quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Para ateu nenhum botar defeito

Mesmo quem não tem religião pode se interessar pelo engenho, pela imaginação e pela arte de alguns defensores do cristianismo.
Os esforços de um escritor como G. K. Chesterton (1874-1936), por exemplo, não se dirigem tanto para provar “a verdade” de alguns dogmas cristãos —como a virgindade de Maria ou a salvação das almas—, mas o seu “acerto”, do ponto de vista psicológico ou, talvez, humano.
É assim que, em “O Homem Eterno” (Ecclesiae, 2014) ele destaca a beleza, e a novidade, que há na ideia de um Deus tomando a forma de um bebê e nascendo de um casal refugiado, escondido numa caverna.
Para Chesterton, qualquer ateu que tenha vivido, na infância, a experiência do Natal sempre será sensível a um paradoxo imenso.
Irá associar na memória duas coisas absolutamente distintas: a ideia de uma criança indefesa e nua à concepção de uma força desconhecida, capaz de sustentar todas as estrelas. Mesmo perdendo a fé, não perderá o senso obscuro de que há algo de suave e de desprotegido por trás da menção ao nome assustador de Deus.
Há algo de incurável nisso, brinca Chesterton. Posso até achar melhor a ideia de um Deus que está em tudo, na eclosão milagrosa e diária das árvores, dos rios, do céu e das pessoas à minha volta.
Mas é como se, nesse Deus-Natureza que funciona como uma circunferência infinita, faltasse um centro. E o centro de uma circunferência infinita, diz Chesterton, tem de ser infinitamente pequeno.
Com a ideia de um Deus sem-teto, excluído, e até mesmo fora da lei, o cristianismo mudou tudo: “É uma profunda verdade dizer que, desse momento em diante, não era mais possível haver escravos no mundo”.
Lembro que também o judaísmo associa a noção de um povo eleito à de um povo escravo, que se liberta.
Talvez outras religiões tenham contribuições tão valiosas quanto essa; nenhuma deixou de trazer, igualmente, desastres totalmente evitáveis.
Desse ponto de vista, o ateísmo talvez não seja um “nada”, um vazio completo de crença e convicção, mas a depuração, a purificação, a salvação do que há de humano e de bom em qualquer fé religiosa.
Com isso, chego ao pensamento de outro autor, que declara convictamente que “Deus não é uma invenção”. Trata-se de René Girard(1923-2015), cuja obra vem sendo traduzida no Brasil pela editora 
É Realizações.
O autor de “A Violência e o Sagrado” conhece uma voga crescente em outros países, mas aqui a sua “teoria mimética”, aplicada fartamente na literatura e na antropologia, não parece ter muita divulgação.
Da longa bibliografia já disponível em português, leio um livro curto, escrito em colaboração com dois religiosos protestantes, Alain Houziaux e André Gounelle.
Estamos longe dos habituais confortos do catecismo. Provar a existência de Deus, diz Alain Houziaux, é quase irreligioso. “Um Deus que podemos provar é um Deus conforme a nossa lógica. Mas, se Deus existe, ele é certamente independente de nossa lógica e não pode ser provado.”
Se Deus existe, é “de graça”, sem explicação, simplesmente porque sim —como todo o Universo, aliás.
A audácia dessa teologia é enorme, e a meu ver praticamente anula o sentido de qualquer religião.
René Girard vai por outro caminho, atribuindo o fenômeno religioso ao que ele chama de “crise mimética”.
Ele acredita, sem me convencer, que o ser humano é marcado pelo desejo de ter o que o outro deseja; a rivalidade, a inveja, simplesmente destruiriam toda possibilidade de convívio social se não surgisse, de quando em quando, um “bode expiatório”.
Contra esse inimigo imaginário, todos se unem e podem purgar a inimizade que compartilham indiscriminadamente.
Pois bem, a novidade do  reside, para Girard, no fato de que Jesus foi ao mesmo tempo um bode expiatório —detestável e objeto de desprezo— e Deus. Sempre se destruiu o bode expiatório; agora é cultuado, enquanto tal.
Em outro texto, Girard tira dessa teoria, ou desse mito antropológico, uma conclusão escandalosa.
Ao revelar a brutalidade e o erro inerentes a toda religião —sempre, a seu ver, um sacrifício institucionalizado—, o cristianismo foi na verdade o destruidor das religiões. “A morte de Deus é um fenômeno cristão”, diz Girard. “No seu sentido moderno, o ateísmo é uma invenção cristã.”
Como ateu, depois dessa, só posso acrescentar que, seja como for, somos todos irmãos.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Não consegui conter-me

Este fim de 2018 marcou verdade mais explícita, mas ignorada por uma nação do planeta, a mais infeliz Federação de Corporações.
Não me refiro ao ato indigno feito a um país indefeso de sua ignorância, ao eleger o fascismo para governa-lo. Isso passará e ele continuará, não importa como, se matando e fazendo sofrer seus pobres, ou crescendo no topo da pirâmide e definhando na base, como tem sido.
Falo do presidente Luiz Inácio da Silva, nosso Lula, em cárcere, depois de ter-nos feito País em crescimento e distribuição reconhecidos em todo o planeta. Aos ricos sobrou distribuir migalhas aos pobres extremos e remediados, como nós, e se sentirem aliviados e sem débito com o Deus em que dizem acreditarem.
Curioso. Para ele estar lá, em Curitiba, impedido de passar as Festas com filhos e netos, pois esposa assassinada por Sérgio Moro e o Supremo Tribunal Federal (STF) não estará a seu lado, não há grana, posse, ou bens públicos e corruptíveis provados. Apenas seguidos golpes para eliminar a possibilidade de os pobres terem o líder que elegeriam. Ou não fomos 47 milhões assim?
Falo com vocês, donos de oficiais folhas e telas cotidianas. Por que o escroto de esconderem a verdade? Ah, se fazem neutros, vagabundos? Dentro de seus computadores, editores e proprietários escorrem o fel e o vírus de suas mentiras e covardias. Ninguém mais informados de vocês para conhecerem a verdade. Mas, bostas são, e assim continuarão.
Sob a capa dos ódio, preconceito e servilismo, atendem a seus patrões, não caninamente, que isso faria injustiça aos cães, mas como lacaios do fim do país que tanto lhes proporcionou até aí chegarem.
Lula passou o Natal preso, seus bostas. Nenhuma menção? O ódio privilegiado dos Marinho, Frias, Mesquita, (poucos, não?), através de salários de má sobrevivência, conseguem fazê-los calar?
Pouco respeitos a vocês. Faço meu viver com trabalho digno. Minhas opiniões não carecem de remuneração. Faço-as para apenas poder odiá-los.     
Como imagino muitos de vocês, nesta época natalina, comemorando Jesus Cristo e fazendo-se cristãos, digo que estariam expulsos do templo a chicotadas.
Boas Festas. Com Lula no cárcere, o mesmo em que repetem Hitler, Goering, Eichmann, Goebbels, Himmler, e outros nazistas.

Texto de Rui Daher, no Jornal GGN

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Confusos e distraídos


Uma amiga andou perdendo o sono por causa do Natal. Nada a ver com compras ou presentes. Mas porque, noites em seguida e até de manhã, o tec-tec de uma bolinha de pingue-pongue no andar de cima não a deixava dormir. Ele se perguntava como o casal seu vizinho conseguia jogar pingue-pongue a noite inteira e sair cedo para trabalhar. Mas o mistério acaba de se resolver. Ninguém estava jogando pingue-pongue. Era a gatinha do casal brincando com uma bola que subtraíra à árvore de Natal de seus donos. Essas bolas não são mais de vidro, mas de plástico, como as de pingue-pongue, e fazem o mesmo tec-tec. 
Minha amiga atribuiu o equívoco à sua imaginação, que às vezes se mistura com a realidade a ponto de se confundirem. Ela é daquelas que fazem sinal para o metrô na estação, tentam abrir a roleta com a chave de casa e, ao volante, abaixam a cabeça ao entrar no túnel. Um dia, numa loja, esbarrou num manequim e pediu-lhe desculpas pensando que era o vendedor. Já lhe aconteceu de, ao tomar um ônibus, esquecer o filho no ponto e só se dar conta disso no ponto seguinte. E, fã de jazz, passou uma noite conversando comigo sobre o baterista Gene Krupa. Só que ela o chamava de Frank Capra, que, como se sabe, foi um diretor de cinema. 
Eu próprio vivo dando foras. Há anos, fui apresentado num aeroporto ao cearense Ciro Gomes. Conversamos por alguns minutos e pedi licença: “Bem, tenho de tomar um avião. Tchau, Tasso” —e saí, confundindo Ciro com seu arqui-inimigo na política do Ceará, Tasso Jereissati. 
Às vezes, a confusão é coletiva. Estava eu num botequim com o escritor baiano Marcos Santarrita quando entra um sujeito e me pergunta: “O senhor é o João Ubaldo Ribeiro?”. E eu: “Não. Eu sou o Rubem Fonseca”. Apontei para o Santarrita: “Ele é que é o João Ubaldo Ribeiro”. 
O homem nos abraçou, empolgado. Era fã do Zé Rubem e do João Ubaldo.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Para a história

Os 50 anos do AI-5 foram percorridos, de ponta a ponta, por um problema de incorreção histórica ou, no mínimo, de dúvida. Sua intocada existência em nada influencia a visão estabelecida do Ato brutal, mas importa para a caracterização do que o antecedeu e o seguiu.
O entendimento de que o AI-5 foi um golpe dentro da ditadura ainda é, apesar de sua fundamentação, secundário na interpretação do episódio. Desde o primeiro momento, prevaleceu a dedução de que o endurecimento do regime refletia o ditador Costa e Silva. Assim foi, ou porque se sucediam contestações à ordem ditatorial, e o AI-5 repunha a primazia da força, ou porque Costa e Silva ficara identificado como chefe da linha mais dura. Motivos que, aliás, se completavam.
Muitos fatos não se encaixam nas duas explicações. A começar da reunião, nos primeiros dias pós-golpe, de alguns governadores chamados por Costa e Silva ao então Ministério da Guerra, no Rio. A Presidência estava com o interino de sempre, Ranieri Mazzilli, e o Congresso vivia as vésperas de indicar o presidente para complementar o mandato interrompido. Disso o general queria falar. Para advertir os governadores de que se enganavam no apoio ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Castello Branco, da corrente militar contrária à devolução do poder aos civis, no tempo previsto. Não foi explícito, mas a insinuação de um civil para o cargo não era imperceptível na exposição.
Carlos Lacerda, pré-candidato nas eleições presidenciais do ano seguinte, insurgiu-se contra as informações e argumentos de Costa e Silva, que traduziu como manobra para prejudicá-lo: Castello também era udenista, e Costa e Silva tinha proximidade com o PSD de Juscelino. O general insistiu em vão. Os udenistas Magalhães Pinto e Ney Braga, também aspirantes à Presidência, reforçaram Lacerda.
Ao final dos três anos seguintes, que Castello presidiu com a supressão das eleições presidenciais, Costa e Silva venceu a dura batalha interna para sucedê-lo. Seu primeiro ano de presidente foi tranquilo, com plena liberdade de imprensa, nenhuma cassação, Congresso livre de pressões, a oposição ativa a ponto de Lacerda, Juscelino e Jango se juntarem em Frente Ampla pela redemocratização. O chefe da linha dura fazia o país entrever liberdades e direitos. Os estudantes aproveitaram.
O que diziam ser a linha branda, exemplificada em Castello, passou a cobrar com parte da imprensa (a de sempre) providências contra "os agitadores". Costa e Silva abriu 1968 com resposta inesperada: no primeiro dia 2, mandou ouvir os estudantes. Lacerda elevou o tom, propagando que os vencedores e os vencidos de 64 iam fazer, unidos, "a verdadeira revolução". Os indícios de inquietação dos extremistas militares se sucediam. Costa e Silva, sob pressões múltiplas, em março foi falar na Escola Superior de Guerra. E, para irritados e aliviados, defendeu a oposição como necessária para vigiar o governo.
A morte do estudante Edson Luís provocou um movimento de massas sem precedente. Houve choques numerosos com as PMs em vários estados. Os apoiadores civis da ditadura, como se pôde ver na imprensa, estavam atônitos. O recurso a ato institucional, arma de Castello, voltava a ser cobrado. A proposta de estado de sítio logo aparecia. Ambos eram assuntos diários. Costa e Silva os abordou um mês depois da fala na ESG: "Não pensei, não penso e não pensarei" nessas medidas. E, para pasmo de todos os lados, se dispôs a conversar com uma comissão representativa das manifestações.
A ditadura estava dividida entre Costa e Silva e uma titubeante articulação contra a linha do governo. Em dezembro, o AI-5 foi levado a Costa e Silva, um texto produzido por seu ministro da Justiça, Gama e Silva. Traição? Sendo, não foi única no ministério. Costa e Silva jogou o jogo. Assinou o Ato. O que lhe restava era repetir o que fez para derrotar a obstrução dos castelistas e chegar à Presidência: levantar forças a seu favor. Morreu antes disso. Seu acidente vascular cerebral foi dado por muitos como efeito do golpe que sofrera.
Quando divulgou sua equipe para o governo, entre jornalistas, escritores e políticos houve uma surpresa: Heraclio Salles, intelectual de alto nível, machadiano, crítico brilhante de literatura, jornalista de política extraordinário, democrata inabalável, seria o secretário de imprensa do ditador Costa e Silva. Emitido o AI-5, Heraclio Salles se demitiu. Na preparação do governo, Costa e Silva convencera-o de que mudaria o regime, e precisava do seu auxílio.
Costa e Silva como governante e seus anos na Presidência esperam ser estudados, para que o país saiba o que foram, afinal: o do AI-5 ou da redemocratização que o golpismo retardou por mais de 15 anos.

Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Tradutora de 'Harry Potter', Lia Wyler morre aos 84 anos, no Rio de Janeiro

A tradutora Lia Wyler, famosa por ter vertido para o português os sete livros da série "Harry Potter", morreu na manhã desta terça-feira (11), em sua casa no Rio de Janeiro. A causa exata da morte não foi divulgada, mas Wyler já estava debilitada há alguns anos, depois de sofrer dois AVCs. Ela tinha 84 anos.
O velório da tradutora será nesta quarta (12), às 8h, no cemitério São João Batista, no Rio. O sepultamento está marcado para 10h30.​
Com os três primeiros livros da série "Harry Potter", ela ganhou prêmios como Monteiro Lobato e o selo de "altamente recomendável" da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, ambos em 2001, entre outros troféus.
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Sua tradução da história de Harry é conhecida por criar versões em português para nomes próprios e palavras inventadas por Rowling, seja de locais ou poções mágicas. É assim que o "Knight Bus", ônibus da série, no Brasil se chama "nôitibus", ou o vendedor de varinhas mágicas, o Mr. Olivanders, ganha o nome de Senhor Olivaras.
Além da saga de J. K. Rowling e outras obras infantojuvenis, ela traduziu para o português a obra de grandes autores do século 20, como John Updike, Saul Bellow e Joyce Carol Oates. Também escritores como Margaret Atwood, Norman Mailer, Isaac Bashevis Singer e Conan Doyle, entre outros.
Lia Carneiro da Cunha Alverga Wyler nasceu em Ourinhos, no interior de São Paulo, mas radicou-se no Rio, onde se formou no curso de letras português-inglês, com especialização em tradução.
Começou a traduzir ainda nos anos 1970, em vários gêneros, como ficção literária e comercial, divulgação científica, verbetes de enciclopédias etc. Nos anos 1990, chegou a ser presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores. Um de seus livros, "Línguas, Poetas e Bacharéis", de 2003, é usado até hoje nos cursos de tradução.​

Por Mauricio Meireles, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Irmãos em Livros

Outro dia, num táxi, o motorista me disse que “gostava de ler” e comprava “muitos livros”. Dei-lhe parabéns e perguntei qual era sua livraria favorita. Respondeu que “gostava de todas”, mas, de há alguns anos, só comprava livros pela internet. Ah, sim? Comentei que também gostava de todos os táxis, mas, a partir dali, passaria a andar só de Uber. Ele diminuiu a marcha, como se processasse a informação. Virou-se para mim e disse: “Entendi. O senhor tem razão”.
Tenho amigos que não leem e não frequentam livrarias. Não são pessoas primitivas ou despreparadas —apenas não têm a bênção de conviver com as palavras. Posso muito bem entendê-las porque também não tenho o menor interesse por automóveis, pela alta cozinha ou pelo mundo digital— nunca dirigi um carro, acho que qualquer prato melhora com um ovo frito por cima e, quando me mostram alguma coisa num smartphone, vou de dedão sem querer e mando a imagem para o espaço. Nada disso me faz falta, assim como o livro e a livraria a eles.
No entanto, quando entro numa livraria, pergunto-me que outro lugar pode ser tão fascinante. São milhares de livros à vista, cada qual com um título, um design, uma personalidade. São romances, biografias, ensaios, poesia, livros de história, de fotos, de autoajuda, infantis, o que você quiser. O que se despendeu de esforço intelectual para produzi-los e em tal variedade é impossível de quantificar. Cada livro, bom ou mau, medíocre ou brilhante, exigiu o melhor que cada autor conseguiu dar.
Uma livraria é um lugar de congraçamento. Todos ali somos irmãos na busca de algum tipo de conhecimento. E, como este é infinito, não nos faltarão irmãos para congraçar. Aliás, quanto mais se aprende, mais se vai às livrarias. 
Lá dentro, ninguém nos obriga a comprar um livro. Mas os livros parecem saber quem somos e, inevitavelmente, um deles salta da pilha para as nossas mãos.

A crônica é de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Votaram em quem?

No segundo turno das presidenciais, vários amigos e conhecidos votaram em Haddad, "tapando o nariz" sobre o cheiro do PT. Outros, com sentimentos parecidos, anularam seu voto.
Para outros, porém, a decepção falou mais alto do que qualquer desconfiança: votaram em Bolsonaro para votar contra o PT, cansados da corrupção, do aparelhamento do Estado e da incompetência do governo Dilma.
E, ainda, vários amigos e conhecidos meus votaram em Bolsonaro positivamente, ou seja, não contra o PT, mas por aquilo que o candidato propunha: mais segurança, menos corrupção e uma guinada liberal na economia.
A maioria desses amigos e conhecidos bolsonaristas declara de antemão que despreza os ranços bizarramente caretas da campanha de Bolsonaro. Mas eles sequer se preocupam com isso, pois lhes parece óbvio que os evangélicos e os TFPs não irão interferir na vida de ninguém.
Esses dois grupos dos eleitores de Bolsonaro que eu conheço —os que afirmam que votaram contra o PT e os que dizem que votaram para uma mudança econômica sem a qual o país iria pelo ralo— têm algo em comum: nas conversas que eu presenciei, eles afirmam que votaram em Bolsonaro e, a seguir, também afirmam que eles não concordam com o moralismo tacanho, por exemplo, dos futuros ministros da Educação ou das Relações Exteriores.
"A cada vez que via a Gleisi Hoffmann na TV, queria votar mais no Bolsonaro, mas não tenho nada a ver com Malafaia, viu?" "Votei nele, sim, mas sou totalmente feminista; o que importa hoje é permitir ao país uma virada modernizadora, justamente."
Claro, entre os eleitores de Bolsonaro, deve haver uma parte grande de indivíduos explicitamente engajados no projeto de impor aos outros as regras de conduta que eles idealizam (e que eles mesmos, aliás, mal conseguem seguir). Os indivíduos que gostam de regrar a vida dos outros, eu chamo de boçais —salientando que os boçais não são uma prerrogativa do eleitorado de Bolsonaro, eles existem no espectro político inteiro.
Os bolsonaristas com quem converso não são boçais: eles dizem que votaram quer seja contra o PT, quer seja para promover uma reforma liberal da economia —sem por isso apoiar em nada as ideias ou o temperamento autoritário dos que gostariam de regrar o comportamento dos outros.
Agora, a questão está justamente aí: "eles dizem" isso MUITO. À força de escutar negações preventivas que não eram solicitadas nem por mim nem por ninguém, comecei a duvidar delas.
Para a psicanálise, a negação não solicitada é suspeita: "Sonhei com uma mulher mais velha, loira como minha mãe, mas não era minha mãe, não era mesmo". Claro, claro...
Da mesma forma, negando com força sua adesão à agenda mais boçal da base de seu candidato, talvez esses eleitores estejam revelando uma adesão que eles mesmos, racionalmente, ignoram.
Para esses eleitores que se consideram "esclarecidos", o ranço autoritário, antidemocrático, homofóbico, misógino e racista não seria algo que eles tiveram que engolir (tapando o nariz) para acabar com o PT ou para ter uma política econômica liberal. Na verdade, para eles, o tal ranço talvez seja a verdadeira razão para eles votarem em Bolsonaro —uma razão que eles escondem de si mesmos.
Não só no Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, constituiu-se uma classe média aparentemente esclarecida, ou seja, que compartilha, em tese, o ideal social-democrata que parecia prevalecer no mundo.
Mas 30 anos é muito pouco, e a mudança pedida é muito grande: essa classe supostamente esclarecida engoliu mas não digeriu quase nada das "conquistas" das últimas décadas —nem o feminismo, nem o MeToo, nem os direitos das minorias raciais e sexuais— e, no fundo, nem os próprios direitos civis.
Ao contrário, o aparente triunfo dessas reivindicações as tornou mais indigestas para essa classe, que certamente gostava de seus pequenos privilégios mais do que ela admitia.
Seu racismo, sua misoginia e sua homofobia ficaram como uma espécie de pequena dor de dentes, quase esquecida. Até o dia em que alguém veio liberá-los, ou seja, conclamar que não era vergonhoso pensar nada do que eles não se permitiam mais pensar.
Alguns foram para a rua caçar veado. Outros foram para exterminar vermelhos. Outros ainda, para censurar e chantagear professor. Outros, os mais modestos, disseram que eles não concordam, mas, enfim, é preciso salvar o país, não é?

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Meu Primeiro Livro

"Capitães da Areia" foi o primeiro livro de que gostei. "Cem Anos de Solidão" foi o primeiro livro que me deu vergonha de contar que não tinha gostado. "Perto do Coração Selvagem" foi o primeiro livro que me fez não entender nada de um jeito tão dolorido que aprendi que esse era um jeito de entender as coisas.
"Lolita" foi o primeiro livro longo que devorei em dois dias. "Um Copo de Cólera" foi o primeiro livro curto que demorei meses degustando. "O Complexo de Portnoy" foi o primeiro livro que me veio à cabeça quando me perguntaram, em um programa de rádio cujo tema era feminismo: "Qual seu livro preferido?".
"Dom Casmurro" foi o primeiro livro que me apresentou ao narrador neurótico, o meu preferido. "Máquina de Pinball" foi o primeiro livro que me fez perceber que existiam escritores da minha idade, falando deles mesmos de um jeito destrambelhado e corajoso, e que era isso o que eu queria fazer da vida. "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" foi o primeiro livro que me mostrou que eu deveria saber escrever para além dos temas que eu gostava de tratar.
"O Lobo da Estepe" foi o primeiro livro que levei para a praia quando eu tinha um namorado muito feliz que andava com uma galera ainda mais animada e, cada vez que eles faziam "uhuuuu" e eu queria morrer, eu lia mais uma página e mais uma página, e cá estou eu, vivinha. "A Insustentável Leveza do Ser" foi o primeiro livro que eu li para agradar um namorado ultra-angustiado. "A Vida Sexual da Mulher Feia" foi o primeiro livro que me fez gargalhar tão alto numa ponte aérea que a moça ao meu lado mudou de lugar. "O Filho de Mil Homens" foi o primeiro livro que me fez falar: "Caceta, acho que esse é o livro mais lindo que eu já li na vida!".
"Retrato de um Viciado Quando Jovem" foi o primeiro livro que me deixou tão obcecada pelo autor que eu o persegui pelas ruas da Flip gritando: "Your book inspired me to write mine", e meu marido falou: "Tem que falar 'has inspired'", e eu gritei de novo, e o cara (Bill Clegg, te amo) acenou de longe num misto de educação e pavor.
As "Obras Completas de Freud" foram as primeiras obras completas que eu comprei, e não tem nada no mundo que me deixe mais fascinada e curiosa do que ler psicanálise. "O Demônio do Meio-Dia" foi o primeiro livro que eu parei de ler de tanto que eu estava gostando. "Grande Sertão: Veredas" é o primeiro livro que eu tento retomar toda semana há 15 anos.
"A Criança e o seu Mundo" foi o primeiro livro que ganhei quando fiquei grávida. "O Amor Acaba" foi o primeiro livro que ganhei quando achei que ia me separar e —que bom!—​ não me separei e o amor não acabou e fizemos uma filha.​
"O Discreto Charme do Intestino" foi o primeiro livro que me fez cogitar uma colonoscopia, mas ainda sigo sem coragem.
"O Apanhador no Campo de Centeio" foi o primeiro livro que me fez pensar que eu também tinha um enorme saco cheio de tudo.
Hoje, amanhã e neste Natal, dê livros. E no Natal do ano que vem também. Se a pessoa que ganhou o livro te olhar feio, lhe dê mais cinco livros. Não desista das pessoas ou, o que costuma querer dizer a mesma coisa: não desista dos livros. Compre livros, dê livros e, sobretudo, leia muitos livros. A Netflix não está passando por nenhuma crise, então a deixemos um pouco de lado. Salvemos nossos maiores e melhores amigos. Ninguém solta a mão de ninguém, a não ser que seja para segurar um livro.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Moro num país tropical

A torrente de acusações judiciais que, de repente, voltou a cair sobre Lula, Dilma Rousseff e até Fernando Haddad —em contraste com opresente antecipado de libertação do delator Antonio Palocci— até agora não teve êxito algum em sua função extrajudicial. Não fez parecer que a continuidade de acusações nega a finalidade, nas anteriores à eleição, de impedir a candidatura de Lula e sua previsível vitória.
O próprio beneficiário do efeito extrajudicial, Sergio Moro, facilitou o fracasso. Ao renegar a afirmação de que jamais se tornaria político, e incorporar-se ao governo que ajudou a eleger, mais do que desmoralizou o seu passado de juiz —como disse que aconteceria, se passasse à política. Tornou mais desprezível a imagem do futuro governo e do país exposta a cada dia pela imprensa mundial.
Voltamos a ser um país com algumas originalidades musicais, carnavalescas, geográficas, mas um país atrasado de um povo atrasado. E não há o que responder.
Onde, no mundo não atrasado, um juiz faria dezenas de conduções coercitivas ilegais, prisões como coação ilegal a depoentes, gravações ilegais de acusados, parentes e advogados, divulgação ilegal dessas gravações, excesso ilegal de duração de prisões, e sua impunidade permanecesse acobertada por conivência ou medo das instâncias judiciais superiores? Condutas próprias de ditadura, mas em regime de Constituição democrática.
No mundo não atrasado, inexiste o país onde um juiz pusesse na cadeia o líder da disputa eleitoral e provável futuro presidente, e deixasse a magistratura para ser ministro do eleito por ausência do favorito.
O juiz italiano da Mãos Limpas tornou-se político, mas sua decisão se deu um ano e meio depois de deixar a magistratura. Moro repôs o Brasil na liderança do chamado subdesenvolvimento tropical, condição em que a Justiça se iguala à moradia, à saúde, à educação, e outros bens de luxo.
A corrupção financeira tem equivalentes em outras formas de corrupção. A corrupção política, com transação de cargos ou postos no Legislativo, por exemplo. A corrupção sexual, a corrupção do poder das leis por interesses políticos ou materiais. Combater uma das formas não gera a inocência automática em outras.
A maneira mesma de combater a corrupção pode ser corrupção imaterial. Ao falar dessa variedade de antiética e imoralidades, no Brasil fala-se até do Supremo Tribunal Federal. A transação do seu presidente, Dias Toffoli, e do ministro Luiz Fux com Michel Temer, para um aumento em que os primeiros e maiores beneficiários são os ministros do STF, ajusta-se bem a diversos itens daquela variedade.
Sergio Moro é dado como futura nomeação de Bolsonaro para o Supremo. Muito compreensível.

Texto de Janio de Freitas, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Destino de Lula: abandono e solidão

Lula está politicamente abandonado. O abandono político de Lula, principalmente por parte do PT, se prenunciava quando o partido não fez uma campanha de mobilização nem para se contrapor à sua condenação, nem para se contrapor à sua prisão e nem para exigir a sua libertação. Ocorreram atos isolados aqui e acolá, é verdade. Mas não atos que se inscrevessem no contexto de campanhas organizadas e sistemáticas. O processo da campanha eleitoral impôs a Lula a consumação do abandono político, sacramentado no pós-eleições. O seu depoimento à juíza Gabriela Hardt simbolizou o abandono político efetivo do ex-presidente: nenhuma mobilização, nenhum ato de apoio, nenhum protesto nas proximidades do tribunal. O que se viu no depoimento foi um Lula envelhecido, triste e cansado, acompanhado apelas pelos advogados que até agora não obtiveram nenhuma vitória jurídica.

O que era de se esperar é que, com o fim da campanha eleitoral, o PT já tivesse uma campanha planejada de mobilização pela liberdade de Lula. Mas as suspeitas que não se veria nada disso se confirmaram. Muitos petistas, perguntados acerca da situação de Lula, respondem que "não há o que fazer". Este conformismo derrotista é a confirmação do abandono.
Quando foi adotada a tática de levar a candidatura Lula até as últimas consequências esperava-se que as elites e o Judiciário pagassem um preço alto pela exclusão do líder das pesquisas, do político mais popular da história do Brasil, junto com Getúlio Vargas. Mas para que este preço fosse pago, evidentemente, alguém haveria de cobrá-lo. O preço seria uma parcela significativa da sociedade mobilizada para exigir a candidatura Lula.
Dificilmente bases sociais se mobilizam sozinhas. É preciso direção, comando e coragem para que haja mobilizações. Não havia nada disso quando Lula foi interditado, confirmando que o PT, que havia perdido as ruas desde 2013, mas, principalmente, durante o processo de impeachment que levou ao golpe, não foi capaz de recuperá-las nem para defender seu maior líder - um líder de milhões de brasileiros.
Qual foi o preço pago pelas elites e pelo Judiciário pelo encarceramento e pela exclusão de Lula das eleições? Nenhum. Ficaram no lucro com a vitória de Bolsonaro, com principal algoz de Lula premiado com o Ministério da Justiça e com um criminoso e escandaloso aumento de 16,38% nos salários dos juízes. Mas como as esquerdas vivem de ilusões, anunciando vitórias que nunca vêm e que, ao fim e ao cabo das coisas se traduzem em derrotas, agora já vaticinam o fracasso do governo Bolsonaro à espera de apanhar o fruto sem plantar a árvore, para lembrar uma frase de Sérgio Buarque de Holanda.
No seu abandono, o que Lula tem pela frente é a perspectiva de novas condenações. O ambiente político adverso com a vitória de Bolsonaro, a pressão de generais que não querem Lula livre e o alinhamento das altas Cortes do Judiciário com os militares reforçam ainda mais a perspectiva de novas condenações e de alguns longos anos na cadeia.
Na medida em que o tempo passa e que nada de excepcional acontece em torno de Lula e de sua prisão (a não ser novas condenações), a ideia de Lula preso vai sendo naturalizada não só pelos petistas, mas pela consciência democrática em geral. A passividade é uma forma de aceitação, é uma memória triste e impotente do que poderia ser diferente mas não foi. A passividade é também uma forma de esquecimento. No caso, do esquecimento de que Lula está preso. O incômodo dessa lembrança só virá às mentes pelas notícias negativas das mídias.
O abandono e o esquecimento de Lula o retirarão também da memória coletiva e ele será lembrado como uma coisa boa para os muitos pobres e uma coisa ruim para os mais ricos. Mas ele será cada vez mais uma lembrança que vai empalidecendo. Na medida em que as pessoas precisam viver e continuar a vida, as suas expectativas se deslocam para novos líderes, para novos embates ou para novas frustrações.
Com Lula abandonado e esquecido na prisão, a sua força mítica tende a se enfraquecer. Aqueles que querem que essa força se enfraqueça ou morra tenderão, ao máximo, fazer verossímeis as acusações e aqueles que gostariam que ela continuasse viva não têm força e nem coragem para fazê-la viver. O que se verá, se nada for feito, é a desencantadora consumação da força extraordinária de um autêntico líder do povo. E o povo, que é o verdadeiro abandonado, não terá essa força mítica como conforto de suas angústias, como energia ativa de suas lutas e como referência de combate. O enfraquecimento da figura mítica de Lula se expressará como enfraquecimento da própria energia combativa do povo, pois este acreditará que nada vale a pena já que o seu destino será a pobreza e a derrota.
Lula sempre foi muito ativo politicamente, alegre, afetivo, comunicativo, brincalhão. Em que pese ter muitas visitas na prisão, parece óbvio que o tolhimento de sua liberdade faz com que lhe pese a solidão. Essa pode ser ainda maior porque o seu encarceramento o impede de viver essa essência, essa natureza afetiva, expansiva e comunicativa. Não se trata apenas da solidão de passar horas e dias sozinho, mas da solidão da falta de perspectivas de exercitar a sua liberdade com plenitude. Trata-se da solidão diante de um país que lhe negou a possibilidade de ele doar-lhe o que tem de melhor. Trata-se da solidão de ver envelhecer-se mergulhado no abismo de quatro paredes.
Certamente, Lula já terá refletido muito acerca do caráter efêmero do poder e acerca da precariedade da vida humana. Até ontem ele era um dos presidentes mais festejados do mundo e, hoje, vê-se na aterradora condição de um encarcerado. A situação de Lula é um retrato vívido da precariedade e da fragilidade das coisas humanas. A situação de Lula é uma lição dolorida que todos os políticos deveriam aprender: o poder não pode ser arrogante, mas deve ser exercido com prudência, humildade e humanidade. Somente este tipo de poder merece ser glorificado e somente os líderes que assim o exercem se tornam heróis cuja, sua memória, sua lembrança e sua invocação são como uma setas que atravessam os tempos.
Somente nós, mas principalmente o PT, os movimentos sociais, as esquerdas e os líderes políticos que têm poder de convocação poderão atenuar a dor da solidão de Lula: mostrar, através de uma campanha organizada, em atos e mobilizações, que ele não está só. Dizer que "não há o que fazer" é enfiar um punhal na já dilacerada solidão de Lula. Mas, talvez, o destino de Lula seja o de confirmar, tristemente, uma afirmação de Schopenhauer: "A solidão é a  sorte de todos os espíritos excepcionais".

Texto de Aldo Fornazieri, no Jornal GGN

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Eterno

S. se interessa por um livro sobre a mesa. É a "Ascensão e Queda de Adão e Eva", de Stephen Greenblatt. A gravura de Albrecht Dürer do casal, na capa, chama a sua atenção. 
S. frequenta o culto pentecostal da cidade em que nasceu. É ali que namora, faz amigos e passa os domingos com a família. S. crê no que lhe diz o pastor, que Adão e Eva deram origem a todos os homens sobre a Terra. 
Quando lhe pergunto sobre a possibilidade de existir um ancestral comum ao homem e ao macaco, ela responde que conhece a teoria, mas que se guia pelo Evangelho e que a informação não consta dos versículos. 
Penso em presentear S. com um exemplar da obra de Greenblatt, e me pergunto se a moça se sentirá atraída pelo estudo das transformações sofridas por um mito que sobreviveu a Darwin, Newton e Galileu.
O que pensaria S. da presença de Noé no "Atrahasis" e em "Gilgamesh"? Que conclusões tiraria de Agostinho e Milton? Será que se ofenderia com o pterossauro de Twain e o humor demolidor de Voltaire? Ou, pelo contrário, descobriria um mundo outro, igualmente belo e respeitoso, mas diferente do que prega o pastor?
Tenho pensado muito nisso, num diálogo possível entre aquilo que me é caro e o novo cristianismo em ascensão no Brasil. Um cristianismo deveras monoteísta, que não admite sincretismos e enxerga o demo em Iemanjá.
Lutero e Calvino renegam até o politeísmo disfarçado dos santos católicos. Depois de 500 anos de Cristo, Oxalá e Tupã, não é tarefa fácil se acomodar à ortodoxia puritana.
Pragmático, o protestantismo celebra o progresso pessoal e conseguiu, nas últimas décadas, agir sobre o caos social, convertendo e organizando a vida dos que foram esquecidos pelo estado. 
O empenho evangélico ultrapassou a esfera religiosa, tornando-se uma força política. A última eleição não deixa dúvida, Deus se fez presente no palanque, pregando uma agenda conservadora, baseada na moral e nos bons costumes.
Os que preferem o risco ateu da ciência costumam tratar a fé como estupidez. Mas existe lógica na troca da liberdade da dúvida, pela certeza de um ente protetor.
Entre Eva e Lucy, S. escolhe Eva. A heroína do Gênesis enfrenta questões semelhantes às dela: amor, casamento, traição, responsabilidade, culpa, trabalho, doença e finitude. Lucy não, Lucy é puro acaso.
O romeno Mircea Eliade, grande estudioso das religiões, ensina que do paleolítico ao neolítico; dos megálitos à Cruz; de Marduk a Zeus; de Lao-Tsé a Confúcio; de Shiva a Buda; todas as crenças compartilham raízes comuns, sendo que as mais arcaicas sobrevivem ocultas em épocas posteriores.
A visão de Ezequiel, do vale coberto de esqueletos, é resquício da adoração dos ossos praticada nas cavernas. Os cultos ligados às plantas --como o da árvore do bem e do mal-- datam do início do período agrário, quando o homem dominou o milagre da morte e a ressurreição das sementes.
Por meio dos mitos, Eliade traça a genealogia da civilização indo-europeia. Lévi-Strauss faz algo parecido com os ameríndios em "Mitológicas".
Se esses autores se tornassem matéria obrigatória nas escolas, entenderíamos, desde cedo, que a história das ideias e das crenças religiosas se confunde com a da civilização, e não nos surpreenderíamos com o poder de Deus nas urnas.
Minha dúvida é se Eliade, Strauss e Greenblatt são considerados globalistas marxistas, traidores de Cristo e do Ocidente pelo futuro chanceler Ernesto Araújo. 
Se for esse o caso, aceito ser queimada na fogueira, com S. riscando o primeiro fósforo.

Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O pecado do desespero

O desespero é um pecado. Deus disse que sua criação era boa. A ideia que a falta de esperança seja um pecado está no coração do hebraísmo antigo. 
Tanto o judaísmo quanto o cristianismo e o islamismo carregam essa intuição antiga de um povo de pastores como um diamante em chamas em seu coração.
A falta de esperança como pecado é um fato bem conhecido por nós. De certa forma, como acontece com todo pecador consciente de sua cela, o desespero pode tornar você mais forte: a esperança pode ser uma fraqueza, como nos ensina Pandora (ela é o pior dos males escondido por Zeus na caixa de Pandora, para castigar a húbris humana de querer ter o segredo do fogo).
Quando você não tem mais nenhuma esperança, você se encontra na condição de Antígona, assim descrita pela fortuna crítica quando pensa a “psicologia” dos heróis trágicos: a calma que nossa heroína encontra ao final da peça homônima de Sófocles (morto em 408 a.C.), ao aceitar que deve morrer porque descende de um útero incestuoso. Antígona era filha de Édipo com sua mãe Jocasta. 
A calma trágica pode ser uma força diante da inexorabilidade do mal no mundo.
No polo oposto, o rei Davi, nos seus belíssimos salmos, nos ensina que, mesmo ao atravessarmos o vale das sombras, Deus estará conosco, como nosso guia. Essa é a marca da esperança como uma das virtudes máximas no hebraísmo antigo (outra é a humildade). O desespero aqui peca contra a confiança no mundo. 
Todo pecado descreve uma encruzilhada. Nesse caso específico, a falta de esperança interrompe a circulação sanguínea do espírito, coagulando-o na escuridão. Não há como viver no mundo sem esperança, ensinam-nos nossos ancestrais hebreus.
Acaba de ser publicada no Brasil, pela editora É Realizações (que inunda o mercado de livros no país com a beleza das letras distantes da boçalidade contemporânea), a peça “Esse Paraíso da Tristeza”, do brasilianista Sébastien Lapaque. 
Ela é escrita a partir de trabalhos de Stefan Zweig (1881-1942) e Georges Bernanos (1888-1948). A obra e a vida de cada um serve de inspiração para o autor imaginar como teria sido a conversa entre os dois gigantes em Barbacena (MG), na casa de Bernanos, em 1942. A visita a Bernanos de fato se deu naquele ano, pouco antes de Stefan Zweig se matar aqui no Brasil, país onde ambos viviam.
Além de elementos históricos do momento (a guerra, o nazismo, o fascismo latente do governo Vargas), no centro do drama está a questão da esperança. O sofrimento de ambos com o nazismo e o fascismo (Bernanos fugira da França por se opor ao fascismo, Stefan Zweig era judeu —nada mais é preciso ser dito sobre seu desespero naquele momento) é conhecido pela fortuna crítica.
Bernanos é um autor a quem tenho dedicado atenção há algum tempo. O vínculo, em sua obra, entre um olhar agudo para o mal no mundo e a presença sobrenatural da graça como sutil detalhe em meio a esse mundo, é encantador. Como diz o personagem Bernanos num dado momento da peça, a fé é “como uma gota de esperança no oceano de dúvida”. Sua obra avança entre o nada e a graça. E, por isso mesmo, segue adentro do coração do hebraísmo antigo.
Como toda virtude, a esperança só brota na sua inteireza num terreno que lhe é hostil. Como estamos distantes aqui do farisaísmo moral que assola o mundo contemporâneo dos bonzinhos de coração e suas causas! Bernanos diz na peça que escreveu seis romances para tentar mostrar aos homens e às mulheres a presença do mal no mundo e em nós mesmos. Mas, como em toda boa teologia, o percurso pelo mal serve, antes de tudo, ao esclarecimento da visão da beleza e do bem que se esconde entre as trevas da realidade.
O Dostoiévski francês, como é chamado em seu país, era um homem que buscava a esperança como quem busca uma gota de oxigênio em meio ao vazio de ar. E aqui reencontramos a intuição do hebraísmo antigo: a esperança, assim como a coragem, são virtudes que se arrancam das pedras.
O hebraísmo antigo sabia que somente os pecadores verão a Deus. Nelson Rodrigues, que entendia profundamente da psicologia do pecador, traduziu essa máxima para “só os neuróticos verão a Deus”.
Se a humildade é a melhor resistência à estupidez e a coragem o melhor antídoto à mentira (temas também de Bernanos), a esperança é um trunfo contra o medo que nos assola todo dia, mesmo aqueles que se dizem felizes, belos e bons.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Pêndulo

Com plácida indiferença, o economista do mercado financeiro me explica que a sociedade funciona como um pêndulo, oscilando entre a direita e a esquerda em ciclos sazonais. Depois de 20 anos sob o comando de partidos de centro-esquerda, o Brasil rumaria, inexoravelmente, para a direita da curva.
Se esse equilíbrio, de fato, existir, é provável que a inércia pendular reeleja, em 2022, o líder das pesquisas de 2018, emplacando, em 2026, mais oito anos de eleição e reeleição de um de seus filhos ou, quiçá, de uma liderança evangélica. Edir, talvez?
Cumpriríamos assim a parábola, esgotando o ciclo das forças que passaram as últimas décadas na encolha.
Da minha parente que dispara fake news no Face com o furor de um robô eleitoral ao taxista que não perdoa a roubalheira do PT, do pai de família que se sentiu acossado pela militância identitária ao eleitor da terceira via que não aguenta a Gleisi Sheela do Lula Osho, do ruralista farto do Ibama ao cidadão que se sentiria seguro com uma arma na mão, do empresário ao microempreendedor que desistiu de arrumar patrão, engrossamos tanto o peso da bola que ela tendeu para a ultradireita.
Não estamos sozinhos. Turquia, Estados Unidos, a febre é mundial. Na Alemanha, o nazi partido, que conquistou 12,9% das cadeiras em 2017, criou um aplicativo para que os estudantes apontem professores contrários aos radicais islamofóbicos do parlamento.
Aqui, sem nunca mencionar as milícias e o terror do narco-estado, Messias incita a massa a metralhar petralhas, eliminar vermelhos e enquadrar gays, a menosprezar índios, pretos, mulheres, jornalistas, ambientalistas, intelectuais e artistas.
Inimigos do povo, os petistas roubam, os gays seviciam, os índios são preguiçosos, os pretos malandros, os vermelhos perigosos, as mulheres fraquejadas, os jornalistas mentirosos, os ambientalistas xiitas, os intelectuais elitistas e os artistas mamadores das tetas.
É lavagem cerebral. A Revolução Cultural de Mao aplicada ao livre mercado.
O discurso do mama-tetas surgiu nas redes, em meados do governo PT, e foi aprimorado pelo candidato que periga chegar ao poder em janeiro. À possível extinção dos mecanismos de isenção para as artes, se somará a retórica moralizante, avessa à liberdade de expressão.
Desconfiadas de que a renúncia fiscal se transformaria numa arapuca para a classe artística, eu e minha produtora desistimos de trabalhar com a Lei Rouanet dez anos atrás. Agora, a preocupação é de outra ordem.
Por temer os humores das brigadas conservadoras, suspendemos a temporada de "A Casa dos Budas Ditosos", agendada para novembro, na periferia do Rio de Janeiro. Depois de 15 anos em cartaz, a covardia nos fez deixar a baiana libertária de João Ubaldo de molho.
A autocensura já dita regras.
O medo do coronel da reserva, que xinga Rosa Weber de corrupta empoada; do garoto, que sugere fechar o STF com um guardinha de trânsito; o pânico da porrada com barra de ferro, que o estudante levou na cabeça por panfletar por Haddad; do tiroteio para o alto, na praça São Salvador; e dos atentados ao Instituto Chico Mendes, no Pará.
A temporada de caça está aberta. Para andar em segurança, o sujeito vai ter que levar uma blusa do Ustra na mochila e fazer sinal de arminha com a mão, cada vez que o pelotão dos bons costumes passar.
O pêndulo do economista não vai resistir à pressão. A corda vai romper antes de retornar para o centro.
Eu também não queria o PT e creio na responsabilidade fiscal, mas qualquer coisa é melhor do que a teocracia armada.

Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Em 1968, tudo era melhor

Em cerimônia realizada na rua Tutoia, o virtual presidente Jair Bolsonaro apresentou os pilares de seu governo: "Tenho dito que o objetivo é fazer o Brasil semelhante ao que era há 40, 50 anos", discursou. Em seguida, ergueu uma folha de papel sulfite em que aparecia um slogan mimeografado: "O Brasil voltou, 50 anos em 4".
Em seguida, Bolsonaro apresentou seu plano de metas.
1. Em 1968 tudo era melhor. O Brasil tinha uma população de cerca de 70 milhões de pessoas. Hoje somos mais de 200 milhões. Minha primeira medida será liberar o porte de arma para, logo no primeiro ano de governo, reduzir a população a um terço.
2. Em 1968 o Brasil não tinha fraudes nas urnas eletrônicas por um simples motivo: não havia eleições. São estratégias militares como essa que resolvem problemas complexos de maneira simples.
3. Em 1968 o brasileiro abria os jornais e não via escândalos de corrupção. Não havia fake news corrompendo nossas ilibadas reputações. A maneira mais eficiente de combater a corrupção é censurar a imprensa. Em nome da segurança nacional, também vamos suspender a internet, os celulares, o teletrim e o fax.
4. Em 1968 o AI-5 foi implementado. O ato revolucionário continua moderno e será resgatado pelos motivos a seguir:
4.1. Acabou com a palhaçada de habeas corpus. Homens direitos tinham total autonomia para impôr a ordem sem mimimi dos direitos humanos.
4.2. Num corte de custos exemplar, que respeitou o dinheiro do contribuinte, o Congresso e as assembleias legislativas foram fechados.
5. Em 1968 não tinha Lei Rouanet. Artista bom era artista preso, como foram Caetano e Gil. Ou, mais à frente, exilados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Glauber Rocha e tantos outros.
6. Em 1968 ninguém se preocupava com a Venezuela. Nem com qualquer outro país da América do Sul. A não ser os artistas que, por isso, foram exilados.
7. Em 1968 não havia Bolsa Família. A economia andava na linha: redução do salário mínimo e aumento das desigualdades sociais. Tudo funcionando para os ricos ficarem mais ricos e assim não encherem o saco batendo panelas.

CONTADOR

Estamos trabalhando há 226 dias sem saber quem matou —e quem mandou matar— Marielle Franco. Em 1968 não havia sequer espaço para surgir uma Marielle Franco.

Reprodução de coluna de Renato Terra, na Folha de São Paulo