sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Transtorno de opinião compulsiva

Um novo distúrbio mental tem intrigado médicos e psiquiatras. Conhecida como Transtorno da Opinião Simplista Compulsiva Obsessiva —na sigla, Tosco—, a síndrome é marcada pela necessidade incontrolável de dar opiniões equivocadas sobre tudo, mesmo que ninguém tenha requisitado.
“Não posso ver uma pessoa reclamando que, sem que eu perceba, já mando um ‘é tudo mimimi’”, disse Antônio Marcondes, diagnosticado com Tosco há dez anos. Enquanto falava, o comerciante digitou “mimimi” três vezes para um funcionário que pedia o pagamento de 13º.
Carlos Duarte sofre de uma variante comum, o Tosco Tudo Culpa do PT. “Outro dia eu machuquei o dedo com martelo. Como martelo é comunista, o sangue é vermelho e eu vi estrelas de tanta dor, ficou claro que a culpa era do PT”, disse o engenheiro, que também culpou o PT pelo diagnóstico.
Familiares e amigos são os mais atingidos portadores da síndrome. É o caso da jovem Mirela Alves. Sua mãe, dona Dulce, sofre da versão Tosco Feminina Não Feminista, conhecida como Tosca. “É só minha depilação não estar em dia, que ela me chama de ‘feminazi peluda abortista’”, lamentou a jovem de 16 anos. Seu pai também sofre do distúrbio, mas na versão Tosco Lulinha Roubou o Nosso Nióbio. “E ele nem sabe o que é nióbio”, completou Mirela.
Embora sejam muitas as categorias, cientistas já catalogaram outras variantes como Tosco Blackface Não É Racismo, o Tosco Contra a Ditadura Gayzista, o Tosco Ninguém Mandou Deixar o Moleque Andar de Wakeboard e o mais recente Tosco Greta Thunberg é um Produto de Marketing.
Se engana quem pensa que o distúrbio atinge apenas integrantes da extrema direita. Já foram encontrados exemplares do outro extremo ideológico, como o Tosco Eu Avisei, o Tosco Nunca Perdoarei pelo Golpe e o Tosco Ninguém Mandou Votar no Ciro.
Cientistas estudam as melhores formas de tratamento, já que a psicanálise e o diálogo se mostraram ineficientes. 
Por enquanto, o único remédio vem dos tempos antigos. Trata-se de um composto feito com o extrato da própria opinião da vítima, aplicado em forma de supositório.

Texto de Flávia Boggio, na Folha de São Paulo

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Complicada e perfeitinha

Assim como Lolita, Capitu, Julieta, Mia Wallace, Daenerys e outras tantas, sou uma personagem feminina criada e escrita por um homem.
A primeira coisa que o autor tem a dizer sobre mim é que sou bonita. Que exagero. Não sou lá uma Gisele, uma Lupita, não posso ser tão linda a ponto de parecer inalcançável. O autor insiste que não tenho consciência da minha beleza. Por isso, a escondo atrás de óculos de armação grossa e um jeitinho estabanado.
A segunda coisa que o autor tem a dizer sobre mim é que pareço um pouco triste. Não é uma tristeza profunda ou um quadro clínico de depressão. É mais uma melancolia sexy, uma amargura sensual. Talvez porque ainda não conheci meu par romântico. Então vamos logo ao que interessa: ele.
Meu maior desafio é me apaixonar pelo protagonista logo de cara. Ele é bem mais velho e mesmo assim consegue ser mais imaturo do que eu. Não chega a ser um homem bonito, mas eu não me importo com essas bobagens. E daí que ele é misantropo, neurótico e machista? Farei o papel que for preciso para consertá-lo: professora, mãe, terapeuta e até cartela de Rivotril.
Puxo meu par romântico pelo braço e dançamos dentro do chafariz da praça Paris —como se trata de uma ficção, não precisamos nos preocupar em pegar hepatite. Sou maluquete, mas não maluca.
Agora, ele me olha de um jeito estranho. Cismou que meu sorriso esconde um segredo. Talvez eu seja estéril —"o pior pesadelo das mulheres"—, talvez tenha saído de uma relação abusiva, talvez meus pais tenham morrido em um acidente de carro porque eu estava fazendo pirraça no banco de trás, talvez eu esteja tendo um caso —"o pior pesadelo dos homens". Tanto faz, meus traumas só servem para destacar minha fragilidade, assim como meus constrangedores desmaios de emoção.
Tudo indica que o protagonista está obcecado por mim. Mal sabe ele que desmarquei todos os meus compromissos para investir 100% da minha energia vital nesse relacionamento. Não tenho nada mais importante para fazer do que mudar a vida de um homem, essa é a minha função na história. Pena que ele tem outras prioridades, como salvar a humanidade ou coisa do tipo. Só me resta chorar um choro sem coriza, sem baba no travesseiro, sem olhos inchados. Um choro sexy. Eu não existo longe dele. Ainda bem.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Mulheres desejáveis

Nosso presidente quis rivalizar com Emmanuel Macron. Afinal, ele, Bolsonaro, é casado com Michelle, uma mulher 27 anos mais jovem. Não é o que todo mundo quer? Enquanto Macron é casado com Brigitte, uma mulher 24 anos mais velha.
O presidente não parou para pensar antes de falar. Pela lógica dele, Brigitte poderia zoar Michelle, que, coitada, ficou com um velho que mal consegue fazer uma flexão, enquanto, ela, Brigitte, ficou com 
um jovem em forma perfeita.
A seguir, Paulo Guedes, ministro da Economia, rivalizou com seu presidente, para ver quem conseguia ser mais chulo, e achou engraçado comentar que Brigitte, de fato, seria feia.
Quem riu dessa “piada” idiota? Essa é uma questão séria: as piores aventuras coletivas da humanidade começam assim, com um grupinho de covardes que se forçam a rir com as piadas idiotas de seus superiores.
Enfim, lembrei-me de um episódio da minha pré-adolescência. Éramos três amigos de 11 anos, que nunca tinham amado ou desejado uma mulher. Assinamos um pacto para nos encontrarmos 15 ou 20 anos depois, numa data específica, no Moulin Rouge (haja clichê), em Paris, para ver quem chegaria acompanhado pela mulher mais linda. Os perdedores pagariam o jantar.
Já conhecíamos a história do julgamento de Páris —a analogia com Paris é puramente fortuita—, contestável e perigoso: Páris teve que escolher a mais bela de três deusas e assim desencadeou a Guerra de Troia. Apesar disso, imaginávamos que a ganhadora se imporia sem contestação, como se pudesse haver concordância sobre qual seria a mais bela e a mais desejável. Era mesmo falta absoluta de experiência do amor, do sexo e do mundo.
Nenhum dos três se apresentou em Paris no dia previsto. Dois anos depois do pacto, todos considerávamos aquela aposta como uma cretinice que só nossa infância desculpava.
Mas voltemos às parvoíces de nossos governantes. Houve reações indignadas e envergonhadas: críticas da grosseria e proclamações do direito de as mulheres envelhecerem sem se aposentar nem no amor nem no sexo.
Minha reação foi de incompreensão, porque, com todo respeito (não fui eu quem começou a brincadeira chula), se eu fosse chamado, como Páris, para escolher entre Michelle e Brigitte, eu, sem hesitar, escolheria Brigitte.
Não vou nem entrar num debate (interminável) sobre o que faz, aos olhos de cada homem, o encanto de uma mulher. Mas aqui vai um elemento crucial para mim.
Brigitte Macron era professora de letras clássicas num excelente colégio francês. O concurso para chegar lá começa com uma prova de dissertação (de seis horas), que seja fundada, pede o edital, “em leituras numerosas e variadas, que mobilizem uma cultura literária e artística, conhecimentos relativos aos gêneros, à história literária da Antiguidade até nossos dias, à história das ideias e das formas, e que abordem também questões de estética e de poética, de criação, recepção e interpretação das obras”. 
O concurso continua com outra prova escrita (também de seis horas), que avalia as competências em línguas e culturas antigas dos candidatos: a prova se baseia em um dossiê de dois textos, em latim e grego antigo, ligados por um mesmo tema… etc.
Quando menciono esse argumento numa conversa, alguns não entendem direito. Eles comentam que sim, certo, para os papos de inverno perto da lareira, ou para pegar uma exposição, um cinema ou um teatro —justamente Macron foi aluno de teatro de Brigitte, foi assim que se conheceram— ou simplesmente para conversar, Brigitte talvez seja mais interessante. Mas, acrescentam, um corpo mais jovem não é sempre mais desejável? 
Fato curioso: o amigo que me fala isso tem o físico de Paulo Guedes. Mas o que mais me estranha é que, para ele (e para quem quer que seja), o desejo seja automaticamente inspirado pelo corpo, e não pela inteligência e pela cultura —as quais serviriam para conversas e lazeres.
Para mim (e para vários outros, claro), o charme da mente, com suas eventuais montanhas russas de pensamentos, memórias, saberes, cantos escuros, fantasias e desejos escondidos, é quase uma condição da desejabilidade.
Das hetairas gregas às gueixas japonesas, passando pelas libertinas do século 18, aliás, o desejo masculino nunca parou de ser seduzido, antes de mais nada, pelas mentes femininas.
Para quem preferir só um corpo, uma boa notícia: as bonecas de silicone são hoje quase perfeitas.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A noiva fantasma e a mulher sem rosto

Com histórias de fantasmas, a expectativa é que sejam pelo menos um pouco assustadoras. Mas isso nem sempre acontece no folclore japonês. Os espíritos dos mortos aparecem em lindos contos de amor da tradição oriental.
Veja-se a lenda de Hanagaki, um jovem poeta e estudante que, certo dia, compareceu a um festival que celebrava a reconstrução do Templo das Mulheres, na cidade de Kyoto.
O templo é famoso pelos jardins que o cercam. Num lugar afastado, existe um tanque onde se pode beber água —a “água do nascimento e da reencarnação”. O estudante estava sozinho ali quando reparou numa longa tira de papel colorido —um “tansaku”.
É nesses papéis compridos que se escrevem poemas, em sentido vertical. Hanagaki se encantou pela caligrafia do poema.
Melhor dizendo, apaixonou-se. Só podia ter sido obra de uma jovem extremamente sensível, graciosa, linda, pura, de alma boa.
Como encontrar a autora daquele escrito? Hangaki tinha esperança. “O tansaku” lhe fora trazido pelo vento; talvez os deuses o ajudassem. Foi rezar no templo de Benten, a deusa do amor.
Ouve passos. Uma jovem encantadora, aparentando ter 16 anos, aparece e se ajoelha no templo. Retira-se em seguida. 
O poeta, maravilhado a princípio, passou a se lamentar. Talvez jamais a visse de novo. Saiu do templo. Mal começou a caminhar pela rua, viu que uma moça andava na mesma direção. Era ela. Conversaram.
Hangaki confiou-lhe sua angústia. Ela sorriu: “Você não sabe que os deuses me enviaram para ser sua esposa?”.
Passam a viver juntos, sem criados nem testemunhas. A felicidade do casal é completa. Chega a primavera. 
Hangaki passeava por uma rua quando, na frente de uma casa rica, um criado o convoca. Um alto senhor queria falar com ele. Este se desculpa pela impolidez do chamado e explica seus motivos.
Tem uma filha belíssima. A deusa do amor lhe aparecera, dizendo que naquele dia exato passaria pela frente de sua casa o jovem que deveria esposá-la. Hangaki fica embaraçado. Não tem coragem de dizer que já vivia com uma mulher. É conduzido a um aposento. Uma moça o espera.
Surpresa: a jovem era a mesma que ele já tinha esposado! 
Quem era, então, a moça da caligrafia? A explicação é que era um espírito —o espírito da noiva verdadeira. 
Isso porque, algumas vezes, o poema é escrito com tanta paixão, com tanta verdade, que parte da alma se desprende da pessoa que o escreveu —e encarna no papel.
A esposa fantasma estava no “tansaku”. Agora, Hangaki se casaria de verdade.
O conto foi recolhido por Lafcadio Hearn (1850-1904), escritor irlandês nascido na Grécia, e conhecido no Japão pelo nome de Koizumi Yakumo. Ele é autor de uma vasta obra sobre os costumes japoneses.
Li a história de Hangaki numa velha tradução francesa (edições H. Piazza); não tenho em mãos “Kwaidan: Assombrações”, lançado no Brasil pela editora Claridade (2011).
É provável que algumas histórias recolhidas por Lafcadio Hearn sejam mais macabras do que essa que contei. 
A galeria Utópica (rua Rodésia, 26, Vila Madalena, São Paulo) apresenta até dia 5 de outubro “Kwaidan: Histórias de Coisas Estranhas”, série de fotografias em preto e branco de Hiroshi Watanabe, inspiradas nos relatos de Hearn.
Junto das imagens, legendas contam só o começo de cada história. 
Samurais tomam vinho ao pé de uma árvore: serão levados ao Reino das Formigas. Uma gueixa aparece de costas; vê-se apenas uma nesga branca de seu perfil. Trata-se da Mulher Sem Rosto. 
Um comedor de cadáveres. Uma longa defunta, iluminada por uma vela imóvel. Um arqueiro que matará, para sua desgraça, três patos mandarins num lago prateado.
Por vezes, as fotos de Watanabe parecem excessivamente literais. São bem posadas, e se a iluminação condiz admiravelmente com um senso de mistério, é provável que se inspirem sobretudo numa concepção “antropológica” da fotografia.
Tudo se passa como se fossem documentos que o próprio Lafcadio Hearn, em pleno século 19, tivesse conseguido para provar a veracidade das lendas que contou. 
Talvez estejamos diante de outra história de fantasmas: é o velho escritor quem assesta seu tripé, e com uma máquina antiquíssima, invoca um mundo morto, que ressurge em nitrato de prata, magnésio e sonho.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Difícil sair para correr, mas caminhar até qualquer correio é um prazer

Numa de minhas caminhadas pelo bairro surgiu-me uma placa aterradora: “encerramos nossas atividades”, dizia o aviso na agência do correio.
Antes de prosseguir, duas explicações necessárias.
Primeiro, sobre as caminhadas. Sou do tipo que caminha muito, mas não ando a esmo. Sei dos benefícios à saúde que aporta o hábito de vestir caros assessórios atléticos (do tênis ao medidor cardíaco) e sair correndo por aí. Mas um conflito ainda irresolvido entre a consciência e o corpo me paralisa. Não consigo arredar pé de não arredar o pé.
Já passear é outra coisa. Quando viajo, após o check-in no hotel, a primeira coisa é caminhar pelas redondezas. Um passeio exploratório para respirar o ar local, sentir os cheiros, absorver os ruídos, assimilar a paisagem, colocar no radar os bares mais próximos (antigamente também as bancas de jornal).
Mas acordar, paramentar-me para a guerra contra a inelutabilidade dos anos e sair correndo sem rumo me traz um desânimo que beira o desespero. Sei dos benefícios de ir até a esteira e correr ali um par de horas por semana. Até tento vez ou outra. Mas enquanto amigos juram que logo, logo o corpo produzirá deliciosa endorfina (que não à toa rima com morfina), creio que me falta o metabolismo para tal (talvez uma versão injetável?).
Já percorri vários Ibirapueras em busca do barato autoproduzido, mas nunca cheguei ao tal nirvana. Tudo o que sinto é o suor esguichando meus neurônios longe aos borbotões, enquanto vejo, no espelho, um hamster (com a minha cara!) correndo e correndo sem sair do lugar.
Os neurônios que se esvaem tento compensar ouvindo livros para treinar meu inglês —como “Catching Fire” (“Pegando Fogo: Por Que Cozinhar nos Tornou Humanos”), de Richard Wrangham, ou “The Robots of Dawn” (“Os Robôs da Alvorada”), de Isaac Asimov —que recomendo, especialmente lidos num bom sofá.
Fica assim esclarecido (voltando ao início da crônica) o que eu estava fazendo: caminhando, não correndo como um fugitivo. Porque adoro caminhar, sempre com algum objetivo (ir à feira, ao dentista, espairecer com um charuto etc.).
E, aqui, cabe a segunda explicação, para a espantosa informação de haver uma “agência de correio que eu tanto frequentava”. Que dinossauro é esse? Como o espaço é curto, peço vênia para não explicar aos mais jovens o que é correio (e cartas de papel). Esclareço apenas que não é só uma instituição nostálgica, mas também muito útil. E como tenho boas lembranças de correios pelo mundo, sempre a utilizo.
Por exemplo, se preciso mandar algum documento, em vez de gastar com um motoboy, coloco-o num envelope, dou um passeio pelo bairro e resolvo o problema por R$ 1,30. Também já mandei meu laptop para um reparo usando o correio: sem carro, trânsito, estacionamento... apenas uma saudável caminhada no bairro.
O fechamento da agência da minha calçada (nada incurável, há outra a 20 minutos de caminhada) me fez lembrar do tempo em que, em viagens a Paris, eu frequentava o PTT (o correio de lá) para tudo: mandar cartões-postais, receber remessas de dinheiro e enviar livros para mim mesmo —mais barato do que pagar excesso de bagagem no avião. Os volumes iam por navio para o Brasil, sendo recebidos aqui, como um tesouro, semanas depois.
O mesmo eu fazia nos Estados Unidos, nos congressos de uma associação internacional: mais ágeis, eles já instalavam uma agência de correio na livraria. (Dos livros, o único que trouxe comigo no avião tinha uma preciosa dedicatória assinada por Julia Child.)
Na França o correio sempre foi impecável. Tinha até um serviço que me deixava boquiaberto, o pneumatique, invenção inglesa: uma rede do século 19 com 500 km de tubos cruzando a cidade, transportando documentos em cápsulas movidas por ar comprimido. O sistema existe até hoje, mas só dentro de empresas, como hospitais (inclusive no Brasil).
Outra inovação francesa era o Minitel: um aparelhinho com tela acoplado à rede telefônica, que todos tinham em casa para consultar endereços, horários de trem, o que precisasse. Tão prático e eficiente que, mais tarde, creio que a França foi o país rico que mais demorou a adotar a internet em massa, já que tinham outra rede de informações.
À minha volta no bairro, já se extinguiu uma quitanda, um açougue, um botequim, dois mercados, mas sobrevivem bancas de jornal, barbeiro (para quê, mesmo?), e, de toda forma, o correio só foi para um pouco mais longe —pernas, para que te quero.

Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A babá que não podia beijar

A babá podia passar a noite sem dormir, cuidando do bebê com febre, e podia passar a tarde sem comer, cortando frutinhas e batendo legumes. Mas não podia beijar o neném.
Ela podia ninar a criança de 11 quilos em seus braços por duas horas, de pé, e sentir uma dor aguda que ia do meio da bunda até o meio das costas. Podia lavar calças com fezes secas e blusas com manchas de manga e casaquinhos com cheiro de iogurte azedo. Mas não podia beijar o pequeno.
A babá podia dormir longe da sua filha, do seu marido, da sua cama, do seu banheiro. Ela não podia usar o celular nem ligar a TV nem usar o lavabo do corredor. E tinham deixado bem claro: não era para ela ficar beijando o neném.
A tal funcionária foi vista colocando o menino de dois anos no escorregador mais de 70 vezes. Porque ele pedia e ria e pedia mais uma vez. E eles se amam, e dane-se, porque ela faz tudo o que ele pede. Suas costas doíam tanto que o estômago, por reflexo, começou a doer também. A gaveta de remédios estava trancada.
A patroa achou por bem, agora que tinha uma empregada em casa, trancar muitos compartimentos. E colocou câmeras em todos os ambientes. Sumiram alguns panos de prato e um pouco de granola. Talvez nem tivessem sumido, mas vai saber. Contudo, se a criada quisesse um Dorflex, bastava mostrar que de fato estava morrendo e pedir com muita educação, falando baixo, solicitando permissão. E, só para reforçar: era importante que não beijasse o filho dos outros.
babá limpava a bundinha do bebê, escovava os dentinhos do bebê, lavava o pintinho do bebê, dava banho em todas as dobrinhas do bebê. Mas não podia beijá-lo. Eles se amavam. O neném, quando ficava triste, esticava os bracinhos somente para a babá. Ele a amava tanto que acordava no meio da noite para abraçá-la. E ambos estavam desesperados por um beijo. O bebê chegava a exibir sua testinha linda para a boca da babá. Mas ela não podia. A mulher encarava aquela bochecha gordinha e corada e seus lábios chegavam a fazer um biquinho. Ela precisava beijar a criança mais do que precisava se demitir e se livrar da patroa que havia proibido o consumo de água mineral e leite tipo A pelos funcionários. 
babá então decidiu que no parquinho iria beijar o bebê. Lá não havia câmeras. E ela podia fingir que estava cheirando a cabeça dele. Ela podia fingir que o estava protegendo do vento. Ela podia se esconder em uma casinha de bonecas e beijá-lo. Talvez, para as pessoas infelizes, fosse estranho uma pele tão escura se aproximando de outra tão branquinha. Mas, para a babá e o bebê, aquilo era a natureza em sua expressão mais óbvia, corriqueira e necessária.
Então, na última quarta-feira, às 16h45, a babá colou seus lábios na bochecha esquerda do bebê. E fez um smaaaack barulhento. E o bebê fechou os olhinhos de alegria e pediu de novo e de novo. E ela, porque já tinha sido ousada mesmo, beijou mais dez vezes seguidas, fazendo algumas coceguinhas. A vizinha, amiga da patroa, que também tinha proibido a empregada de beijar seus filhos, estava no parquinho bem nessa hora e contou tudo para a outra, que mandou a babá embora.
Agora, a ex-babá beija sua filha o dia todo e sofre de saudades do bebê que só pôde beijar uma única vez (ou melhor, dez vezes de uma única vez). E o bebê, que agora passa de mão em mão até que o teste acabe e uma nova babá seja contratada e instruída a não o beijar, nunca mais vai se lembrar daquele rosto, mas vai se lembrar para sempre de como é ser amado.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Vida moderna: uma autópsia

1. O turista moderno passa horas e horas nas filas para comprar ingressos. Quando finalmente está na presença daquele quadro, daquele vitral, daquela escultura, o turista demora cinco segundos, talvez dez. 
Não para contemplar a obra depois de uma longa espera; para tirar um selfie com ela.
Eis, em resumo, a minha experiência recente em périplo italiano. O turismo de massas não é apenas um inferno físico; é um inferno narcísico, em que o viajante nunca sai verdadeiramente de si próprio para se render a algo que é melhor, mais belo e mais importante do que o seu patético sorriso.
2. Saio para beber com os amigos e percebo o anacronismo da expressão “sair para beber”. Nós, rapazes de 40 anos, ainda nos entregamos aos prazeres do álcool.
Mas a geração que entrou agora na idade adulta não partilha esse vício. Eles e elas bebem coquetéis sem álcool e olham para os dinossauros com aquele esgar de compaixão que normalmente dedicamos aos animais doentes. Que se passa?
Um amigo jornalista, versado em “tendências”, leu algures que a epidemia tem nome: “mindful drinking”. Até há festivais para isso, onde a ideia é beber até (não) cair.
Por mim, estejam à vontade. Mas desconfio que a febre abstêmia não se explica apenas por razões de saúde. Não beber é também uma forma de sinalizar virtude e pureza perante o mundo corrompido.
Infelizmente, é também essa falsa virtude e essa falsa pureza que explicam o tom histérico com que os mais novos reagem a qualquer dissonância.
A política é um bom exemplo. Nos meus contatos com o pessoal, reparo que a maioria está cada vez mais intolerante perante opiniões contrárias. Melhor dizendo: uma opinião contrária não é apenas uma forma alternativa de ver o mundo. É um insulto pessoal que deve ser respondido na mesma moeda.
Era inevitável. Quando nos amamos demasiado não suportamos a evidência de que os outros não nos amam da mesma forma.
3. E se um dia existirem lentes de contato que permitem ao utilizador filmar e tirar fotos com um mero movimento ocular?
A Samsung aposta nessa proeza, dizem os jornais. Depois do fiasco do Google Glass, os sacerdotes da tecnologia garantem que as lentes de contato da Samsung serão um incomparável progresso.
Sobre isso, não tenho dúvidas. Embora a palavra “progresso” seja vazia de conteúdo. Como conceito, poder filmar ou fotografar com as lentes de contato pode inaugurar um novo capítulo na devassa da vida privada. Como saber que o nosso interlocutor não está a filmar-nos contra a nossa vontade?
E como ter a certeza que ele não partilhará qualquer conversa nas suas redes (sociais ou privadas)?
A primeira consequência desse “progresso” seria a transformação da vida social numa encenação permanente, abolindo por completo a confidência e a intimidade.
Hoje, com as redes sociais, o nível de dissimulação e performance já excede o tolerável —gente fingindo a vida que não tem, a felicidade que não tem, o afeto que não tem et cetera.
Mas como será transpor essa mentira virtual para o mundo real, 24 horas sobre 24 horas, sem pausa para enxugarmos as lágrimas?
4. O homem solitário é uma besta ou um deus, dizia Aristóteles. A relação de Michel Houellebecq com a vida moderna se explica com esses dois extremos. O homem moderno se considera um deus na sua solidão radical. Para Houellebecq, é uma besta.
É por isso que os seus romances são, literalmente, um bestiário: um desfile de personagens patéticas, grotescas, vazias —e, palavra fundamental, enganadas. E enganadas por quê?
Porque compraram a grande ilusão de que, rejeitando os valores e as instituições “burguesas” —o amor, a amizade, o casamento, a família—, o que existe por baixo da calçada é a praia, como diziam os revolucionários do Maio de 1968, em Paris (“sous les pavés, la plage”).
Falso, diz Houellebecq. Sob a calçada, o que existe é o abismo —e é nesse abismo que desaparece Florent-Claude Labrouste, o personagem de “Serotonina” (Alfaguara), o mais recente romance do escritor francês.
Os críticos, “comme d’habitude”, aplaudiram ou insultaram o niilismo existencial de Houellebecq.
Discordo deles. O que torna Houellebecq um escritor notável é o fato de ele ser, provavelmente, o último grande romântico da literatura europeia contemporânea. E “romântico” no sentido preciso da palavra. Cada livro seu é uma declaração de amor às ruínas.

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo