domingo, 25 de setembro de 2016

'Soluções inéditas' da Lava Jato têm um nome: Tribunal de Exceção

A realidade não precisa de batismo nem definição, mas ambos tornam mais difundidas a sua percepção e compreensão. Esse é o auxílio que o país recebe de um tribunal do Sul, quando os fatos fora do comum se multiplicam e parecem não ter fim: a cada dia, o seu espetáculo de transgressão.
Foi mesmo um ato tido como transgressor que levou o tribunal, ao julgá-lo, a retirar a parede enganadora que separava a realidade de certos fatos e, de outra parte, a sua conceituação clareadora. Isso se deu porque o Tribunal Regional Federal da 4a Região (Sul) precisou decidir se aceitava o pedido, feito por 19 advogados, de "processo administrativo disciplinar" contra o juiz Sergio Moro. O pedido invocou "ilegalidades [de Moro] ao deixar de preservar o sigilo das gravações e divulgar comunicações telefônicas de autoridades com privilégio de foro [Dilma]". Parte das gravações, insistiu o pedido, foram interceptações "sem autorização judicial".
Se, entre os 19, alguém teve esperança de êxito, ainda que incompleto, não notara que recursos contra Moro e a Lava Jato naquele tribunal têm todos destino idêntico. Mas os 19 merecem o crédito de haver criado as condições em que o Judiciário reconheceu uma situação nova nas suas características, tanto formais como doutrinárias. Nada se modifica na prática, no colar de espetáculos diários. O que se ganha é clareza sobre o que se passa a pretexto da causa nobre de combate à corrupção negocial e política.
De início era apenas um desembargador, Rômulo Pizzolatti, como relator dos requerimentos. Palavras suas, entre aquelas com que apoiou a recusa do juiz-corregedor à pretensão dos advogados: a ação do que se chama Lava Jato "constitui um caso inédito no direito brasileiro, com situações que escapam ao regramento genérico destinado aos casos comuns". E o complemento coerente: a Lava Jato "traz problemas inéditos e exige soluções inéditas".
O "regramento genérico" é o que está nas leis e nos códigos, debatidos e fixados pelo Congresso, e nos regimentos e na jurisprudência criados pelos tribunais. O que "escapa ao regramento" e, em seu lugar, aplica "soluções inéditas" e apenas suas, tem nome no direito e na história: Tribunal de Exceção.
A tese do relator Rômulo Pizzolatti impôs-se por 13 votos contra um único desembargador. Não poderia ser tida como uma concepção individual do relator. Foi a caracterização –correta, justa, embora mínima– que um Tribunal Federal fez do que são a 13a vara federal de Curitiba, do juiz Sergio Moro, e "a força-tarefa" da Procuradoria da República no sistema judicial brasileiro, com o assentimento do Conselho Nacional de Justiça, do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público e dos mal denominados meios de comunicação.
Fazem-se entendidos os abusos de poder, a arrogância, os desmandos, o desprezo por provas, o uso acusatório de depoentes acanalhados, a mão única das prisões, acusações e processos: Tribunal de Exceção.


Trecho de coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.  Destaque do blogueiro.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Oftalmologistas discutem como salvar olhos atingidos em protestos violentos

O uso de gás lacrimogêneo, balas de borracha e outras armas não letais pela Polícia Militar para conter protestos está obrigando os oftalmologistas a se atualizarem para lidar com ocorrências de problemas oculares em São Paulo.
O 60º Congresso Brasileiro de Oftalmologia, no começo do mês, teve até palestra, "Traumatismo ocular na era dos 'black blocs'", de Emerson Castro, doutor pela USP e membro da Sociedade Brasileira de Trauma Ocular.
Médico do Hospital Sírio-Libanês, próximo da av. Paulista, onde ocorrem muitos protestos, ele tem observado um aumento de casos relacionados a armas não letais.


O que existe de informação médica sobre o assunto?
Estamos aprendendo a lidar com isso, são coisas novas até mesmo para os médicos. Nem existem papers sobre o assunto no Brasil. A palestra no congresso estava totalmente lotada, foi um dos assuntos quentes do evento. Agora essas armas vão fazer parte da rotina e precisamos saber como gerenciar esse tipo de situação.
Toda semana tem manifestação e toda semana tem gás de pimenta. Para piorar, a internet dissemina mitos sobre como as pessoas devem se tratar [quando atingidas].
Quais são os mitos?
Quando um produto químico entra em contato com o olho, não se deve tentar neutralizá-lo com outra substância. Isso pode causar uma reação exotérmica. O olho fica quente e a situação piora. Não use vinagre, antiácido, xampu nem leite.
O que fazer?
O principal é ter calma e evitar esfregar os olhos. Lave com soro fisiológico ou com água corrente. Nos protestos, não use lentes de contato. O gás tende a aderir a elas.
Se tiver que fugir do gás, corra com os braços abertos porque ele tende a aderir à roupa. O vento ajuda a dissipá-lo. Cuidado na hora de tirar a roupa para não queimar a pele. Às vezes é melhor até cortá-la. Evite abaixar: o gás tem resíduos sólidos que podem descer. Se a irritação não melhorar, procure um médico.
Que ferimento é comum?
São aqueles causados pelo gás lacrimogêneo e pelo gás de pimenta, que geralmente não causam tantos problemas. O grave é ficar exposto a eles por muito tempo, o que causa reações alérgicas.
Solventes do spray de pimenta podem causar lesões mais sérias. Agora, um estilhaço de bomba no olho é supergrave. A bala de borracha é um perigo porque vem numa velocidade muito grande. Quando atinge diretamente o olho, a chance de cegueira é enorme.
Existem protocolos que a PM deveria seguir, como não atirar no rosto das pessoas. Mas, quando você dá para o policial uma arma, é difícil na hora ele seguir o protocolo.
Por isso defendo fortemente que a polícia pare de usar [essas armas]. Eles chamam de não letais, mas elas têm um potencial de dano muito grande. Há vários casos de jornalistas que ficaram cegos, de arrancar o olho, de deformar. Há outras formas de se conter as pessoas.


Reprodução de parte da coluna de Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo

Jovens assassinos: maçãs podres ou 'vítimas' de uma infância infeliz?

Na avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio, o fim de tarde de quarta-feira, dia 14, não foi nada insólito.
Desde o começo da Olimpíada, na hora em que as pessoas saem da praia e se dirigem às paradas de ônibus, bandos de adolescentes praticam arrastões. Talvez os moleques não queiram tanto roubar (celular à parte, ninguém leva nada para a praia) quanto apavorar, suscitar gritos e correria.
No dia 14, então, 92 jovens foram detidos –82 eram menores, 78 adolescentes e quatro crianças.
Segundo a reportagem do UOL (http://migre.me/v11ot), os adultos foram presos, as crianças foram para um abrigo da prefeitura, e os adolescentes receberam "apoio dos profissionais da Secretaria de Desenvolvimento Social". Paira no ar uma certa vontade de distribuir safanões –e não "assistência".
Graças ao artigo de Patrick R. Keefe na revista "The New Yorker" de 12 de setembro, li o livro-reportagem de Dan Slater: "Wolf Boys: Two American Teenagers and Mexico's Most Dangerous Drug Cartel" (meninos-lobos: dois adolescentes americanos e o cartel mais perigoso do México). Slater reconstrói a história de dois adolescentes do Texas (fronteira com o México) que se tornaram sicários no narcotráfico mexicano, assassinando dezenas de pessoas com requintes de crueldade. Julgados como adultos (possível nos EUA a partir dos 13 anos), ele foram condenados à prisão perpétua sem redução de pena.
Slater se pergunta se os dois jovens deveriam ser considerados como criminosos ou como "vítimas" (do cartel mexicano).
Nessa direção, Keefe, no artigo da "New Yorker", nota que, em geral, as crianças-soldados das guerras no continente africano nos parecem não ter culpa: eles foram arrancados das suas famílias pelos senhores da guerra. Em compensação, somos menos clementes com nossos adolescentes criminosos.
Keefe propõe uma explicação: quanto mais as vítimas dos adolescentes se parecem conosco, tanto mais tendemos a considerar que os jovens criminosos são maçãs podres e, de uma maneira ou de outra, responsáveis por sua podridão.
Ishmael Beah, ex-criança-soldado leonesa, autor de "Muito Longe de Casa" (Companhia de Bolso), esteve na Flip de 2007. Ao conhecê-lo, era impossível não apostar que, por horrorosa e sanguinária que seja a infância de alguém, sempre existe uma chance de redenção.
Mas volto ao livro de Slater: lendo as conversas do autor com Cardona (o jovem texano que mais se deixou entrevistar), a sensação é outra. O adolescente não fugiu da fome nem foi arrancado de seu lar à força: enveredou-se pelo crime por causa da grana, das minas, dos carros e das roupas.
Para salvar Cardona, vamos fazer o quê? Acusar o "imediatismo" materialista de nossa cultura? Problema: há milhões de adolescentes que gostam de minas, carros, grana e roupas e não se tornam assassinos.
Alguém dirá que os outros adolescentes apostam no esforço e no trabalho, enquanto Cardona escolhe a facilidade. Mas fazer carreira no crime, como sicário, é mesmo uma "facilidade"?
O advogado de Cardona pediu uma pena menos drástica com estas palavras: "Não sou Freud. Estou convencido de que Freud se divertiria à beça aqui. Não sei qual foi a motivação dele [de Cardona]. Não sabemos o que o leva a agir. Ninguém parece mesmo se importar com isso".
Os dois adolescentes do Texas desejavam coisas que muitos ou todos desejam. Só que fizeram isso sem freio moral, sem empatia, sem compaixão pelas suas vítimas e, ainda, se vangloriando de sua própria crueldade. Freud e um eventual colega sociólogo (marxista ou não) talvez encontrassem explicações ("desculpas"?) na suposta injustiça social ou na neurose familiar. Mas dificilmente eles conseguiriam eliminar a ideia de que os jovens texanos eram, simplesmente, ruins.
Essa ideia lhe inspira horror? Será então que você acredita que todos seríamos naturalmente bons, à condição de não sermos estragados por alguns percalços violentos de nossa infância?
Sabemos descrever bem o que é uma personalidade antissocial (desinteresse pelos outros, mentira persistente, impulsividade, agressividade, falta de remorso etc. –tudo isso, às vezes, junto com hiperatividade, drogas, depressão). Suspeitamos de componentes genéticas e causas ambientais e psíquicas (desamparo, desafeto familiar, violências sofridas).
Mas duvido que a gente chegue um dia a explicar a história de um Cardona sem recorrer à hipótese da maçã podre.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

A culpa é sempre da vítima

Não me canso de repetir o que já publiquei sabe Deus quantas vezes neste espaço: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". Como se sabe, o pensamento não é meu (quem me dera!); é de Paulo Freire.
Quem pensa mal lê mal. E lê mal tudo: o mundo, a palavra, os fatos, a realidade, os textos, as canções, os filmes etc., etc., etc. Funestas, essas más leituras infernizam diretamente a vida de todos nós.
O que me leva a essas reflexões é o resultado de uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência sexual. Realizado pelo Datafolha e publicado nesta quarta (21), o estudo revela dados estarrecedores. Um deles: 37% dos entrevistados dizem que "as mulheres que se dão ao respeito não são estupradas". É mole?
Para mim, esses resultados são absolutamente coerentes com o pensamento do brasileiro médio, desses que todos conhecemos (temos pelo menos um deles no ambiente de trabalho, na família etc.).
Para essa gente, a culpa é sempre da vítima. Sabe o caso do cidadão que vai à delegacia para registrar o furto de um veículo e ouve o delegado perguntar algo como "O senhor queria deixar o carro lá e encontrá-lo na volta?". Pronto! O delegado acabou de dizer que sabe que "lá" a barra é pesada, então...
Então o escambau! Se ele sabe que "lá" a barra é pesada, por que não faz o que deveria fazer? Mas é mais fácil pôr a culpa na vítima.
E o pobre coitado que tem o azar de morar perto do largo da Batata, em São Paulo, quer exercer o seu sagrado direito de ir e vir, encontra meia dúzia de boçais quebrando tudo e acaba sendo obrigado a engolir gás de pimenta, bomba de efeito moral etc., que a preparadíssima PM paulista adora lançar aos quatro ventos para resolver toda e qualquer situação? O que diz o brasileiro médio? Uma pérola: "Quem mandou passar por lá? Ficasse longe".
A sucessão de argumentos inteligentes está por toda parte e muitas vezes é fomentada por quem deveria refletir antes de destilar bobagens. Quer um exemplo? Tiremo-lo do futebol: um árbitro fraco é escalado para um jogo decisivo. O pobre diabo começa a inverter faltas, é omisso em relação à disciplina etc., e tudo isso "irrita" os jogadores e a torcida, a qual joga objetos no gramado e dá outras aulas de civilidade.
O que dizem nessa hora muitos dos nossos "jornalistas" esportivos? "Eu não disse?! É um árbitro fraco, que erra muito, o que incita a violência". Quer dizer que a culpa dos atos violentos dos jogadores e torcedores é do árbitro? Haja atraso!
Quer outro caso emblemático? Lá vai: "Vou votar em Fulano porque ele é rico, por isso não precisa roubar". Que se faz com uma criatura dessas? Há solução para isso?
Por falar em candidato rico, um deles deu uma resposta genial a uma pergunta sobre a possível invasão de um terreno público: "Tenho 16 mil metros quadrados lá; não preciso desses 400". Quer dizer que, se não tivesse os 16 mil, poderia lançar mão desse recurso? Ai, ai, ai...
O que me espanta nisso tudo é ver que muita gente não liga lé com lé, cré com cré, isto é, não entende por que os resultados das avaliações dos nossos estudantes e do nosso ensino são as que são e por que não avançamos um milímetro em questões essenciais, por que somos os últimos dos BRICS em tudo etc., etc., etc. Pensar dói. Dói muito. Não pensar ou pensar mal, então... É isso.


Texto de Pasquale Cipro Neto, na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Morre Curtis Hanson, diretor de "Los Angeles: Cidade Proibida"

Morre Curtis Hanson, diretor de "Los Angeles: Cidade Proibida"

Americano faleceu por "causas naturais" aos 71 anos


O diretor americano Curtis Hanson, que adaptou com sucesso para o cinema "Los Angeles: Cidade Proibida" de James Ellroy, faleceu na terça-feira aos 71 anos em sua casa de Hollywood. O Departamento de Polícia de Los Angeles informou que os agentes seguiram para a residência do cineasta e constataram a morte de Hanson por "causas naturais".
Nascido em Reno, no estado Nevada, Hanson iniciou sua carreira em 1970 como o roteirista da adaptação para o cinema de "The Dunwich Horror" ("O Altar do Diabo") de H.P. Lovecraft, mas foi em 1992, com o thriller "A Mão Que Balança O Berço" que começou a ganhar fama como diretor.
Hanson foi aclamado pela crítica com o filme "L.A. Confidential" ("Los Angeles: Cidade Proibida"), com Kim Basinger, Russell Crowe, Guy Pearce, Kevin Spacey e Danny DeVito, produção que lhe rendeu o Oscar de roteiro adaptado em 1997 em parceria com Brian Helgeland.
Também dirigiu "O Rio Selvagem" (1994), com Meryl Streep, "Garotos Incríveis" (2001), com Michael Douglas, "8 Mile: Rua das Ilusões" (2002) com o rapper Eminem, entre outros longas-metragens.


Reprodução do Correio do Povo

Abracadabra e pirlimpimpim

O debate na tevê entre os aspirantes à prefeitura paulistana, no domingo (18), provocou tédio e espanto. Lá estavam as figuras mecânicas de sempre, a repetir que é preciso mais creches, mais ônibus, mais hospitais, menos multas, sem dizer de qual cartola tirarão recursos.
Os que creem que se ganha eleições no gogó prometeram à larga. Os à direita prometeram governança empresarial a eleitores escaldados. Os à esquerda prometeram governo justo e escalda-pés aos pés-rapados. No geral, os mandrakes disseram o que deles se esperava: abracadabra.
Até aí, o debate foi a prestidigitação de praxe. O assombro veio da alienação dos candidatos. Da sua mórbida apatia tanto em relação à política como à vida real dos eleitores. Os candidatos vivem num mundo paralelo e encantado. Ou então somos nós que estamos por fora.
No mundo deles, em apenas duas semanas, Dilma caiu; cassaram Cunha; Lula foi enredado pela Lava Jato; Temer não pôs o nariz fora de casa sem ser vaiado; potentados antes adulados aceleraram a deduragem de parlamentares, ministros e presidentes de todos os naipes.
No nosso mundo há mais de 11 milhões de desempregados; a recessão reina há um ano e meio; mil empresas faliram até agosto; 17 Estados ameaçam dar calote em funcionários e fornecedores no fim do mês; o medo de demissão é palpável em qualquer papo entre colegas.
Na calada da noite, porém, todo político, do governo ou do contra, avalia que a crise piorará no curto prazo. Com sorte, poderá melhorar no médio. No longo prazo, ele não sabe: depende de 2018, se lá chegarmos e o seu clã ganhar. Profissionais do otimismo, os políticos andam de bico baixo.
Já os candidatos, impávidos e automáticos, seguem prometendo, senão mundos e fundos, ao menos melhorias profundas "" contra as quais se insurgem os seus néscios concorrentes. O problema, insistem, é a falta de vontade política, a qual eles esbanjam. Basta tomar pó de pirlimpimpim.
Mas se o colapso que aí está será longo e árduo, por que então não houve alarme nem urgência na fala dos candidatos? Por que lhes faltou audácia e sobrou mesmice?
Porque têm que administrar problemas pontuais, e precisam da ajuda do governador, do presidente e do Congresso. Sabem que São Paulo está no epicentro da tensão nacional. Não quiseram levantar marolas no debate e entediaram de caso pensado. Provocaram pasmo porque se aferraram a fórmulas carcomidas, num tempo que pede pensamento novo e ação.
Nem sempre foi assim. Em 1961, na renúncia de Jânio, a direita insuflou a cúpula das Forças Armadas a impedir que o vice-presidente João Goulart tomasse posse. Foi um governador, Leonel Brizola, que barrou a quartelada.
Ele usou do poder de que o Rio Grande dispunha para pôr o 3º Exército de prontidão e mobilizar o país em defesa da democracia. Garantiu a posse de Jango, ainda que num parlamentarismo aprovado às pressas –e logo desfeito por um plebiscito. O golpe só foi se efetivar em 1964.
A partir de então, os ditadores impuseram divisão de trabalho antidemocrática: aos políticos no Parlamento cabe falar, discursar; os no Executivo devem se calar e executar. A divisão de trabalho segue em vigor.
Não houve prefeito nem governador que usasse do poder que lhes foi conferido pelas urnas para reagir à derrubada de Dilma. Prescindiram da força material da democracia para acatar o que eles qualificaram de golpe.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo

A PM deu certo

Na roda de amigos da livraria Folha Seca, está o historiador Luiz Antonio Simas elogiando o samba de enredo do Império Serrano sobre o poeta Manoel de Barros. A escola de Madureira é uma das paixões de Simas, ao lado do Botafogo, do Bafo da Onça e, não por último, da Emilinha Borba. A conversa logo deriva para a política - parece impossível fugir dela hoje em dia -, mais especificamente para a repressão aos atos contra Michel Temer.
O historiador volta no tempo ao falar das polícias militares. A do Rio de Janeiro, criada pelo príncipe regente dom João no início do século 19, traz como símbolos um pé de açúcar, um pé de feijão, duas armas e a coroa imperial. "Era um braço armado em defesa da propriedade e do poder", analisa Simas.
A de São Paulo tem origem em 1831, como Corpo de Guardas Municipais Permanentes, durante o período da Regência. Seu brasão é composto por 18 estrelas, simbolizando rebeliões e guerras em que a corporação se envolveu. A oitava delas representa a campanha contra Canudos, a nona a participação na Revolta da Chibata, a décima a repressão à greve operária de 1917, e a décima oitava comemora o triunfo da então chamada revolução de 1964:
"Um massacre de camponeses, uma luta contra marujos que combatiam o fim de castigos corporais, um cacete contra grevistas e o apoio ao golpe militar, com posterior envolvimento na máquina de torturas dos porões", explica o historiador.
Simas é direto em sua conclusão: "A única solução para a PM, com sua soldadesca de maioria pobre e negra, é a extinção ou a refundação. A discussão sobre o que deu errado na polícia parte de um pressuposto equivocado. O problema da PM não é ter dado errado. É ter dado certo".
Depois de um tempo, alguém quebra o silêncio, perguntando: "E o Botafogo, hein?"


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

sábado, 17 de setembro de 2016

Transformação da flora intestinal pode ajudar a tratar obesidade e doenças

"Imagine o cenário: um cientista numa conferência diz que encontrou um novo órgão no corpo humano."
Começa com essa frase uma revisão sobre a influência dos germes intestinais na saúde humana, publicada no "British Medical Journal". E, continua: "...esse órgão contém um número de genes cem vezes maior do que o do hospedeiro, é específico de cada pessoa, possui componentes herdáveis, e pode ser modificado pela dieta, por cirurgia ou antibióticos".
O intestino humano é habitado por bactérias, fungos e vírus, conjunto de microrganismos que leva o nome de microbiota e contribui decisivamente para o desenvolvimento e a biologia. Há evidências claras de que esse microbiota evoluiu junto com nossa espécie (coevolução).
Estudos publicados nos últimos dez anos demonstraram que o microbiota intestinal está associado à promoção da saúde e a diversas doenças gastrointestinais e de outros órgãos. Nesse período, o Projeto do Microbioma Humano investigou uma variedade de nichos no organismo: pele, as cavidades oral, nasal e vaginal e, com mais atenção, o trato digestório.
A população de bactérias que vive no jejuno e no íleo é diferente em número e composição daquela encontrada no cólon e no reto. A diversificação é explicável pela disponibilidade de nutrientes: carboidratos complexos no cólon e reto; moléculas menores de carboidratos no jejuno-íleo.
Embora existam pelo menos dez diferentes filos de bactérias intestinais, formados por dezenas de espécies, os dois mais conhecidos são o dos Firmicutes e dos Bacteroidetes, cuja proporção numérica varia de um indivíduo para outro.
Há cerca de 160 espécies de bactérias apenas no intestino grosso. Como indivíduos não aparentados compartilham apenas um pequeno número delas, é provável que tenhamos sido colonizados pelo microbiota transmitido por nossos ancestrais.
Fermentação dos carboidratos é a atividade central do microbiota do intestino. As substâncias formadas nesse processo exercem papel importante no controle do sistema imunológico e nas reações inflamatórias, especialmente na inflamação crônica causada pelas células adiposas, nas pessoas obesas.
Nos obesos, existe relativa abundância de Firmicutes e redução do número de Bacteroidetes. A perda de peso está associada à proliferação de Bacteroidetes.
O controle das taxas de glicose no sangue também guarda relação com a composição do microbiota. Transplantes de fezes de indivíduos magros para o intestino de diabéticos aumenta a diversidade de bactérias e a sensibilidade à insulina.
Embora a obesidade seja causada por um excesso de calorias ingeridas, diferenças na ecologia dos microrganismos intestinais constituem um fator causal, passível de manipulação terapêutica.
Como o fígado recebe 70% do sangue que circula pelas alças intestinais, está continuamente exposto aos componentes e às toxinas bacterianas. A epidemia de casos de hepatite gordurosa em gente que não bebe guarda relação com o aumento do número de Bateroidetes em relação ao de Firmicutes.
Embora o álcool esteja claramente associado à cirrose hepática, nem todos os alcoólatras desenvolvem a doença. Hoje sabemos que ele provoca proliferação de bactérias no jejuno humano e que, quanto maior o número delas, mais grave a cirrose alcoólica.
Há muitos estudos concentrados nas doenças inflamatórias do cólon: colite ulcerativa e doença de Crohn. Está demonstrado que, nesses pacientes, a composição das bactérias no intestino grosso fica alterada, e que o uso de probióticos e de transplantes de fezes doadas por indivíduos saudáveis podem modificar o curso da enfermidade.
As interações entre as funções metabólicas do microbioma intestinal e a dieta estão implicadas na etiologia do câncer de cólon e reto. O metabolismo das fibras ingeridas tem importância crítica nesse processo.]
Há diversos testes com probióticos e prebióticos capazes de modular o crescimento e alterar as características da flora intestinal na prevenção e no tratamento da obesidade, de doenças inflamatórias, infecciosas, degenerativas e até de transtornos psiquiátricos.
A manipulação do microbioma humano fará uma revolução na medicina do século 21.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

domingo, 11 de setembro de 2016

Os Vândalos

Por ser escritor, vira e mexe dou entrevistas e participo de conversas com leitores. Em 20 anos de bate-papos, raríssimas vezes não me perguntaram como eu lidava com "a ditadura do politicamente correto" ou se não concordava que, por conta da "patrulha das minorias", o mundo estaria ficando cada vez mais chato.
Costumo responder que sim. O mundo tá ficando chato há séculos, desde que o iluminismo veio desaguar nessa xaropada de "liberdade, igualdade e fraternidade". Bom mesmo era na época de Genghis Khan: você podia sair galopando pelas vastidões asiáticas sem dar justificativa de nada a ninguém, empalando livremente seus inimigos, pilhando seus vilarejos, raptando suas filhas e esposas! Bons tempos! Mas aí o pessoal começou com: ah, não pode mais matar! Ah, não pode mais pilhar! Ah, não pode mais raptar! Toda essa chatice chamada civilização.
Deu no que deu: no século 21 não dá mais pra fazer uma piada com negro, zoar um gay e o pessoal já chia. Tá chato, mesmo. (Geralmente, paro por aí -e, caso ainda reste alguma dúvida, explico que estava sendo irônico, que empalar os inimigos, embora possa parecer divertido para muitos, não é um programa que eu subscreva.)
Não faço uso da ironia por achar, de forma alguma, que a liberdade de expressão seja assunto irrelevante. Um mundo em que qualquer parte ofendida por uma piada, uma ideia, uma manifestação artística pudesse calar o ofensor seria terrível. Mas o que nós vivemos no Brasil é exatamente o contrário.
Assista a meia hora de comédia stand-up nacional no YouTube, assista às propagandas de cerveja na televisão ou ouça quase qualquer propaganda de rádio (a mulher é uma idiota com um problema, o homem aparece com a solução) e fica claro que quem está em risco aqui não é a liberdade de expressão, mas as minorias. No entanto, em 20 anos conversando com jornalistas e leitores, nunca me perguntaram: "O que você acha das piadas racistas ou machistas ainda terem tanto espaço no humor brasileiro?"
Percebo essa mesma inversão na escala das preocupações ao comparar o peso da cobertura dos "black blocs" na imprensa à quase brandura das denúncias contra o vandalismo policial.
É evidente que o quebra-quebra dos mascarados e a agressão a policiais, jornalistas ou quem quer que seja devem ser divulgados e repudiados, mas achar que os inimigos mais perigosos da democracia, no momento, são 20 cretinos mascarados é mais ou menos como acreditar que os maiores culpados pela evasão fiscal no Brasil são os vendedores de maricas de bambu e Durepoxi na frente do Espaço Itaú de Cinema.
Em 2014, num protesto no Rio de Janeiro, um rojão lançado por dois manifestantes matou um cinegrafista. Naquele mesmo ano a polícia brasileira matou 3.022 pessoas. Só nos três primeiros meses de 2015 a PM paulista, então chefiada pelo secretário da Segurança Alexandre de Moraes, matou 185 pessoas, promovendo o trimestre mais sangrento em 12 anos.
Os responsáveis pelo rojão passaram 13 meses presos e, felizmente, estão sendo julgados. Já Alexandre de Moraes foi promovido a ministro da Justiça. É importante que a imprensa acompanhe os desdobramentos do primeiro caso. É incompreensível que a imprensa não se escandalize com o segundo.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Tudo o que é preciso para fazer literatura

Ricardo pediu demissão do trabalho pra poder terminar, finalmente, o seu romance. Ricardo gostava do seu trabalho em um prédio na Berrini, mas não gostava nem do prédio e nem da Berrini. Gostar não bastava, amor mesmo ele tinha pela literatura.
No primeiro dia em casa, entendeu que sem uma porta delimitando o escritório seria impossível. A criança berrando, a empregada puxando papo, a mulher ligando. Até o arquiteto terminar a reforma foram sete semanas sem nenhuma linha escrita por Ricardo.
Isolado em sua ilha criativa, Ricardo entendeu que sem ar-condicionado seria impossível. Teve que quebrar as paredes recém-levantadas pra meter um Split Inverter. Foram mais 16 dias sem nenhuma palavra escrita, apenas alguns xingamentos por e-mail para a Fujitsu porque eles atrasaram dois dias.
Congelado e isolado em seu escritório com frigobar (notou que seria impossível escrever sem um frigobar), Ricardo entendeu que só tem assunto quem está fora de casa, vivendo a vida ou simplesmente vendo a dos outros. Resolveu comprar um laptop e se aventurar em um café. Sempre achou muito chique pessoas que "escrevem em um café". Tentou um perto da sua casa, mas ficou travado. Tentou um bem longe da sua casa e continuou travado. As pessoas falam muito alto nos cafés.
Ricardo concluiu que o problema era São Paulo. Essa cidade combina com prédios na Berrini e não com literatura. Comprou então um terreno pequeno no meio do mato e, nos quase dois anos que demorou pra construir, encher de móveis e a Net realmente aparecer, não escreveu nenhuma linha do seu romance. Claro! Era impossível tocar o mais divino em si enquanto estivesse estressado com uma obra que não acabava nunca! E, falando em obra, daqui a pouco o mundo saberia do que ele é capaz.
A mesa de madeira de demolição era voltada para árvores. A cadeira estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na lombar, e o computador, em cima de livros de arte sacra, estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na cervical. Agora vai! Ricardo escreveu a primeira frase "Era uma manhã como outra qualquer quando...". Achou a frase uma boa de uma bosta e mudou para "Não fosse uma manhã qualquer quando..." e deduziu que essa era pior ainda. A casa inteira fedia mofo com cachorro molhado. Quem é que escreve num lugar desses?
A grana foi acabando toda, a mulher foi pagando tudo, o filho foi crescendo e demandando mil coisas e Ricardo sumiu. Por dias a família não teve notícias do escritor até que, em uma manhã como outra qualquer, ele apareceu fantasiado de mendigo. Achou que dormindo na rua teria assunto pro livro. E você escreveu alguma caralha, seu desgraçado? A paciência da pobre esposa estava mais surrada que a roupa de Ricardo. A resposta era: não. Infelizmente ele foi obrigado a trocar seu laptop por uma manta quadriculada de lã, em uma madrugada fria.
Ricardo tentou Paris, cocaína, tatuagem, depressão, traição, homossexualidade, acupuntura, suicídio e curso de escritor na Vila Madalena. Nenhuma dessas coisas resultou em romance, mas Ricardo sabe bem o motivo: ele ainda é muito novo. Agora, de volta ao prédio na Berrini, ele planeja, em breve, fazer o que sempre quis: largar tudo pra escrever seu romance. Quem sabe um dia.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Star Trek completa 50 anos mostrando o melhor da humanidade

Star Trek completa 50 anos mostrando o melhor da humanidade

Com previsão para estrear em janeiro de 2017, "Star Trek Discovery" começa a ser filmada


Era para ser uma missão de cinco anos para "audaciosamente ir aonde nenhum homem jamais esteve", mas passado meio século de existência, "Star Trek" se tornou um marco que mostrou o que de melhor há na humanidade. Fenômeno cultural e comercial, adorado por fãs no mundo todo, "Star Trek" (ou "Jornada nas Estrelas", no Brasil) comemora nesta quinta-feira 50 anos tanto na tv e no cinema quanto no imaginário popular, um verdadeiro libelo utópico de uma sociedade livre de ódio e preconceitos.
Quando a série estreou, em 8 de setembro de 1966, o objetivo era acabar com a visão da ficção científica dos monstros e invasões alienígenas e mostrar uma tripulação heterogênea e harmoniosa se aventurando e uma grande nave estelar, Enterprise, em busca de "novas formas de vida e novas civilizações" em nossa galáxia.
O primeiro episódio, considerado muito cerebral para o público da época, foi rejeitado pela NBC, mas pela primeira vez na história da indústria televisiva americana, foi dada uma segunda chance a uma série. O segundo piloto, com um novo elenco, cedeu à pressão do estúdio, mostrou mais ação e até um monstro sugador de sal, mas nada disso atrapalhou o que originalmente havia sido concebido pelo criador Gene Roddenberry.
A NBC mal sabia na época a bola de neve que havia começado naquele momento. Ao longo desses 50 anos, foram cinco séries com o mesmo título, totalizando 725 episódios, e 13 longas-metragens, centenas de livros e quadrinhos, e com uma nova série de tv a caminho. "Falar do aniversário de 50 anos é uma loucura. Eu nasci no mesmo ano que 'Star Trek' nasceu", comenta o diretor e produtor J.J. Abrams, a força criativa por trás do "reboot" dado à série no cinema, quando os personagens principais aparecem em sua juventude, em um universo paralelo. "Eu sei como me sinto velho, por isso a ideia disso durar tanto é incrível", acrescentou.
A série original foi estrelada por William Shatner, agora com 85 anos, como o corajoso e sedutor capitão James T. Kirk, e Leonard Nimoy, que morreu no ano passado aos 84 anos, como seu oficial de ciências e amigo inseparável, um meio-humano, meio-vulcano dedicado à lógica, sr. Spock. Completando o trio emblemático estava De Forest Kelley, falecido em 1999, no papel do emocional e adorável dr. Leonard McCoy, o "Magro".
Roddenberry escreveu o piloto em 1965, em pleno período de Guerra Fria e Conquista Espacial, o que ele aproveitou para transformar em temas de discussão em suas histórias.

Aula de liderança

Os trekkers, ou fãs de "Star Trek", afirmam que Roddenberry tratou de inúmeros problemas sociais da Terra com uma sensibilidade sem par, ao apresentar pela primeira vez um elenco realmente multirracial (brancos, negros, asiáticos) em convívio harmonioso, pelo menos no espaço. Entre os marcos da série está o primeiro beijo entre um branco e uma negra transmitido na tv americana.
A série inspirou muita gente a seguir carreira nas ciências e até mesmo no espaço. "Quando eu era criança, os filmes e séries de tv de ficção científica eram sobre humanos matando - ou sendo mortos - por monstros", afirma o astrônomo Phil Plait, da revista Air and Space, produzida pelo Museu Aéreo Espacial de Washington DC. "Um episódio da série chamado 'Demônio na Escuridão' mostrando que nem sempre o monstro é o vilão teve um profundo efeito em mim", acrescenta.
O piloto de ônibus espaciais da Nasa, Terry Virtsm, recorda da felicidade que foi ver o primeiro filme de "Star Trek" no cinema com seu pai. "Nós estudávamos de verdade sobre liderança vendo 'Star Trek' na Academia da Força Aérea. Havia um monte de lições práticas sobre tomar decisões e se arriscar, ou assumir um papel específico para ajudar sua equipe", contou.
Além disso, a série foi responsável por antecipar inúmeros avanços tecnológicos, como o celular, o dvd, o bluetooth, o scanner e o tablet. O ator americano coreano John Cho, que interpreta a nova versão do piloto Hikaru Sulu na nova trilogia do cinema - incluindo "Star Trek Sem Fronteiras", atualmente em cartaz - defende o multiculturalismo
da obra. "Eu realmente acredito no conceito dos filmes de 'Star Trek'. É um bom produto cultural, na minha opinião. Eu queria ser parte de algo que sentisse ser importante, uma contribuição cultural positiva", declarou o ator de 44 anos por ocasião do lançamento do mais recente filme.
A franquia atraiu tantos fãs em tantas partes do mundo que hoje a expressão "Trekkers" é a única do tipo listada no renomado dicionário de inglês Oxford.

Respeito mútuo

"Star Trek" virou uma fonte inesgotável de referências e homenagens, como "Heróis fora de órbita" (1999), e esta semana estreou nos Estados Unidos a paródia "Unbelievable!!!!!", um longa que é descrito pelos produtores como possivelmente "a maior reunião de ex-atores de 'Star Trek'".
O filme mostra quatro astronautas - um deles uma marionete animatronic parecida com o capitão Kirk - que vão à Lua resgatar seus companheiros perdidos. Cerca de 28 ex-atores de todas as séries e filmes pisaram no tapete vermelho para ver "Unbelievable!!!!!", incluindo Nichelle Nichols, que interpretou a tenente Uhura na série original, e Walter Koenig, o
alferes Pavel Chekov. "Queríamos criar um filme único e original que os fãs de sci-fi pudessem ver e rever, para celebrar seu amor por essa icônica série de tv", declarou Steven Fawcette, que dirigiu o filme junto com sua esposa Angelique.
Uma nova série, que começa a ser filmada em Toronto esse mês, com estreia marcada para janeiro de 2017, é o novo título de uma franquia que se nega a cair no esquecimento. A rede CBS anunciou na Comic-Con de San Diego, em julho, o nome da nova série, "Star Trek Discovery." "Acredito que 'Star Trek' em geral sempre tratou dos direitos humanos e do respeito ao próximo, não importa quem fosse", afirmou o ator Brent Spiner, que interpretou o androide Data em "Star Trek: A nova geração". "Muitos políticos e cidadãos poderiam aprender com 'Star Trek' e ter um pouco mais de respeito para com seu semelhante", acrescentou.
A nota triste deste ano de comemorações, além do falecimento de Leonard Nimoy - homenageado no novo filme - foi a morte acidental do jovem ator Anton Yelchin, que fazia o novo Chekov no cinema. Ele morreu esmagado pelo próprio carro em junho desse ano, deixando seus colegas de elenco enlutados e a própria divulgação do filme comprometida pela trágica ocorrência.


Reprodução do Correio do Povo

'Paraolimpíada' ou 'paralimpíada'?

Enquanto escrevo este texto, a cerimônia de abertura da Paraolimpíada (ou Paralimpíada?) está em pleno curso. Na maior parte dos sites, jornais e emissoras de rádio e TV, predomina a forma "Paralimpíada", como desejam os comitês oficiais (o Olímpico e o Paralímpico). Na Folha e no UOL, a forma empregada é "Paraolimpíada", como determinam os cânones da língua.
Não quero me meter na discussão sobre as razões que o Comitê Paralímpico Internacional (International Paralympic Committee) tem para exigir que se suprima o "o" de "olympic" e, consequentemente, de "olímpico" na formação do nome do seu comitê em inglês, português etc. Parece que o que motiva o CPI (IPC, no original) a impor a supressão do "o" é algo de fundo comercial e sabe Deus mais o quê.
O que temos em "paraolímpico" (ou "paralímpico"?) é a formação de um termo que resulta da soma do elemento grego "par(a)-" com o adjetivo "olímpico". De acordo com o "Houaiss", o elemento "par(a)-" ocorre com a noção de "junto", "ao lado de", "ao longo de", "para além de", o que se vê em vocábulos como "paramédico", "parapsicologia", "paratireoide", "paranormal" etc.
A Paraolimpíada (ou Paralimpíada?) não é a Olimpíada, mas segue muitos dos seus ritos (os esportes, as premiações, as cerimônias, o espírito que norteia as competições etc.), ou seja, é algo paralelo à Olimpíada, daí o nome levar o "par(a)-".
Pois bem. Chegamos ao xis da questão: a supressão do "o".
"Portuguesmente" falando, essa supressão do "o" não faz o menor sentido, já que, na nossa língua, o que pode ocorrer é a supressão da vogal final do primeiro elemento e não da vogal inicial do segundo elemento.
Vejamos: de "hidr(o)-" + "elétrico" tem-se "hidroelétrico" ou "hidrelétrico" (e não "hidrolétrico"); de "gastro-" + "intestinal" tem-se "gastrointestinal" ou "gastrintestinal" (e não "gastrontestinal"). Poderíamos, pois, ter também "Parolimpíada" e "parolímpico".
Muitos desses vocábulos que resultam da supressão da vogal final do primeiro elemento (como "gastrenterologista", "gastrenterologia", entre tantos outros) podem causar surpresa, estranheza etc., o que talvez decorra da maior ou menor incidência desta ou daquela forma.
Mais surpresa ainda causam formas que surgem de um processo que não é da língua, como o que se vê em "Paralimpíada" e "paralímpico". Espúrias, essas formas contradizem o que é natural no nosso idioma, fato que justifica a opção da Folha e do UOL pelas formas vernáculas.
O "Houaiss", o "Aulete" e o "VOLP" ignoram solenemente as formas impostas pelos comitês internacionais, ou seja, só registram "paraolímpico" e "Paraolimpíada".
Aproveito para lembrar um caso que não é propriamente semelhante, mas tem alguma afinidade. Refiro-me à Petrobras, que, quando fundada, era "Petrobrás", e assim ficou até a década de 90, quando perdeu o acento agudo. Os argumentos foram bizarros. Um deles dizia que "não existe acento em inglês". De acordo com esses gênios, investidores internacionais poderiam achar que se tratava de um apóstrofo ("Petrobra's"), o que poderia fazer um gringo achar que...
Haja bobagem! Como se sabe, a suíça Nestlé nunca prosperou em canto nenhum do mundo justamente por causa do acento... É isso.


Texto de Pasquale Cipro Neto, na Folha de São Paulo

Onde houver morte violenta, escreveremos 'aqui um morto'

No fim dos anos 1950 ou no começo dos 1960, eu atravessei a Espanha, de leste a oeste, viajando de carro com meus pais. Íamos da Itália até a Andaluzia.
Naquele ano (que não sei qual foi), a administração das rodovias espanholas fazia campanha contra as mortes nas estradas. Os motoristas eram incitados à prudência por grandes cartazes que assinalavam sobriamente: "Aquí un muerto", "Aquí dos muertos" —o máximo que vi foi "Aquí cuatro muertos".
Era só isso. Sem descrições das circunstâncias, o acidente, às vezes, parecia inexplicável —por exemplo, no meio de uma linha reta quase deserta. Talvez alguém tivesse dormido ao volante.
Quando passávamos por um cartaz, meu pai diminuía mais ainda sua velocidade, que nunca era grande.
Me lembrei disso ouvindo um candidato à Prefeitura de São Paulo propor o aumento da velocidade máxima nas marginais.
A diminuição do limite de velocidade nas marginais resultou numa diminuição dos acidentes e dos mortos. Certo, todos achamos que somos tremendos motoristas e o verdadeiro perigo não é a velocidade, mas a imperícia dos outros (nunca a nossa); achamos isso, mas nos envergonhamos desse nosso pensamento.
A proposta serve para bajular e autorizar nossa vontade infantil de meter o pé no acelerador —doa a quem doer.
Enfim, para a próxima prefeitura, eu tenho uma proposta. Poderia se chamar "projeto memória" (talvez possa ser bancado pelo setor privado). Sei que a segurança é tarefa do Estado e da Federação, não da prefeitura, mas minha proposta não é bem uma medida de segurança.
Assim como os espanhóis fizeram nas suas estradas nos anos 1960 ou 1950, proponho que a gente decida não se esquecer. Em cada lugar onde houve um assalto nos últimos 15 ou 20 anos, sugiro que um cartaz assinale: "Aqui um assalto", ou dois, ou três (será 30% do que aconteceu de fato, porque a maioria das vítimas não registra B.O.).
Também, em cada lugar onde houve morte violenta, escreveremos "Aqui um morto", ou dois, ou três ou mais (as mortes são sempre declaradas, e o registro será fiel). Poderíamos criar um código que dissesse se morreu um policial, um bandido ou um cidadão, vítima ou passeante.
Segundo um relatório de janeiro de 2016, das 50 cidades do mundo com maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes, 21 são brasileiras —isso excluindo os países em guerra aberta.
Considerado o tamanho da população, São Paulo talvez seja a cidade brasileira menos violenta. Mas, se a comparação for com o resto do mundo, a história é outra.
O essencial, para mim, é que a lembrança dos mortos é sempre necessária para saber quem somos. Sinto-me em casa em Veneza, mais do que em Milão, porque Veneza é uma cidade habitada por espectros.
Não digo assim apenas na esperança de amedrontar os turistas —não é preciso: as ruas venezianas são abarrotadas por fantasmas do passado, numerosos demais para que eu enxergue os turistas, por mais que eles circulem em hordas.
Poderíamos chegar a um resultado análogo, começando pelos nossos mortos da guerra urbana. Talvez os turistas se interessem, aliás: já existem visitas guiadas aos monumentos da cidade, poderia haver visitas guiadas aos lugares dos assaltos mais frequentes —quem sabe com encenações, para estrangeiros verem como é.
Você perguntará: por que tornar a violência urbana mais presente, mais inesquecível? Para a gente ficar mais esperto, deixar o computador em casa e esconder celular e relógio em certas ruas? Não é só isso.
Então para o quê? O espetáculo constante das feridas da violência no nosso tecido social talvez nos ajude a encarar (e sarar?) nossa dupla herança maldita —a de ter nascido como colônia de exploração e de ter explorado corpos escravos por séculos. Com a consequência, que é quase norma cultural, de arrancar do outro qualquer coisa que desejemos e subjugá-lo até à morte.
Seu W., funcionário meu, reúne orçamentos para estofar uma poltrona; um estofador lhe diz: se você me escolher, pode aumentar em 20%, que fica com você. O mesmo estofador se indigna com a corrupção de governos petistas e empresários. Ele não se dá conta de que ele pratica o mesmo jogo da propina.
Nota: Antes que saia de cartaz, não perca "Loucas de Alegria", de Paolo Virzi. É um dos filmes mais "justos" que já vi sobre amizade —e, claro, sobre o sofrimento psíquico.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Contestação só pode aumentar se organizadores coibirem violência

A passeata em São Paulo no domingo (4) foi maior e mais aguerrida do que as em defesa de Dilma. A presidente se tornara um empecilho à soberania popular porque era penoso defender o seu segundo mandato, calamitoso de cabo a rabo.
Agora, ninguém quer que Dilma volte. A conversa mole de reverter no Supremo o golpe tabajara (apud Joaquim Barbosa) é isso mesmo, conversa mole. A casta está hoje preocupada em separar o joio do trigo. Para proteger o joio.
Porque só então ela poderá reorganizar, em bases arejadas e sustentáveis, a corrupção. O bode expiatório da nata parlamentar é Eduardo Cunha. Se pegar bem, ela imolará o sumo-sacerdote do impeachment no altar da moralidade, adocicando o azedume geral.
Aí o pântano se esfalfará na excelsa missão de entregar a arraia-miúda à clarividência do mercado (privatização), para que ela trabalhe mais (reforma da Previdência) e ganhe menos (fim da CLT). Em troca, ofertará serviços de quinto mundo (congelamento dos investimentos em saúde e educação por 20 anos).
A política oficial não se reduz a isso. Há também Temer. Ele causou na China. Nosso Marco Polo vestiu uma camisa com listas verticais que nos anos 70 andou na moda em Tietê, berço de tantos fashionistas e estadistas. Garboso, fez-se fotografar com uma vendedora de sapatos ajoelhada a seus pés.
Por essas e por outras, a tônica do domingo foi a ressurreição das diretas já. Havia na avenida Paulista dezenas de milhares de pessoas de todo tipo, e não apenas a melancólica clientela sindical. Não faltou entusiasmo e sarcasmo –crianças levavam cartolinas onde estava escrito "Fora Michelzinho". No registro da passeata, contudo, o que sobressaiu foi o quebra-pau no Largo da Batata.
A Polícia Militar é tida como uma força que bate antes e pergunta depois, que se regozija em revidar, tendo motivo ou não. Na semana passada, por exemplo, ela não precisou de pretexto para jogar gás lacrimogêneo no Sujinho, na rua da Consolação. A brutalidade foi interrompida apenas na Marcha com Deus pela Família, em 1964, e nos atos pelo impeachment.
Mas há de fato quem queira brigar e depredar, os black blocs. Eles são poucos e vários. Há batedores de carteiras e celulares. Lumpens em busca de balbúrdia. Anarquistas que fariam Bakunin corar. E, como se viu em 2013, em ações documentadas por vídeos, há policiais provocadores. Uns querem adrenalina. Outros, que a contestação murche.
Um testemunho pessoal: na passeata de domingo, dirigentes da CUT e dos sem-terra interpelaram encapuzados. Obrigaram-nos a se descobrirem e os soltaram depois de averiguar se levavam pedras ou rojões.
A bagunça começou depois de encerrada a manifestação, quando funcionários do Estado fecharam a estação de metrô. Um grupinho atirou pedras e gritou. O tumulto piorou quando a polícia do Estado baixou o sarrafo em gregos e goianos.
A contestação só poderá aumentar se os partidos, sindicatos e organizações que a organizam coibirem a violência. Só elas podem proteger quem queira se manifestar, neutralizando os agressores. A violência é um problema para os contestadores, e não para a polícia.
Como a política extraparlamentar é a única que pode fazer face ao retrocesso civilizacional, é um problema e tanto. Fazer de conta que a questão inexiste ou é menor, e acreditar na neutralidade do Estado, foram ilusões que custaram ao PT a perda do poder.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Nenhum golpista já admitiu ser golpista

Em inúmeras vezes, nas sessões do impeachment que presidiu, o ministro Ricardo Lewandowski disse ao plenário, com pequenas variações de forma: "Neste julgamento, os senadores e senadoras são juízes, estão julgando". Entre os 81 juízes, mais de 70 declaravam o seu voto há semanas, e o confirmaram na prática. Um princípio clássico do direito, porém, dá como vicioso e sujeito à invalidação o julgamento de juiz que assuma posição antecipada sobre a acusação a ser julgada. O que houve no hospício –assim o Senado foi identificado por seu presidente, Renan Calheiros– não foi um julgamento.
Os que negam o golpe o fazem como todos os seus antecessores em todos os tempos: nenhum golpista admitiu ser participante ou apoiador de um golpe. Desde o seu primeiro momento e ainda pelos seus remanescentes, o golpe de 1964, por exemplo, foi chamado por seus adeptos de "Revolução Democrática de 64". Alguns, com certo pudor, às vezes disseram ser uma revolução preventiva. É o que faz agora, esquerdista extremado naquele tempo, o senador José Aníbal, do PSDB, sobre a derrubada de Dilma: "É a democracia se protegendo". Dentre os possíveis exemplos pessoais, talvez nenhum iguale Carlos Lacerda, que dedicou a maior parte da vida ao golpismo, mas não deixou de reagir com fúria se chamado de golpista.
As perícias e as evidências negaram fundamento nas duas acusações utilizadas para o processo do impeachment de Dilma. As negações foram ignoradas no Senado, em escancarada distorção do processo. Para disfarçar essa violência, foi propagada a ideia de que a maioria dos senadores apoiaria o impeachment levada pelo "conjunto da obra" de Dilma: a crise econômica, as dificuldades da indústria, o aumento do desemprego, o deficit fiscal, a suspensão de obras públicas, as dificuldades financeiras dos Estados e outros itens citados no Congresso e na imprensa.
Se os deputados e senadores se preocupassem mesmo com esses temas do "conjunto da obra", teríamos o Congresso que desejamos. E os jornais, a TV e os seus jornalistas estariam sempre mentindo com suas críticas, como normal geral e diária, sobre a realidade da política e dos políticos.
Nem as tais pedaladas e os créditos suplementares, desmoralizados por perícias e evidências, nem o "conjunto da obra", cujos temas não figuram nos interesses da maioria absoluta dos parlamentares, deram base para acusações respeitáveis em um processo e um julgamento. Se, no entanto, envoltos por sofismas e manipulações, serviram para derrubar uma presidente, houve um processo, um julgamento e uma acusação ilegítimos –um golpe parlamentar. Os que o efetivaram ou apoiaram podem chamá-lo como quiserem, mas foi apenas isto e seu nome verdadeiro é só este: golpe.
Esse desastre institucional contém, apesar de tudo, um ponto positivo. A conduta dos militares das três Forças, durante toda a crise até aqui, foi invejavelmente perfeita. Do ponto de vista formal e como participação no esforço democratizante que civis da política e do empresariado estão interrompendo.
O pronunciamento de ex-presidente feito por Dilma corresponde à aspiração de grande parte do país. Mas a tarefa implícita no seu "até daqui a pouco" exigiria, em princípio, mais do que as condições atuais da nova oposição podem oferecer-lhe, no seu esfacelamento. À vista do que são Michel Temer e os seus principais coadjuvantes, não cabem dúvidas de que os oposicionistas podem esperar muita contribuição do governo. Mas o dispositivo de apoio à situação conquistada será, a partir da Lava Jato, de meios de comunicação e do capital proveniente de empresários, uma barreira sem cuidado com limites.
Desde ontem, o Brasil é outro.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

Mais um golpe para a história

Acossado pela direita raivosa, acusado de acobertar a lama da corrupção do seu governo, Getúlio Vargas, com um tiro mortal, em 24 de agosto de 1954, saiu da vida para entrar no mito. Perseguido pela oposição, suspeito de querer implantar o comunismo no Brasil e de enriquecer às custas do patrimônio público, Jango, em abril de 1964, saiu do país para entrar na história. Destituída da presidência da República, supostamente por ter cometido crimes de responsabilidade, Dilma Rousseff sai do poder para, ao lado de Getúlio e de Jango, compor a tríade dos presidentes sacrificados pelas elites ressentidas e incapazes de chegar ao poder pelo voto e nele permanecer. Fim.
Getúlio, o pai da legislação trabalhista ainda em vigor, caiu em desgraça por ter aumentado o salário mínimo em cem por cento e por ter criado a Petrobras. Jango começou a desabar ao abraçar as reformas de base, entre as quais a agrária, a educacional e a habitacional. Depois da queda de Dilma, os velhos novos donos do poder tentarão, mais uma vez, acabar com a Era Vargas. Vem aí o desmonte da CLT. O que une Getúlio, Jango e Dilma? O Rio Grande do Sul, embora Dilma seja mineira, o trabalhismo, ainda que a presidente tenha sido eleita pelo PT, a ira da direita e da mídia e as acusações não comprovadas. Jango e Dilma teriam sido presidentes incompetentes. Nada se provou contra Jango. Nenhuma acusação direta de desonestidade pesa contra Dilma. Getúlio terminou menos rico do que quando chegou ao poder. Três presidentes, três destinos, três golpes fatídicos.
Getúlio fez a escolha trágica. Jango sofreu o golpe clássico. Dilma experimenta o golpe brando. Vargas preferiu o silêncio da morte. Jango optou pela solidão do exílio. Dilma foi ao Senado defender-se com um discurso consistente, claro e convincente. Falou para ouvidos moucos. Questionada pelos senadores, resistiu por três turnos, serena e esclarecedora. Getúlio, Jango e Dilma foram vítimas da mídia e de um conluio de elites. O multipremiado jornalista norte-americano Glenn Greenwald disparou: “Uma presidente eleita duas vezes está sendo tirada de seu cargo por uma gangue de criminosos para pôr no lugar uma facção de direita não eleita e inelegível”. O jornal francês Le Monde, em editorial, classificou o impeachment de Dilma Rousseff como golpe de Estado ou farsa. Uma tragicomédia devastadora.
Caberá ao Supremo Tribunal Federal responder a uma questão simples: houve, nos termos da lei, crime de responsabilidade? É sua atribuição dirimir dúvidas e ser última instância de litígios. Os golpistas pretendem que o STF não tem direito de se pronunciar sobre essa questão. Por que não? Por que não lhes é conveniente. Em 1964, o STF avalizou o golpe. Agora, tenta ser um tribunal antropológico, só cuidando de rituais. A história não o poupará. Também não poupará a Câmara dos Deputados se Eduardo Cunha não for cassado. O próximo capítulo mais provável é a condenação de Lula para que ele não possa ser candidato em 2018. Dilma volta para casa. O seu nome agora vai figurar sempre ao lado dos nomes de Getúlio e Jango. Em certas noites, ele ouvirá a sentença sempre injusta, autoritária e expedita da Rainha de Copas, de Lewis Carroll, em Alice no país das maravilhas:
– Cortem a cabeça!

Morre fotógrafo francês Marc Riboud, autor de icônicos registros do séc. 20

O fotógrafo francês Marc Riboud morreu nesta terça-feira (30), aos 93 anos. Ele tornou-se mundialmente conhecido por fotografias como a intitulada"Fille à La Fleur" ("Menina Com Flor", em tradução livre), que mostra uma militante enfrentando as baionetas de soldados durante a Guerra do Vietnã.
Mais fotógrafo do que fotojornalista, ele gostava de capturar, em preto e branco, imagens de momentos cruciais em um mundo em mudança.
Seu olhar era capaz de captar instantes de graça e suas fotos, como "Peintre de la Tour Eiffel" ("O Pintor da Torre Eiffel"), viraram ícones do século 20.
"Não tenho qualquer mérito a não ser ter subido a pé as escadas em caracol da Torre", comentou sobre a imagem em 2009.
Foi depois de vender o negativo desta foto à revista americana "Life", em 1953, que o então jovem engenheiro de 30 anos, procedente de uma família da burguesia de Lyon (região leste da França), se tornaria fotógrafo e conheceria Henri Cartier-Bresson e Robert Capa, que o convidaram a fazer parte da prestigiosa agência Magnum.
Em 60 anos de carreira, suas fotos foram publicadas em diversas revistas, como "Life", "National Geographic" e "Paris Match".
"Na maior parte do tempo, passeio, eu passeio muito", comentou certa vez, explicando sua singularidade.
"Não sou um fotojornalista, tampouco um artista, sou fotógrafo, e isso é tudo. Não sou sempre bom, mas tento", insistia.
Nascido em 24 de junho de 1923 em Saint-Genis-Laval, comuna de Lyon, em uma família de sete filhos, entre eles Antoine, fundador e presidente da Danone, Marc Riboud começou a fotografar aos 14 anos com uma câmera Vest Pocket preta utilizada por seu pai nas trincheiras da guerra.


Reprodução da Folha de São Paulo

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Réquiem para a 4ª. República

Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, enterra-se a 4ª. República, iniciada com a Constituição de 1988.
Lembro-me do dia em que, brandindo seu texto nas mãos, Ulysses Guimarães promulgou a “Constituição cidadã”. Eu estava em Porto Alegre, na abertura da Conferência Anual da OAB, num recinto onde cabiam 3.000 pessoas. Ao se exibir a cena, no telão, nós todos levantamos e cantamos, emocionados, o hino nacional.
Cometemos vários erros na Constituinte. Considero mais graves estes três: a) havermos subestimado, ou ignorado, o neoliberalismo, que estava para chegar; acreditávamos que, para preservar a democracia, bastavam os instrumentos da Constituição de 1946; b) termos estabelecido o quórum de 3/5 (inferior ao da nossa tradição) para a reforma da lei magna; c) termos conferido exagerados poderes ao Supremo Tribunal Federal.
Aquilo que, por primeiro, se apontou como o maior erro da Constituinte (haver produzido uma Constituição analítica) mostra-se um acerto: o povo desconfiava dos poderes constituídos. Tinha razão, pois foram estes que, conluiados com os clássicos inimigos da democracia constitucional, viriam a matá-la.
A história dessa traição começou no dia imediato ao da promulgação, quando o presidente Sarney, inspirado por Saulo Ramos, declarou que a União não cumpriria o art. 192 (aquele que limitava o valor dos juros). Algum tempo depois, provocado pela Febraban, o Supremo Tribunal Federal convalidaria essa insubordinação, mostrando a que vinha. Tinha razão o professor Lamartine Correia de Oliveira, ao dizer que não poderiam permanecer nele os antigos ministros, que haviam compactuado com a exceção. Basta assinalar que, promulgada a nova Constituição, os srs. Ministros não se preocuparam em fazer (e não fizeram até hoje) o que imediatamente se impunha: adaptar, à nova ordem constitucional, o seu regimento interno, que fôra elaborado durante a ditadura.
Coveiros da Constituição foram os congressistas, que retalharam o texto constitucional com emendas cujo número chega hoje a quase cem; são eles que, agora, lançam a pá de cal, afastando, sem causa jurídica, a presidente eleita pelo voto popular.
Quando se restaurar a democracia, saberemos utilizar as lições que, hoje, estamos recebendo da história. Pena que, para o povo (vale dizer os mais pobres, os discriminados, os excluídos), o preço seja tão alto. ---
Sérgio Sérvulo da Cunha - Advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Reprodução do Jornal GGN