segunda-feira, 28 de julho de 2014

Capital jihadista vive ordem com um lado sombrio

Quando sua fábrica foi bombardeada na cidade de Aleppo, no norte da Síria, o empresário considerou entre duas opções tristes: continuar em casa e correr o risco de morrer no próximo ataque aéreo ou fugir como centenas de milhares de outros para um acampamento de refugiados na Turquia. Em vez disso, ele pegou o dinheiro que sobrava e foi para o leste, mudando-se para uma cidade vizinha, Raqqa, a capital de fato da força jihadista que mais cresce no mundo. Lá, ele encontrou um nível de ordem e segurança inexistente em outras partes da Síria. "O conflito na Síria continuará; então, temos de viver nossas vidas", disse o empresário, que forneceu apenas seu primeiro nome, Qadri, enquanto supervisionava dezenas de trabalhadores em sua nova fábrica de roupas infantis em Raqqa.
Muito antes de os extremistas passarem pelo Iraque e tomarem uma grande parte do território, o grupo, hoje conhecido simplesmente como Estado Islâmico, tomou a maior parte da província de Raqqa, que abriga cerca de um milhão de pessoas, e estabeleceu sua sede na capital. Através da administração estratégica e força bruta, o grupo começou a impor sua visão de estado que mistura sua interpretação fundamentalista do Islã com as questões práticas de governança.
Com o tempo, ele conquistou surpreendentemente o respeito de alguns cidadãos cansados da guerra, como Qadri, que aceitam qualquer autoridade capaz de restaurar algo que se pareça com a vida normal. As áreas tomadas pelos rebeldes em Aleppo, em comparação, continuam devastadas pela falta de alimentos e o crime. Mas há um lado sombrio no domínio islâmico, com execuções em púbico e códigos sociais rígidos que deixaram muitos nesta comunidade, antes tolerante, profundamente preocupados com o futuro.
Na cidade de Raqqa, os policiais de trânsito mantêm os cruzamentos livres, o crime é raro, e os coletores de impostos dão recibos. Mas estátuas como os leões do Parque Al Rasheed foram destruídas porque foram consideradas blasfêmias. Espaços públicos como a Praça Al Amasy, onde os jovens costumavam passear e flertar à noite, foram murados com cercas pesadas de metal com as bandeiras negras do Estado Islâmico no topo. Pessoas acusadas de roubar perderam suas mãos em amputações em público.
"O que vemos em Raqqa prova que o Estado Islâmico tem uma visão clara de como estabelecer um estado no sentido real da palavra", disse um professor aposentado na cidade de Raqqa. "Não é uma piada."

A forma como o Estado Islâmico governa em Raqqa oferece um insight quanto ao que ele está tentando fazer à medida que tenta consolidar seu domínio sobre territórios espalhados pela fronteira entre a Síria e o Iraque. Um funcionário do "New York Times" passou seis disa em Raqqa recentemente e entrevistou uma dúzia de moradores. O funcionário e os entrevistados não foram identificados para protegê-los de retaliações de extremistas que já caçaram e mataram aqueles que acreditavam ser contra seu projeto.

Para os que entram em Raqqa, o Estado Islâmico deixa claro, imediatamente, quem está no comando. Na entrada ao sul da cidade, os visitantes antes eram recebidos por um grande mosaico do presidente Bashar Assad e Haroun al-Rasheed, o califa que governou o mundo islâmico a partir de Raqqa no século 9. Agora, há um outdoor preto que homenageia o Estado Islâmico e os chamados mártires que morreram por sua causa.

A prefeitura de Raqqa abriga a Comissão de Serviços Islâmicos. O antigo escritório do Ministério das Finanças contém o tribunal da Sharia e a polícia criminal. A polícia de trânsito fica sediada na Primeira Escola de Segundo Grau da Sharia. O Banco de Crédito de Raqqa é atualmente a autoridade fiscal, onde funcionários coletam US$ 20 todo mês de donos de lojas para pagar eletricidade, água e segurança. Muitos dizem que receberam recibos oficiais carimbados com o logo do Estado Islâmico e as taxas foram mais baixas do que costumavam pagar de propina para o governo de Assad.

"Sinto que estou ligando com um estado respeitável, e não com bandidos", disse um ourives de Raqqa em sua pequena loja enquanto uma mulher comprava ouro com dinheiro enviado de fora do país pelo marido.
Raqqa é um teste para o Estado Islâmico, que impôs a si mesmo como autoridade última nesta cidade no rio Eufrates no início deste ano. O grupo já provou sua força militar, derrotando outras milícias na Síria bem como o exército iraquiano. Mas é aqui neste polo agrícola que ele teve mais tempo para transformar sua ideologia em realidade, um projeto que aparentemente não terminará tão cedo dada a falta de força militar capaz de retirá-lo dali.

Um funcionário de ajuda internacional que viaja para Raqqa diz que a hierarquia do Estado Islâmico foi preenchida por jovens volúveis, muitos deles estrangeiros mais interessados na violência do que na governança. Para manter as coisas funcionando, o grupo pagou ou ameaçou funcionários capacitados para continuarem em seus cargos enquanto colocou supervisores leais a eles para garantir o cumprimento das regras islâmicas. "Eles não podem demitir todos os funcionários e trazer pessoas novas para administrar um hospital, então mudaram o gerente ou alguém que fará cumprir suas leis e regulações", disse o funcionário, falando sob condição de anonimato para não prejudicar seu trabalho.

As três igrejas de Raqqa, que antes abrigavam uma minoria cristã ativa, foram todas fechadas. Depois de tomar a maior, a Igreja Católica Armênia dos Mártires, o Estado Islâmico retirou as cruzes, pendurou bandeiras pretas na fachada e transformou-a em um centro islâmico que exibe vídeos de batalhas e operações suicidas para recrutar novos combatentes.
Os poucos cristãos que permaneceram pagam uma taxa de minoria de alguns dólares por mês. Quando a polícia religiosa do Estado Islâmico faz patrulha para assegurar que as lojas se fecham durante as orações muçulmanas, os cristãos também devem obedecer.

A polícia religiosa baniu fumar cigarros e narguilés em público - uma medida que abafou a vida social da cidade, forçando os cafés a fechar. Ela também verifica se as mulheres cobrem os cabelos e o rosto em público.

Um professor de uma universidade em Raqqa disse que homens armados do Estado Islâmico recentemente pararam um ônibus a caminho de Damasco quando descobriram que uma mulher a bordo não estava suficientemente coberta. Eles seguraram o ônibus por uma hora e meia até que ela fosse para casa se trocar, disse o professor.

De forma mais pragmática, o Estado Islâmico conseguiu manter os mercados com alimentos, e padarias e postos de gasolina funcionando. Mas teve mais dificuldades com a água potável e a eletricidade, que falta por até 20 horas por dia.

Talvez percebendo que os jovens extremistas, atraídos por sua violência sectária, não têm habilidades profissionais, o líder do grupo, Abu Bakr al-Baghdadi, pediu, em uma declaração em áudio, recente para que médicos e engenheiros viajassem para lugares como Raqqa para ajudar a construir seu recém-declarado Estado Islâmico. "A migração deles é uma obrigação para que possam atender às necessidades mais urgentes dos muçulmanos", disse Baghdadi.

Pistas desta mobilização internacional já estão aparentes em Raqqa, onde os homens armados nos bloqueios são, com frequência, sauditas, egípcios, tunisianos ou líbios. O emir da energia de Raqqa é sudanês, e um hospital é administrado por um jordaniano que responde a um chefe egípcio, de acordo com os sírios que trabalham para ele.

Depois do avanço do Estado Islâmico no Iraque no mês passado, o jordaniano foi para Mosul para ajudar a organizar um hospital lá antes de voltar para Raqqa. "Ele falava com um brilho vivo no olhar, dizendo que o califado do Estado Islâmico que começou em Raqqa espalhar-se-ia por toda a região", disse um dos seus funcionários.


Reportagem de Ben Hubbard, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradutor: Eloise de Vylder

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