espalharam-se entre a Barão de Itapetininga, a 7 de Abril e a 24 de Maio –onde fica o Presidente, mais conhecido como Galeria do Reggae, um enclave da cultura black no centrão desde o final dos anos 70.
A rampa do vão circular abre caminho para uma nave com escadas rolantes dos lados até o quarto andar e, no subsolo e primeiros andares, lojas de discos, acessórios canábicos, tatuadores e, principalmente, dezenas de cabeleireiros especializados em cortes afro e implantes capilares. As variações parecem infinitas: alongamentos, tranças, tinturas, escova, hidratação, progressiva, entrelaçamento, trança jamaicana, mega hair, alisamento, permanente afro, rasteira, dreadlock, dread de agulha com cabelo natural, dread de lã enraizada, coloração de cílios, sobrancelha de henna, desenho - e cortes em geral.
Pelos corredores, as vitrines exibem rabos de cavalos suspensos como troféus. Mechas de todas as cores, texturas e comprimentos. Por trás delas, vendedoras com ar nublado, arredias e curiosas com o meu olhar. É que não consigo deixar de pensar nas donas dos cabelos. (Depois descubro que madeixas virgens, nunca pintadas, são mais caras, que as lojas compram cabelos cortados na hora, que cabelos louros naturais custam fortunas e que o comércio de cabelos humanos movimentou US$ 2,9 bilhões no mundo em 2014 segundo a ONU.)
A partir do terceiro piso, o ar fica mais rarefeito, as escadas rolantes deixam de funcionar e o comércio muda de perfil: ateliês de costura, restaurantes improvisados, bares de uísque barato e escritórios sem vitrine, cujas finalidades não explanarei. Os corredores ficam completamente tomados por africanos, sempre elegantes, muitos vestindo camisa de botão e sapatos bem engraxados. Já no quarto andar, sou o único branco e talvez o único brasileiro –a maioria esmagadora é de nigerianos, mas há também senegaleses, haitianos e congoleses, segundo o vigia que me pede para não tirar fotos.
Percebo que há algo de pátio de prisão aqui: sou um intruso na sala de estar que a cidade tem a oferecer a esses imigrantes e refugiados. Sair da galeria, quatro andares abaixo, não será apenas atravessar a rua. É um pouco mais longe que isso. 


Texto de J. P. Cuenca, na Folha de São Paulo

Morre o cineasta francês Jacques Rivette

Morre o cineasta francês Jacques Rivette

Ele tinha 87 anos e foi um dos principais nomes do movimento "Nouvelle Vague"

O diretor Jacques Rivette, uma das principais figuras do movimento de cinema francês "Nouvelle Vague", morreu nesta sexta-feira, em Paris, aos 87 anos. A informação foi divulgada por sua sua biógrafa, Hélène Frappat.

Rivette deu seus primeiros passos no mundo do cinema como crítico, assim como os futuros pilares da "Nouvelle Vague" francesa, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, antes de dirigir quase 20 filmes. Entre suas obras figuram "Paris não nos pertence", "O louco amor de Ives Saint Laurent" e "A bela intrigante".

Rerpodução do Correio do Povo

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A PM de São Paulo não faz nada quando o protesto é contra Dilma

Sessenta pessoas interromperam a Marginal Pinheiros das 8:00 às 14:20.
O impacto no trânsito atingiu as avenidas Bandeirantes, Morumbi, João Dias, Giovanni Gronchi, Rebouças e Eusébio Matoso. Só na Marginal Tietê o reflexo causou um congestionamento que chegou a 10,5 km.
O tema? ‘Fora Dilma’ e ‘Intervenção Militar Constitucional’.
Isso ocorreu ontem (dia 27) e nenhum estardalhaço em torno do assunto, nenhum apresentador de telejornal tendo chilique pelo reflexo no trânsito, nenhuma briga no bar a respeito de terem ou não comunicado previamente a manifestação, nem discursos inflamados de secretários e sub-secretários das mais diversas pastas.
De acordo com a PM, o protesto foi pacífico e ninguém foi detido. Por que será?
Revisando: 60 pessoas, Marginal Pinheiros, das 8:00 às 14:20!!
Já imaginou o que aconteceria se o Movimento Passe Livre fechasse alguma das marginais durante mais seis horas?
Por que os manifestantes de ontem podem interromper uma das principais artérias da cidade sem o menor risco de receberem violenta repressão enquanto outros não têm esse direito?
Os estudantes secundaristas que no ano passado ocuparam as escolas promoviam atos em cruzamentos de avenidas da capital. Em menos de 15 minutos eram dispersados (eufemismo para atacados) sob bombas e até soco na cara.
A PM não tem um padrão então? Atua conforme a simpatia pelo protesto?
“Mas não tinha vândalos, não tinha mascarados, não tinha black bloc. Foi pacífico.” Pediam intervenção militar e eram pacíficos?
A intensificação dos debates de cunho político favorecida pelas redes sociais tem se dado no campo exclusivo do conteúdo da manifestação e sua subsequente avaliação. ‘É justa’, ‘não é’, ‘tem pauta legítima’, ‘não representa ninguém’.
Julgam o conteúdo e cerram os olhos para o aparato que se constrói ao redor. Quando não se concorda com a reivindicação fecha-se os olhos para a repressão. Sejam comentaristas de esquerda ou de direita. Péssimo sintoma.
As autoridades policiais tiram partido disso e atuam de maneira semelhante. Agem com o índice de audiência na mão e não com o manual de procedimentos. Cercam, espremem e aniquilam determinados protestos e cruzam os braços em outros. Isso não é um ambiente democrático e muito menos estável.
O direito a livre manifestação está previsto na Constituição Federal, concorde-se com a pauta ou não. Então ato coxa pode? Claro que pode, todo mundo pode protestar pelo que quiser. Mas todo mundo é todo mundo, ok? Não é para atacar e criminalizar uns e dar tapinha no ombro de outros.
Da maneira como a manifestação de ontem foi conduzida (e tantas outras anteriores) não é nenhum equívoco deduzir que protestar contra o governo federal está liberado.

Texto de Mauro Donato, no Diário do Centro do Mundo

A Lava Jato insiste no protagonismo político

Com o final das férias e do recesso, o governo Dilma Rousseff tem possibilidade de assumir algum protagonismo político visando superar a crise política e a econômica.
Antes terá que enfrentar a nova manobra da Lava Jato.
É um jogo de xadrez que tem de um lado um bando de amadores incrustrado no Planalto. De outro, um grupo coeso de procuradores da República e delegados da Polícia Federal, em torno da Lava Jato, atuando estrategicamente para tumultuar o ambiente político.
Não se sabe até quando irá esse jogo.
Ao primeiro sinal de qualquer iniciativa política para romper com o marasmo, explode a enésima operação da Lava Jato criando fumaça inconsequente. Agora, trazendo de volta o tal tríplex de Lula em Guarujá.
***
Não se trata apenas da operação, mas do amontoado de vazamentos, da ampliação desmedida da operação sem que os inquéritos cheguem ao fim, do rumor espalhado de mais de uma centena de parlamentares envolvidos – e não se conseguir sequer tirar do cargo o mais notório dos suspeitos, Eduardo Cunha.
O cadáver da Lava Jato continuará insepulto por muito tempo, porque de sua prorrogação depende a manutenção da visibilidade e do poder político de seus integrantes.
***
Dia desses, os dois procuradores mais notórios, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando Lima, tentaram minimizar as ações.
Um dos procedimentos políticos consiste em incluir perguntas para os delatores sem nenhuma base factual, aparentemente sem extrair nenhuma informação relevante, meramente para alimentar as manchetes de jornais.
A explicação de Dallagnol foi a de que, no processo, só valerão as acusações consubstanciadas em provas. Fala como se a menção a figuras políticas, mesmo sem nenhuma prova, fosse uma ação neutra e não um álibi para manchetes de impacto, reportagens repletas de insinuações.
Evidente que não é. Se tem implicações políticas, significa que a Lava Jato prática proselitismo político. Ou não? Procuradores e delegados da Lava Jato recorrem a esse estratagema – de incluir nomes de adversários políticos nos interrogatórios - com objetivos nitidamente políticos.
***
A segunda acusação é quanto aos vazamentos de depoimentos sigilosos. O procurador Lima sustenta que o Ministério Público não veste essa carapuça.
Ora, a estratégia prévia da Lava Jato consistiu em vazamentos indiscriminados, conforme o diagnóstico de Sergio Moro sobre o sucesso da Operação Mãos Limpas. O poder consiste em controlar a pauta e gerar manchetes diárias. Quem vestiria, então? A Polícia Federal? O juiz Sérgio Moro?
Se não são os autores diretos, no mínimo são cúmplices desse jogo político. É óbvio.
***
Não se sabe até onde irá esse jogo de poder, que paralisa qualquer tentativa de superar o impasse político.
Mas é evidente, que esses exageros deixarão uma conta alta a ser paga futuramente pelo Ministério Público Federal, assim que o vácuo político for superado e as instituições voltarem a funcionar normalmente.
Será ruim não apenas para o MPF, mas para o país.
***
De qualquer modo, fevereiro será um mês chave. Politicamente, o governo começa a mostrar algum rumo, a tese do impeachment se esvazia. Superada a última manobra da Lava Jato, é possível que a partir de março o país comece a respirar um pouco.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

Por que os atos do MPL estão esvaziando

Em todo o mundo o metrô é palco para inúmeros artistas. Aqui temos um diferencial: os próprios agentes de segurança do metrô é que precisam de platéia. Há conjuntos musicais formados só por seguranças que se apresentam nas estações, há subcelebridades envaidecidas por suposta beleza e, suprassumo tropical, temos profetas.
Ao término de mais um protesto contra o aumento da tarifa, a estação Anhangabaú estava com os portões fechados. Motivo? Nossos videntes previram um catracaço.
A manifestação de ontem foi a menor até agora, comprovando que a estratégia da polícia de impor medo e ferir pessoas funciona. Transcorreu sem nenhum tipo de problema do início ao fim. E note-se que até adolescentes haviam mostrado maturidade em não reagir às provocativas ‘paradinhas’ do cordão de policiais que atualmente tem ido à frente e ditado o ritmo.
Sim, além dos cordões laterais e de todo aparato motorizado que vai atrás, agora uma linha de PMs vai numa espécie de abre alas às avessas. Caminham de costas, ficando cara a cara com os manifestantes e promovendo pausas que deixam todos espremidos e próximos o suficiente para que um simples encontrão nos escudos sirva de ignição para a garoa de sprays de pimenta e bombas de vários tipos.
Ainda assim com o ato concluído em frente à Câmara Municipal, relativamente longe dali, o metrô deu-se ao luxo de cerrar os portões. Ao menos uma mulher grávida e centenas de pessoas que voltavam do trabalho estavam impedidos de entrar na estação Anhagabaú pois alguns manifestantes poderiam pular as catracas. É obvio que um princípio de tumulto teve início e a Tropa de Choque foi acionada.
Curioso como o entendimento do direito de ir e vir é flutuante. Os últimos dias foram permeados pela discussão a respeito da necessidade de se informar o trajeto a ser realizado pois “a não comunicação prejudica o direito de ir e vir dos moradores da cidade”. E aí o metrô fecha as portas. Dá para entender?
Das seis manifestações convocadas pelo MPL este ano, nas últimas três o metrô agiu dessa forma e em duas delas foram as únicas situações de confusão do dia.
Seria patética se não fosse maldosa essa atitude das autoridades de bloquearem uma rua para evitar que os manifestantes fechem-na, de fechar portões de estações de metrô ou ainda bloquear um terminal de ônibus (no penúltimo ato o terminal Dom Pedro foi evacuado, fechado e tomado pela polícia em virtude da concentração dos manifestantes do lado de fora, na praça em frente. Em nenhum momento foi pedido para fechar nada, essa ação é deliberada e gratuita).
É evidente que se trata de uma estratégia para jogar a população contra a manifestação. Assim também tem feito o metrô que é responsabilidade do governo estadual. Fecha as portas e prejudica a maioria para ‘proteger o patrimônio’ de meia dúzias de catracas pelo medo que meia dúzia de pessoas passem sem pagar. Uma grávida pode ficar do lado de fora e sujeita ao ataque da Tropa de Choque, mas as catracas estarão preservadas.
E se o leitor acredita que isso não é seletivo, saiba que para uma determinada categoria de manifestantes as catracas são liberadas para incentivar a adesão e ampliar o número de pessoas na avenida. Se em vez de trajar preto o manifestante estiver de verde e amarelo, o metrô abre as portas e as pernas.

Texto de Mauro Donato, para o Diário do Centro do Mundo

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Solidão em grupo

Em uma época em que tanto se fala de privacidade, causa espanto a epidemia de solidão. Mas nas torres dos apartamentos, nas clausuras das baias, nas estações de trabalho e reunião das corporações de ofício, nas mesas de parede dos restaurantes, nos cantos escuros das festas, parques e seminários, nos banheiros de shopping centers e nas salas de encontro de famílias, jovens, velhos e crianças de todas as idades estão cada vez mais isolados, debruçados em seus retângulos luminosos, com fones de ouvido.
Para uns, a solidão é temporária. Para outros ela veio para ficar. É um paradoxo. Nunca se viveu tanto, nunca tantos foram tão espremidos em centros urbanos e, ao mesmo tempo, nunca se viveu tão só.
Marcada pelo saldo negativo entre o desejo de interação social e as relações efetivadas, a solidão é tão particular quanto intangível. Seus efeitos, no entanto, podem ser devastadores: ansiedade, insegurança, frustração e desamparo desmontam até o mais resistente dos indivíduos.
Animal social em sua história, o ser humano do século 21 está cada vez mais sujeito à besta invisível que, como diz a música do Paulinho da Viola, sorri os seus dentes de chumbo. Não é exagero acreditar que solidão mate mais do que ebola. Seus efeitos não são tão visíveis nem contagiosos, mas o saldo final é mais abrangente. Vários estudos mostram que ela aumenta o risco de câncer, doenças cardiovasculares, demência, alcoolismo, acidentes e suicídio. É um problema grave e generalizado, mas pouco se fala a respeito.
Hoje há menos contato humano, e o pouco que resta é cada vez mais difícil e menos significativo. De uma conversa honesta em que se trocam inseguranças e dúvidas a uma relação afetiva de real sinceridade, as oportunidades rareiam.
Na falta de confidentes pessoais, um batalhão de profissionais é convocado. Psicólogos, terapeutas, psiquiatras, "coaches" e mentores nunca foram tão requisitados. Quando não se tem acesso a eles, ou quando suas orientações não são suficientes, apela-se para a automedicação, na forma de remédios, álcool, pornografia, videogames ou televisão, que raramente dão conta do problema. A ruptura dos laços sociais, que até há pouco não passava de um comentário nostálgico, rapidamente se tornou problema de saúde.
Isso não quer dizer que o contato frequente seja obrigatório. Todo mundo precisa de um tempo livre, só, para espairecer. Longe do barulho das massas nas ruas e redes é possível respirar e pensar na vida. A escola existencialista da filosofia defende que a solidão é a essência da vida humana.
Cada um nasce só, vive alegrias e prazeres por conta própria e morre só. Para eles, as experiências trocadas não passam de metáforas de qualidade discutível e compreensão duvidosa. Aceitar essa condição é parte fundamental da tarefa humana. Sartre, um de seus expoentes, dizia que a solidão era essencial para compreender a discrepância entre a busca por sentido na vida e o grande Nada do Universo.
Valorizado por filósofos, monges e artistas, o isolamento voluntário sempre foi lugar de inspiração. Na tradição de várias religiões, a reclusão é considerada uma provação que leva à sabedoria. Sidarta Gautama se transformou no Buda depois de meditar só, por um bom tempo. Lao Zi escreveu o Tao Te Ching e depois foi peregrinar sozinho.
O Velho Testamento tem várias histórias com eremitas no deserto, tidos como sábios e respeitados por transformar a solidão em percepção do mundo. O que os diferencia dos isolados contemporâneos é que sua opção era voluntária. Ou pelo menos planejada, não apresentada subitamente como fato da vida.
Ao contrário da reflexão voluntária, o isolamento moderno acontece progressivamente, normalmente contra a vontade de suas vítimas, que demoram para reconhecer que estão sós. Até porque isso significa admitir que não são desejados, que são insignificantes, e que podem ser ignorados. É preciso muita coragem –ou desespero– para reconhecer a dor de ser só.
Até porque as mudanças estruturais em uma sociedade cujo maior valor é o marketing, ao estimularem a competição e a exposição contínuas, reforçam e celebram o individualismo. Ele se manifesta na figura do empreendedor, do cientista louco, do artista incompreendido e de uma série de caubóis e lobos solitários, "self made".
Não há preparo para uma sociedade tão cheia de individuais. Nunca houve grupo social como aquele em se vive hoje, que nega o coletivo em nome do individualismo "heroico", em que o que conta é vencer –na guerra, no amor, nos negócios, na vida. Nessa fúria predatória os recursos do mundo são consumidos e a desigualdade aumenta, destruindo a conexão que um dia foi a principal característica humana.
O Facebook, nesse ambiente, é confortável. Ele permite a interação entre pessoas que pensam parecido, ao mesmo tempo que os poupa de eventuais embaraços. Tudo ali é muito simples: basta curtir, compartilhar ou bloquear. Em um ambiente de competição perene, a simplicidade tende a criar uma compulsão em afirmar as realizações próprias e a se comparar com o outro o tempo todo.
Tão invulnerável quanto desonesto, o habitante da rede social é artificial. Suas conexões podem ser amplas, mas são rasas e fúteis. Neste mundo de comunicação instantânea e absoluta, todos são, em certa instância, pequenas farsas.
As redes sociais não são o problema. Elas estão mais para o sintoma. Não são responsáveis pela solidão, mas veículos potencializadores dos desejos de uma vida antissocial, pós-social, bruta, competitiva e longa. É preciso reconhecê-los para que os benefícios da tecnologia não sejam destruídos por seus caprichos.


Texto de Luli Radfahrer, na Folha de São Paulo

Evento gratuito reúne sobreviventes do Holocausto em Porto Alegre

Evento gratuito reúne sobreviventes do Holocausto em Porto Alegre

Quatro vítimas da Shoah falarão sobre o assunto na quarta-feira, a partir das 18h30min

O dia 27 de janeiro é reconhecido internacionalmente como o “Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto”. Para marcar a data, sobreviventes da última geração que viveu as atrocidades da Shoah estarão reunidos em Porto Alegre relatando suas histórias. O evento gratuito é aberto ao público e acontece nesta quarta-feira, às 19h, no Museu da Ufrgs (Osvaldo Aranha, 277).

Estarão presentes no encontro quatro sobreviventes da Segunda Guerra Mundial: Bernard Kats, Curtis Henry Stanton, Max Wachsmann Schanzer e Johannes Melis. Eles apresentarão relatos do período e contarão como sobreviveram à limpeza étnica almejado por Adolph Hiltler. 

Conheça os convidados:
Bernard Kats: judeu, holandês, tem 79 anos e tinha três quando a Holanda foi invadida. Após a morte de seu pai, ele e sua irmã foram entregues numa organização da comunidade protestante reformista criada para proteger os perseguidos. Trocaram seus nomes, sua filiação e, assim, conseguiram se salvar. 

Curtis Henry Stanton: judeu, alemão, tem 86 anos. Aos 12, quando começou a 2ª Guerra Mundial, era ofendido pelos colegas na escola por usar a estrela de David. Sua família e ele foram para o gueto de Lodz, na Polônia. Seus pais morreram em campos de concentração. 

Max Wachsmann Schanzer: judeu, polonês, tem 87 anos. Em 1943, durante uma seleção no campo, seus pais e a irmã de cinco anos foram levados para o campo de extermínio de Auschwitz, onde morreram nas câmaras de gás. Ele e mais três irmãos foram levados para campos de concentração de trabalhos forçados, sendo libertados pelos russos dois anos mais tarde.

Johannes Melis:
 católico, holandês, 77 anos. Seu pai era membro da resistência holandesa, treinado para desarmar equipamentos e foi escafandrista. Salvou famílias de judeus, escondendo-os em sua casa. Corajosamente, também, salvou pilotos ingleses, canadenses e americanos. Sua família veio para o Brasil em 1951, e Johannes naturalizou-se brasileiro.

Reprodução do Correio do Povo.

A verdade está lá fora

A aterrissagem difícil da economia chinesa deveria ser suficiente para que parássemos de discutir a crise internacional apenas em termos do quanto ela absolve Dilma Rousseff.
Se não for suficiente, mesmo isso terá um lado bom: muita gente que poderia estar dizendo besteira sobre a crise está ocupada discutindo impeachment no Facebook. Abre-se assim espaço para uma conversa séria que deveria ter começado em 2008.
O debate público brasileiro ignorou solenemente a crise que começou em 2008. Nesse meio tempo discutimos Black Blocs, Cubocards, Distritão, o Foro de São Paulo, auditoria da dívida, 10% do orçamento vinculados a todos os temas possíveis, e teve mesmo um sujeito na "Veja" que fez um soneto para o Olavo de Carvalho. Mas nada de discussão sobre a crise mundial que, segundo os cálculos do economista Barry Eichengreen, ameaçou ser maior do que a de 1929 (e, na Europa, foi).
A tese da "marolinha" migrou de lado no espectro político com velocidade vertiginosa: foi lançada por Lula no momento em que a crise bateu nos centros financeiros do mundo. À medida em que migrou para a China, os efeitos sobre o Brasil se tornaram maiores. Foi a vez da oposição passar a excluir os eventos internacionais das análises sobre o Brasil. Quem subestimava a importância do ciclo das commodities passou a superestimá-la, e vice-versa.
Em 2014, Armínio Fraga disse que "a crise terminou em 2009". Ninguém teve muito interesse em lhe pedir que justificasse sua tese. Não tenho dúvida de que talvez conseguisse fazê-lo: Fraga é um dos grandes formuladores de política econômica de sua geração. O PT errou a mão ao criticá-lo na campanha de 2014.
Mas a tese do "acabou em 2009" é controversa. Estados Unidos, Europa e China entraram em crise em sequência. Pode ser coincidência, mas, se for, haja azar. Há gente bem inteligente que explica isso tudo por desequilíbrios internacionais, como o "excesso global de poupança" (global savings glut). Escolha os seus cinco economistas brasileiros favoritos: você sabe a posição deles sobre essa tese? Eu não sei.
Por outro lado, na esquerda a falta de discussão sobre a crise teve consequências ainda piores, porque permitiu embrulhar medidas anti-crise no pacote da Nova Matriz Econômica. Isso dificultou abandoná-las quando chegou a hora de fazê-lo. Uma coisa é abandonar "um negócio aqui que fizemos porque achávamos que o Euro ia acabar", outra é abandonar "um novo paradigma que superou o neoliberalismo".
Enfim, talvez a imensa turbulência por que passa o mundo há vários anos não devesse ser completamente ignorada na discussão nacional.
E, para quem quiser a minha opinião sobre "foi culpa da Dilma?": os emergentes em geral desaceleraram, o que exclui a tese "crise inteiramente gerada aqui dentro". Mas o Brasil desacelerou bem mais, e aqui entra o fracasso da Nova Matriz Econômica. Mas aqui também devem entrar problemas de longo prazo da economia brasileira, que cresce pouco desde os anos finais do regime militar (aceitando aqui, por consistência, que a alta do crescimento nos anos Lula foi em parte causada pela alta das commodities).
O debate relevante é como superar esses obstáculos. Para quem não se interessar por essas coisas, corram lá, está tendo impeachment no Facebook.


Texto de Celso Rocha de Barros, na Folha de São Paulo

O grande fedor de Michigan

Na década de 1850, Londres, a maior cidade do mundo, ainda não tinha um sistema de esgoto. Os resíduos simplesmente fluíam para o Tâmisa, o que é repugnante, como você pode imaginar. Mas os conservadores, incluindo a revista "The Economist" e o primeiro-ministro, se opuseram a qualquer esforço para remediar a situação. Afinal, esse esforço envolveria aumento dos gastos do governo e, eles insistiam, reduziria a liberdade pessoal e o controle local.
Foi preciso o Grande Fedor de 1858, quando o mau cheiro tornou as câmaras do Parlamento inutilizáveis, para que algo fosse feito.
Mas isso tudo é história antiga. Os políticos modernos, não importa quão conservadores sejam, entendem que a saúde pública é uma função essencial do governo. Certo? Não, errado – como ilustrado pelo desastre em Flint, em Michigan.
O que sabemos até agora é que, em 2014, o gestor de emergência da cidade – nomeado por Rick Snyder, governador republicano do Estado – decidiu mudar a fonte de água para uma que não é segura, contaminada por chumbo e muito mais, com o objetivo de economizar dinheiro. E está se tornando cada vez mais claro que funcionários do Estado sabiam que estavam prejudicando a saúde pública, colocando particularmente as crianças em risco, mesmo que eles não tenham fornecido informação aos residentes e aos especialistas em saúde.
Essa história - estamos nos Estados Unidos no século 21 e você não pode confiar nem na água nem no que dizem as autoridades – seria um ultraje horrível, mesmo que fosse um acidente ou um exemplo isolado de má política. Mas não é. Pelo contrário, o pesadelo em Flint reflete o ressurgimento na política americana, exatamente das mesmas atitudes que levaram ao Grande Fedor de Londres mais de um século e meio atrás.
Vamos voltar um pouco e falar sobre o papel do governo em uma sociedade avançada.
No mundo moderno, muito gastos do governo vão para programas de seguro social – coisas como seguridade social, Medicare e assim por diante, que são supostamente para proteger os cidadãos contra os infortúnios da vida. Essa despesa é objeto de debates políticos ferozes - o que é compreensível. Os liberais querem ajudar os pobres e infelizes, os conservadores querem deixar as pessoas manterem sua renda suada, e não há resposta certa para esse debate, porque é uma questão de valores.
Deve-se, no entanto, haver menos debate sobre os gastos com o que, em economia, chamamos de bens públicos – coisas que beneficiam a todos e não podem ser fornecidas pelo setor privado. Sim, nós podemos discordar sobre o tamanho da força militar de que precisamos ou sobre quão densa e bem conservada a rede rodoviária deveria ser, mas não esperaríamos controvérsia em relação a gastar o suficiente para fornecer bens públicos essenciais, como educação básica ou água potável.
No entanto, uma coisa engraçada aconteceu quando os conservadores de linha dura assumiram muitos governos estaduais americanos. Na verdade, não é exatamente engraçado. Não surpreendentemente, eles têm procurado cortar gastos com seguro social para os pobres. Muitos governos estaduais não gostam realmente de gastar com os pobres, então estão rejeitando uma expansão do Medicaid, que não lhes custaria nada, porque é financiado pelo governo federal. Mas o que vemos também é uma avareza extrema em relação aos bens públicos.
É fácil lembrar alguns exemplos. O Kansas, que figurou nas manchetes com sua estratégia fracassada de corte de impostos na expectativa de um milagre econômico, tentou fechar a lacuna orçamental resultante disso em grande parte com cortes na educação. A Carolina do Norte também impôs cortes drásticos para as escolas. E em Nova Jersey, Chris Christie cancelou um túnel ferroviário sob o Hudson, que era desesperadamente necessário.
Também não estamos falando apenas de um punhado de casos. Os gastos com obras públicas como proporção da renda nacional caíram acentuadamente nos últimos anos, refletindo os cortes dos governos estaduais e municipais que estão cada vez menos interessados ​​no fornecimento de bens públicos para o futuro. E isso inclui cortes acentuados nos gastos com abastecimento de água.
Então, estamos apenas falando sobre os efeitos de uma ideologia? Será que Flint não entrou na mira de austeridade porque é uma cidade pobre, em sua maioria afro-americana? Sim, isso é definitivamente parte do que aconteceu – seria difícil imaginar algo semelhante acontecendo em Grosse Pointe.
Mas essas realmente não são histórias separadas. O que vemos em Flint é uma situação tipicamente americana de interação entre uma ideologia (literalmente) venenosa e raça, em que os pequenos governos extremistas são empoderados pelo sentimento de muitos eleitores de que um bom governo é simplesmente uma doação a essas pessoas.
E agora? Snyder finalmente expressou alguma contrição, embora ele ainda esteja retendo muita informação de que precisamos para entender completamente o que aconteceu. E, enquanto isso, ouvimos, inevitavelmente, que não devemos tornar a contaminação de Flint uma questão partidária.
Mas não poderemos entender o que aconteceu em Flint, e o que vai acontecer em muitos outros lugares, se as tendências atuais continuarem, sem entendermos a ideologia que torna o desastre possível.


Texto de Paul Krugman, na Folha de São Paulo.  Tradução de Maria Paula Autran.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O homem que vendeu o mundo

Nunca a morte de um popstar foi tão celebrada de forma tão oficial. Por si só, este é um fenômeno que mereceria nossa reflexão. Que ele seja o autor de belas canções que criaram uma parte da memória afetiva de todos nós, isto é indubitável e, de fato, não deveria ser esquecido. No entanto, há algo a mais no "caso" David Bowie. Lembremos dos fenômenos bizarros que aconteceram nas últimas semanas. Igrejas tocaram sua música em órgão, o primeiro-ministro conservador do Reino Unido deu um tempo em sua temporada de caça aos imigrantes para aparecer na televisão a fim expressar sua tristeza, o "Jornal Nacional" e a revista "Veja", certamente pontas de lança da cultura underground desde sempre, dedicaram espaços infinitos para falar de sua grandeza, alguns astrônomos belgas batizaram uma constelação com seu nome. Por fim (OK, isto ninguém merece), Elton John prometeu fazer um show em sua homenagem.
Houve época em que cantores de rock encarnavam o mal-estar juvenil em relação à entrada alienante no mundo da produção e das convenções. Por isto, alguns se perdiam em viagens místicas, outros se autodestruiam, outros procuravam formas alternativas de vida, afundavam no ócio das piscinas do excesso ou se engajavam politicamente em múltiplas causas ou, ainda, como Morrissey, torciam para o IRA acertar uma bomba em Margaret Thatcher. Mas Bowie era, desde muito, de outra época.
Na verdade, David Bowie entrou para a história da indústria cultural como sua mais perfeita expressão, e talvez seja por isto que ele foi tão celebrado. Bowie não era exatamente o mais famoso, nem o responsável pelas maiores vendagens, nem mesmo o responsável pelas letras mais poéticas, mas certamente foi o popstar mais paradigmático, aquele que compreendeu antes de todos o tipo de subjetividade que a indústria cultural iria produzir e rentabilizar.
Muito se falou a respeito de seus múltiplos personagens, suas mudanças impressionantes de estilo, como se fosse questão de estar em contínua flexibilização de identidades. Esta flexibilização de quem compreendeu a identidade como uma sucessão contínua de personas hiperteatralizadas mostrou-se muito mais adaptada aos tempos atuais de reengenharia feliz de si do que a figura do cantor de rock obcecado pelas mesmas histórias e sintomas ou, ainda, do popstar que é uma jukebox de si mesmo.
Mas esta flexibilização não teria sido tão bem sucedida se Bowie não houvesse compreendido que a indústria cultural desconheceria margens. Ela sobreviveria da comercialização e da colonização da revolta contra ela própria, da integração contínua do que se coloca como sua contraposição. Neste sentido, o popstar perfeito só poderia ser aquele que parece estar, ao mesmo tempo, dentro e fora das regras industriais do entretenimento, gerenciando uma zona de ambivalência na qual seria possível entrar por filmes terrivelmente açucarados, como "Labirinto", e sair pelo corredor de trabalhos autorais como o célebre disco "Low" e suas belas faixas instrumentais melancólicas. Bowie sabia onde corria o sangue criativo da cultura jovem. Nos últimos tempos procurou se associar a músicos singulares, mas ele sabia também (e fazia questão de lembrar) onde acendiam as luzes da sociedade do espetáculo com seu circo midiático e suas entrevistas assépticas. Não por acaso, ele foi o primeiro cantor a transformar seu nome em ativo na Bolsa de Valores, como quem se realiza na condição de marca. O popstar perfeito queria estar nos dois lugares ao mesmo tempo, dissolvendo contradições em uma conciliação incrivelmente rentável.
Neste sentido, o fim não poderia ter sido de outra forma. Em "Cosmópolis", livro de Don DeLillo sobre um yuppie que trafega em Nova York com sua limusine enquanto reflete sobre o estágio atual das sociedades capitalistas, há uma frase paradigmática: "As pessoas não vão morrer. Não é esse o credo da nova cultura? As pessoas vão ser absorvidas em fluxos de informação".
De fato, é verdade que o último personagem de Bowie foi sua própria morte, sua última obra foi a espetacularização angustiada de sua própria morte. Como se fosse o caso de desaparecer sendo absorvido em fluxos de informação. Ou, antes, como se entrássemos em uma época na qual a morte poderia, sem maiores dificuldades, transformar-se em um videoclipe profissionalmente bem feito a que assistiremos várias vezes no computador entre uma tarefa e outra ou que descobriremos quando estivermos zappeando no controle remoto. Em todos os sentidos possíveis, há algo de terminal em um gesto que nos abre a uma época como esta. Um gesto que, por mais paradoxal que possa ser, só os mais consequentes são capazes de fazer.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo