terça-feira, 23 de abril de 2019

O flagrante

Estou deitada no tapete, acoplada ao meu celular, olhando o Instagram de uma mulher. Logicamente não é uma mulher qualquer, já que mulheres qualqueres não existem. É o perfil da Outra. Rolei esse feed até o inferno e agora sou mantida refém por uma música da Marília Mendonça no repeat. A dor de cotovelo consegue ser mais aguda do que o refrão.
Um peixe voraz se debate em minha glote, preciso libertá-lo. Ativo a caps louca e começo a digitar: P, I, R, A, N— Mas antes que meus dedos roídos possam gritar por mim, estouram meu cativeiro. É a polícia. Por um instante, achei que a dupla de policiais femininas tinha arrombado a porta para me salvar. Ledo engano. Elas mostram um mandado de busca e apreendem meu celular de imediato. Pedem para ver meus documentos, entrego minha identidade. Mas elas querem confiscar minha carteirinha de feminista. Oi? Isso existe?
Sou tomada pela revolta. Você sabe com quem está falando? Eu frequento manifestações, grupos de estudo, círculo sagrado feminino e o cacete. (Peço desculpas pelo termo falocêntrico, prossigo.) Saí de peito de fora no Carnaval. Descolo vale-night para as amigas mãe solo. Podem olhar minha prateleira: Angela Davis, Simone de BeauvoirHeleieth Saffioti. Isso é um absurdo.
A sargenta não parece convencida. Cheira a minha mão, sente o futum de rivalidade feminina. Sou acusada de falsidade ideológica. Levo um tapa na cara. Engraçado, na porta da Damares vocês não batem. Outro tapa. Ainda escuto o zumbido no ouvido direito quando uma policial volta do escritório com um DVD do Woody Allen. Estou em maus lençóis.
Ofereço uma taça de rosé, elas não aceitam o arrego. Cadê a sororidade dessas vacas? Eu também sou vítima do patriarcado! Sim, eu amo Annie Hall, Annie Hall é uma obra-prima, eu odeio amar Annie Hall. E sim, eu amo odiar a Outra, ela é mais fascinante do que qualquer obra, é uma mulher. Não me peçam para bloqueá-la, eu prefiro pensar nela do que entulhar minha cabeça com homem.
Estendo as mãos para que me algemem de uma vez e acabem logo com isso. Abro os olhos, estou sozinha no tapete da sala. Sozinha não, pois a Outra me faz companhia.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

domingo, 14 de abril de 2019

A morte anunciada da Palestina

O resultado mais significativo da eleição israelense de terça (9) não é a mais que previsível recondução de Binyamin Netanyahu ao posto de primeiro-ministro. É a morte do ainda não nascido Estado Palestino(previsto pela legalidade internacional mas jamais criado).
O atestado de óbito leva a assinatura do Yesha, acrônimo em hebraico para Conselho da Judeia, Samaria (como os judeus chamam a Cisjordânia) e Gaza, territórios que deveriam ser palestinos (só Gaza é, por enquanto).
O Yesha, em seu comunicado sobre a eleição, diz que “o povo expressou sua lealdade à Terra de Israel e escolheu aplicar a soberania de Israel sobre a Judeia, a Samaria e o vale do Jordão”.
Dá para entender essa análise radical: Netanyahu, nos últimos dias da campanha, havia anunciado que, se vencesse, estenderia a soberania israelense aos assentamentos judaicos na Cisjordânia. Logo, se a maioria votou não exatamente por ele, mas pela combinação de partidos de direita e ultra-direita que o apoiam, votou pela anexação pré-anunciada.
Anexar os assentamentos impede formar um Estado palestino minimamente viável.
Até uma liderança palestina relevante, Saeb Erekat, admite e lamenta, ao dizer que, conforme os resultados apurados até a madrugada, “só 18 dos 120 membros eleitos do Parlamento israelense apoiam a solução de dois Estados e nas fronteiras de 1967”, anteriores, portanto, à guerra em que Israel ocupou mais territórios palestinos.
Essa contabilidade mostra que é injusto atribuir apenas a Netanyahu a destruição do sonho palestino. A sociedade israelense foi se movendo paulatina mais firmemente nessa direção. “Bibi”, como é chamado, sentiu essa pulsação e foi avançando sobre os territórios palestinos.
Escreve, por exemplo, David Halbfinger no New York Times desta quarta (10): “A aparente reeleição de Netanyahu como primeiro-ministro atesta a visão conservadora do Estado judeu e de seu povo a respeito de onde estão e para onde caminham”.
Diz muito sobre o conservadorismo o fato de que os partidos religiosos vêm crescendo há anos em peso tanto no Parlamento como nos gabinetes de Netanyahu (o atual e, certamente, o futuro).
Na questão palestina, claro que os religiosos e seu conservadorismo pesam, mas o principal, a meu ver, reside no fato de que a grande maioria dos israelenses desinteressou-se dos palestinos.
Seria necessária uma investigação aprofundada para explicar as razões desse descolamento quase irrestrito. Mas a segurança certamente é um fator determinante. 
O muro que Israel construiu (e continua construindo) para separar as terras palestinas ajudou a conter o terrorismo mais impactante, aquele dos homens-bomba que se explodiam em restaurantes, mercados, pontos de ônibus.
Israel instalou-se em uma zona de conforto e não quer mais se preocupar com os palestinos. Quanto pode durar o conforto ninguém sabe. Mas levar a sério a conclamação do Yesha para tomar a Cisjordânia e Gaza, que os religiosos consideram a Terra de Israel, é armar uma bomba de tempo: os palestinos que vivem na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Israel são 6,5 milhões —exatamente o mesmo número de judeus em Israel.
Dá para condená-los eternamente a ser um povo sem Estado?

Texto de Clovis Rossi, na Folha de São Paulo