segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Variante delta não existe no mundo fantástico das fotos dos influenciadores digitais


No tutorial de hoje, vamos aprender uma técnica de maquiagem que está super em alta no Instagram: a positividade tóxica. O segredo é disfarçar a crise sem precedentes que estamos atravessando com um conteúdo despudoradamente autocentrado, carregado com pinceladas de discursos de autoajuda daqueles bem fáceis de achar na internet.

O primeiro passo é deixar todo o senso crítico de lado. Não é hora para julgamentos. Se a postagem de uma pessoa sorridente acompanhada da hashtag #goodvibesonly incomoda, esse tutorial é para você.

Eu sei o que passa pela sua cabeça: “Essa pessoa não tem problemas? Não se abala com a brutalidade do contexto sócio-econômico-ambiental? Cadê as sequelas deixadas pela pandemia? Nem um remedinho controlado vazando na cabeceira, nem uma perebinha psicossomática? Só eu que perco um tufo de cabelo cada vez que escuto a voz do Bolsonaro? Onde será que ela comprou essa canga?”.

Quando você não pode mudar o ambiente à sua volta, mude a si mesmo, já dizia Buda, Gandhi ou um usuário anônimo do site frasesparaorkut.com, fonte também da máxima “se não consegue derrotar o inimigo, junte-se a ele”. É hora de apostar todas as suas fichas na única instituição funcionando no Brasil atualmente —o selfie no espelho de biquíni com uma legenda edificante.

Manter o otimismo no Brasil em 2021 pode até parecer complicado, mas não se esqueça de que as aparências enganam. O truque para cobrir tantas imperfeições, conhecidas também como fatos, consiste na base.

Alguns chamam de pensamento positivo, eu prefiro negacionismo, o que dá no mesmo. Se você achava que negacionismo era um recurso que só bolsonarista podia usar, é hora de se atualizar.

Muitos influenciadores digitais já embarcaram na tendência, postando registros de suas viagens para um mundo fantástico no qual não existe variante delta, escândalos de corrupção e catástrofes ambientais. Você vai se surpreender com como o negacionismo pode ser instagramável.

Última dica. Essa maquiagem não é a prova de lágrimas e não é adequada para certos ambientes, como fora da internet, por exemplo. Para garantir um resultado homogêneo e duradouro, é só evitar o contato direto com a realidade. Viu como é fácil?


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sábado, 28 de agosto de 2021

Latir, latir, latir


Mais do que o cheiro da chuva no quintal, o ipê amarelo do vizinho ou as maritacas na amoreira, o que me pegou ao mudar para uma casa foram os sons da vizinhança. Uma porta range. Uma panela de pressão apita. Um bebê chora. Alguém varrendo às vezes lembra um afoxé endiabrado num baião do Gil, outras a vassourinha langorosa num jazz do Chet Baker. Pios, claro, sempre —se é verdade que os pássaros produzem sons para atrair parceiros, a vida deles é um Tinder ininterrupto. Todo domingo de manhã uma pessoa estuda tuba. Está na mesma lição desde maio, mas não me incomodo, pelo contrário: os sofridos fom fum fem fam fum me reafirmam que a vida segue, que apesar dos pesares, a poucas dezenas de metros da minha janela alguém se dedica a algo que não tem nada a ver com mentiras, queimadas, fuzis.

Os sons que mais me interessam nesta nova vida ao rés do chão, no entanto, não vêm de humanos: são os latidos. Eu diria que estou cercado por uma matilha, pois embora estejam separados por muros e talvez não se conheçam pessoalmente, fica evidente pelos latidos a intimidade da turma. Tô aqui trabalhando, de repente um puxa o coro e todos seguem, empolgadaços, numa conference-call. Latem, latem, latem, como se não houvesse amanhã, aí a coisa vai esfriando, arrefecendo e voltam todos para seus silenciosos afazeres.

As pautas mudam. Há momentos em que a indignação é patente: um salsicha lá da ponta do quarteirão começa a ganir bravíssimo para —quem sabe?— um carteiro e todos o acompanham, solidários. É o panelaço deles. Posso ouvir por entre as rosnadas: #FORACARTEIRO, #VOUMORDERSEDEX #XIXINACONTADELUZ. Outras vezes eles parecem estar se divertindo. Como se um latisse “Vai, Curintchaaaa!” e os outros seguissem com “El el el, bulldog da Fiel!”, “Aqui é vira-lata, porraaaa!”.

Ontem eu estava lendo “O corpo encantado das ruas”, do grande Luiz Antonio Simas. Fluente na língua dos homens e dos deuses, passeando entre a Gamboa e o Daomé, o historiador falava sobre as muitas entidades que moram nas ruas da cidade. Exu, Zé Pilintra, Legba: “inimigo do conforto, vez por outra desarticula tudo para estabelecer a necessidade de fundar a experiência em bases diferentes”. Eram umas duas da manhã, eu lia sobre tais deuses que fomentam a vida bagunçando os coretos e a cachorrada começou a uivar, como lobos pra lua num desenho animado. “Ó eles aí!”, pensei na hora. Exu em prédio não deve dar conta do serviço. Um só pra vinte, quarenta apartamentos. Dilui. Em casa, os ouvimos com mais clareza.

Antes, eu não via muita graça em cachorro. Achava-os de uma fidelidade, perdão, canina. Puxa-sacos de uma espécie que, convenhamos, não merece respeito. Mas quando eles começam a latir em uníssono às duas da manhã, mandando às favas a submissão, lembram-me mais uma turma de skatistas, uns punks, uns Novos Baianos, uns Monty Pythons. Com a cachorrada não tem lei do Psiu, criança dormindo, manhã, tarde, noite, doutor, madame ou general. Se não são os cachorros também entidades encantadas das ruas, meu caro Simas, certamente têm parte com.

Eu nunca tive cachorro. Na infância, meus pais não deixaram, depois de adulto eu é que não quis –já basta alimentar, lavar, e limpar a mim mesmo e a duas crianças. Agora, no meio desta madrugada interminável, minha vontade não é nem de comprar um cachorro, mas de me juntar a eles: sair no quintal e latir, latir, latir, como se não houvesse amanhã. Até porque, pelo andar da carruagem, talvez não haja.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

O vegano, o vegetariano, o carnívoro e o canibal


Falemos dos seres humanos e de seus hábitos alimentares. No que diz respeito à ingestão de proteína animal, a espécie pode ser catalogada nas quatro seguintes categorias: vegano, vegetariano, carnívoro e canibal.

vegano é o mais restritivo. Rejeita, condena, abomina qualquer comida de origem animal. Não come mel, não bebe leite, pega a lupa para olhar o contrarrótulo da garrafa de vinho que pode ter sido clarificado (a palavra é clara) com albumina oriunda de ovos.

O rígido escrutínio do vegano não se restringe à dieta. Ele não usa roupas de seda –extraída do bicho-desse-material. Muitos se recusam a beijar a boca de um parceiro sexual perfeitamente transável, pois a mesma boca acabara de devorar um hambúrguer.

Quanto ao vegetariano, ele adequa o dilema moral às agruras do cotidiano. Em tese, ele não mastiga cadáveres de animais. Existem o ovovegetariano, o lactovegetariano e a simbiose dos dois, o pudimvegetariano.

No corre do dia a dia, o vegetariano costuma flexibilizar o regime. Surgem aí híbridos como o peixevegetariano e o linguiçavegetariano. Se o feijão tem toucinho boiando, ele pode separar uma colherada de caroços vegetarianamente corretos.

Refiro-me ao carnívoro por este termo, pois é assim que o chamam o vegetariano e, mais enfaticamente, o vegano. “Carnista” é outra nomenclatura empregada. Trata-se da pessoa que, além de vegetais, ovos, leite e mel, come animais abatidos especificamente para esse fim.

Por último, mas nem de longe menos importante, temos o canibal.

O canibal chama o pai de coxinha, a mãe de empadinha e come os dois com ketchup.

Não é à toa que o canibalismo –no contexto particular da humanidade, denominado antropofagia– alcança o píncaro da rejeição entre as coisas mais escrotas que um indivíduo possa perpetrar.

Se hoje você janta alguém, você abre jurisprudência para que amanhã alguém possa almoçar seus filhos. É o fim da picada da autodestruição. É abjeto. O canibalismo é um tabu universal, com diminutas exceções em sociedades tribais que ritualizam o negócio absurdamente.

Neste exato instante, tem um canibal no recinto.

Ele atenta contra a própria existência da espécie. Juntos, os outros três facilmente conseguiriam amarrá-lo. Mas está difícil chegar a um acordo.

O vegano detesta o canibal acima de tudo, mas detesta o carnívoro só um pouco abaixo disso e nutre profundo desdém pelo vegetariano flexível.

O vegetariano espera até o último segundo para se posicionar porque, afinal, timing é tudo. E julgamentos precipitados são… bem, precipitados.

O carnívoro toma cerveja com o canibal, dá risada e diz que o sujeito é um pândego. Acha o vegetariano e o vegano dois chatos de galocha. Jura pela mãe mortinha que o canibal só é canibal da boca para fora.

O canibal palita os dentes e arruma a mesa porque está quase na hora da janta.


Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Se Bolsonaro der o golpe, como serão os primeiros dias no Brasil sob esse ditador atípico?


Dia 1: A família é a célula mater da sociedade. Por isso, Jair Bolsonaro vai derrubar todos os pesos e contrapesos que impedem sua família de ser o Estado. O ponto mais urgente será atacado no primeiro dia —seus filhos investigarão, julgarão e punirão os esquemas de corrupção de seus filhos. STF, Polícia Federal, imprensa e todos os entraves para rachadinhas, trocas de favores, compra superfaturada de vacinas e negociação de imóveis em dinheiro vivo serão detonados.

Dia 2: Protegida por seu exército, a família Bolsonaro controlará a distribuição de gás, o fornecimento de gasolina, a luz elétrica, o transporte de massas e o gatonet. Paramilitares baterão de porta em porta para coletar as tarifas e, a fim de garantir a liberdade de cada comunidade, cobrarão uma tarifa.

Dia 3: Para acabar com a concorrência, Bolsonaro destituirá governadores e prefeitos.

Dia 4: Com os filhos protegidos e um esquema financeiro de pirâmide estatal montado, Bolsonaro passará o resto de sua vida como sempre quis, sem fazer nada. Vez ou outra fará uma ameaça, visando a continuidade da cultura do medo.

Dia 5: Para acabar com as fraudes nas eleições, Bolsonaro acabará com as eleições.

Dia 6: Para acabar com chantagens do Congresso, Bolsonaro acabará com o Congresso.

Dia 7: Bolsonaro andará de jet ski, comerá camarão com leite condensado e descansará.

Dia 8: Dada a alta da inflação dos alimentos, Bolsonaro tomará uma atitude drástica  —exigirá que a população compre alimentos somente de sua família. Eduardo fritará hambúrgueres a R$ 670, Flávio venderá chocolates e Carluxo assumirá a feira. De tarde, Bolsonaro jogará peteca com Malafaia.

Dia 9: A contragosto, Bolsonaro irá inaugurar uma loja da Havan com uma estátua sua.

Dia 10: Os indicadores serão péssimos. Inflação incontrolável, desemprego altíssimo, fome batendo recordes. Milícias rivais tentarão tomar o controle do Estado. Milhares morrerão diariamente por causa de doenças que seriam evitadas por vacinas. Em reunião de emergência com seus filhos, Bolsonaro resolverá agir —nomeará governadores para cada um dos estados brasileiros. Em seguida botará a culpa da crise neles.


Texto de Renato Terra, na Folha de São Paulo

Amor, sexo e tesão na maturidade


Recentemente, um jornalista me perguntou: “O que muda na vida amorosa e sexual quando envelhecemos?” Antes de responder, lembrei-me de uma situação constrangedora que aconteceu há alguns anos.

No fim da tarde de um sábado de Carnaval, em uma das ruas mais movimentadas da Zona Sul do Rio de Janeiro, meu marido me beijou apaixonadamente. Imediatamente um grupo de jovens fez um círculo ao nosso redor. Eles deram risadas, gritaram e aplaudiram alegremente.

Uma menina fantasiada de princesa gritou: “Tá melhor que a gente!”.

Fiquei completamente desconcertada com a situação embaraçosa. Nunca poderia imaginar que seria o foco de interesse de tantos jovens no Carnaval carioca, já que milhares de outros casais também se beijavam, se abraçavam e protagonizavam cenas mais ousadas. Por que um casal, que só estava se beijando, chamou tanta atenção?

Um garoto fantasiado de príncipe gritou: “Olha que bonitinho, dois velhinhos se beijando”.

Só então percebi o motivo da aglomeração. Como dois velhinhos têm a coragem de se beijar apaixonadamente sem se preocupar com o olhar dos outros? Como dois velhinhos têm a ousadia de não serem invisíveis e de não esconderem o seu amor? Como dois velhinhos caquéticos e decrépitos podem ser tão ridículos e sem noção?

Acho que não tínhamos nem idade ou aparência para sermos classificados como velhinhos. Mas, aqui no Brasil, depois dos 50 (talvez antes) já somos enxergados como velhinhos que não podem namorar, beijar na boca, transar, ter tesão. Já somos considerados assexuados e invisíveis e experimentamos uma espécie de “morte simbólica” no amor e no sexo.

É o que eu chamo de velhofobia: a violência verbal, psicológica e física, o estigma, a intolerância, a discriminação, a exclusão, os xingamentos, as “brincadeirinhas” e os preconceitos contra os mais velhos. Para os jovens foliões, eu e meu marido deveríamos ter ficado escondidos dentro de casa no Carnaval. Deveríamos sentir vergonha, e até mesmo culpa, por sermos um casal apaixonado, pois vivemos em uma sociedade velhofóbica que só valoriza a sensualidade, tesão e beleza da juventude. Não é à toa que os brasileiros têm pânico de envelhecer.

Conversando com o jornalista, descobri um outro lado que não consegui enxergar naquele momento constrangedor.

O grito da princesa: “Tá melhor que a gente!” tem um fundo de verdade. Estou muito melhor agora do que quando tinha a idade dela. Só com a maturidade aprendi que reciprocidade é receber do meu amor o que eu mais preciso para ser feliz, e retribuir dando o que ele mais precisa. Aprendi que muitos conflitos conjugais decorrem da falta de reconhecimento das reais necessidades do outro. Aprendi a não brigar, criticar, reclamar e discutir por bobagens; a ser mais companheira e generosa; a escutar com mais atenção e doçura; a rir das coisas que antes me irritavam; a confiar e me sentir segura; a não economizar beijos, abraços e cafunés; a respeitar o tempo e o espaço do outro; a compartilhar a vida com carinho, cuidado e compreensão. Aprendi a importância de dizer todos os dias: “eu te amo, você é o amor da minha vida”.

Em meio à tragédia brasileira, não consigo nem imaginar como conseguiria sobreviver física e emocionalmente sem ter o meu amor juntinho de mim.

Como aconteceu comigo, muitos homens e mulheres que eu tenho pesquisado somente na maturidade encontraram um amor mais recíproco, verdadeiro e prazeroso.

Hoje, se a princesa gritasse: “Tá melhor que a gente!”, eu daria um beijo ainda mais apaixonado no meu amor. Talvez até conseguisse dar risadas e considerar um elogio as “brincadeirinhas” dos jovens carnavalescos.

Será que a princesa encantada e seu príncipe consorte já sabem que serão os “velhinhos bonitinhos” de amanhã?​


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

Gerontolescência transforma outono da vida em primavera


Os 20 anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial se caracterizaram por alta nas taxas de natalidade, sobretudo nos países "centrais", que tanta influência exercem na cultura mundial, e por expressivo crescimento econômico.

Foi como se a sociedade, inocentemente, festejasse o final da tirania, os horrores do Holocausto, as atrocidades que levaram muitos à morte e uma destruição apocalíptica.

E os casais tiveram mais filhos, muitos. Um boom de nascimentos. Nascia a geração baby-boomers.

Mais saudáveis do que qualquer geração precedente, beneficiários de avanços científicos –vacinas e antibióticos antes inexistentes, para citar apenas dois. Mais bem informados, com níveis educacionais superiores aos de seus pais, que dirá avós. E com um pouquinho de dinheiro no bolso –até a Segunda Guerra, mesmo nos países mais ricos, as crianças tinham que trabalhar para comer assim que chegassem aos 12, 14 anos.

E o que fizemos, por sermos muitos, mais saudáveis e informados? Impactamos todas as etapas de vida desde então, começando com a "invenção" da adolescência, como a entendemos hoje. Rebelamo-nos, viramos a mesa, tornamo-nos ativistas, ousamos, criamos costumes.

Dos Beatles à Tropicália, dos movimentos estudantis de 1968 às lutas contra a opressão —e, para as mulheres, o começo da revolução sexual. Com a pílula, elas deixavam de ser escravas do aparelho reprodutor.

Sou de uma geração que, quando íamos para o quarto com os namorados/as e trancávamos a porta, os pais não sabiam o que fazer. Crescemos. Agora, quando vamos fazer um cruzeiro com alguém que conhecemos "outro dia", são os netos que não sabem o que dizer.

Da adolescência à gerontolescência. Novos padrões de comportamento, estilos de vida. A mesma ousadia de antes, a mesma rebeldia –só que 50, 60 anos depois, com maior conhecimento, discernimento e maturidade.

Como poderíamos envelhecer do mesmo jeito que nossos pais, que dirá nossos avós? Assistimos agora a uma nova transição. Claro, não da infância para a idade adulta, mas desta para a tal da velhice.

Como vai ser? Daqui a 15, 20 anos, veremos. O certo é que, da mesma forma que em um dicionário dos anos 1950 não encontraríamos uma definição de adolescência como a entendemos hoje, ainda é cedo para definir gerontolescência, pois a estamos definindo.

Se a adolescência dura cinco ou seis anos (ou deveria, embora seja bem verdade que tenho colegas de faculdade que se comportam como tal, o que não recomendo), a gerontolescência dura dos 55/60 anos aos para lá dos 80. É muito tempo para virar a mesa, se rebelar, ousar, ciente de nossos direitos, prontos para por eles lutar.

Claro, em um país tão desigual como o nosso, muitos não tiveram adolescência, precisaram trabalhar para comer. E muitos mal conseguem envelhecer e ter esse privilégio que eu, entre outros, tenho de fazê-lo sem amarras, com mais saúde, conhecimentos, consciente de meus direitos, lutando pela cidadania plena.

O desabrochar desta “nova” fase de nossas vidas já cria novas histórias e revolucionará o futuro. A gerontolescência subverterá o “outono da vida” por primaveras múltiplas e ampliadas!


Texto de Alexandre Kalache, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A pandemia me fez considerar ruim o que antes estava ótimo


Sempre gostei de café. Ou achava que gostava de café. Gostava tanto que bebia qualquer café. Quando digo qualquer café, me refiro ao petróleo que sai da térmica no fundão do ônibus leito, à graxa fria das duas horas da manhã num set de filmagem, o café dormido do camping, o café da casa da avó que já vinha coado no açúcar, o café morto e ressuscitado no micro-ondas, ou frio mesmo, gelado, solúvel, regado de aspartame. Não importava. Era café.

Até que um amigo, que hoje vejo que talvez não fosse meu amigo, me apresentou a um café de torra clara, microlote, moído na hora. "Prova isso", ele disse. Relutei, enojado pela cor acastanhada, transparente feito um mate de galão, âmbar feito os pratos da nossa infância. "Valeu, mas gosto de café forte", respondi, fiel ao princípio brasileiro de que café bom é café preto. O amigo insistiu. Tomei por educação. E teria sido melhor ele me apresentar ao crack.

Não tem nada pior do que descobrir uma coisa boa. O ser humano quando descobre uma coisa boa não quer mais saber de outra coisa. E passa a achar ruim o que antes tava ótimo. Já tinha acontecido com outras ervas. Estava feliz com o prensado até descobrir a flor. Maldito dia em que alguém me apresentou um "homegrown". Tornei-me o que mais temia: um ervochato. Não vou dizer que recuso um prensado, mas tusso feito um adolescente. Perdi muita moral entre os amigos. Talvez tenha perdido, inclusive, amigos.

Com o café, aconteceu a mesma coisa. Ganhei um hobby, perdi amigos, perdi tempo, perdi dinheiro. A pandemia piorou tudo. Já não consigo tomar um café fora de casa sem reclamar do gosto de cinzeiro e inseto. Viajo com um kit na mochila —grãos, filtro, suporte de filtro, moedor. Quando encontro um dos meus, disserto sobre os novos catuaís do Caparaó —e outros assuntos insuportáveis pra quem está em volta e não compartilha dessa comorbidade.

Outro dia percebi que precisava parar: perguntei pra minha consorte se ela também conseguia identificar as notas de tamarindo no retrogosto de um bourbon mineiro e percebi pelo seu olhar de desprezo que ela estava cogitando o divórcio. Afinal, foi dormir com um comediante e acordou com um sommelier de café. Ninguém quer estar casada com essa pessoa. Com um comediante tampouco, é verdade. Talvez ninguém queira estar casada com pessoa alguma. Mas o sommelier de café está lá no fim da fila.

Em minha defesa, continuo não entendendo nada de vinho, cerveja, charuto, e todas as coisas cuja expertise te tornam insuportável. Peço por favor que nunca me expliquem.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Sérgio Reis é da paz e do amor assim como quem aglomera em barzinhos


Peço licença para comentar um caso triste e muito particular. Não está diretamente ligado à pandemia e ao bolsonarismo. Mas, sem querer politizar o luto alheio, pode ser que exista alguma relação, sim.

Sábado passado, em Guarulhos, uma mulher de 31 anos morreu durante uma festa de despedida de solteiro. Marina passou mal, uma enfermeira prestou socorro, a ambulância chegou uns 20 minutos depois, mas não pôde fazer nada.

Enquanto acontecia esse drama, a casa de eventos não interrompeu o show. Trata-se de um gastro-bar com capacidade para 550 lugares, que depois do ocorrido manteve sua programação no fim de semana, e que não atendeu à reportagem do UOL para comentar o caso.

Como se costumava dizer nos Estados Unidos, “the show must go on”, o show tem de continuar.
Passei pela Vila Madalena na noite deste sábado (21). Acho que nunca tinha visto aquilo tão cheio. Os carros simplesmente não tinham como atravessar a multidão sem máscara que transbordava dos barzinhos.

Acabou o frio, muitos tomaram a primeira dose da vacina, a maioria mesmo sem vacina já não estava ligando, muitos jovens pegaram Covid e não passaram tão mal assim —o fato é que prevalece uma indiferença completa. Claro que o bolsonarismo se dá bem nessa cultura. Mas a coisa vem de antes.

Há cerca de 30 anos um trio elétrico perdeu o freio e desceu desgovernado uma das ladeiras de Salvador durante o Carnaval. Deixou sete mortos e 25 feridos. A tragédia não foi suficiente, é claro, para interromper as festividades. Os blocos continuaram pulando felizes nos paralelepípedos cobertos de sangue.

“Afinal, o que é que eu tenho a ver com isso?”, pensa o folião “normal”.

A própria ideia do luto desaparece da cultura ocidental. Lembro estranhar, quando tinha uns sete ou oito anos, o fato de minha mãe estar vestida de preto por semanas sem fim. Minha avó tinha morrido, e naquele tempo esperava-se um tempo —dois meses, seis?— antes de aos poucos passar para uma roupa cinzenta ou algum detalhe branco no vestido.

O mundo contemporâneo tem esse aspecto, até saudável, de esquecer a morte, as cerimônias, as condolências. Vencemos a morbidez, especialmente forte na mentalidade ibérica.

Está em curso, entretanto, uma nova doença —a de uma insensibilidade completa e da diversão a qualquer custo.

Interromper o agito de uma banda se alguém está morrendo me parece uma atitude natural. Mas é como se fosse impossível hoje em dia.

Pode-se supor que ninguém sabia da emergência, no segundo andar. Posso também supor que ninguém queria saber. Individualismo extremo no mundo neoliberal? Talvez. Mas o individualismo pode ter diversas formas.

É individualista, sem dúvida, o sujeito que morre de medo de se contaminar e não sai de casa nem por ordem do papa. Será o primeiro na fila da vacina.

Também é egocêntrico, por outro lado, o indivíduo que se entrega ao máximo de baladas que puder. A pandemia não é problema “dele” —acontece com os outros.

O mais comum, imagino, é o seguinte. Nosso amigo não é um fanático, desses que não acreditam na Covid nem na vacina. Ele sabe que o problema é real, que as pessoas podem se contaminar e morrer.
Ao mesmo tempo, ele pensa: “Está certo… Mas também, pô, também não é essa coisa toda”.

Sabe do perigo, mas não está disposto a fazer sacrifícios. É a mesma coisa do fumante, do alcoólatra, do comilão.

Talvez isso seja um traço universal, sem muito a ver com a ideologia capitalista ou com o fanatismo em
torno de Bolsonaro.

Passo, entretanto, ao caso do cantor Sérgio Reis. Conversando com um amigo, ele disse barbaridades contra o STF, defendendo a ideia de “quebrar tudo e tirar os caras na marra”.

Pegou mal; ele se arrepende, e numa entrevista declarou ser uma pessoa “do bem”, da paz e do amor, que se preocupa com a saúde dos outros etc. Não duvido; por que ele não seria?

O que ocorre, eu acho, é que todo mundo vive com a personalidade dividida. Os princípios de uma mínima coerência lógica parecem trabalhosos demais.

Sei que posso me contaminar, mas que se dane. Sou gay, mas acho que vou votar no Bolsonaro. Sou um cara pacífico, mas apoio que os militares quebrem tudo.

Morre uma pessoa no meu show, mas continuo tocando “Jesus Cristo, Eu Estou Aqui”, ou, quem sabe, um “Feliz Aniversário” para o defunto.

Afinal, nem eu nem você temos nada a ver com isso.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Empresários do 7 de Setembro golpista e ricos coniventes arruínam economia


O caminhonaço de 2018 parou o país por quase dez dias, acabou com a expectativa de que a economia crescesse 2% naquele ano e colocou o governo de Michel Temer de joelhos, dada a ameaça de colapso do abastecimento.

A baderna rendeu um tabelamento de preços (dos fretes) e subsídios de bilhões para caminhoneiros autônomos, transportadoras e clientes do transporte rodoviário, como o agronegócio (tudo muito liberal, né?). O Congresso anistiou os crimes dos baderneiros. O paradão inclinou ainda mais a ladeira que o Brasil desce desde 2013, pelo menos.

Jair Bolsonaro apoiou o caminhonaço, claro, ao lado de empresários e associações empresariais, como a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) e a Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL).

A polícia investiga o atual presidente da Aprosoja, o bolsonarista Antonio Galvan, suspeito de organizar manifestações golpistas no 7 de Setembro (em 2018, era presidente da Aprosoja-MT, entusiasta do caminhonaço). Blairo Maggi e a associação dizem que não apoiam Galvan, que ainda comanda a Aprosoja, no entanto.

Grandes empresas e seus empresários, vários do varejo, do setor imobiliário e da finança, são bolsonaristas militantes ou colaboracionistas. Quase todo o resto foi omisso ou conivente. No fim das contas, esperavam acabar com o PT, passar a boiada de algumas “reformas” (trabalhista e previdenciária) e barrar aumento de impostos, ainda que para o ajuste fiscal, o que ficara evidente desde 2015, com o Movimento do Pato Amarelo, da Fiesp. A maioria se opõe a “reformas” que aumentam concorrência e eficiência (equalização de impostos, abertura comercial, fim de subsídios etc.).

Era evidente que mesmo esse programa mínimo cínico daria com os burros n’água, ainda mais com o burro perverso no Planalto, que levou para o governo, na economia inclusive, o mundo cão, o porão militar e incompetentes e obscurantistas em geral.

A destruição ambiental, os talibãs na educação, o morticínio na epidemia, o isolamento internacional, nada disso levou o grosso do que se chama de “empresariado” a fazer um mea culpa. Mesmo que não se importem de fato com esses assuntos, sabe-se que esse programa destrutivo cedo ou tarde prejudica os negócios, com ou sem “reformas”. Quando Bolsonaro repetiu a ameaça explícita de melar a eleição de 2022, mandaram um telegrama tardio para o país.

Em suma, de um modo ou de outro, o grosso do “empresariado” apoia ou apoiou a ruína econômica.

O empresariado “reformista” não se moveu também quando Bolsonaro ajudou a acabar com a Lava Jato, tocando Sergio Moro para fora e nomeando Augusto Aras para a PGR —o liberal-lavajatismo fora uma das correntes que levaram Bolsonaro ao poder. O sistema político, o centrão-bolsonarismo em particular, fez o resto do serviço de dar cabo de investigações contra corrupções e arrumou mais dinheiros para se manter no poder. Conseguiu passar pela revolta de 2013, pela Lava Jato e está no comando do governo mais reacionário e imbecil da nossa história quase sempre lamentável. Venceram.

Como é fácil perceber, o “empresariado reformista” e o sistema político dominado pelo centrão fizeram um grande arranjo de manutenção do establishment, com sucesso, mas sem perspectiva alguma de progresso, em um país agora mais selvagem, cafajeste, cínico, queimado, pobre, pária, ignorante, doente, miliciano e tutelado por generais semiletrados.

Ainda vai ser preciso estudar muito para entender a Grande Involução brasileira, que dirá para imaginar uma saída para este desastre.​


Texto de Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo.

Quem dera fôssemos tratados como gado na pandemia


Nesta semana, o FDA dos EUA, órgão equivalente à Anvisa, publicou uma postagem condenando o uso de ivermectina contra a Covid-19, que traduzo: “Você não é um cavalo. Você não é uma vaca. Sério mesmo, gente. Para com isso.” Já no Brasil, quem dera fôssemos tratados como nosso gado.

Por aqui, o Ministério da Saúde deixou de recomendar cloroquina como tratamento contra Covid em maio de 2021, com o começo da CPI da Covid. E não quando o Conselho Nacional de Saúde pediu, em janeiro do mesmo ano. O ministro da Saúde ainda fala contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, apesar de todas as evidências científicas. Sem falar no atraso massacrante das vacinas que a CPI revelou. Talvez fosse melhor pedir ao Ministério da Agricultura dicas de como gerir uma doença infecciosa. Afinal, o Brasil é exemplo de gestão de pandemia na Organização Mundial da Saúde Animal, a OIE. No caso, a pandemia de febre aftosa entre o gado.

Essa doença infecciosa causa aftas na boca e nos cascos que afetam seu crescimento, a produção de leite e podem inclusive matar bezerros. E como seu vírus causador é transmitido pelo ar e pelo contato entre animais e com tratadores, ele pode se espalhar rapidamente entre rebanhos. Tanto que países ricos como China, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido e França tiveram surtos recentes. Mas o Brasil, maior exportador mundial de carne bovina, faz um excelente controle dessa doença com as ferramentas que o governo federal ainda descarta contra a Covid: quarentena, isolamento, teste, rastreio de contatos, intervenção rápida e vacinas.

Em parte, foi para centralizar o combate a essa doença que afeta o país todo que se criou o Ministério da Agricultura em 1910, sem transferir a responsabilidade e a culpa para estados e municípios.

Criamos uma infraestrutura de laboratórios de testes, treinamos profissionais, temos campanhas de conscientização de criadores e políticas bem estritas de circulação e quarentena de animais para conter casos. Os animais que vão de uma fazenda para outra precisam fazer quarentena e ser testados na saída e na chegada. E, no primeiro teste positivo, os animais de criação da região toda são isolados e testados.

Nas últimas décadas, enquanto perdemos fábricas de vacinas humanas até só restarem a Fiocruz e o Butantan, o país viu a criação de dezenas de fábricas de vacina veterinária que produzem a vacina da febre aftosa com tecnologia de ponta e precisam importar uma minoria de ingredientes.

Na década de 1990, o Programa de Controle da Febre Aftosa foi transformado no Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa com prazos e resultados que tinham que ser atingidos. O último surto de febre aftosa no Brasil foi em 2006. Em 2018, fomos declarados pela OIE como um país livre de aftosa com a vacinação —e não com ivermectina. E algumas regiões como Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia e Acre são reconhecidas como livres de febre aftosa sem precisar de vacinação. Mas depois de quase 600 mil mortes registradas, nós ainda não temos nenhum programa nacional de controle ou erradicação da Covid.

Tem quem diga que o brasileiro é tratado como gado. Quem dera. Se fôssemos, teríamos testes, rastreio de contatos e prioridade na vacinação contra a Covid, como temos na aftosa. Esse investimento em ciência, pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a saúde do gado deu ótimos resultados. Enquanto na saúde humana, com a Covid, somos exemplo mundial de negacionismo com tratamento precoce, negligência de saúde, crueldade contra indígenas e a estupidez de líderes que não usam máscaras.


Texto de Atila Iamarino, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A língua de Carolina


“Fui comprar jornal o Janio estava vençendo”, escreve Carolina Maria de Jesus (1914-1977) no volume 2 de “Casa de Alvenaria” (Companhia das Letras). Isso mesmo, sem pontuação e com cedilha em “vençendo”, como constava num dos cadernos em que ela escrevia compulsivamente.

Estamos falando do mais improvável fenômeno da história da literatura brasileira, uma escritora de talento máximo e escolaridade mínima que em 1960 conheceu o sucesso internacional com o best-seller “Quarto de Despejo”.

A fidelidade às idiossincrasias textuais da ex-catadora de papel, da sintaxe à grafia, é uma escolha da editora e do conselho editorial —coordenado pela escritora Conceição Evaristo e por Vera Eunice, filha da autora— que altera e amplia substancialmente o texto publicado em 1961 com edição do jornalista Audálio Dantas.

“Fomos direto aos originais, trabalhando o mais perto possível do texto de Carolina”, explica Conceição. “Pensar esse texto é pensar como as classes populares se apropriam da língua portuguesa, e ainda quem a normatiza.”

A decisão tem camadas. Conservar desvios gramaticais não intencionais, evitando encurtar sua distância para a norma culta como se fez no passado, torna Carolina um caso à parte no mercado editorial.

No entanto, é uma ideia bem mais fácil de defender do que a de preservar uma miríade de grafias alternativas sem valor autoral aparente, das esdrúxulas (“refêição”, “ladrôes”) às banais (“mêsa”, “cabêça”, “moralisadôr”).

Escritores de perfis socioeconômicos diversos cometem erros parecidos (vocês se surpreenderiam) e são corrigidos. Por que Carolina não é? A controvérsia nas redes anda quente.

“A manutenção dos desvios gramaticais de Carolina se presta apenas ao intuito de exotizar sua escrita”, escreveu em sua página no Facebook a professora de literatura da UnB Regina Dalcastagnè, para quem a nova edição mantém a autora “nas margens da literatura brasileira, vista como uma curiosidade”.

Não é uma crítica qualquer: Dalcastagnè tem importantes serviços prestados à causa da diversidade literária. Isso não a impediu de ser acusada nas redes de porta-voz da “branquitude”, como se propusesse pasteurizar Carolina.

Esta é a parte ruim da controvérsia, como de tantas hoje em dia —a premissa da má-fé de quem pensa diferente. A parte boa é repor em discussão a singularidade de uma autora que nossa literatura nunca soube bem como classificar. Pelo visto, continua não sabendo.

“O argumento básico é que a aquisição adversa ou alternativa da linguagem, no caso da Carolina, é um traço distintivo da voz, autoral portanto”, afirma Otavio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras.

A questão está longe de ser simples. Carolina aspirava evidentemente a um registro elevado. Manter seus erros intactos, como não se faz com outros autores, é ser fiel às suas intenções ou, ao contrário, traí-las?

Se a eliminação de grafias malucas como “môrdomo” parece destituída de contraindicação, o mesmo não se pode dizer de uma frase como esta, a cara de Carolina com sua mistura de concordância desviante e hipercorreção pronominal: “Eles fotografou-me”.

Em “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras), de 2018, Geovani Martins, um dos descendentes artísticos de Carolina, escreveu de forma memorável e, dessa vez, plenamente intencional: “Acordei tava ligado o maçarico!”. Vale comparar com a frase que abre esta coluna.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Se Tarcísio Meira é Charlton Heston, Paulo José é nosso ator europeu


Aconteceu no Natal de 1981, nos estúdios da Globo Usina. Passados três anos do arrasa-quarteirão "Dancin' Days", Daniel Filho e Gilberto Braga retomavam, na novela "Brilhante", a bem-sucedida parceria.
Aos 15 anos, eu estreava no horário nobre ao lado dos medalhões Vera Fischer, Claudio Marzo, José Wilker, Renée de Vielmond, Jardel Filho, Fernanda Montenegro e... Tarcísio Meira.

Não sei quem organizou o amigo oculto natalino do folhetim, mas acho que partiu de Daniel Filho a ideia de Tarcisão se vestir de Papai Noel para distribuir os presentes. Aglomerados na pequena sala dos atores, aplaudimos a entrada do astro-rei recoberto em cetim vermelho, com uma barba branca de nylon mal ajustada ao rosto.

Um dos câmeras eternizou o momento, equilibrando a lente no ombro, entre os gritos efusivos da equipe e os ohs-ohs-ohs do portentoso velhinho.

Tarcísio acabara de depositar o saco de regalos sobre a pequena mesa do fundo da sala, quando a tragédia se deu. Sem perceber, o câmera encostou a traseira do equipamento na lâmpada do lustre e acabou grudado na fiação, com o corpo transpassado por um choque digno da mais mortal cadeira elétrica.

Todos recuaram petrificados, menos, é claro, Tarcísio Meira. Sem titubear, João Coragem avançou em direção ao rapaz e o empurrou com a força de seu corpanzil, suportando a rebarba da alta voltagem. Ajoelhado sobre o quase cadáver, Papai Noel desenrolou a língua do pobre com os dedos e o salvou do sufocamento.

Herói dentro e fora de cena. Épico. Tarcísio Meira é épico.

O Brasil não costuma produzir atores assim, capazes de sustentar a coroa, de empunhar a espada sobre o cavalo, ou encarnar o Demo. Costuma-se usar a palavra galã para definir Tarcísio, mas qualquer rostinho bonito pode ser tachado de galã.

A palavra ofende porque reduz o talento do monstro aos seus dotes físicos. Basta vê-lo em "A Idade da Terra", no "Grande Sertão: Veredas", na novela "Escalada" ou no" Independência ou Morte" para perceber que estamos diante de um ator mítico.

Eu tenho horror das convicções políticas do Charlton Heston, horror, mas sou devota do Ben-Hur dele, do Moisés e de todos os filmes apocalípticos que o ídolo de direita e defensor das armas realizou nas décadas de 1960 e 1970.

O corpo retorcido pela dor da consciência, diante dos escombros da Estátua da Liberdade, no encerramento de "O Planeta dos Macacos", é inigualável. E como não admirar os uivos pungentes em "Soylent Green" e "Ben-Hur", o desempenho sobre a biga e a descida do Monte Sinai, com a peruca arrepiada pelo contato imediato com Jeová?

Desafio qualquer um, até o mais fino intérprete, a encarar a tanga e a toga sem cair no ridículo. 

Mas Heston é americano, filho da megalomania da land of the brave. Heston é o resultado esperado da cultura que o forjou. Tarcísio, não, Tarcísio é um Aquiles parido na terra do Macunaíma. Caso raro, raríssimo.

E com Macunaíma chego à outra face da moeda, a do anti-herói Paulo José.

Se Tarcísio é Charlton Heston e Sean Connery, Paulo é o nosso ator europeu, é Jean Pierre Léaud e Giancarlo Giannini, Paulo é o Marcelo Mastroianni dos pampas.

Formado pelo Teatro de Arena, ao lado de, entre outros, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Império, Flávio Migliaccio, Lima Duarte, Dina Sfat, Myriam Muniz e Juca de Oliveira, Paulo fez parte de um movimento que pretendeu fortalecer a dramaturgia nacional e retratar o homem brasileiro.

De "Eles Não Usam Black-Tie" a "Shazan, Xerife & Cia.", de "Pecado Capital" à "Grande Família", de "A Gota D'água" à "Medeia" da televisão, de "O Padre e a Moça" ao "Macunaíma", incontáveis peças, novelas e filmes seminais brasileiros tiveram a contribuição, a autoria, ou a influência do Arena de Paulo.

Alter ego de Domingos Oliveira, com quem realizou "Todas as Mulheres do Mundo" e "Edu Coração de Ouro", duas pérolas inclassificáveis da nossa filmografia, Paulo José era o encanto em pessoa, um homem irresistível, brilhante, irônico e hilariante. Paulo é o que de melhor poderíamos sonhar ser.

"O Camareiro", de Ronald Harwood, foi última investida de Tarcísio Meira no teatro, na pele do grande ator senil que se esfalfa para dar conta do "Rei Lear". 

Se Tarcísio é Lear, Paulo é o Bobo. Perdidos na tempestade, a dupla realizaria a mais perfeita tradução shakespeariana do Brasil de agora, dos desmandos dessa terra em transe, a ser encenada nos pilotis do Palácio Capanema, antes da liquidação.


A partida dessas duas potências, em meio à degringolada geral da nação, me faz pensar... em que momento, mesmo, perdemos o trilho?


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Abaixo a gritaria


Algumas tecnologias vieram pra acabar com o pouco que nos restava de paz. O bluetooth, por exemplo. Não que eu tenha horror a ele, ele é que tem horror a mim. Trata-se de uma tecnologia voluntariosa, cheia de implicâncias, corpo mole e má-vontade --astrólogos dirão que é geminiana.

Responsável por conectar dois aparelhos, o bluetooth faz a ponte quando dá na telha e quando tem química. "Desculpa, mas o encontro do seu Galaxy com sua JBL não não deu liga. Estão em momentos diferentes de vida e alegaram incompatibilidade de agenda."

Acontece inclusive de dois aparelhos serem velhos conhecidos e, do dia pra noite, resolverem fingir que não se conhecem. E às vezes rola o contrário: sua caixinha teve um breve caso de uma noite com o celular do vizinho --mas pro resto da vida ela ficará reconhecendo aquele celular, lembrando dele como um ex que não superou o divórcio.

Existe apenas uma ocasião em que bluetoooth é infalível: quando se trata de perturbar o silêncio da vida em comunidade. O advento da caixinha de som acabou com a paz na esfera pública. Já existia uma solução pra quem gostava de ouvir música na rua: o fone de ouvido. A caixinha é uma espécie de fone que todo o mundo à sua volta é obrigado a colocar no ouvido também. Ir à praia se tornou uma experiência enlouquecedora: os barões da pisadinha se misturam aos aviões do forró, cada um num tom e num compasso, e de repente você está ouvindo os aviões da pisadinha.

O problema é que o brasileiro não reconhece o silêncio como um direito. Tenho a impressão de que a caravela de Pedro Álvares Cabral já ancorou por aqui fazendo um furdunço, com o famoso "terra à vista!". Trezentos anos depois ainda estávamos urrando. Nossa independência, afinal, foi proclamada com um brado, famoso por ter sido retumbante. O gesto mais famoso do nosso imperador foi um berro. Nosso país já nasceu na base da gritaria.

Tivesse Dom Pedro proclamado a Independência com um sussurro, talvez não tivessem ouvido do outro lado do Ipiranga. Mas tenho certeza de que estaríamos em melhores lençóis.

O imperador gritou, se esgoelou, e foi embora. Na contramão, nosso produto de maior aclamação internacional foi justamente a voz do João Gilberto. Nossa maior contribuição pro mundo, quem diria, é o sussurro. Foi o cochicho que nos levou ao topo das paradas de sucesso. O Brasil é gigante quando fala baixinho. Nossa independência só vai acontecer quando ela for proclamada ao pé do ouvido.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Quem é antivacina deveria também ter medo de usar pastas de dente


Existem, é claro, aquelas pessoas que são completamente malucas. Acreditam sinceramente que a vacinação contra a Covid faz parte de um plano de domínio organizado a partir do planeta Marte.

Acho curioso que esse tipo de gente se comporte normalmente a maior parte do tempo. A demência não os impede de parar o carro no cruzamento quando fecha o sinal; não deixam de escovar os dentes por medo de que a pasta também se inclua nos planos de Marte.

Podem argumentar que o creme dental é inofensivo, uma vez que o usam desde crianças. Respondo que, se eu fosse um marciano dotado de real astúcia, seria exatamente por meio da pasta que eu agiria.

Não despertaria a menor desconfiança —ao passo que uma vacinação súbita e coletiva teria, como bem sabe meu interlocutor, toda a chance de levantar suspeitas. Tento entender o que se passa na cabeça de quem desacredita das vacinas.

Qual a diferença entre o caso da pasta de dente e o da vacina? Vejo duas, basicamente. A vacina é “desconhecida”: vem num vidrinho, com um rótulo puramente técnico, e é aplicada por uma funcionária estatal.

A pasta vem numa embalagem chamativa, e é você mesmo quem compra. Mesmo que ninguém pense muito na marca, a aquisição da pasta provém de uma “escolha” individual. O indivíduo assume a plena responsabilidade pela compra.

Mais que isso, pagou pelo produto. O mercado sacrossanto sanciona a qualidade do dentifrício. O dinheiro entregue ao vendedor assume a característica de um certificado de confiança, um atestado da vigilância sanitária.

A vacina, não. Você não paga por ela. É estatal. E, como diz o ditado, quando a esmola é grande o santo desconfia. Como esse tipo de pessoas vê no Estado a origem de todo o mal, em última análise as teorias sobre Marte são apenas a cereja do bolo, e podem ser substituídas por qualquer coisa: plano chinês, plano judeu, plano islâmico. Além de estatal, a vacina é coletiva, é pública, é igualitária.

Comentei em outra ocasião: o ódio da direita ao uso de máscaras e a quaisquer medidas de isolamento tem sua origem provável na repulsa a qualquer ideia de coletividade. A máscara evoca o pesadelo totalitário da China maoísta, quando todos usavam roupa igual.

Aí, diga-se de passagem, surge um aspecto curioso. Os direitistas também gostam de militares, que marcham de uniforme. Suponho que aí exista um sentimento reprimido, um instinto coletivo que a
ideologia neoliberal recalca.

O desejo de igualdade persiste, mas se distorce em perversões: fardas verde-oliva, camisas negras, uniformes da seleção brasileira, disciplina, obediência, rebanho.

Seja como for, se a vacina tivesse de ser comprada em farmácia, e aplicada no Einstein ou no Sírio, é possível que uma parte das resistências da direita desaparecesse. Não que eu esteja propondo isso, é claro.

Mas a teoria da conspiração não é só privilégio da direita. Quem não conhece o adepto de homeopatia radical ou de medicina alternativa que milita contra antibióticos e a indústria farmacêutica?

Depois da talidomida e do criminoso caso dos opióides, não é de espantar que desconfianças apareçam.

A questão, como sempre, está em equilibrar-se entre medos diferentes. O natureba que não quer se vacinar passa pelos temores mais variados. Assusta-se diante de uma salsicha, de uma Pringles, de um sorvete de limão, de uma aspirina… Por que não teria medo da AstraZeneca?

Só não tem medo da Covid. Acho, entretanto, que seu medo diminuirá quando todo mundo (menos ele) estiver vacinado. Não arriscará sua pele, contudo, nesse processo. É curioso.

Sem querer, ele próprio estará fazendo parte de um experimento coletivo, em que os outros são cobaias, e ele o beneficiário.

Mais uma vez, o que está por trás disso é a vontade de sair do coletivo, de se colocar à parte dos demais.

Seja como for, quem prefere a “imunidade de rebanho” sabe do que está falando. Rebanho são os outros, os que morrem.

Até certo ponto, entendo isso: tenho vergonha, em manifestações, de sair gritando palavras de ordem junto com a multidão. A própria ideia de ficar numa fila e colocar o braço de fora me dá alguma vergonha: tenho braço, como os outros? Não é meio obscena, essa palavra “braço”?

Não faz mal: a vacina, no meu braço, é o melhor remédio contra essa vergonha. Recebo, feliz, o atestado de que sou humano, feito da mesma massa dos demais.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo