domingo, 31 de julho de 2016

Muita gente fala em estado mínimo e gosta de ter contas pagas pelo governo

Uma das poucas ideias a orientar as ações do dito "governo" Temer é desmontar, o mais rápido possível, toda a estrutura de direitos trabalhistas e serviços públicos do Estado em nome da "austeridade".
O jogo é velho como a roda e consiste em vender à população a ideia de que a manutenção de serviços públicos e direitos é sinônimo de gastança, de abuso e de privilégio .
Nisso, o governo recebe aplausos de pé dos setores da imprensa que fazem de tudo para jogar o Brasil de volta ao capitalismo do século 19, este mesmo capitalismo onde trabalhar 44 horas por semana é pouco, já que é sempre possível esfolar trabalhadores, obrigando-os a jornadas de 60 horas, como sonha o presidente da Confederação Nacional da Indústria, arauto da nova modernidade nacional.
Na semana passada, um jornal de grande circulação chegou ao cúmulo de assinar editorial afirmando que, agora, garantir universidades públicas era simplesmente "injusto".
É verdade que isso não devia nos surpreender. Em um país no qual a elite conseguiu proezas inacreditáveis na arte de suspender o princípio de não contradição, como ser, ao mesmo tempo, liberal e escravocrata, oligarca e republicana, não é nada estranho que um jornal diga que educação pública é algo injusto.
Os argumentos, como sempre, são pedestres. O raciocínio de base consiste em dizer que as universidades públicas brasileiras financiam a elite econômica do país.
No entanto, não há número algum que corrobore esta leitura. Por exemplo, no caso da USP, 60% de seus alunos são egressos de famílias que ganham até dez salários mínimos.
Um família que ganha até dez salários mínimos não é elite nem aqui nem em lugar algum. As outras universidades federais tem números ainda mais expressivos, basta ter o interesse em procurá-los.
Da mesma forma, são primários os argumentos daqueles que se aproveitam do momento para dizer que a universalização do sistema público de saúde não é mais possível.
Notem que essas pessoas não estão preocupadas em aumentar a participação dos setores mais pobres nas universidades públicas nem procurar vias alternativas para financiamento público da saúde. Elas querem simplesmente desresponsabilizar o Estado de fornecer serviços a seus cidadãos para que elas possam pilhar melhor o dinheiro dos seus impostos.
Pois não se engane: o projeto é criar um Estado mínimo apenas para você. Porque, enquanto o Estado é mínimo para você, ele é generoso com aqueles que usam as leis para defender seus patrimônios e investimentos. Os mesmos bancos que pagam seus consultores para falar contra seus direitos não temem em recorrer ao Estado quando os negócios vão mal. Citibank, BNP/Paribas, Deutsche Bank que o digam.
Por exemplo, no mesmo momento em que seu jornal estava repleto de defensores dessa versão singular de nova justiça social, o governo brasileiro deu um aumento salarial de mais de R$ 40 bilhões para funcionários, em especial do judiciário com seus cargos nababescos. Uma maneira de comprar o silêncio e a governabilidade depois do golpe.
Enquanto o governo de São Paulo aprimorava-se no jogo de fechar escolas sem fazer alarde, ele perdoava R$ 116 milhões de dívidas da empresa francesa Alstom, por coincidência a mesma empresa envolvida nos escândalos do metrô. Pergunte quantas escolas poderiam funcionar melhor com este dinheiro.
Enquanto o ministro da Saúde sai todos os dias com uma afirmação de que o SUS não pode mais existir como tal, o governo brasileiro paga R$ 600 bilhões por ano em serviços da dívida pública. Uma dívida que nunca foi auditada, mesmo que exista lei constitucional desde 1988 obrigando o Estado a tanto. Agora, procure saber por que ela nunca foi auditada.
Não seria devido ao fato de grande parte dela ter sido resultante de socialização de dívidas de entes privados, ou seja, em bom português, uso de dinheiro público para pagar dívida de empresário e banqueiro? E que tal falar do imposto sobre grandes fortunas, que daria ao governo ao menos R$ 70 bilhões por ano?
Como você pode ver, o embate não é sobre o tamanho do Estado, mas sobre para onde vai o dinheiro, se para seus cidadãos ou se para a casta especializada em viver às custas das benesses auferidas pelo dinheiro público. O mais engraçado disso tudo é ver esse tipo de espoliação sendo vendida sob o nome de "ideias liberais".


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

Após 63 anos juntos, casal de Santa Catarina morre no mesmo dia

Após 63 anos juntos, casal de Santa Catarina morre no mesmo dia


Quando filhos e netos ligavam para saber como estavam Fernando e Delinda Biz, a resposta da matriarca até mudava um pouco de acordo com o dia, mas sempre acabava com os mesmos dizeres: "Quando a gente for, a gente vai junto".

Apesar da displicência das palavras, Delinda estava certa. Após 63 anos casados, os dois acabaram morrendo no mesmo dia: 19 de julho. Ele, aos 82 anos, por causa de um problema do coração. Ela, aos 86, após falência de múltiplos órgãos. Não chegaram a saber nem da internação nem da morte um do outro.
Os dois nasceram e cresceram em Turvo –cidade catarinense com 12 mil habitantes a 244 km de Florianópolis– e se conheceram em uma festa religiosa. Fernando tinha 19 anos, Delinda 23. O namoro durou um ano, com encontros durante a missa e visitas formais, sempre sob olhares atentos dos pais. Casaram-se em 1953.
No sítio simples que herdaram da família, os dois plantavam arroz, milho e feijão. Durante a infância dos filhos, falavam mais italiano –idioma de seus ascendentes– do que português. Todas as noites, reuniam os dez filhos em um círculo na sala e liam passagens da Bíblia. Também rezavam o terço antes de dormir.
Fernando era sério, sisudo, exigente, mas foi amolecendo com o tempo, diziam os filhos mais velhos ao ver a "moleza" recebida pelos mais novos. Já Delinda era engraçada, divertida, carinhosa e apaziguadora se necessário.
Com o tempo, os filhos foram casando e se mudando. Com menos ajuda na lida, o casal vendeu as terras e começou vida nova em Araranguá (a 214 km de Florianópolis). Fernando abriu um bar, que tocou com a ajuda dos filhos mais novos, enquanto Delinda se dedicava à casa. Fazia roupas para a família e caprichava na cozinha.

MACARRÃO E POLENTA

Os almoços com macarrão, polenta e galinha caipira continuaram a reunir toda a família aos domingos. Até os filhos e netos que moravam em outras cidades costumavam aparecer. A mesma popularidade tinham os cafés da tarde de dona Delinda. Não faltavam pão sovado, bolinho de chuva e cuca –um tipo de bolo alemão, geralmente feito com banana.
Com a aposentadoria, Fernando costumava rodar pela cidade em sua bicicleta e jogar carteado com os amigos –às vezes era o anfitrião, em outras era o convidado.
Delinda preferia ficar em casa, sentadinha na sala ou ao lado do fogão à lenha. No sofá de casa, ele interrompia as missas que a mulher assistia na televisão para perguntar se ela o amava. Delinda se irritava com a insistência e sempre terminava com: "Te amo, mas me deixa ver a televisão". Marido e mulher conseguiam repetir o mesmo diálogo diversas vezes no dia.
Os problemas de saúde começaram a aparecer nos últimos anos, levando o casal a morar com uma das filhas. Fernando precisou de um marcapasso por problemas cardíacos e já apresentava sintomas de alzheimer. Delinda teve quatro derrames.

AUSÊNCIA

Na noite do último dia 18, ela começou a se sentir mal. Foi levada ao hospital por um dos filhos e lá ficou em observação. Na manhã seguinte, Fernando percebeu sua ausência e questionou uma das filhas –que não revelou a internação.
Ele então pediu uma blusa, um pouco de café e voltou para a cama, onde foi encontrado morto 15 minutos depois, por volta das 7h30. Delinda, que teve que ser entubada na madrugada, morreu às 13h do mesmo dia.
"Sei o que dizem os médicos e os atestados de óbito, mas, pra mim, minha mãe já tinha ido na madrugada e veio buscar meu pai pra ir junto dela. Ela chegava a rezar para Jesus levar os dois juntos", conta a filha Rose.
A missa e o enterro do casal aconteceram também no dia 19, no cemitério de Araranguá, onde Fernando e Delinda continuam juntos.


Reprodução da Folha de São Paulo

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Efeitos perversos da salvação do país

A ideia era boa. Combater a corrupção. Eles se vestiram de verde e amarelo e foram às ruas. Eram homens e mulheres de meia idade com alguns anos de trabalho pela frente. Eram senhoras e senhores aposentados. Eram jovens preocupados com o futuro. A causa era tão urgente que, para tirar os corruptos do governo, aceitaram colocar no lugar deles gente de reputação duvidosa, mas que lhes parecia menos pior. Panelas bateram. Manifestações multiplicaram-se. Parques, antes reservados ao lazer das elites, viraram palcos de ação política.
O governo corrupto caiu. Os ex-aliados dos depostos assumiram as rédeas do país. Para deslumbramento do chamado mercado, anunciaram o que pretendem fazer: reforma da previdência, desmontagem da legislação trabalhista e reformulação dos programas sociais. O cinquentão de camisa da CBF que lutou contra a corrupção do antigo governo e que aceitou o pretexto para o impeachment como suficiente descobre a sua nova realidade: em lugar de se aposentar dentro de quatro ou cinco anos, terá de trabalhar, na melhor das hipóteses, mais 40% além do tempo previsto, ou, na hipótese intermediária, até 65 anos de idade, ou, ainda, quem sabe, até 70 anos de sua vidinha.
O aposentado, que se sentiu de volta à ativa enrolado na bandeira nacional, recebe o seu quinhão: o reajuste das aposentadorias será desvinculado do aumento do salário mínimo. O seu ganho, depois de ter trabalhado muito, vai minguar mais a cada ano. Além disso, rubricas com porcentagem de gastos obrigatórios no orçamento federal, como educação e saúde, perderão esse caráter impositivo. Jovens e aposentados viverão o mesmo drama na hora da maior necessidade: o Estado poderá gastar menos em educação e em saúde. O cenário de horror é apresentado como o portal do paraíso.
O trabalhador que só queria um país mais honesto fica sabendo que alguns pensam em fazê-lo trabalhar 60 ou 80 horas semanais até que complete 70 anos de vida. O plano inclui “flexibilização” da jornada diária de trabalho e dos salários: leia-se, trabalhar mais e ganhar menos. O negociado deve prevalecer sobre o legislado. Traduzindo, a lei não vale mais. Os ricos riem sozinhos. A mídia mancheteia: país dá sinais de recuperação. FMI fala em crescimento. Programas como Ciência sem Fronteiras dispensam alunos de graduação.
Pobres dos velhinhos aposentados, coitados dos jovens, que pena dos brasileiros próximos da aposentadoria, acreditaram que o maior problema do país era a corrupção e que os novos donos do poder trariam honestidade, transparência e progresso. Sabem agora que eles não querem novas eleições por uma simples razão: nas urnas, não obteriam votos para implantar reformas que assaltam direitos adquiridos, saqueiam a plebe e enchem de alegria e ganhos os donos dos camarotes nacionais. O remédio, além de amargo, tem efeitos colaterais nefastos. Mata o pobre para engordar o rico. É macabro.
– Vão nos roubar até a pensão – exclama um velhinho.

Com a globalização, nasce um novo tipo de racismo, do século 21

Nos anos 1950, em Milão, havia uma pequena comunidade de chineses que viviam como vendedores ambulantes pelas ruas do centro.
"Sabíamos" que eram chineses porque 1) eram obviamente asiáticos e 2) não conseguiam pronunciar a letra "r". Eles não vendiam "cravatte, cinque lire", vendiam "clavate, cinque lile". Eu pensava que essa história de não conseguir pronunciar a letra "r" fosse um traço comum a todos os orientais, chineses, japoneses, vietnamitas, mongóis, talvez até tártaros –que então deviam ser "táltalos".
Só soube que não era assim quando, na feira do patrono de Milão (São Ambrósio), adquiri uma peça para minha coleção de relíquias da Segunda Guerra (a qual terminara sete ou oito anos antes). Era um livrinho distribuído aos soldados dos EUA que serviam no Pacífico para que conseguissem fazer a diferença entre um japonês (inimigo na guerra) e um chinês (aliado). Chamava-se "How to Spot a Jap" (como detectar um japa) e era em quadrinhos.
Soube assim que os japoneses, contrariamente aos chineses, não pronunciavam o "l" no lugar do "r", mas o "r" no lugar do "l". Também soube que eles eram mais baixos que a gente, mais barbudos que os chineses e (mamma mia!) tinham o dedão do pé separado por causa da tira de couro da "geta", a sandália de madeira japonesa.
Naquela época, conhecíamos o mundo por estereótipos. Os negros africanos eram crianças sempre alegres, mesmo na hora de cozinhar e devorar a gente. Os suíços eram pontuais. Os indianos eram sanguinários como a deusa Kali. E os orientais eram traiçoeiros.
A força do estereótipo era diretamente proporcional ao nosso desconhecimento de quem eram e como eram os negros africanos, os indianos, os orientais etc. A alteridade, a distância e a ignorância alimentavam nosso racismo.
A maioria dos milaneses mal tinha cruzado com alguns negros norte-americanos durante a ocupação no fim da guerra; dos orientais, fundamentalmente, só conhecíamos os vendedores de "clavate, cinque lile".
Eu nunca ouvira a história de ninguém que tivesse sido traído pelos chineses, os quais, aliás, foram fiéis aos Aliados contra as forças do Eixo (Japão e Alemanha), enquanto a mesma coisa não podia se dizer dos próprios italianos, que mudaram de lado bem no meio da guerra. Então, por que os chineses (e os orientais em geral), para nós, seriam "traiçoeiros"?
Encontrei uma resposta anos depois, estudando psicologia, na pesquisa de um criminologista, C. A. Feingold, o qual se perguntava por que, na hora de descrever um suspeito da raça X, as testemunhas da raça Y só conseguiam dizer que o suspeito era da raça X, sem atributos singulares que permitissem identificá-lo.
Feingold concluiu que os membros de uma raça X só conseguem diferenciar entre eles os membros de uma raça Y quando as ditas raças X e Y convivem assídua e cotidianamente. Ou seja, para os milaneses dos anos 1950, os chineses eram todos iguais entre si (e eram também iguais aos japoneses).
A seguir, outros pesquisadores mostraram que, sem a tal convivência assídua e cotidiana, o membro da raça X não consegue sequer interpretar as expressões básicas dos membros da raça Y. Portanto, a raça com a qual eu convivo pouco me parece sempre traiçoeira, porque não sei decifrar o outro dessa raça, não sei entender se ele está querendo me dar uma bala ou uma facada.
Pergunta em aberto: não reconhecemos os afetos dos membros de outra raça porque somos racistas (e recusamos qualquer empatia com eles)? Ou somos racistas como consequência do fato de que eles nos apavoram porque não sabemos ler seus rostos? Ou um pouco dos dois?
Seja como for, a globalização nos levou a conviver assídua e cotidianamente com o diferente. Com isso, o racismo não acabou, mas ele mudou substancialmente.
Passamos do racismo da alteridade –em que desconfiávamos do distante, diferente, exótico, misterioso e, de fato, desconhecido– ao racismo da convivência, da proximidade, da familiaridade "excessiva". No século 21, não odiamos os que estão longe demais, quase invisíveis, mas os que estão perto demais, já entre nós.
A questão não é mais "quem são vocês lá, no horizonte?", mas "o que vocês estão fazendo aqui, na nossa casa, nos nossos sonhos, nos nossos desejos?". Essas reflexões nasceram assistindo a "Chocolate", de Roschdy Zem, com o extraordinário Omar Sy. Não perca.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

terça-feira, 26 de julho de 2016

Plano barato pode ser cilada, não saída para saúde

A recente proposta do ministro da Saúde, Ricardo Barros, de criar planos de saúde populares como alternativa para desafogar o SUS tem polarizado o setor, conforme ficou claro na página "Tendências/Debates" da Folha no último sábado (23).
De um lado a advogada Solange Palheiro Mendes, presidente da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), defendeu que a medida é uma alternativa para quem hoje está sem convênio médico. Nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de pessoas abriram mão dos seus planos porque perderam o emprego ou não conseguem mais pagar planos particulares.
"[Esse contingente de pessoas] Não poderia ter, ao menos, a possibilidade de escolher a adesão a um plano mais básico e barato do que os ofertados hoje? Em uma sociedade fundada na livre escolha, é justo tolher outras opções?", questiona.
Há tempos que o setor deseja a entrada de produtos mais baratos no mercado que diminuam os custos das operadoras e "caibam no bolso" dos empregadores e de pessoas físicas. Ocorre que hoje isso esbarra na atual lei que rege o mercado de planos de saúde. Pela legislação, os planos de saúde são obrigados a manter um nível de cobertura que atenda a todas as doenças da CID 10 (lista oficial da Organização Mundial da Saúde).
Mario Scheffer, professor da USP e vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) sustenta que "plano popular é um barato que sai caro."
"Por isso, não existe em nenhum país do mundo que adote sistema universal ou mecanismos coletivos para proteger a saúde dos cidadãos. Simplesmente porque saúde é um direito humano, as necessidades não são previsíveis e o risco de adoecimento não pode ser customizado em um plano promocional."
Barros argumenta que 85% dos problemas de saúde da população poderiam ser resolvidos na atenção primária e que, portanto, poderiam ser cobertos por "planos populares", que ficaram desobrigados a oferecer tratamentos mais complexos.
O grande gargalo hoje no país é por procedimentos de média e alta complexidade, que no ano passado consumiram 42% do orçamento do Ministério da Saúde. Consultas e outras ações de atenção básica responderam por 14%.
Do ponto de vista de mercado, a proposta é ótima e, tendo o ministro como principal defensor, tem grandes chances de passar.
Do ponto de vista de saúde do consumidor, pode significar uma grande cilada. Os atuais planos baratos, com cobertura básica, já cometem hoje inúmeros abusos. Têm uma rede credenciada de médicos reduzida, criam obstáculos e barreiras para a assistência de idosos e doentes crônicos, adotam reajustes proibitivos, além de negativas e exclusões de coberturas.
Fora o fato de que a proposta é parecida com a das chamadas clínicas populares, que oferecem consultas e exames baratos. Até em algumas estações do Metrô já é possível fazer consultas "express" por menos de R$ 100.
Mas, em ambos os modelos, essas clínicas não se responsabilizam pelo cuidado integral do paciente. Se ele descobre numa dessas consultas que tem câncer, por exemplo, ou terá que pagar o tratamento na rede privada ou recorrer ao SUS, o que é mais provável.
Sim, o consumidor tem todo direito de investir o seu suado dinheirinho em um plano de saúde "meia-boca", que pode deixá-lo na mão numa situação de mais gravidade. Só precisa estar ciente disso para não comprar gato por lebre.


Texto de Cláudia Collucci, na Folha de São Paulo

Kafka manda mensagem do lado de lá da muralha da Lava Jato

Em seu depoimento à Justiça, na quinta-feira passada, João Santana disse que o Brasil tem uma Muralha da China. O publicitário fez até uma emenda no testemunho a Sergio Moro para acrescentar o paredão chinês. O muro, segundo ele, vai de Curitiba a Manaus, passa por Brasília, e é tão desmesurado que pode ser visto de satélites.
Sua argamassa é feita de "milhões de pessoas, de todas as classes e de dezenas de profissões". A construção colossal é "o centro de gravidade" da política: o caixa dois. Santana elegeu presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares aos milhares graças à grana vinda dali. Sabe do que fala quando afirma que, por baixo, 98% das campanhas são ilegais.
Longamente meditada, a declaração em juízo atesta que todos os políticos eleitos –da situação e oposições, de executivos e legislativos– exercem um poder ilegítimo. Santana não provocou pasmo porque a verdade não alcança quem não pode ouvi-la. É o que diz o narrador de "Na Construção da Muralha da China".
Diante dos grandes do império, da turba reunida para assistir sua morte, o imperador do conto de Kafka chama um arauto. Sussurra-lhe uma mensagem destinada a um súdito ínfimo, morador dos confins inalcançáveis do império. Vigoroso e incansável, o arauto porta a revelação última do soberano. Mas é espessa a muralha de salas e gentes que o cerca.
Jamais as ultrapassará e, se conseguisse, de nada adiantaria; teria que descer escadas e percorrer pátios inumeráveis; e depois um segundo palácio, circundante; e mais cômodos e corredores intransponíveis; e outros palácios sem fim; e assim por milênios; e, se cruzasse o derradeiro portão, chegaria apenas à capital que ninguém nunca atravessou, muito menos com o recado de um morto.
Só dois poderosos comentaram a mensagem da Muralha. Dilma negou ter autorizado o caixa dois: "se houve pagamento, não foi com o meu consentimento". A gerentona, um mito criado pelo próprio Santana, pedalou pela Muralha mas não a viu.
Já Gilmar Mendes disse que a proibição do pagamento privado de políticos foi um "salto no escuro", contra o qual votou. Preocupa-o que "organizações criminosas atuem de maneira mais enfática" nas eleições de outubro. O juiz não esclareceu se considera Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez organizações criminosas, nem se elas corromperam com a ênfase apropriada.
O que terá dito o imperador ao mensageiro? Certamente não foi que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Dentro e fora da Muralha, seus súditos e adversários sabem disso. Aqui, como disse João Santana, é o poder econômico que manda.
São os donos do dinheiro que decidem em quem se pode votar. Só os partidos e candidatos que se comprometem com eles recebem doações. Foi esse o compromisso que Lula assumiu com sua Carta aos Brasileiros. Os pobres votaram nele e em Dilma –para gáudio das empreiteiras, e dos bancos que emprestaram a elas– e tornaram inexpugnável a Muralha que os aprisiona.
É por isso que o imperador talvez tenha dito ao arauto um trecho de "A recusa", outro conto de Kafka:
"Faz séculos que não se produz entre nós nenhuma mudança política partida dos próprios cidadãos. Os mandatários são substituídos uns pelos outros, até dinastias são depostas; a própria capital foi destruída, e fundada outra; mais tarde, essa última também foi destruída; e nada disso teve influência alguma na nossa pequena cidade".


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

Existe algum jeito de não se contaminar com a violência no Brasil?

Os brasileiros estão sofrendo com a extrema violência no país, como um músico de 47 anos:
"Eu também morro um pouco junto com todos que estão sendo assassinados, roubados, estuprados. Perdi a esperança de que o Brasil renasça das cinzas e podridão. Costumava acompanhar obsessivamente todas as notícias dos jornais e televisão. Agora, não aguento mais ouvir casos e mais casos de violência e de corrupção. Parece uma novela velha e interminável, que repete os mesmos capítulos todos os dias. Nenhum filme vai conseguir reproduzir o drama que estamos vivendo".
A violência acabou afetando o seu trabalho.
"Sinto uma angústia enorme, uma impotência, uma espécie de ressaca física e emocional. Estou exausto, desanimado e deprimido. Estou me sentindo inútil, nada do que faço tem importância e significado com tanta miséria e violência. Não estou conseguindo produzir nada, parece até que estou paralisado, esperando o país mudar para retomar os meus projetos. Só canto aquela música: 'Não, não posso parar, se eu paro eu penso. Se eu penso, eu choro".
Uma professora de 53 anos disse que nunca se sentiu tão insegura e vulnerável.
"As pessoas estão muito mais agressivas. São violências diárias, cotidianas, sem qualquer motivo. Um vendedor que me trata mal, um aluno que me ignora, um colega que me desrespeita, motoristas que me cortam e me xingam, um ex-marido que só me critica e desvaloriza. A falta de reconhecimento também é uma violência. Preciso me controlar para não chorar nestes momentos. O clima de violência, roubalheira e desrespeito é tamanho que afetou todo mundo. Todos que conheço estão muito irritados, intolerantes e violentos. Está muito difícil sobreviver no meio de tanta violência".
Ela tomou a decisão de remar contra a maré. De tanto levar "porradas", decidiu reagir de uma forma diferente. Em vez de responder com a mesma agressividade, tenta ser cada vez mais atenciosa, carinhosa e delicada. Quanto mais violenta é a pessoa, mais educada ela é. Resolveu que não vai se contaminar com este clima de ódio.
Se violência gera violência, é possível que gentileza gere gentileza. Será que agindo assim vamos conseguir desarmar a energia negativa e a agressividade dos que nos cercam?

Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Morre Garry Marshall, diretor de "Uma Linda Mulher"

Morre Garry Marshall, diretor de "Uma Linda Mulher"

Aos 81 anos, cineasta foi vítima de derrame seguido de pneumonia em Los Angeles
O diretor, produtor e gigante da comédia de Hollywood Garry Marshall morreu na terça-feira, aos 81 anos, deixando um legado que inclui "Happy Days", "Uma Linda Mulher" e muitos outros sucessos. Marshall morreu de pneumonia depois de sofrer um derrame em um hospital de Burbank, subúrbio de Los Angeles, informou seu agente.
O presidente do sindicato de diretores dos Estados Unidos, Paris Barclay, liderou as homenagens a Marshall, destacando seu dom para contar histórias que "trouxeram alegria, risadas e grandes batidas de coração a todas as telas, grandes e pequenas". "Foi uma honra, e um deleite, para aqueles de nós que tiveram o prazer de trabalhar com ele", disse Barclay.
Nascido em Nova Iorque e filho de uma professora de dança e um diretor de cinema, Marshall entrou no mundo do  espetáculo nos anos 1950, escrevendo piadas para programas de televisão, incluindo o The Tonight Show with Jack Paar. Seu primeiro grande êxito na televisão foi "The Odd Couple", criou a icônica comédia dos anos 70 "Happy Days" e introduziu Robin Williams nas telas com "Mork y Mindy".
Marshall começou a escrever e dirigir filmes nos anos 80, e foi a força criativa por trás do sucesso "Amigas para Sempre" (1989). Mas talvez seja mais conhecido por ter dado o pontapé inicial na grande carreira de Julia Roberts com seu papel na comédia "Uma Linda Mulher" nos anos 1990, e também tornou Anne Hathaway uma estrela em "O Diário da Princesa" (2001). Marshall era ainda um talentoso ator, que protagonizou "Uma Equipe Muito Especial" e teve vários papéis na televisão na década de 1990.
Seus últimos créditos como diretor foram nas comédias "Idas e Vindas do Amor" (2010), "Noite de Ano Novo" (2011) e "O Maior Amor do Mundo", deste ano, que não tiveram boas críticas, mas foram sucessos de bilheteria. "Mataram-me no último, mas arrecadou 146 milhões de dólares no mundo", disse Marshall ao The New York Times sobre as péssimas críticas recebidas por "Noite de Ano Novo".
Marshall deixou sua esposa Barbara, com quem foi casado por mais de 50 anos, três filhos e seis netos.

Reprodução do Correio do Povo.

Morre Danilo Ucha, colunista do Jornal do Comércio

Morre Danilo Ucha, colunista do Jornal do Comércio

Jornalista assinava coluna Painel Econômico
Morreu nesta quarta-feira o jornalista e colunista do Jornal do Comércio Danilo Ucha, aos 73 anos. Ele faleceu enquanto dormia em casa, em Porto Alegre, segundo familiares. Ainda não há informações sobre a causa da morte. Detalhes sobre a cerimônia de velório e o sepultamento serão informados em breve. 
Ucha tinha mais de 50 anos de profissão e era um dos mais importantes jornalistas do Rio Grande do Sul. Começou a carreira no jornal A Plateia, de Santana do Livramento, cidade onde nasceu. Atualmente, ele assinava a coluna Painel Econômico no JC, dirigia o mensário Jornal da Noite, que completa 30 anos em agosto, e mantinha o blog cordeiro&vinho. 
Autor de vários livros-reportagem, atuou nos principais veículos de comunicação do País. Também foi um dos dirigentes da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal) e cobriu a guerra das Malvinas. Ucha era diabético, hipertenso e já havia passado por cirurgia cardíaca. Ele deixa a mulher Maria Jair Fontoura Mazei, cinco enteados, 11 netos e oito bisnetos.

Reprodução do Correio do Povo

terça-feira, 19 de julho de 2016

Os alvos em questão

O lado de farsa do impeachment leva uma trombada forte. Na mesma ocasião, a Lava Jato arrisca-se a comprovar o lado de farsa implícito na acusação, feita por muitos, de que o seu alvo verdadeiro não é a corrupção, mas Lula e o PT.
A conclusão do Ministério Público Federal sobre as tais "pedaladas", fundamentais no pedido e no processo de impeachment de Dilma Rousseff, recusa a acusação de constituírem crime de responsabilidade. Dá razão à tese de defesa reiterada por José Eduardo Cardozo, negando a ocorrência de ilegal operação de crédito, invocada pela acusação. E confirma a perícia das "pedaladas", encomendada pela Comissão de Impeachment mas, com o seu resultado, mal recebida na maioria da própria comissão. À falta de base da acusação, o MPF pede o arquivamento do inquérito.
A aguardada acusação final do senador Antonio Anastasia tem, agora, a adversidade de dois pareceres dotados de autoridade e sem conexão política. A rigor, isso não deve importar para a acusação e o acusador: integrante do PSDB, cria e liderado de Aécio Neves, Antonio Anastasia assinará um relatório que será apenas como um esparadrapo nas aparências. Sem essa formalidade farsante, não precisaria de mais do que uma frase recomendando a cassação, que todos sabem ser seu propósito acima de provas e argumentos.
Mas os dois pareceres que se confirmam devem ter algum efeito sobre os senadores menos facciosos e mais conscienciosos, com tantos ainda definindo-se como indecisos. A propósito, as incessantes contas das duas correntes –o mais inútil exercício desses tempos olímpicos– têm resultados para todas as iras, a depender do adivinho de votações consultado.
Na Lava Jato, procuradores continuam falando de ameaças ao prosseguimento das suas atividades. A mais recente veio de Washington. Não de americanos, muito felizes com o pior que aconteça à Petrobras. É uma informação renovada por Sergio Moro para um auditório lá: a menos que haja imprevisto, dará o seu trabalho por concluído na Lava Jato antes do fim do ano.
Na estimativa de Moro está implícito que a corrupção na Petrobras anterior ao governo Lula, ao menos na década de 1990, não será investigada. Daqui ao final do ano, o tempo é insuficiente para concluir o que está em andamento e buscar o ocorrido naquela época. Apesar das referências em delações, como as de Pedro Barusco, a práticas de corrupção nos anos 90, pelo visto vai prevalecer a resposta gravada na Lava Jato, quando um depoente citou fato daquele tempo: "Isso não interessa" (ou com pequena diferença verbal).
As gravações traiçoeiras de Sérgio Machado, embaraçando lideranças do PMDB, ficariam como um acidente no percurso da Lava Jato. Moro, aliás, disse parecer "que o pagamento de subornos em contratos da Petrobras não foi uma exceção, mas sim a regra", no "ambiente de corrupção sistêmica" do "setor público". Diante disso, restringir o interesse pela corrupção a um período bem delimitado no tempo e na ação sociopolítica, sem dúvida valerá por uma definição de propósitos.


Reprodução de parte da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

Curto-circuito à vista

No slogan bolado por marqueteiros, a estatal Furnas Centrais Elétricas se apresenta como "a energia que impulsiona o Brasil". Fora da propaganda, a empresa tem impulsionado escândalos em série. A disputa por seus contratos está por trás das maiores crises políticas recentes: o mensalão e o impeachment de Dilma Rousseff. Um novo curto-circuito começa a ser montado pela gestão de Michel Temer.
A guerra pela estatal precipitou os choques entre o deputado Roberto Jefferson e o governo Lula. Os fusíveis se queimaram quando o Planalto decidiu substituir o diretor Dimas Toledo, que era ligado ao tucanato mineiro e também prestava serviços ao PTB. Irritado, Jefferson passou a contar o que sabia sobre a distribuição de mesadas no Congresso.
No segundo mandato de Lula, Furnas passou à influência do deputado Eduardo Cunha. Sua cruzada contra a presidente Dilma Rousseff começou quando ela decidiu tirá-lo de perto dos cofres da estatal. "Dilma teve praticamente que fazer uma intervenção na empresa para cessar as práticas ilícitas, pois existiam muitas notícias de negócios suspeitos e ilegalidades", contou o ex-senador Delcídio do Amaral aos procuradores da Lava Jato. "Esta mudança na diretoria de Furnas foi o início do enfrentamento de Dilma Rousseff com Eduardo Cunha", acrescentou.
Delcídio também ligou o senador Aécio Neves a suspeitas de desfalques na estatal durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O Supremo Tribunal Federal instaurou inquérito para investigar o tucano.
Na semana passada, Temer anunciou que entregará Furnas à bancada do PMDB de Minas Gerais na Câmara, um aglomerado de aprendizes de Cunha. "Vou devolver a estatal a eles. Furnas pode ser mais expressiva politicamente do que o Turismo. Tem Chesf, Eletronorte, Eletrosul, Itaipu...", disse o interino ao jornal "O Estado de S. Paulo". No dialeto de Brasília, "expressiva politicamente" quer dizer isso mesmo que você está pensando.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo.

Memórias do Kremlin

Trajando a imponente farda soviética, o encarregado de checar o passaporte fixou o olhar em mim. Várias vezes comparou minha expressão à foto no documento. Desembarcava eu em Moscou, em 1990, para iniciar quatro anos na capital russa como correspondente da Folha.
Ecos da recém-terminada Guerra Fria ainda ressoavam. A temida KGB sobrevivia, apesar do mergulho da União Soviética em um estado comatoso, para desintegrar-se no ano seguinte.
Os segundos em que permaneci estático, diante do controle de imigração, pareceram uma eternidade. O olhar cortante do funcionário soviético começou a me incomodar.
O jovem pronunciou a palavra-chave. "Cigarro?". Fingi não entender. Mas já havia sido avisado sobre o poder mágico, no universo da escassez soviética, de maços de Marlboro, com intuito de abrir portas. Tentei então transparecer incredulidade. Sem insistir, o jovem tascou um carimbo no visto de entrada e devolveu o passaporte.
Lembrei-me do episódio recentemente, em um retorno a Moscou. Na imigração do aeroporto de Domodedovo, dispositivos eletrônicos e formulários em papel escaneiam opiniões de viajantes, com pedidos para avaliar o trabalho dos funcionários e indagando se houve pedido de suborno.
Em um quarto de século, a sociedade russa passa por mudanças abissais. Acompanho o país in loco desde 1985, quando, empurrado por curiosidade estudantil, cheguei a Leningrado, hoje São Petersburgo. Naquele ano, em março, Mikhail Gorbatchev, responsável por deslanchar as reformas da perestroika, assumiu as rédeas do Kremlin.
Guardo reminiscências também da chegada ao aeroporto de Leningrado. Vinha em excursão turística. Levamos três horas para atravessar controles burocráticos. Revistaram minuciosamente a bagagem, em busca de material "antissoviético".
Chegar agora a Moscou não demanda de nós, brasileiros, nem mesmo visto de entrada. Passar por controle aduaneiro se desburocratizou, em comparação ao passado.
Vagar pelo metrô moscovita evidencia novos ares. Décadas atrás, passageiros sem opções liam páginas de jornais insípidos como o "Pravda", porta-voz do regime comunista. Hoje, consomem bytes em celulares, graças ao wi-fi disponível nos vagões.
A Rússia pós-soviética permite naturalmente uma miríade de leituras. A fotografia instantânea do regime de Vladimir Putin, iniciado em 2000, aponta a sobrevivência de mazelas como corrupção e autoritarismo.
No entanto, a comparação com o passado recente desvela câmbios tectônicos, impulsionados pelo surgimento de uma classe média, com aspirações e reivindicações, e, sobretudo, por mudanças geracionais, responsáveis por questionar modelos autoritários herdados de séculos de czarismo e de regime soviético.
Na Moscou em transformação, parei em um bar em plena praça Vermelha, às portas do sofisticado shopping center Gum. Na mesa ao lado, dois jovens casais de turistas, com máquinas fotográficas de última geração, registravam imagens daquele momento de embalado consumismo. Eram vietnamitas. Os patriarcas comunistas Vladimir Lênin e Ho Chi Minh não acreditariam nessa cena.


Texto de Jaime Spitcovsky, na Folha de São Paulo

Em livro, Pedro Juan Gutiérrez relata perseguição a gays em Cuba

Em livro, Pedro Juan Gutiérrez relata perseguição a gays em Cuba

domingo, 17 de julho de 2016

Morre o jornalista Eliakim Araújo, aos 75 anos, nos EUA

Morre o jornalista Eliakim Araújo, aos 75 anos, nos EUA

Ele estava internado para tratamento de um câncer no pâncreas

O jornalista Eliakim Araújo morreu neste domingo, aos 75 anos, em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, onde estava internado para o tratamento de um câncer no pâncreas. A doença foi diagnosticada há um mês e Araújo chegou a se submeter a um tratamento de quimioterapia, mas não resistiu.
Eliakim Araújo formou, ao lado da mulher, a também jornalista Leila Cordeiro, o primeiro casal de apresentadores da televisão brasileira, ao comandar o "Jornal da Globo", em 1983. Nascido em Guaxupé, Minas Gerais, Araújo também comandou, na emissora carioca, o "Globo Repórter", além das cobertura dos desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro e a eleição indireta de Tancredo Neves.
O jornalista se transferiu, junto da mulher, para a Rede Manchete, em 1989, quando ancoraram o principal telejornal da emissora. O casal se mudou para os Estados Unidos em 1997 para trabalhar como âncoras do canal CBS Telenotícias, que transmitia em português. O projeto durou três anos e, mesmo após seu final, os jornalistas decidiram continuar morando nos EUA. Recentemente, Eliakim Araújo trabalhava com jornalismo online. Segundo a família, o desejo do jornalista era que seu corpo fosse cremado e a cinzas jogadas no mar.

Reprodução do Correio do Povo

O conflito entre o bem e o bem

Minha religião é a tragédia. Não porque eu creia em Zeus ou Afrodite (neste caso, quase faria uma exceção ao meu ceticismo, devido a certas mulheres que conheci ao longo da vida), mas porque tenho certeza de que a tragédia é a forma mais acabada que o espírito humano encontrou pra descrever nossa condição.
Escrevi algumas semanas atrás que minha religião é a tragédia. Muitos leitores me perguntaram o que eu queria dizer com isso. Com o tempo vamos aprendendo onde nos sentimos em casa (esta é uma forma de felicidade muito sutil para espíritos ruidosos). A tragédia é uma de minhas casas, talvez a mais "minha" de todas.
Ao longo da vida percebemos que as pessoas sofrem, resolvem problemas, fazem escolhas entre "X" e "Y", enfim, enfrentam a labuta do dia a dia. Com o tempo, sem saber ao certo a razão, desenvolvi um encanto por essa capacidade de ação dos meus semelhantes. Hoje, sei que existia nesse encanto que sentia o reconhecimento de que os seres humanos, na sua infinita batalha cotidiana, mereciam aquilo que só mais maduro pude saber o que era –eles mereciam reverência.
Dito nas palavras que aprendi com Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.): a vida dos seres humanos desperta em nós, quando olhamos com atenção, "terror e piedade", traços da tragédia grega, segundo o filósofo.
E, antes de tudo, meus semelhantes mereciam reverência porque, ao final (um importante detalhe que logo ficou claro pra mim), sempre perderiam a batalha. A vida ficou clara na sua "essência" para mim quando, depois de deixar a infância, entendi que somos como heróis da tragédia: combatemos até o fim, mas sempre seremos derrotados ao final. Não só a morte enquanto tal, mas as perdas, as frustrações, as mentiras, os amores impossíveis, dores de todos os tipos.
Evidente que isso tudo é atravessado por uma profunda beleza e coragem que, às vezes, assim como que num ato de graça, conseguimos até tocar com as mãos ou sentir seu perfume. E essas duas, beleza e coragem, que considero irmãs de sangue, tornam ainda mais evidente o reconhecimento de que os seres humanos merecem reverência nessa labuta sem fim.
Hoje reconheço aquilo que para grandes autores como G. W. F. Hegel (1770-1831), Isaiah Berlin (1909-1997) e John Gray, vivo e em atividade, se constitui num dos traços marcantes da condição trágica: o fato de, muito pior do que ter de escolher entre o bem e o mal, sermos obrigados, em muitos dos mais dramáticos momentos de nossas vidas, a escolher entre o bem e o bem.
Os utilitaristas na virada do século 18 para o 19 entendiam que a vida humana se dá por meio de escolhas racionais: escolhemos o bem-estar e não o sofrimento (o mal para o utilitarismo).
Isso é apenas meia verdade. Fosse essa a realidade na sua plenitude, não haveria problema. A verdade é que, muitas vezes, somos obrigados a escolher entre duas formas de bem em conflito irremediável. Bens materiais x bens imateriais, fidelidade x paixão, filhos x dedicação à vida profissional, verdade da alma x verdade do corpo, sinceridade x sobrevivência, enfim, apenas iniciantes acreditam que o utilitarismo "resolve" o drama moral humano. Gray chama esse tipo de escolha de "escolha radical", porque ela nos lança no drama trágico por excelência.
Martin Thibodeau, no seu maravilhoso "Hegel e a Tragédia Grega", recém-lançado pela É Realizações, descreve essa mesma condição dizendo que a vida é trágica porque ela se dá fora de qualquer possibilidade de redenção metafísica, de qualquer acordo final que possa dar conta da oposição entre bens, da cisão interior, da negatividade dos fatos e do conflito essencial que alimenta nossas vidas sem possibilidade de "domesticação".
"The clash between good and good", nas palavras de Gray, ou "o conflito entre o bem e o bem", é nosso principal problema moral. Todas as demais formas de concepção de vida, para mim, estão aquém dessa clareza trágica. Quando estamos diante de uma escolha dessa, a vida cobra sua conta. Ela cobra de nós a capacidade de sentirmos terror e piedade de quem sofre tamanha maldição.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

Hector Babenco foi o que vimos de mais próximo a Hollywood

Hector Babenco foi o que vimos de mais próximo a Hollywood

Sexo sem amor

Em outubro de 2012, lembro de ter dito à minha analista como eu estava madura. Eu agora podia fazer sexo sem amor! Era um homem bonito, mas algo do seu rosto me incomodava: talvez o grande zigomático fosse muito grande. Tinha uma voz rouca, mas, por causa do catarro seco dando gravidade a tolices, eu sabia que não me apegaria. Tinha um cabelo bom de enfiar os dedos, mas, pela necessidade em se mostrar com extrema mobilidade urbana, fedia a rua.
Algumas semanas depois que transamos, eu tinha tanta certeza que não estava apaixonada que o chamei pra almoçar. Eu queria, à luz das transparências e cruezas, olhar bem no fundo dos seus olhos, com o mais profundo dos meus, e dizer ao cosmos: veja como posso ter uma ótima noite com um homem bacana e não esperar nada! A verdade é que nem tinha sido tão boa e nem ele era excepcional. E eu nem lembrei de olhar muito pra sua cara, estava mais preocupada em comer e seguir com a vida.
Aconteceu que alguns meses depois, não tendo mais notícias suas, senti saudade da mágica sensação de minha gritante maturidade. Senti falta urgente e dilacerante da certeza libertadora de poder jantar com um homem tão sensacional, cujo beijo avassalador tinha cruzado pra sempre as fronteiras do desenho da minha boca –e não sentir nada. E quis, apenas pra possuir novamente tamanho poder, tê-lo por perto e, então, negá-lo. Faltando poucas horas, ele desmarcou. Experimentei algo como um cano de pistola indo do meu ânus até a goela mas, lembrei, estava tudo bem porque agora eu era muito madura. Agora eu podia me esfregar nua em um homem tão gostoso e interessante, sem esperar nada nem dele, nem do fato de ter sido tão maravilhoso. Até porque eu nem tinha ficado totalmente nua e nem tinha dado tempo de me esfregar muito. Ele definitivamente não era tudo isso e boa é a memória da gente, os homens são sempre médios.
Passado um ano e quatro meses, alguém me contou. Então aquele homem razoável com quem eu tinha transado uma única e esquecível vez, se casaria? Tive vontade de vomitar todo o café da manhã e me jogar no chão para ver se com o impacto o oxigênio voltava a circular normalmente, mas podiam ser apenas gases e/ou sinusite. À noite eu ainda estava pensando nisso e continuei pensando nisso por muitos dias. Pensei nisso por ininterruptos sete meses. Foi quando decidi que, pra ter mesmo certeza da minha indiferença, precisávamos transar novamente.
Acabado o ato do amor –e, perdão, escrevi amor apenas pra ser cínica– nos despedimos com certa frieza, que, por conta de minha maturidade e vida atribulada, não me doeu em absoluto. Era então certeza que consigo transar com um homem lindo e genial e com essa voz espetacular e não sentir nada. Até porque todos esses elogios são piadas. Ele era meio gordo, tinha voz de velho cansado e só sabia replicar frases célebres de intelectuais mortos. Não é o tipo de sagacidade que me pega.
Ontem o encontrei com um bebê no colo, andando pela rua Harmonia. Tive vontade de vomitar todo o almoço e bater com a cabeça no asfalto, pra ver se com o impacto minha pressão voltava ao normal. Mas podiam ser apenas AVC e/ou sinusite. Tive vontade de dizer: eu amava tudo em você e estou falecida de ciúmes brutais todos esses anos. Mudaria de país e de cabelo e de signo por você. Mas como tudo isso seria de um sarcasmo descomunal, apenas dei seta pra esquerda e digitei "jazz" no Spotify. Cantarolei.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Os homens ocos

"É coisa de quando não tínhamos condição de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar de inconsciente? Onde fica?". As colocações do neurocientista Ivan Izquierdo, publicadas nesta Folha há algumas semanas, têm ao menos o mérito da clareza, além de expressar certa ironia, o que sempre acaba por produzir condescendência. Ela partilha, no entanto, um conjunto de dogmas que, para um setor da comunidade científica, parece valer como evidência natural.
Essa discussão poderia se restringir aos muros das universidades e laboratórios se não colocasse em questão algo que diz respeito a todos, mesmo que nem todos o saibam. Pois, ao fim e ao cabo, trata-se de saber como nós falamos de nós mesmos. Afirmar que o inconsciente é uma hipótese vazia não implica apenas tirar o emprego de centenas de psicanalistas. Significa também modificar de forma decisiva a maneira com que nós nos descrevemos, a maneira com que compreendemos a estrutura de nossas ações e a dinâmica de nossos sofrimentos e desejos.
Poucas foram as teses que influenciaram tanto a maneira como nós definimos a nós mesmos quanto a de que somos sujeitos atravessados por algo que nos causa e que não se submete à estrutura representacional de nossa consciência, algo que coloca continuamente questões sobre nossa identidade, a autonomia de nossas ações e a unidade de nossa personalidade. Nesse sentido, dizer que o inconsciente não existe equivaleria a dizer que não precisamos mais nos ver dessa forma descentrada.
Mas vejamos o que dizer das afirmações sobre a inexistência do inconsciente presente na referida entrevista. Dos dogmas pressupostos pelas colocações do neurocientista, um é deveras interessante, a saber, se não é localizável, então não existe. Se não posso responder à pergunta "onde fica?", então não há sentido algum em falar de inconsciente. Isso pode passar por rigor científico em certas hostes, mas há razões para duvidar de tal materialismo sensualista e seu afã localizacionista.
Pois talvez estejamos aqui diante do que o filósofo inglês Gilbert Ryle um dia chamou de "erro de categoria". Trata-se de um erro similar àquele do estudante que vai à USP pela primeira vez, é apresentado à biblioteca, à praça do Relógio, às salas de aula e, ao final, pergunta: "Bem, vim aqui, vi a biblioteca, a praça, o bunker da reitoria mas, afinal, onde está a USP?". Sim, onde está o inconsciente se não posso localizá-lo como posso, por exemplo, localizar a região cerebral responsável pela empatia? Bem, talvez não seja possível localizá-lo porque ele não está lá à maneira que a mielinização dos axônios no sistema nervoso central está.
Alguns estão acostumados a pensar que o inconsciente seria algo como uma caixa de Pandora para onde iriam conteúdos mentais recalcados, desejos censurados e motivações reprimidas. Mas notem que o lado forte da hipótese de Freud não estava nessa cisão entre a consciência e certos conteúdos mentais. Por exemplo, ao falar sobre os sonhos, Freud insistia que deveríamos perceber como eles eram compostos de três níveis distintos: conteúdos manifestos (aquilo que me vem imediatamente à memória quando narro o sonho que tive), conteúdos latentes (aquilo que é revelado quando os sonhos são interpretados) e o "trabalho do sonhos", ou seja, a maneira com que o sonho distorce, compõe, condensa e desloca seus materiais.
Esse último nível era, na verdade, o que permitia falar em inconsciente e foi por esse caminho que boa parte da psicanálise pós-freudiana trilhou.. Pois "inconsciente" eram as leis que determinam da estrutura do pensamento, o modo de pensar, seus caminhos, suas associações e repetições. Como se houvesse leis que agem em nós, que determinam a forma de nossos pensamentos e nossas relações à nossa revelia. Leis construídas a partir da incidência subjetiva das experiências sociais e que acabavam por se organizar como uma linguagem privada.
Foi pensando em algo semelhante que um antropólogo como Claude Lévi-Strauss, para quem o inconsciente era uma hipótese extremamente profícua, podia lembrar que essa noção era socialmente trivial. Por exemplo, quando estabelecemos escolhas matrimoniais, não temos consciência das leis do incesto. No entanto, elas agem em nós definindo, de forma muda, a configuração de nossas escolhas. Em dimensões fundamentais da vida, não agimos, mas somos "agidos" por desejos que nos atravessam e isso é o que nos faz, como dizia T.S. Elliot, diferentes de homens ocos.
Talvez seja esse estranhamento que alguns acreditam melhor apagar com uma boa imagem de pet scan. Isso pode parecer novo, mas é só um retorno ao materialismo do século 18.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

Os hábitos dos outros

"Eu não posso imaginar como este lugar ficaria. Não posso imaginar o que seria do país. Eu não quero nem pensar nisso."
Gilmar Mendes pensando em voz alta no que aconteceria se Dilma Rousseff voltasse ao Planalto? Não. Era a juíza Ruth Bader Ginsburg, da Suprema Corte dos EUA, falando nesta semana sobre a possibilidade de Donald Trump chegar à Casa Branca.
Nos Estados Unidos, são raríssimas as ocasiões em que os juízes da Suprema Corte falam em público. Às vezes eles fazem palestras aborrecidas, em ambientes acadêmicos. A maioria jamais dá entrevistas. Expressar opiniões políticas, como Ginsburg fez, é algo que nunca se vê.
É muito diferente do que acontece no Brasil. A falta de cerimônia do ministro Gilmar Mendes não espanta mais ninguém. Nem o fato de que ele está longe de constituir uma exceção no Supremo Tribunal Federal.
Ginsburg, que está com 83 anos, teme uma guinada reacionária na Suprema Corte se Trump for eleito e puder nomear juízes conservadores como ele quando liberais como ela saírem de cena. As declarações da juíza provocaram escândalo. Analistas chegaram ao ponto de sugerir que ela se declare impedida de julgar ações de interesse do Executivo no futuro, se Trump virar presidente.
Acostumados a acompanhar discussões acaloradas do STF ao vivo pela televisão, os brasileiros estranham os hábitos americanos. As sessões em que a Suprema Corte ouve os advogados das partes antes de decidir são públicas, mas câmeras são proibidas. Os juízes depois se reúnem a portas fechadas para debater, publicam suas decisões e silenciam.
Mas esse ambiente também produz cenas que dão inveja. Em fevereiro, quando morreu o juiz Antonin Scalia, líder da ala conservadora do tribunal, poucos sentiram mais sua falta do que a liberal Ginsburg. Discordavam quase sempre, mas achavam que aprendiam com isso, e iam juntos à ópera depois. "Éramos os melhores amigos", ela escreveu.


Texto de Ricardo Balthazar, na Folha de São Paulo

Morre o escritor húngaro Peter Esterhazy

Morre o escritor húngaro Peter Esterhazy

Autor havia participado em junho da abertura da feira de livros de Budapeste
O escritor húngaro Peter Esterhazy morreu nesta quinta-feira, aos 66 anos, devido a um câncer no pâncreas, sobre o qual falou em sua última obra, anunciou seu editor, citado pela agência de notícias húngara MTI. Krisztian Nyary, diretor da editora Magveto, indicou que o escritor faleceu à tarde.
Esterhazy inaugurou em junho a feira de livros de Budapeste, onde apresentou sua última obra, "Journal intime du pancréas" (Diário do pâncreas, em tradução literal), no qual mencionou sua luta contra a doença que acabou por lhe tirar a vida. Nascido em Budapeste no dia 14 de abril de 1950, Peter Esterhazy cresceu em uma família aristocrática que teve seus bens tomados em 1948 após a o Partido Comunista ganhar o poder.
Foi estudante de Matemática e trabalhou durante quatro anos - de 1974 a 1978 - no instituto de informática do Ministério da Indústria antes de se dedicar exclusivamente à literatura. Sua obra mais importante é "Harmonia Caelestis" (2000) em que conta a história de sua família, de seus ancestrais na época do império austro-húngaro até a perseguição pela ditadura comunista.
Em 2005, com o título "Revu et corrigé" (Revisto e Corrigido, em tradução livre), publicou uma nova versão de "Harmonia Caelestis" ao descobrir que seu pai havia sido um informante da polícia política durante a época comunista. Considerado como a personalidade mais importante "da nova prosa húngara", Esterhazy deixa uma obra caracterizada por sua diversidade estilística e seus experimentos formais, uma prosa "cheia de vida" segundo o escritor americano John Updike.

Reprodução do Correio do Povo