segunda-feira, 28 de junho de 2021

Um masterchef pode ter arrombado a sua casa, me disseram dois policiais


A luz da viatura ainda girava lá fora. E aqueles dois policiais me olhando muito sério. “A senhora pode achar estranho, mas é possível que a sua residência tenha sido arrombada por um masterchef.”

Impactante essa informação, né? Também achei. Mas separa. Deixa marinando que a gente volta a ela.

Tudo se deu num pós-Réveillon, quando cheguei de viagem e encontrei a porta lateral de casa estraçalhada. Por sorte, os meliantes só haviam conseguido acessar a cozinha. E sem nada de valor à vista, pegaram apenas utensílios de metal que podiam ser repassados e derretidos. Ou, pelo menos, essa era uma explicação. Mas não —a dupla de investigadores do caso tinha uma ideia fixa.

“Repete, então, dona: o que foi que levaram?”

“Dois tabuleiros, um bule, uma tagineira de cobre...”

“Como?”, subitamente um deles parou de tomar nota.

“É um tipo de panela que...”

“Sei do que se trata, madame. Ideal para ensopados. Só não entendo a utilidade. Não vejo evidências de que a senhora saiba fritar um ovo.”

Sem me dar o direito de permanecer calada, indagaram o que mais havia sido furtado. Expliquei que um batedor de claras em... “Um fouet”, corrigiu o policial anotador. Nisso, o outro veio lá de fora usando luvas e segurando uma faca de cozinha com a ponta dos dedos. “Encontrei caída no canteiro, não levaram.” Perguntei se iam periciar. “Claro que não, está toda arranhada. A senhora usa faca na pia? Estraga o fio.

Onde está sua tábua de muiracatiara?”

Aí foi demais. Em que momento aqueles meganhas tinham cursado a Loucademia Cordon Bleu de Polícia? Então atinei —essa mistura de empáfia tática e conhecimento aleatório de termos de gastronomia é coisa de viciados em programas de culinária. Isso explicaria o fato dos dois só dialogarem com sotaque francês.

“É isso que você chama de cena do ‘crrrime’, Mendonça?”

“Que ‘marravilha’, Oswaldo!”

Antes de irem embora, insistiram na teoria dos bandidos gourmet e lavaram as mãos. “Fizemos o possível, mas são marginais insaciáveis.” Perguntei se deveria tomar alguma precaução especial. “Já tentou a receita de risoto da Rita Lobo? Dá muito certo.”

E um último conselho. “A contar pelo jeitão da sua casa, eu trataria de instalar um alarme potente. A gangue dos aficionados pelo ‘Decora’ costuma ser bem mais cruel.”


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

Risco melanina é marcador negativo associado à cor da pele


Para a economia, o risco Brasil é um indicador relacionado ao ambiente de negócios. Para os negros brasileiros, o risco país é algo bem diferente e nada conceitual. Fruto de uma equação tão sofisticada quanto antiga e perversa, equivale ao que pode ser chamado de risco melanina, um marcador negativo associado à cor da pele.

Repleto de nuances e sutilezas muito bem engendradas, é o tipo de ameaça que há séculos impacta de maneira nociva e implacável a vida de milhões de pessoas. Ainda assim, consegue manter margem para negação de sua existência entre parcela considerável da sociedade.

Talvez porque seus efeitos mais deletérios são sentidos na pele e na alma de quem é negro e não possui dinheiro, poder ou influência. Afinal, o risco melanina não é cobrado em títulos, ações ou papel moeda, mas em vidas pretas e pardas interrompidas em circunstâncias absurdas.

Pode ser por uma bala perdida que encontra o peito de uma jovem grávida que transita na rua com a avó no Rio, no mergulho no ar dado por um menino que encontra a morte no solo em que a mãe passeia com a cadela da patroa em Pernambuco, ou no espancamento de um homem no estacionamento de um Carrefour no Rio Grande do Sul.

A cartela é diversificada, mas o desfecho costuma ser funesto. Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras, segundo o Atlas da Violência. O risco de um homem negro morrer assassinado é 74% maior que o de um branco. Para mulheres negras, o percentual é de 64,4%.

Isso sem falar na série de outros fatores que integram o risco melanina, como falta de acesso a oportunidades, marginalização, hipersexualização, usurpação da infância e desumanização. Fatos que

Sofrem os pobres em geral, mas os negros pobres padecem ainda mais. Um triste exemplo é a maioria negra (66,1%) entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. A questão é: até quando o Brasil vai tolerar o risco melanina?


Texto de Ana Cristina Rosa, na Folha de São Paulo

domingo, 27 de junho de 2021

Uma província de cosmopolitas


Há anos, à saída de uma reunião na Companhia das Letras, em São Paulo, vi sobre um móvel alguns pôsteres de meu livro “Ela é Carioca - Uma Enciclopédia de Ipanema”Eram sobras da sua campanha de lançamento, em 1999. Perguntei se podia levá-los. “Sim, claro”, disseram, e saí com eles enrolados debaixo do braço.

Tomei um táxi para a Ponte Aérea e, no primeiro sinal, um carro parou ao lado com um casal e dois jovens. O homem ao volante me viu e disse: “Ruy! Somos seus leitores, a família toda! Nosso livro favorito é ‘Ela é Carioca’!”. Respondi: “Que bom! Tenho uma surpresa para vocês!”. E passei-lhe um rolo pela janela. O sinal abriu, e o táxi arrancou. Nunca soube quem eram e o que sentiram ao ver o pôster.

“Ela é Carioca” contém agora 238 verbetes de pessoas e instituições que, de 1920 a 1970, tornaram Ipanema —primeiro em surdina; no fim, com estrépito— algo à parte no Brasil. Uma província de cosmopolitas, composta de gente rebelde, criativa, sensual, de coragem quase suicida. E em que alguns liam Kant, outros a direção do vento, e todos eram iguais.

Seus primeiros moradores ilustres foram o médico Alvaro Alvim, pioneiro da radiologia, o múltiplo João do Rio, o gênio Ernesto Nazareth. Em suas várias eras, Ipanema pertenceu a Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Tonia Carrero, Leila Diniz, Danuza Leão, Glauber Rocha, Ferreira Gullar, João Saldanha, Paulo Francis, Helio Oiticica, Josué de Castro, Lucio Cardoso, Mario Pedrosa, Cazuza, Zuzu Angel. Gerou a bossa nova, o Cinema Novo, a esquerda festiva, o Pasquim, a revista Senhor. Uma amiga arriscou: “Foi uma Semana de Arte Moderna que durou 50 anos”.

Ao revisar o livro para a nova edição que acaba de sair, surpreendi-me com que tantos de seus personagens tenham partido nesses 22 anos. Pior para nós, mas sorte deles —o Brasil com que sonharam não é o que temos hoje.


 Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Desde que virei pai, só me interessa que a morte aconteça depois da vida


Morrer sempre me pareceu uma ideia razoável, quando não muito gostosa. Quando tomei um ácido pela primeira vez pensei que estivesse morrendo, e foi a melhor coisa que já senti. Se morrer for assim, pensei, quero morrer todo dia, muito. Vivia pensando em morrer, e isso me fazia viver melhor.

Gostava de viver, mas também gostava de ideia de acabar a vida no auge da felicidade, como num filme musical. Ou no auge do problema, como numa sessão de análise lacaniana. E ainda tinha a possibilidade de vida após a morte. Nunca acreditei muito na hipótese, mas gostava de pensar que talvez ganhasse essa surpresa pós-créditos, como num filme da Marvel.

Nunca senti medo de avião, porque parecia uma morte rápida, sem cadáver, indolor. Gostava de pegar estrada à noite porque a morte estava sempre a um cochilo de distância. Adorava lembrar que o mundo continuaria sem mim, igualzinho, ou melhor: com um pouco menos de emissão de carbono. Não entendia quem tentava prolongar a vida ao máximo, como um prisioneiro que luta pra continuar encarcerado. Que gente apegada, pensava. Desapega.

Até que eu tive uma filha. E tudo mudou. Já não consigo entrar num avião sem suar frio. Não chego perto de drogas que me façam pensar que estou morrendo. Não pego estrada à noite nem se estiverem vacinando na serra de madrugada. Quer dizer, a não ser que estejam vacinando na serra de madrugada. Só porque morro de medo de morrer de Covid.

Desde que virei pai, parei de sonhar com o cadafalso. Perdeu a graça pensar na morte. Não me interessa nem mesmo pensar em vida após a morte.

Só me interessa que a morte aconteça depois da vida. O que mais mudou na minha vida foi que ela já não pode terminar tão cedo. Existe uma espécie de contrato: pelas próximas décadas, não posso me demitir.

Parece desesperador. Adorava não ter medo da morte. Mas não há nada melhor do que precisar estar aqui, agora. Mais que isso: precisar gostar de estar aqui, agora. Mesmo que haja algo depois disso aqui.

Não importa: é aqui que minha filha está. Não existe nada antes, nem depois —nem acima nem abaixo. A única coisa que importa está bem na minha frente. Nunca estive tão apegado. Daqui não saio, daqui ninguém me tira.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Usar drogas faz parte do direito a buscar a felicidade, defende neurocientista


Todos temos direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade. A ideia, a princípio pouco controversa, está expressa na Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776. Mas e se a sua busca pela felicidade incluir usar drogas como maconha, cocaína, crack, metanfetamina, psilocibina ou qualquer outra? Aí não pode, diz a maioria dos governos pelo mundo afora.

Adultos responsáveis deveriam poder fazer suas próprias avaliações de risco e benefício e decidir quais substâncias ingerir sem interferência dos governos, argumenta o neurocientista americano Carl Hart, 54, professor da Universidade Columbia, em Nova York, em seu novo livro "Drogas para Adultos" (ed. Zahar).

Ele revela na obra que faz uso de crack, opioides e metanfetaminas, entre outros. Parte do texto é dedicado a contar essa sua experiência não só a título de curiosidade mas para que mais pessoas que fazem uso recreativo ou ocasional de drogas "saiam do armário", o que na visão dele ajudaria a amenizar o estigma colado a algumas dessas substâncias.

"Como sociedade, não podemos dizer que não gostamos das pessoas porque elas são pobres ou negras, então temos que delinear atividades para poder dizer que as pessoas que as praticam são indesejáveis. E o uso de drogas é ideal para isso. É uma forma indireta de demonizar certos grupos e manter a ordem social", diz ele.

Hart vê a separação das drogas ilícitas em categorias de acordo com sua suposta periculosidade ou poder de causar adicção como artificial e pouco embasada na ciência, e usada com frequência por políticos e formadores de opinião para justificar práticas racistas.

A trajetória da maconha nos Estados Unidos pode ajudar a entender esse argumento do cientista. Há algumas décadas, era retratada como causadora de dependência e destruidora de cérebros, além de ser apontada como causa da criminalidade e da degradação de bairros inteiros, geralmente negros e pobres. Milhões de pessoas foram presas por tráfico ou uso, na sua maioria negras, sem falar nas vidas perdidas na guerra às drogas.

Hoje, a cânabis é legal para uso medicinal em 36 estados dos EUA e recreativo em 16 deles e é difícil achar quem aponte grandes malefícios relacionados à substância; pelo contrário, cada vez mais pesquisas indicam benefícios à saúde com seu uso.

Nos estados em que o uso recreativo é legalizado, fumar ou ingerir maconha socialmente tornou-se perfeitamente aceitável. "Quando mães de classe média brancas dos subúrbios dizem que algo é aceitável, aí tudo bem", diz Hart.

No entanto, o estigma atrelado a outras substâncias como crack e opioides persiste. "A maioria dos usuários de drogas não vai desenvolver problemas de dependência. E todas as substâncias têm algum poder de causar adicção, mas isso não significa que devam ser proibidas", afirma o neurocientista.

"Aqueles que racionalizam seu uso pessoal com justificativas do tipo 'eu só uso maconha e psicodélicos, que não causam dependência, não uso drogas pesadas' só estão querendo sinalizar que se acham especiais", argumenta Hart, e assim contribuem para perpetuar os estigmas e estereótipos.

Nesse ponto o leitor pode estar se perguntando por que alguém ia querer usar heroína ou crack no seu dia a dia. Todas as substâncias que alteram a mente, do tabaco e álcool à morfina, passando por LSD e ayahuasca, trazem sensações prazerosas como euforia, energia, desinibição, relaxamento, acolhimento e tantas outras; ajudam na introspecção e no autoconhecimento; ou simplesmente ajudam a tornar a vida mais tolerável.

O americano fala em reequilibrar a discussão sobre as drogas, em que essa dimensão positiva é frequentemente esquecida e os perigos exagerados.

Mas e as crianças, como protegê-las se todas as drogas forem legalizadas? "Temos várias atividades que só são permitidas a adultos, como dirigir. Não podemos banir tudo só por causa das crianças. A política de drogas não pode substituir a responsabilidade dos pais. Não podemos deixar o Estado criar nossos filhos, porque sabemos que, quando o Estado faz isso, ele é demasiado punitivo com quem está na base da pirâmide", opina Hart.​


DROGAS PARA ADULTOS

  • Preço R$ 79,90 (408 págs.)
  • Autor Carl Hart
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Pedro Maia Soares


Texto de Paula Leite, na Folha de São Paulo

A vida é bem mais difícil quando se odeia figurinhas de WhatsApp


O dia havia começado bem. O sol brilhava, os pássaros cantavam. Até que, do alto de minha incauta e tolinha sinceridade, escrevi nas redes sociais: "A vida é bem mais difícil quando se odeia figurinhas de WhatsApp". ENTER.

Não cheguei a contar dez segundos e as réplicas começaram. "Como assim, você não gosta de figurinhas?"

"Pois é, não uso figurinhas."

"Não coleciona figurinhas?"

"Não, não uso figurinhas."

"Não faz suas próprias figurinhas?"

"Já mencionei que não uso figurinhas?"

"Como ousa? Figurinha é arte!"

Eu sei. É neste parágrafo que perco você, que me lê e ama figurinhas. Acredito até que haja alguma perfeita para o desprezo que você agora sente por mim.

No entanto, não é que eu as odeie propriamente. Eu me referia à dificuldade de escrever esbarrando nelas no campo de digitação do celular. Eu ali, dando tudo de mim entre letras, vírgulas e crases, para obter como resposta apenas um bebê "bad boy" ou uma galinha se olhando no espelho

Pensando bem: eu odeio figurinha, sim.

O trauma começou numa conversa de trabalho, quando indaguei algo e recebi de volta o Homer Simpson desaparecendo numa moita. Atormentada por tamanha informalidade, marquei a sessão de análise da semana e fui confirmada por um pombo dando joinha. Tudo isso num dia que culminou, claro, com uma Ana Maria Braga dançando diante de uma casa indo pelos ares.

Quando me enviam alguma figurinha da Carreta Furacão, confesso que tremo nas bases. Quase favorito. Afinal, nada que é humano me é estranho, ainda que seja a imagem de um cachorro de óculos escuros, requebrando o popozão.

Só sei que me arrependi do desabafo, pois já são mais de 72 horas sendo cercada em todos os grupos. Cancelada e espezinhada por todas as caras e bocas da menininha coreana.

Tentei sair do 3G, botar o celular de lado, mas enquanto escrevia este texto, uma pedra estilhaçou minha vidraça. E embrulhado nessa pedra, um papelzinho com a figurinha do pitbull batendo panela.

O jeito, agora, é me agarrar ao impossível. Imaginar, por exemplo, Dr. Drauzio Varella incapaz de enviar fotinho de si mesmo com os dizeres "né, minha filha?".

Haveria outros como eu por aí? Desfigurados. Destituídos da Gretchen fazendo coraçãozinho com a mão. Talvez aqui —e somente aqui— caiba a figurinha da Nazaré confusa.





Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo. Ilustração de Marcelo Martinez. 

domingo, 20 de junho de 2021

Cristiano Ronaldo partilha o desdém pela Coca-Cola com Fernando Pessoa


Completamente por acaso, descobriu-se esta semana a diferença fundamental entre Caetano Veloso e Cristiano Ronaldo: o segundo nunca diria "você traz a Coca-Cola, eu tomo".

Foi um episódio que causou grande comoção. Quando chegou à coletiva de imprensa, Cristiano Ronaldo tinha duas garrafas de Coca-Cola à sua frente. Afastou-as e substituiu-as por uma garrafa de água.

De repente, um jornal disse que o gesto de Ronaldo tinha feito com que as ações da Coca-Cola na Bolsa desvalorizassem US$ 4 bilhões. Quando os especialistas vieram explicar que não havia nenhuma relação entre a atitude do jogador e a perda de valor da marca, era tarde.

O mundo inteiro já discutia se era legítimo que Ronaldo tivesse destruído o império de um dos patrocinadores da Eurocopa. A Uefa estava preocupada por ele ter revelado não ser consumidor do produto. Imagino que tenha sido uma surpresa enorme.

"O quê? Este atleta de alta competição não bebe refrigerantes gaseificados? Mas eu pensei que toda a sua dieta se assentasse na ingestão de bebidas açucaradas."

Algumas pessoas lembraram que, em 2006, Ronaldo tinha gravado um comercial para a Coca-Cola. Suponho que a notícia também tenha causado choque.

"Como assim? As pessoas que fazem comerciais não consomem necessariamente os produtos que anunciam? Quer dizer que a gente não pode confiar na propaganda? Começo a desconfiar que ele só fez esse comercial porque foi pago para isso. Será que ele também não tinha caspa quando recomendou aquele xampu?"

Cristiano Ronaldo já disse e fez algumas coisas polêmicas na vida. Sugerir que água é melhor do que Coca-Cola talvez não seja uma delas.

É curioso notar que não é a primeira vez que um português mundialmente conhecido interfere no marketing da Coca-Cola.

No final dos anos 1920, o poeta Fernando Pessoa criou o slogan publicitário da marca, quando ela chegou a Portugal: "Primeiro estranha-se, depois entranha-se". Cristiano Ronaldo concorda com a primeira parte e deseja que a segunda não se concretize.

Curiosamente, tanto em Ronaldo como em Pessoa se verifica igual desdém pela Coca-Cola: para Ronaldo, a bebida tem açúcar a mais; para Pessoa, tinha álcool a menos.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, o RAP, na Folha de São Paulo

sábado, 19 de junho de 2021

Então, adeus!


Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de isopor do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro:

—Vejo que aprecia essas imagens antigas —sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: —Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinha a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos...

Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.

—Volte sempre —pediu-me.

—Impossível —eu disse —Não moro aqui, mas, em todo caso, quem sabe um dia... —acrescentei sem nenhuma esperança.

—E então, até logo! —ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.

Olhei-o. Sob a luz azulada do crespúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade que cheguei a me comover. Até logo? ... "Então, adeus!", ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma ideia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!...

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: "Jamais o verei". Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.

—Até logo! —eu disse cheia de enternecimento meu seu ingênuo otimismo.

Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escaderia. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. "Então, adeus!", pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. "Adeus".

Nesta mesma noite houve clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.

Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.

—Boa noite!

Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.

—Que coincidência... —balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer. —Eu não esperava vê-lo... Tão cedo.

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedidmos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. "Eu não disse até logo?", os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.

Durante o jantar ruidoso e calorente, lembrei-me de Kipling. "Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho..."

Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:

—Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?

Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.

—Ah, não sei... Antes eu sabia, mas agora já não sei.


Texto de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1952, e republicado em 19/06/2021 na Folha de São Paulo

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Uma guerra falida e sem heróis


assassinato de Kathlen Romeu, jovem de 24 anos e grávida, com um tiro de fuzil no Complexo do Lins, no Rio, representa mais um duro golpe da guerra falida e sem heróis que rege o enfrentamento à questão das drogas no Brasil. Um conflito que não nos deixa tempo para chorar a morte das vítimas antes da próxima tragédia. A epidemia de homicídios, em meio à pandemia do coronavírus, nos mantém em luto permanente.

Jackelline de Oliveira Lopes, mãe de Kathlen, afirmou que a bala não era perdida, mas direcionada. E ela está certa. O caminho das balas é uma escolha da antipolítica de segurança pública, que prioriza a letalidade como estratégia, em vez de proteger cidadãos e os próprios policiais.

O Brasil é líder em mortes por armas de fogo no mundo. Sete em cada dez homicídios no país ocorrem por tiro. Ao mesmo tempo, o país está na lanterna dos avanços em políticas de drogas no nosso hemisfério. E não por acaso: essas questões estão interligadas. A política de drogas brasileira estimula o confronto e a aniquilação, e não respeita o devido processo legal.

É essa política que legitima, para uma parte da sociedade, que jovens, em sua maioria negros, paguem com a vida uma falsa promessa de segurança. A política de drogas equivocada que escolhemos alimenta a corrida armamentista que não tem fim e permite o domínio e as disputas territoriais nas favelas. Ela também sustenta a corrupção policial, inclusive o desvio de armamento e munições para traficantes e milicianos. É essa política que direciona a bala que atingiu Kathlen e seu bebê.

Esse ciclo perverso precisa ser interrompido.

Atuo no tema de políticas de drogas desde 2007. Fui coordenadora-executiva de comissões internacionais que fizeram estudos e propostas, já adotadas por vários países, para enfrentar o problema das drogas com enfoques em saúde, direitos humanos, justiça criminal, economia, cultura, educação. No meu livro “Drogas - As Histórias que Não Contaram”, demonstrei como a guerra às drogas é uma guerra às pessoas, e quanto o tema exige soluções inteligentes e articuladas, muitas delas já existentes.

Nos Estados Unidos, onde nasceu a guerra às drogas, 17 estados, mais o Distrito de Columbia, regularam o uso adulto da Cannabis. Atualmente, 48 dos 50 estados norte-americanos têm alguma previsão de uso medicinal de maconha. Da mesma forma que no Canadá, no Uruguai e em dezenas de outros países, não houve nenhuma catástrofe social com a descriminalização ou regulação do uso adulto de maconha.

O que se viu foi o contrário. Os jovens ganham mais proteção, e o Estado, mais dinheiro de impostos para investir em saúde, educação e prevenção, com abordagens de fortalecimento comunitário. Essa proposta e muitas outras estão detalhadas no relatório “Sob Controle”, da Comissão Global de Políticas de Drogas, e em inúmeras pesquisas e livros, nos quais especialistas detalham possíveis saídas para o Brasil.

O caminho passa pela prevenção, redução de danos, descriminalização do uso de todas as drogas, regulação do uso adulto da Cannabis, e estudos sobre como regular outras drogas. Também é preciso redirecionar as ações repressivas do Estado para o crime organizado e autores de crimes violentos. O foco precisa estar em retirar armas e dinheiro desses grupos. Além disso, oferecer penas alternativas para quem pratica delitos não violentos.

A pandemia de Covid-19 revelou um novo tipo de herói: equipes médicas que privilegiam o acolhimento e a dedicação para salvar vidas. É desses profissionais que precisamos para cuidar dos dependentes químicos. A guerra às drogas produziu apenas vítimas, que choramos e recordamos até a morte seguinte. Não precisa ser assim, já passou da hora de exigirmos o seu fim.


Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Quando um comércio antigo fecha, as histórias são embrulhadas para viagem


As letrinhas tinham espaçamento desigual. Várias, inclusive, faltavam. Mesmo assim, achei poético que o toucinho do céu estivesse entre o suspiro e o sonho naquele típico cardápio de parede, logo embaixo do sanduíche de pernil.

“Ernestinho, sobe lá a buscar para a moça”, gritou Seu Manuel. “A menina vai levar a balança também?”

Já passava das nove da manhã. E, sim, eu também levaria a balança. Fosse em outros tempos, a Panificação Rainha estaria num entra-e-sai de alunos cabulando aula, motoristas de ônibus, frequentadores do templo taoísta e notívagos caídos da cama. No ar, o perfume inconfundível de café coado em tecido.

Agora, apenas fumaça vindo da rua. E Seu Ernesto empoleirado numa escada dobrável, supervisionado pelo irmão. Do alto de seus 80 anos, totalmente sozinhos, os dois senhores tentavam despregar a tabela de preços com uma chave de fenda. Não saiu fácil, lógico: ela estava ali desde 1967.

Para tristeza dos súditos locais, a Rainha contraiu dívidas. E a exemplo de tantos outros comércios, precisou fechar as portas na pandemia. Antes, porém, pendurou plaquinha anunciando liquidação total —40% de desconto, 100% de desapego.

Quando cheguei, quase tudo já tinha sido vendido. Spoiler: Seu Ernesto e Seu Manuel iam passar o ponto com toda a dignidade necessária. “Faz parte da vida, né? Bola para frente”, dirão alguns. “Deve virar farmácia. Ou Smart Fit.”

Infelizmente, não nasci com o dom do pensamento neoliberal. Para mim, cada estabelecimento que fecha é uma história que se perde. Se envolve uma família de imigrantes ganhando a vida, fico mais tocada ainda. Sou manteiga derretida. O pão quentinho da Rainha não me deixaria mentir.

“A menina não quer mais nada?” Seu Manuel, que pergunta difícil. Querer, mesmo, eu queria “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Assim diria meu avô, encostado no balcão, pedindo um Toddy e uma fritada de queijo.

Fui até o caixa. “Crédito ou débito?” Passei a balança antiga, que transformarei em fruteira. A tabela de preços, que vai para o escritório de um amigo. Mas peraí, que tinha outra coisa. “Por favor, Seu Manuel, inclui na conta.”

Ironia das ironias, era um daqueles porta-rolos com papel de embrulho. E na terna estampa de flores, agradecendo a preferência em looping, o único pedido que não poderei mais atender. “Volte sempre. Volte sempre. Volte sempre”.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Pfizer, sua louca!


Na primeira tentativa de aproximação, tinha que ter ficado bem claro para a biofarmacêutica Pfizer que o ilustríssimo senhor presidente não queria papinho. Mas vai que a mensagem foi parar no spam, deu problema no servidor ou a internet do crush não estava funcionando?

Pfizer, eu te entendo. Quantas vezes não deletei o número do cara só pra não mandar um “me nota ou vou morrer” na madrugada? Agora meter no subject: “Me nota ou meio milhão de pessoas vão morrer”, eu achei pesado. Esse tipo de drama não funciona com esse tipo de homem. Se você tivesse lido Capricho na adolescência, saberia.

Olha… um email, depois outro, até uns cinco a gente perdoa —ninguém manda nas coisas do coração. Mas 53? Tá louca? Daí ainda liga e insiste? Manda amiguinho da Casa Branca, do Reino Unido e da União Europeia falar bem de você?

Seu analista nunca te falou que isso é o clássico complexo materno “preciso cuidar dele”? Você viu como ele insultou a Coronavac e mesmo assim pensou “comigo vai ser diferente”? Você não tem uma prima pra avisar que ninguém muda ou salva alguém se a pessoa não quiser mudar ou ser salva (ou, mais especificamente, se for um belzebu sanguinário)?

Frete grátis e chaveirinho de arma de brinde? Viu que foi bloqueada e ligou de um número não identificado? Mandou avião com faixa no Valentine’s Day com os dizeres “aceita que tá quase ‘na faixa’”? Passou com carro de som em frente à casa dele: “Só hoje, vacina e vergonha pela metade do preço”?

Ficou cobrando resposta, no estilo ansiosa com atitude: “diz logo que não me quer, porque tem quem queira?”.

Eu fiquei emocionada quando soube que até cartinha você mandou, Pfizer. Tão anos 90! Eu ainda borrifava meu perfume e enchia de marcas de batom. Não conhece a música “Some que Ele Vem Atrás”, da Anitta com a Marília Mendonça? Só faltou curtir fotos antigas no Instagram.

Eu lamento demais que o presidente tenha sido perseguido dessa maneira. Mulher está acostumada a sofrer assédio desde que a história começou a ser narrada em pedra. Mas um homem branco de olhos azuis sofrer qualquer forma de infortúnio choca a sociedade. Ainda mais um digníssimo tão ocupado, dividindo seu precioso tempo entre decorar mesas de café da manhã com desafetação e desprovimento; proferir sujidades para uma dúzia de psicopatas robóticos que odeiam a imprensa (justamente porque se submetem ao não remunerado ofício de digitador de surrealismo criminoso em grupos de zap e redes sociais); administrar a dicotomia complexa entre adestrar cães de guarda para babarem e cagarem em todos os lugares e limpar a baba e a merda desses animais; transformar estádios em campos-santos; e dar cargos, afagos e prêmios a milicianos.

Pfizer, AstraZeneca, Coronavac, me doeu demais vê-las escarnecidas e rejeitadas pelo pior dos homens. Ainda assim, por favor, não desistam! Somos a maioria e amamos a ciência.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Pare a máquina, Kathlen é morta

 

Parem as máquinas, pois Kathlen Romeu é assassinada. Assim mesmo: no tempo presente. Eu me recuso a escrever sobre mortes negras no passado, porque vivemos num grande presente a se repetir e repetir; no qual o futuro é uma obra afrofuturista. Ser negro no Brasil é viver uma constante dissonância cognitiva: nosso corpo está aqui e agora, mas contra esse corpo é aplicada, e reaplicada, a mesma tortura há séculos.

Kathlen Romeu, 24 anos, grávida de quatro meses, não foi morta em confronto, porque morticínio não é confronto, é barbárie. Kathlen Romeu não foi alvo de bala perdida, porque a bala é sempre certeira contra os mesmos endereços e a mesma cor: 700 mulheres foram baleadas no RJ desde 2017; sendo 15 delas grávidas, como Kathlen; dez bebês foram baleados ainda na barriga da mãe, segundo dados do Fogo Cruzado.

O que está em curso no RJ é, tecnicamente, genocídio: destruição intencional de um grupo étnico-racial. E quero que vá às favas quem ache que isso seja calunioso, posto que falso não é: governo e polícias do Rio de Janeiro têm as mãos sujas do sangue que derramam. Qual democracia sobrevive após ser esmagada pela queda do corpo que nunca pesa? Por que coisificamos mortes negras em mais um post preto e as transformamos em códigos de desconto?

Eu me recuso a me tornar um cronista do luto: quero vasculhar bem no fundo da nossa dor à procura de força para construirmos, juntos, um mundo onde Kathlens possam existir e bem viver. O luto há de virar luta. Ou as instituições, que permitem o genocídio negro, implodirão, ou morreremos esperando pelas migalhas da piedade a cada nova morte. Não é fato isolado. Há um exército inteiro a prender inocentes nas esquinas, a pôr policiais (em sua maioria negros como Leandro Martins) numa guerra sem sentido.

Toda morte é política, porque fomos nós, a pólis, que produzimos o governo da morte. Que o incendiemos. Parem a grande máquina do mundo, pois Kathlen não sorri mais.


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

Morreu de Rio


A vida é muito curta para morar no Rio. Cinco anos depois, cá estou repetindo o que escrevi nesta Folha, numa semana em que a cidade se chocava com a morte de inocentes. Juan, um ano e dois meses. Giselle, 34. José Josenildo, 31. Bala perdida. Tentativa de assalto. Emboscada. Nada mudou de lá para cá.

Para quem mora no lado miserável e perigoso da cidade, a vida é mesmo muito curta. Numa semana tem "bala perdida", na outra também. Às vezes, tem chacina. Crianças desaparecem ou são alvejadas dentro de casa. Pessoas são presas "por engano". Vereadora é assassinada. Vidas são interrompidas antes que comecem. Maya ou Zyon, eram os nomes escolhidos por Kathlen Romeu, 24, mais uma que "morreu de Rio". Do descaso do poder público, do despreparo e da violência da polícia, da conivência das classes mais favorecidas.

Aqui, no lado limpinho e burguês, nos indignamos nas redes sociais, nos grupos de WhatsApp, escrevemos colunas nos jornais. E vida que segue. Somos cúmplices da tragédia que quase nunca atravessa o túnel Rebouças e assombra quem mora nos cartões postais. Nossa indignação tem prazo de validade, porque quem morre é sempre gente esquecida pela sociedade.

Chamar favela de comunidade nos tira o peso da consciência em relação ao abismo de desigualdade em que vivemos, mas não muda o fato de que centenas de milhares continuam sem saneamento, sem saúde, sem educação, reféns ora do tráfico, ora da milícia e, como sabemos, vítimas da polícia.

Nos primeiros anos em que vivi no Rio, eu me iludia de que cada vida perdida de forma trágica seria um divisor de águas. Depois de algum tempo, resignei-me a olhar a paisagem, deixei de ser a forasteira inconveniente que aponta dedos para todos os lados. Acovardei-me, como a maioria. Não é a Covid que nos impede de ir à rua nos manifestar por Kathlen ou João, é a passividade diante da morte de gente pobre.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Sentimento de não pertencer é um desafios para os negros nas universidades


Durante muitos anos, como estudante de doutorado e depois como pesquisadora na USP (Universidade de São Paulo), senti, repetidas vezes, o desconforto e o estranhamento das pessoas diante de minha presença e circulação em certos espaços da universidade.

Participando de bancas examinadoras de mestrado e doutorado, o estranhamento de ter uma mulher negra nesse lugar acadêmico aparecia de maneira mais intensa.

De certa maneira, o olhar que expressa a pergunta “o que faz você aqui?" é uma das tantas possibilidades de reação de profissionais de instituições brasileiras diante da presença negra em lugares onde ela não era esperada. Reflete ainda o longo caminho a percorrer no território do enfrentamento do racismo institucional por organizações públicas ou privadas.

Com a ampliação da presença da juventude negra na universidade, com certeza essa reação se acentua.

Lembrei-me muito dessas ocorrências nos últimos dias após o suicídio de jovens negras e negros na USP. E a contundente carta de docentes negros exigindo medidas urgentes, já que, antes dos trágicos desfechos, não faltaram pressão, denúncias e alertas ao longo dos anos, evidenciou que é preciso uma atuação mais sistêmica da universidade diante dos desafios enfrentados pelo seu alunado negro.

O sentimento de não ter um lugar, de não pertencer, sentir-se rejeitado e humilhado que ocorre nesses episódios se encontra entre os elementos que podem provocar a depressão e o suicídio.

Assim, um dos grandes desafios que constatamos na atualidade, período em que vem se intensificando e se tornando cada vez mais visível o debate sobre racismo, é provocar as instituições públicas e privadas a olhar para si próprias de modo a identificar em sua estrutura os sinais do que as tornam tão excludentes e inóspitas, principalmente para a população jovem e negra.

De quantas diferentes maneiras sinalizam “aqui não é seu lugar”?

Há inúmeros estudos mostrando como o eurocentrismo se manifesta nos currículos, nas bibliotecas, nos espaços físicos, no perfil das lideranças institucionais, de professores e alunos, nos espaços universitários brasileiros.

E uma pressão crescente da juventude negra vem questionando esses espaços monolíticos e monocromáticos.

E aí surge o medo. Medo da derrubada de tudo que assegurou os privilégios da branquitude, nas diferentes instâncias da universidade, em particular o temor da derrocada do “sistema meritocrático”, que, desconsiderando as históricas desigualdades de pontos de partidas e de enfrentamento cotidiano da discriminação, afirma que “os que têm competência se estabelecem”.

No entanto, não são apenas mais “caras pretas” na universidades. São outras experiências de vida, que se deram em outros tipos de território e que anunciam a urgente e inevitável democratização dos espaços universitários.

A pandemia vem intensificando os desafios desse contexto enfrentado pela população que está entre aqueles que mais vão a óbito pela Covid-19, pela sua própria situação de vulnerabilidade no país. Sem dúvida a população jovem e negra tem muitas razões para se sentir angustiada, sem saída.

Nada mais ameaçador do que saber que o jovem negro, entre 10 e 29 anos de idade, compõe o perfil das pessoas que mais cometem suicídio no Brasil, segundo o Ministério da Saúde (2019), num cenário no qual não existem políticas públicas específicas de prevenção.

Também são jovens de até 29 anos aqueles mais sujeitos à violência letal das forças policiais, segundo o Mapa da Violência de 2020.

Assim, a criação de instâncias institucionais que possam assegurar a efetividade do direito à educação, conforme define nossa Constituição, torna-se urgente.

Essas novas instâncias, se alinhadas aos princípios da equidade racial, têm grandes chances de transformar a universidade em um lugar acolhedor e saudável para os alunos que passaram a frequentá-la com maior presença nos últimos anos.


Texto de Cida Bento, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Comorbidade Nutella



Aqui só tem gente séria e progressista. Digo, as pessoas de meu convívio. Mas notei que boa parte dos meus conhecidos desencavou uma bronquite alérgica que tinha sido resolvida no passado. “Eu sofria muito aos sete anos”, disse Celso (nome fictício de César, meu amigo de faculdade, hoje com 43 anos).

A.C. (abreviatura para não expor Ana Cecília, uma amiga de infância) tem prolapso da válvula mitral (para quem não sabe, apenas uma alteração morfológica). Uma vez Aninha, que frequentava o mesmo curso de teatro que eu, se sentiu zonza no ensaio e avisou a todos: “Meu coração não é bom, vou durar pouco”. Sua mãe, psicanalista, recebeu o telefonema da escola e, em vez de buscar a filha correndo, pediu que todo mundo a ignorasse. Aquilo sim foi uma grande aula!

Pois ontem, no Instagram, vi que A.C. tomou a Pfizer e fez foto chorando “Viva o SUS!” —trajava uma roupa bem decotada para não perder a chance de exibir tatuagens e bijuterias ecoconscientes. Será que, na cara dura, meteu um atestado de condição cardíaca grave ou só com o tal “pseudossopro-todo-mundo-tem” conseguiu vacinar? Pergunto isso porque eu tenho prolapso da válvula mitral. E você também deve ter. E sua tia com mais idade idem, o que me faz pensar que é melhor deixar a vaga na fila para ela.

Diogo (nome fictício para Diego, um cara que trabalhou comigo numa agência de publicidade) leu uma crônica antiga minha sobre síndrome do intestino irritável e me escreveu esses dias: “Eu sei o que é sofrer desse mal e conto com você, pessoa pública [sic], para reclamar que nenhum médico quer dar atestado para a nossa comorbidade [sic]”.

Caro D., eu jamais me prestaria a furar uma fila porque, algumas semanas por ano, sofro de impetuosidade em parte de meu órgão excretor. Mas, nada a ver com a conversa, a palavra “síndrome” me lembrou que sou vasovagal —e que nem para transformar nossa ziquizira em doença crônica severa o Pazuello prestou.

Na real, o que corre à boca pequena é que “estão facilitando” para a galera com hipotiroidismo. Eu já fui diagnosticada com tal doença. Mas repeti o exame e deu que eu não tinha. Então repeti novamente e deu o que um médico chamou de “por enquanto talvez não”. Fica aí a pergunta: com tireoide apenas “em vias de dar ruim, mas é bom fazer o exame todo ano” já posso usar adesivo de solzinho com a palavra “comorbidade” escrita em Comic Sans?

Em um grupo do Facebook sobre fibromialgia o pessoal anda dividido. Metade acha que é condição para vacinar, outra metade está com dor demais para achar qualquer coisa, que dirá entrar no Facebook. Uma noite, insone, comecei a ler que “coceira pode te dar um passaporte para a vida”. Desde que seja séria (autoimune) e você faça uso de imunossupressor. E acabei caindo num fórum em que seres esperançosos perguntavam a médicos se com dermatite herpetiforme, crise de pânico, HPV, dor de cabeça, pedra nos rins e catarata poderiam ser consideradas grupo de risco.

A comorbidade Nutella virou o novo cercadinho VIP. Vivemos tempos em que, em vez de chacoalhar champanhe com pulseirinha neon, sacamos nosso iPhone e nos emocionamos com uma picada de agulha. Todos muito culpados, porque somos legais, mas também muito desejantes de sobreviver, pois temos um presidente genocida. Eu não ia julgar, mas saiu esse texto.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Minha psiquiatra falou em depressão, mas eu prefiro chamar de 'melancovid'


“Você está sendo egoísta.” “Faz mindfulness.” “Vai no cabeleireiro que resolve.” “Faz mais esportes.” Foram alguns dos conselhos que recebi quando tive, recentemente, uma das piores crises da minha vida.

Minha psiquiatra diagnosticou crise de depressão com ansiedades. Eu apelidei de "melancovid". Ou "pandecolia". Enquanto escolho entre os dois nomes, fico mais angustiada.

Há quase um ano e meio de pandemia, uma possível terceira onda de Covid a caminho e sem perspectiva de que as coisas melhorem nos próximos meses, ficou difícil manter a saúde mental intacta.

O novo normal é estar completamente fora do normal.

Nesse período, lutei com todas as forças para me manter equilibrada. Como uma Poliana do apocalipse, enganava meu cérebro pensando que tudo ficaria bem até o início do ano. Criar bebês gêmeos recém-nascidos ajudava a manter minha mente ocupada e esquecer, um pouco, que estávamos no meio de um apocalipse viral. Mas os bebês cresceram e passaram a dormir a noite toda. Eu não.

Acordava no meio da madrugada com taquicardia e pensamentos em looping. Tinha medo de a minha família ficar doente. Pensava nas famílias em situação de miséria. No genocida, que, pelo visto, é o único que dorme na crise sanitária.

Durante o dia, andava me arrastando pela casa, como se tivesse uma corrente amarrada nos pés. Quando me dei conta, estava com a tal "melancovid".

A psiquiatra indicou um estabilizador de humor, o que me deixou ainda mais angustiada. Como pode alguém que trabalha com humor ter que estabilizar o humor?

Sem falar nos efeitos colaterais, como a fome de um mamute e a libido de um panda.

Vivi o complexo de Tostines da psiquiatria: tomo remédio porque estou deprimida ou estou deprimida porque tomo remédio?

Um certo dia, decidi largar tudo e me curar da "melancovid". Peguei meu marido, os bebês e fui para as montanhas. Fiquei três dias sem medicamentos, notícias e redes sociais.

O que descobri? Que precisava voltar correndo ao consultório psiquiátrico para tomar meus remédios.
Sobre a "melancovid", o conselho que sigo veio de um amigo. Quando comentei que não estava bem da cabeça, ele disse: “E quem não está?”.

Estamos todos juntos nesse barco e uma hora vai passar. Nem que seja em 2022.


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo.