quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Meu dinheiro de volta

A essa altura já foi dito e redito: o Rio é um Estado falido em decorrência dessa calamidade pública de proporções dramáticas chamada PMDB. O partido -que governou o Estado e a cidade durante mais de uma década, com o apoio reiterado do PT e de boa parte do estamento intelectual e econômico local- continua, inacreditavelmente, no poder, mas suas perspectivas de futuro são pequeninas.
A operação Cadeia Velha, que colocou, finalmente, Picciani na prisão, apontou que o eterno presidente da Alerj recebeu cerca de R$ 58 milhões em propinas entre 2010 e 2015. No mesmo período, empresas que entraram em negócios espúrios com ele deixaram de gastar R$ 138 bilhões em impostos, através da farra das isenções fiscais.
O montante seria suficiente para cobrir cinco anos da folha salarial dos servidores e inativos do Estado, os mesmos que não recebem seus salários e pensões de forma regular há pelo menos um ano. É a prova de que propina é mesmo um negócio bem rentável: para cada real investido em comprar Picciani e seus comparsas, as tais empresas receberam cerca de R$ 2.400 em isenções. Um retorno pra analista financeiro nenhum botar defeito.
O caso da propina e das isenções mostra o óbvio: no grande circo de corrupção sistêmica que penaliza os mais pobres e rouba da população seus serviços públicos mais básicos, enriquecimento pessoal é o de menos. O que importa, mesmo, são as contrapartidas: as benesses que políticos corruptos entregam em troca de desvios e maracutaias.
Nossa imprensa local, no entanto, não parece concordar com a análise: em sua recente reportagem sobre a delação de Renato Pereira, o marqueteiro do ex-prefeito e pré-candidato ao governo do Estado Eduardo Paes, o jornal "O Globo" faz questão de destacar que Paes não teria pedido propina para si -seus malfeitos se "reduziriam" ao caixa 2 de campanha, essa questão, segundo o jornal, "polêmica" na Lava Jato. A manchete da reportagem é, simplesmente "Eduardo Paes não fez pedido de propina, diz delator" -como se as acusações de caixa 2 fossem de importância menor, um mero "embaraço", para usar a expressão empregada pelo próprio jornal. É um desserviço inacreditável, assim como seria absolutamente trágico para o Rio eleger Eduardo para o que quer que fosse.
O Meu Rio, organização que ajudei a fundar, está acompanhando as discussões sobre o Orçamento da cidade para 2018. E as perspectivas são terríveis: tudo indica que o município enfrentará uma quebradeira de proporções semelhantes à do Estado. Em que pese a parte de responsabilidade do atual prefeito-bispo Marcelo Crivella (PRB), a situação calamitosa é, em proporção muito maior, consequência direta de oito anos de incompetência criminosa de Eduardo. O prefeito quebrou a cidade justamente quando ela recebia um dilúvio de recursos públicos e privados. Só não viu quem não quis.
Por fim, o outro grande culpado que parece, por enquanto, escapar ileso desse desmonte do público, é o empresariado que se beneficiou das tais isenções bilionárias. Quem são essas empresas, e o que estamos esperando para exigir a restituição imediata de nossos cinco anos de folhas salariais? A demonização do público em favor do privado, tão em voga nesse país de prefeitos "gestores" e a nova direita do Estado mínimo pra quem não precisa de Estado, nos impede de avançar no sentido de encarar de frente a vilania absoluta desses verdadeiros abutres de recursos do comum. Da minha parte, quero meu dinheiro de volta. E o PMDB longe, bem longe, do poder.


Texto de Alessandra Orofino, na Folha de São Paulo

sábado, 18 de novembro de 2017

As coisas podem agir em nós sem estarem ligadas à vontade de alguém

"As pessoas e as coisas" (Rafael Copetti Editor, 150 páginas) é o segundo livro traduzido no Brasil do filósofo italiano Roberto Esposito. Responsável por um projeto que visa pensar os fundamentos metafísicos da política moderna e suas consequências contemporâneas, Esposito constituiu uma orientação singular capaz de expor os limites de conceitos normativos definidores de nossas formas de vida.
Poucos são os filósofos contemporâneos que exploraram de forma tão sistemática a maneira com que nossa forma de pensar continua a enraizar-se em uma metafísica implícita, que raramente diz seu nome e que, por isto, age de forma muda e forte. Nesse sentido, seus livros participam de um projeto comum paulatinamente desdobrado.
Um destes pressupostos metafísicos maiores é a distinção entre pessoas e coisas, ou seja, entre aquilo que é dotado de dignidade de agentes capazes de deliberação e aquilo que, desprovido de tal dignidade, serve ao uso e usufruto. Ele é o objeto central desse livro agora traduzido.
É rapidamente perceptível que a distinção entre coisas e pessoas aparece a nós como uma distinção de forte cunho moral (nunca tratar pessoas como coisas), mas também psicológico, jurídico, econômico e político.
Há uma espécie de "dispositivo da pessoa", isso no sentido de um conjunto de práticas e procedimentos que constituem um horizonte de ações possíveis, de modos possíveis de existência baseado no respeito à especificidade da pessoa.
É tendo em vista a desconstituição desse dispositivo e da reflexão sobre suas consequências que Esposito se envolve em uma verdadeira arqueologia dos conceitos de pessoa e coisa. Arqueologia que lhe permite lembrar como "coisa" aparece enquanto aquilo que está a serviço da pessoa, aquilo que pode ser submetida a uma relação de posse em relação à pessoa. Ou seja, ela pressupõe a generalização das relações de posse e de usufruto ligado à propriedade.
Só em uma sociedade de proprietários, sociedade nas quais o estatuto fundamental de membro confunde-se com o estatuto de proprietário, podem existir "coisas". Nas sociedades onde as "pessoas" são livres, o preço a pagar por tal liberdade é que as "coisas" sejam submetidas à servidão.
Assim, se são Tomás afirmava que a pessoa era o âmbito no qual a razão poderia exercer o domínio de seus próprios atos, como autor dos seus próprios atos, é porque, para nós, as coisas não agem mais, elas são acionadas por nós.
É claro que o ponto que complexifica tal dicotomia é o estatuto do corpo, nem completamente coisa, nem completamente pessoa. Pois há sempre algo de impessoal no corpo, algo que não é completamente próprio à pessoa, mas impróprio.
Por isso talvez seja tão difícil para nós, que naturalizamos a distinção entre pessoa e corpo em uma chave impulsionada pela teologia cristã, pensar o que é um corpo e o que implica, para nós, não exatamente ter um corpo, mas ser também um corpo.
Pensar tais questões, e essa é uma das grandes contribuições de Esposito, nos permite pensar se o verdadeiro conceito de liberdade social não seria a noção de uma sociedade de sujeitos livres, mas antes uma sociedade de sujeitos e de coisas livres. O que pode ser uma sociedade de coisas livres?
Longe de serem instrumentos ou posses, as coisas podem aparecer como o que nos causam e agem em nós sem que sua forma de agência e de causa esteja ligada à vontade de uma pessoa, à deliberação de uma consciência, um pouco como as obras de artes que nos afetam sem que tenhamos que ver, nelas, a expressão da deliberação de uma pessoa.
Elas não são apenas a sedimentação dos circuitos de histórias que a compuseram, mas também a força de seus corpos, de sua matéria, do trajeto de sua própria materialidade, de sua "vida própria".
Uma sociedade que não submete as coisas a um estatuto subalterno é uma sociedade que aprende a se afastar do estatuto da propriedade e da hierarquia como modelos fundamental de organização e sentido. Ela será capaz de pensar de forma mais adequada, entre outras coisas, seus corpos e a presença política de seus corpos.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Morto aos 81, Moniz Bandeira iluminou sonho de país grande

O Brasil que luta para não ser apequenado por sua própria gente sofreu uma baixa inestimável com a morte de Luiz Alberto Moniz Bandeira; o Brasil gigante, altivo, desenvolvido, justo e protagonista com que tanto sonhou fica mais distante sem sua contribuição acadêmica e sem seu engajamento vibrante.
Professor, pesquisador e escritor, Moniz Bandeira nunca se rendeu a modismos intelectuais, e suas obras são a combinação rara de texto de um excelente historiador com a percepção de um apurado analista de geopolítica.
Vencedor do Prêmio Jabuti, foi um dos poucos pesquisadores a compreender as relações profundas entre o Brasil e os EUA, a divulgar que elas vão muito além de questões conjunturais e históricas, que existe uma ferida estrutural e estratégica entre as duas nações e que um dia precisará ser resolvida.
O desafio do Brasil, dizia ele, será impor-se aos EUA como país realmente soberano e desfazer de forma definitiva a doutrina de que no continente americano não há espaço para uma segunda potência. Para ele, um Brasil justo e desenvolvido para os brasileiros, por suas dimensões e recursos, não escapa do destino de ser potência.
Sem chance para o meio-termo, para a timidez, trata-se de um Estado destinado a ser ator relevante ou a tornar-se um enorme fracasso.
Integracionista convicto, tinha a certeza de que o desenvolvimento da América do Sul só será possível por meio da formação de um bloco político e econômico coeso e que, para isso, uma profunda parceria entre Brasil e Argentina é requisito fundamental.
Profundo conhecedor da política externa americana e da atuação de seus serviços de inteligência, Moniz Bandeira teve, em seu último livro, "A Desordem Mundial", a sensibilidade de perceber que a grande potência aposta nesta década em uma nova ordem calcada na desordem, nas guerras e na desestabilização política e econômica internacional para manter sua hegemonia perante outros gigantes como China e Rússia.
Usou de vasta documentação e de descrição pormenorizada de eventos e conflitos recentes em diversas regiões para justificar sua tese.
Achava que os Estados Unidos continuarão sendo por algumas décadas a principal potência, mas que eles precisarão aprender a conviver com um mundo multipolar, se quiserem evitar uma catástrofe mundial.
Crítico feroz do golpe contra a presidente Dilma -assim considerava-, não teve medo de fazer com densidade as relações entre as conjunturas interna e externa que levaram o Brasil à crise.
Erros na política doméstica, conflito latente entre grupos distintos e com aliados diferentes no mundo e uma enorme miopia do país em perceber que seu crescente protagonismo internacional incomodou grandes atores foram, a seu ver, os principais componentes da derrocada.
Alertou para o fato de que o combate à corrupção se tornou tendência mundial, atingiu países tão distintos quanto Argentina, África do Sul e Coreia do Sul e, com mesmo modus operandi entre eles, um enorme protagonismo das polícias nacionais, do Judiciário e do que por aqui convencionou-se chamar de delações premiadas.
Sua apurada capacidade de análise sistêmica o fazia ver relações entre as manifestações na Ucrânia, a Primavera Árabe, a crise política sul-africana e as quedas das presidentes sul-coreana e brasileira. Relações que, para muitos, parecem pura teoria da conspiração, em grande parte por não estarem nas páginas dos jornais, mas que, em sua opinião, fariam parte de análises e dos livros de história daqui a algumas décadas.

TANQUES DE GUERRA

Escreveu por quase toda a vida e costumava dizer que os livros são como tanques de guerra, as principais armas dos intelectuais.
Sempre rechaçou de forma ferrenha o apego acrítico às teorias políticas internacionais. Para ele, teoria que aparentemente não cheirava, na verdade, fedia, pois a neutralidade não seria só uma utopia, mas, na maior parte dos casos, exercício de má-fé.
O estudo das teorias das relações internacionais, predominantemente anglo-saxãs, sem um forte componente reflexivo a partir de realidades locais e nacionais seria, em sua visão, um cavalo de Troia para países de periferia, cristalizando a hegemonia dos ricos e a irrelevância dos pobres.
Moniz Bandeira partiu, mas antes ajudou a iluminar a estrada dos que sonham com um Brasil grande.
E, sempre que tentarem escurecer esse caminho, sua obra estará pronta para servir como farol. Seus tanques estarão prontos para batalha.

Texto de Leonardo Valente, escritor e professor de Relações Internacionais na UFRJ, para a Folha de São Paulo

sábado, 11 de novembro de 2017

Ações de bloqueio tentam eliminar a existência política dos trabalhadores

Florestan Fernandes costumava dizer que o Brasil era o país da "contrarrevolução permanente". Era um modo de dizer que, em nosso país, o poder não é animado por uma forma de projeto modernizador, mesmo que uma modernização conservadora. Ele se organiza através de múltiplas ações de bloqueio das possibilidades de emergência de transformações estruturais populares.
Por exemplo, imaginar que estamos hoje no meio de um projeto de "ajuste econômico" tendo em vista a produção de riqueza socialmente partilhada é delírio que parece só acometer jornalistas econômicos.
O resto da população percebe claramente que se trata, na verdade, de uma política deliberada de submissão da classe trabalhadora a um padrão extremo de vulnerabilidade social que a impeça de realmente existir politicamente.
Mas isto não pode ser feito sem as múltiplas estratégias de silenciamento, que vão das mais discretas às mais violentas. E uma das mais violentas passa pela tentativa de definir, do ponto de vista simbólico, quem é o povo. Pois quem estaria fora do povo perderia a possibilidade de ser escutado, a legitimidade de exigir a realização de suas demandas.
Isto não poderia ser diferente e há uma dimensão constitutiva da política que passa por tal embate. Há uma certa dimensão da política que deve ser entendida como uma luta para definir onde está o povo.
Neste sentido, não é sem interesse lembrar que, no exato momento em que o povo brasileiro encontra-se submetido a um processo brutal de expropriação econômica, os campos de combate da opinião pública e da cultura assistem discussões sobre onde está o povo.
Fenômenos recentes na cultura, o encerramento de exposições artísticas e as tentativas de cancelamentos de simpósios são feitas em nome do povo, em nome da "maioria esmagadora do povo brasileiro".
Ou seja, a lógica é afirmar que eles são o "povo", com seus pretensos valores saudáveis, seus hábitos trabalhadores, enquanto nós, especialmente intelectuais e artistas, seríamos a verdadeira elite ociosa que vive de dinheiro público, de benesses de fundações privadas internacionais, propagando comportamentos viciosos e doentios.
Enquanto eles ficam calados diante do sistema neoliberal de blindagem das elites financeiras que drenam as riquezas do país e tomaram de assalto o poder político, procurando chantagear a soberania popular através da ameaça da "desconfiança dos mercados", eles querem fazer crer que artistas e intelectuais seriam os verdadeiros sanguessugas da riqueza nacional, em clássica reedição dos ataques nazistas contra o "bolchevismo cultural".
Como se vê, a estratégia gira em torno de quem é capaz de constituir o "povo" como ator político e, com isto, designar quem está fora do "povo" como enunciador.
Por isso, talvez seja o caso de inverter as acusações e lembrar que há sim momentos em que as estratégias populistas são necessárias, mesmo que provisoriamente.
Uma lembrança que pode nos levar a dizer a quem procura simplesmente nos calar: "Não, essas e esses que assim falam não são o Brasil".
Na verdade, essas e esses habitam outro país, um país inominável e infame que não se incomoda em ser defendido por militares com sanha golpista inconfessa e oligarcas que passam seus cargos públicos de pai para filho. Um país que sonha em acalmar medos apelando à violência de Estado, que delira com o comunismo saindo por todos os poros.
Esse país sem nome não se deixa afetar com as verdadeiras violências sexuais contra mulheres, travestis, homossexuais e crianças; é completamente indiferente à espoliação da classe trabalhadora através de aparatos legais criados para retirar toda capacidade de organização e luta de quem recebe salários miseráveis e humilhações cotidianas.
Um país que nunca se afetou por seus próprios genocídios indígenas e por seu racismo que, como se diz aqui, não existe, já que louvamos a miscigenação.
Esse país, no entanto, nunca foi o Brasil. Contra ele sempre existiu um outro que se chama Brasil e que sempre lutou para emergir.
Para quem não sabe onde está este país, que lembrem dos gritos de revolta de Zumbi, da tenacidade de Pagu, do espírito inquebrantável de Luís Carlos Prestes, dos cabanos, dos que lutaram de todas as formas contra a ditadura militar, dos camponeses mortos em suas lutas por terra, dos estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento.
Este país é enorme, mas muitos querem nos fazer acreditar que ele não existe e que é fraco.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

sábado, 4 de novembro de 2017

Livro de Orlando Figes sobre a cultura russa abusa de caricaturas


Com suas 700 páginas, "Uma História Cultural da Rússia" é um livro ambicioso, e útil, na profusa quantidade de informações que apresenta, mas desproporcionalmente limitado na dose de reflexão e análise que contém.
Embora afirme, na apresentação, que "a Rússia convida o historiador cultural a sondar debaixo da superfície da aparência artística" (o que, de resto, é o mínimo que se pode esperar de um historiador), tive a impressão de que o autor não atendeu muito bem o convite.
Financiado por uma poderosa fundação privada inglesa, subvencionada por uma das maiores multinacionais do ramo da alimentação e refrigerantes, o autor passou três anos se dedicando apenas a esse livro, fazendo viagens e contratando uma equipe de pesquisadores.
Por isso me atrevo a cogitar que, em alguma medida, há outro tipo de convites envolvidos aqui, "por baixo da superfície da aparência artística". Afinal, por que tantos livros sobre a Rússia (e quase sempre escritos por americanos e ingleses)?
Por que tantos financiamentos para a produção de livros sobre a Rússia, que acabam, quase automaticamente, traduzidos e publicados no mundo todo? Por que esses livros seguem uma linha editorial e até um vocabulário tão uniformes? Não seria o caso de perguntar, também, onde estão os livros sobre a história dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, do Império Colonial Britânico? Seria o assunto irrelevante? Ou a história é uma coisa horrível que só acontece com os outros?
Não creio que a explicação esteja no centenário da Revolução Russa de 1917, pois o livro de Orlando Figes, por exemplo, foi publicado originalmente em 2002.
Seja como for, ainda na apresentação que abre o volume, o autor aventura uma interpretação mais geral do seu objeto de estudo: "De forma extraordinária, talvez exclusiva, a energia artística do país foi quase inteiramente dedicada à busca da compreensão da ideia de sua nacionalidade. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarregado com a tarefa da liderança moral e da profecia nacional."
Portanto o autor reconhece aquilo que, de fato, salta aos olhos: o grau incomum do enraizamento da arte russa na vida histórica e social do país, bem como a constância impressionante dessa experiência ao longo de séculos. Isso poderia ser encarado como o maior diferencial e a fonte principal do alcance da arte russa.
Figes, porém, usa palavras que mais encobrem do que esclarecem essa constatação. Dizer que o artista é "sobrecarregado" denota algo negativo nessa experiência, postula uma espécie de peso morto que o artista tem de carregar e que reduz a dimensão de sua obra —quando se trata justamente do contrário.
Em seguida, atribui ao artista "a tarefa da liderança moral e da profecia nacional". Por que não chamar essa liderança de política, social, ou pelo menos intelectual? Seria, no mínimo, mais concreto e compreensível do que "moral".
Conceito que, aliás, é importante observar, pulula pelas páginas do livro. Sempre que o texto precisa se resguardar do risco de alguma palavra mais concreta, o autor recorre ao adjetivo "moral". Por exemplo: diante da violência das revoltas dos camponeses, no final do século 19, o autor diz que "as classes instruídas foram lançadas num pânico moral".
O emprego de palavras de algum teor religioso é sistemático no livro de Figes. A expressão "profecia nacional", no trecho citado, ilustra o procedimento retórico recorrente. O intuito, no caso, é descaracterizar o empenho intelectual e crítico dos artistas em se envolverem a fundo nos processos históricos da Rússia e na vida concreta de seu povo, para deixar, em seu lugar, na mente do leitor, algum tipo de conteúdo irracional, a-histórico e de pouco valor objetivo.
Por exemplo, quando o autor trata das ideias de um líder aristocrata da revolta dos dezembristas, de 1825, usa expressões como "cultuar o altar do campesinato", "renunciar ao mundo pecaminoso onde tinham nascido os filhos da nobreza" e (claro, não podia faltar) "a busca moral" do nobre, que conspirou contra Nicolau 1º.
Ao descrever o movimento de massas espontâneo que, em 1874, levou milhares de estudantes a viver entre os camponeses, no evento conhecido como "ir ao povo", Figes diz que "era uma forma de peregrinação", "do tipo de pessoa que vai em busca da verdade num mosteiro", "esses missionários se sentiam culpados diante dos servos", "tentavam se libertar do mundo pecaminoso dos pais", "partiam com espírito de arrependimento", "esperavam redimir o próprio pecado: terem nascido privilegiados".

LÉXICO E CARICATURA

Essa técnica retórica, essa tradução forçada de um movimento político e cultural em termos de experiência religiosa, tem por objetivo subtrair o caráter de revolta efetiva e de anseio de justiça concreta, patentes no conjunto daquele acontecimento histórico.
As palavras "inveja" e "ressentimento" são constantemente empregadas por Figes quando se trata de uma revolta de pobres contra ricos. E, em troca, o autor adota palavras como "arrependimento" e "redenção", no caso de ricos (ou remediados) que se manifestam em favor de pobres.
Não admira que a palavra "classe" só apareça nessas 700 páginas duas vezes, pelo que notei.
Uma, para se referir ao "ódio de classes", que, obviamente, para Figes, só poderia ser dos operários e da massa pobre contra os ricos, na Revolução de 1917, e não o contrário. E a outra, numa citação de Dostoiévski, que, em sua fase mais nacionalista, escreveu: "Todo russo é russo em primeiro lugar e só depois pertence a uma classe".
Uma tese rotineira no pensamento nacionalista e conservador de qualquer país e qualquer tempo e que, por isso mesmo, pouco ajuda a entender os dilemas dos intelectuais russos da época.
Mas há outras ausências lexicais significativas no livro.
A obra abrange o período entre os séculos 17 e 20 (embora, às vezes, recue mais ainda no tempo, e são esses seus melhores trechos). Mesmo assim, não vi nenhuma vez em suas páginas as palavras "capitalismo" e "colonialismo", certamente os processos centrais de toda aquela época.
O fato de o Império Russo também estar envolvido nesses processos, ainda que com algum atraso e de forma periférica, torna essas ausências ainda mais reveladoras. Sobretudo quando a atividade dos artistas e intelectuais, que constituem o próprio objeto do livro, se mostra tão explicitamente consciente dos grandes movimentos históricos de seu tempo, sobre os quais incide boa parte de seus questionamentos.
Minha hipótese é que se trata de um esforço geral, presente nesse livro e em outros semelhantes, para descontextualizar os fatos apresentados, abstrair a experiência histórica russa do seu ambiente internacional de conjunto.
Porém, como se trata de um livro de história, é impossível não apresentar algum contexto. Dessa forma, o autor procede a uma seleção programática de elementos contextuais, na qual o que fica de fora pesa mais do que o que entra em cena.
Por exemplo, ao tratar da presença de membros da elite russa em Paris, durante alguns anos, após a vitória sobre Napoleão, em 1812, o autor afirma que "eles foram profundamente marcados pelo seu breve encontro com o Ocidente, que confirmou sua convicção da dignidade pessoal de todo ser humano".
Contudo, a visão que os intelectuais russos tinham do "Ocidente" estava longe de ser tão uniforme. Pois o colonialismo, que exauria a riqueza de enormes populações em benefício de poucos, a escravidão, que submetia milhões de africanos, e a franca exploração do povo pobre das cidades de ponta, como Londres e Paris, povoavam de dilemas os pensamentos da elite intelectual russa e tornavam seu conceito de "Ocidente" muito mais problemático, e concreto, que o de Figes.
Outro exemplo do mesmo procedimento: ao relatar a persistência de crenças pagãs na sociedade russa, o autor diz que as famílias nobres se apegavam a "superstições pagãs que qualquer europeu desdenharia como bobagem de servos", numa generalização que "qualquer europeu" veria no mínimo como arriscada.
A imagem da Europa que Figes esboça para compor o fundo contra o qual, às vezes, projeta os temas russos é uma abstração, um cenário difuso, calcado em retórica.

'LEVEZA' LIMITADORA

Se Figes nos permitisse pelo menos vislumbrar esse contexto de maior escala, muitas situações apresentadas no livro ficariam mais compreensíveis e menos rasas.
Por exemplo, quando o autor diz, e repete com ênfase (como se nos avisasse: não se esqueçam), que Liev Tolstói "era um conde que queria ser camponês". Caricaturas e simplificações desse tipo, infelizmente não raras no livro, nada esclarecem, incentivam no leitor uma atitude desdenhosa e superior e, em vez de aprofundar a discussão, a reduz quase à dimensão da fofoca.
Isso nos leva a observar que, na exposição de seu material, o livro, muitas vezes, adota um critério antes jornalístico do que ensaístico.
Qualquer história ou circunstância grotesca, picante, tétrica ou cômica terá garantido um espaço de algum destaque, em detrimento do esforço para compreender significados mais gerais e em prejuízo da contextualização, quer em relação ao tempo que nos separa de tais fatos, quer em relação ao que ocorria em outras sociedades, na mesma época.
Desse modo, convenhamos, só resta ao leitor tentar entender tais informações pela perspectiva "moral".
Ao discutir a presença do elemento nacional nas obras artísticas russas, Figes tende a se deter em questões rasas.
Um exemplo é o caso do compositor italiano Catterino Cavos. Quando o Pedro o Grande fundou a nova capital, São Petersburgo, contratou muitos artistas e artesãos europeus. Entre eles, o compositor Cavos, que chegou a Petersburgo aos 23 anos de idade e ali viveu até os 65 anos.
Como Cavos foi nomeado diretor do teatro de ópera na capital, compôs obras com temas históricos russos para serem encenadas ali, incorporando melodias folclóricas russas. Isso foi, mais ou menos, o início da extraordinária tradição da ópera russa, na qual pesa bastante a temática histórica nacional.
Pois basta isso para Figes considerar a situação "irônica" e, em tom de zombaria, tirar a seguinte conclusão: "O 'caráter nacional' da música russa, portanto, foi desenvolvido pela primeira vez por um estrangeiro".
Ou seja, o pressuposto de Figes é que só valeria falar em caráter nacional das obras se o elemento estrangeiro estivesse de todo ausente. Mas o estranho, nesse trecho, não é só o fato de Cavos ter passado quase dois terços da vida na Rússia, o que, por si só, já relativizaria bastante a conclusão de Figes.
O grave, o limitador, me parece, está no método adotado pelo autor, que toma os dados isoladamente (o compositor que nasceu na Itália, de um lado; a ópera russa, do outro), em vez de tentar compreendê-los em suas relações.
Seria mais produtivo entender o caráter nacional a partir do teor das relações entre os elementos locais e os estrangeiros. Verificar como o elemento externo adquire novos e imprevistos significados em seu novo ambiente. E acompanhar essa dinâmica à luz dos grandes processos históricos em curso.
Desconfio que, no caso do compositor Cavos, Figes, além disso, não tenha resistido à tentação de fazer uma piadinha, expediente compulsório na sua orientação jornalística, que impõe que seu livro seja "leve".

ESTEREÓTIPOS E MITOS

Esse método, que deixa de lado as relações e os processos para se fechar nos elementos isolados, leva o autor a interpretar certas obras de forma também limitadora.
Ao tratar do conto "A Aldeia", de Ivan Búnin, e do livro "Infância", de Maksim Górki, Figes reduz o alcance dos textos, tratando-os como a constatação da brutalidade e ignorância intrínsecas dos camponeses, descritas nas páginas anteriores, referentes à Revolução de 1905.
No entanto, nem é preciso olhar "por debaixo da aparência artística" para enxergar naquelas obras um questionamento sobre as condições em que viviam os camponeses, sobre o regime de relações que produzia tais condições e até sobre a validade de conceitos como brutalidade e ignorância.
Mas aí se abriga uma tese constante no livro de Figes, útil para o que é, senão seu propósito principal, pelo menos uma preocupação subjacente em seus argumentos.
Vejamos um exemplo. Quando trata da ópera "Boris Godunov", de Mússorgski, Figes aponta a influência do historiador Kostomárov.
A ópera se passa num período de grande turbulência, à beira de um vazio de poder. Kostomárov, num livro de 1866, descreve assim a condição dos camponeses no fim do reinado de Godunov, em 1605:
"Estavam dispostos a se lançar com alegria a quem os comandasse contra Boris, a quem lhes prometesse uma melhora de vida. A questão não era aspirar a essa ou aquela ordem política ou social; a imensa multidão de sofredores se ligava facilmente a um novo rosto, na esperança de que, sob a nova ordem, a situação ficasse melhor do que a antiga."
Disso, Figes prontamente extrai uma conclusão ambiciosa: "É uma concepção do povo russo —sofredor e oprimido, cheio de violência destrutiva e impulsiva, incontrolável e incapaz de controlar o próprio destino— que se aplicaria igualmente a 1917".
O fato de Kostomárov estar se referindo a um período tão específico da história russa que ficou conhecido como "o tempo turbulento" ("smútnoie vrémia") não inibe Figes de ver ali uma "concepção do povo russo", "incapaz de controlar o próprio destino", e, de modo mais arbitrário ainda, evocar a Revolução de 1917 como prova de tal tese.
Assim se constroem os estereótipos e os mitos históricos, por mais que estejam municiados de notas de rodapé e referências bibliográficas.
É revelador observar como aflora, aqui, do nada, a Revolução de 1917. É uma espécie de fantasma que, num caso curioso de anacronismo em que a história anda para trás, assombra boa parte da exposição que Figes apresenta dos séculos 18 e 19.
A seção dedicada ao período soviético pouco ajuda a compreender o que se passou, no geral. O texto se resume, praticamente, a relatos individualizados dos piores momentos da repressão do regime de Stalin sobre alguns intelectuais e artistas.
Aqui, o critério jornalístico adota ênfases panfletárias, uma linguagem bombástica, ausente em todo o resto do livro, que estressa o leitor e bloqueia qualquer entendimento mais racional. Limito-me a observar que a diversidade da cultura do período soviético, que o próprio livro deixa transparecer, põe em dúvida a tese da sociedade "monolítica" que o autor repisa.
Ainda assim, o livro de Figes será útil para o leitor conhecer o fenômeno da arte russa. Contanto que esteja munido de um ferrenho senso crítico e prevenido contra armadilhas retóricas e generalizações afoitas, ele poderá, por conta própria, estabelecer relações entre os dados que o livro apresenta e, com menos espalhafato, buscar os caminhos para o entendimento da questão.
Um mérito especial é o espaço dedicado ao influxo da cultura dos mongóis, ou tártaros. Pois Gengis Khan e as tribos nômades que formaram a chamada "Horda de Ouro" ocuparam boa parte do território eslavo por 200 anos, do século 13 ao 15. A riqueza da contribuição desses invasores, que acabaram por se integrar à vida russa, não costuma ser destacada.
Outro benefício que o livro oferece está nas referências à pintura russa do século 19, pois é um período bem menos lembrado do que aquele dos artistas de vanguarda das primeiras décadas do século 20.
Grandes pintores como Levitan, Riépin, Venetsiánov, Verescháguin, Vasnetsov são comentados com algum destaque, e suas obras merecem ficar ao lado das melhores de seu tempo.

Análise de Rubens Figueiredo, para a Folha de São Paulo. Rubens Figueiredo é tradutor e escritor.