quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Sobre o cocô

O elemento grego “skatós”, excremento, serviu de base no século 19 para a criação de diversas palavras eruditas e científicas em português. Escatologia é a mais significativa delas.
Além de “tratado acerca dos excrementos”, o dicionário Houaiss (de onde saíram todas as definições deste texto) traz a acepção pela qual a escatologia é mais conhecida: “ato ou fato de referir excrementos e imundícies afins em anedotas, expressões, escritos etc.”
Ou seja, escatologia é o recurso simbólico a dejetos e outras secreções anti-higiênicas, traço marcante da retórica de Jair Bolsonaro.
As inclinações escatológicas do presidente têm sido externadas com tanta regularidade que dispensam o colunista de coletar amostras para análise.
Recorrendo a outro cultismo derivado do grego “skatós”, podemos afirmar que Bolsonaro é um presidente escatofônico, cultor do “uso de palavras tabus, especialmente fecais”. 
A montanha de referências a “excrementos e imundícies afins” (“goldenshower” incluído) acumulada nos últimos meses sugere até um caso de escatocrasia, “incontinência de fezes”.
É verdade que, como se diz na língua de Trump —e a própria eleição do ogro racista de penacho laranja comprova—, “shit happens”. É um lance que rola.
Parece claro, porém, que daria alívio ao ambiente já poluído pela fumaça das queimadas o contingenciamento sanitário de excreções verbais desse tipo. Quem sabe dia sim, dia não?
O que a fixação escatológica revela sobre uma pessoa é tema para os especialistas nos meandros da mente. No entanto, a língua oferece algumas pistas aos que se disponham a farejá-las.
Um pendor escatológico muito acentuado pode ser sintoma de coprofilia, que o dicionarista define como “interesse psicopatológico por fezes de um modo geral, e especialmente sua associação ao prazer sexual”.
Nos casos mais graves, a coprofilia pode incluir a escatofagia, sinônimo menos usado de coprofagia, ou seja, “prática de comer fezes”.
Para maior clareza no debate, é importante explicar que, embora a escatologia seja mais conhecida com o sentido acima, um clássico mal-entendido linguístico a ronda. Ela também pode ter significado teológico.
Na verdade, não se trata de uma acepção diferente para o mesmo vocábulo, mas de outra palavra inteiramente distinta com a mesma grafia e a mesma pronúncia.
A escatologia do vocabulário teológico quer dizer “doutrina ou teoria sobre o fim do mundo e da humanidade”; e ainda “qualquer das diversas doutrinas cristãs concernentes à segunda vinda de Cristo à Terra, à ressurreição dos mortos ou ao Juízo Final”.
Trata-se de uma palavra nascida também no século 19, mas o elemento grego em que ela se baseia não é “skatós” e sim “éskhatos” (extremo, último).
Esse tipo de homografia não é tão raro na língua. O caso mais conhecido é o de manga, uma palavra de origem latina (“manica”) quando é de camisa e outra, importada do malaio, quando é fruta. Ninguém se confunde com isso.
Ocorre que, sendo vocábulos muito menos corriqueiros do que manga e manga, a escatologia fecal e a escatologia apocalíptica representam uma casca de banana e tanto. Difícil encontrar na língua portuguesa pegadinha tão traiçoeira.
Os mais pessimistas já sustentam, porém, que a distância semântica está encurtando e que as duas escatologias logo vão se encontrar e se fundir no fim malcheiroso dos tempos. Só nos resta torcer para que estejam falando merda.

Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Um brinde ao doce e gracioso Peter Fonda

No texto em que informa a morte de Peter Fonda, ocorrida na sexta, a família fala de um “doce e gracioso homem”. Foi essa, com efeito, a imagem que Peter projetou. Mesmo em “Os Anjos Selvagens”, de 1966, onde comanda com o codinome Blue uma violenta gangue de motoqueiros, é essa a imagem que nos chega: doce e gracioso. Elegante também.
E olha que os anjos selvagens, de que fala o título, são bem diferentes dos motoqueiros pacíficos de “Sem Destino”. Eles atacam mexicanos, estupram jovens negras, invadem hospitais, destroem igrejas, envolvem um comparsa morto na bandeira nazista e, depois de tudo, alegam que “queremos ser livres”.
O filme é de Roger Corman, que se gaba de ter inaugurado com ele a saga dos filmes sobre gangues de motociclistas (o que é uma meia verdade, basta lembrar de “O Selvagem” (1953), com Marlon Brando; mas eram outros tempos). Por magnífico que seja, “Os Anjos Selvagens” ficou restrito aos limites das produções Corman, ainda que tenha participado da mostra oficial do Festival de Veneza.
Foi, em todo caso, o trampolim para o filme que, em 1969, melhor representou essa época conturbada da Guerra do Vietnã: “Sem Destino” ("Easy Rider"). Ali, Fonda parece ter entendido até onde pode ir uma motocicleta. Além de ator foi roteirista do longa dirigido por Dennis Hopper, que é, aliás, parceiro de viagem ao longo da trama.
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Estávamos ali no registro do filme de estrada. Mas, mais do que isso, a ideia de liberdade era bem diferente da dos Hells Angels neonazis do filme de Corman. Tratava-se de estar na estrada, atravessar o país de lado a lado, de viver as aventuras do caminho, de ser americano rompendo com as convenções, negando o militarismo e o nacionalismo cego.
A imagem de Peter, que forçava certa dureza em “Os Anjos Selvagens”, mas deixava perceber a sensibilidade por trás da máscara neonazi, agora parecia completa: havia determinação e certa felicidade em seu comportamento. Havia herdado do pai, Henry Fonda, o porte altivo e a maneira tão própria de andar, com passos largos e decididos.
Esperava-se de Peter uma carreira tão sólida quanto a do pai, começando por sua indicação ao Oscar. Não ganhou, mas... Por certo seguiria os passos da irmã mais velha, Jane, que desde “A Vida Íntima de Quatro Mulheres” (George Cukor, 1962) já pintava como atriz mais que promissora, e desde “Barbarella” (1968, Roger Vadim), como estrela. Ambas as promessas se consolidariam logo.
Em “A Noite dos Desesperados” (1969, de Sydney Pollack), viu-se que sentia o “ar do tempo” tão bem quanto o irmão: como ele, foi indicada ao Oscar daquele ano e, como ele, não ganhou. Ganharia por “Klute”, de 1971, quase ao mesmo tempo em que Peter Fonda decepcionava em sua estreia como diretor em “Pistoleiro sem Destino”.
Desde então, Peter apagou-se. Nunca foi abandonado por Hollywood, nunca lhe faltaram papéis, quase sempre em filmes fracos. “O Ouro de Ulisses” (1997) voltou a colocá-lo brevemente em destaque: era quase sessentão, mas mantinha o mesmo porte e dignidade dos tempos de “Easy Rider”. A doçura, certa graça e o gosto pela liberdade que tanto marcaram a passagem do clã Fonda por Hollywood não o haviam abandonado. Como pede a família em seu comunicado fúnebre: que se erga um brinde a ele. Feito.

Texto de Inácio Araújo, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

O Rio continua lindo

Em poucas horas, seis jovens morreram no Rio. Morreram porque eram pobres. Da favela da Grota, da Maré, de Água Santa, da Tijuca, de Bangu. Não há nenhum indício até agora, no entanto alguns foram enterrados acusados de serem traficantes. Mas, aqui do outro lado do túnel, a vida continua igual e o Rio continua lindo.
É um resultado indesejado, disse uma das autoridades. O porta-voz da PM não vê fracasso em operações que terminam com a morte de inocentes. O governador lamenta todas essas perdas e as futuras que possam acontecer. Cara de visão, já nos antecipa que é assim, tragédia diária na parte feia e esquecida da cidade. Mas o Rio continua lindo.
A av. Niemeyer, que liga a zona oeste e sul, está fechada por causa de risco de deslizamento, o que só piora o trânsito caótico. Mesmo assim o carro do prefeito Marcelo Crivella já foi flagrado algumas vezes passando pelo local com batedores. Para que ficar no congestionamento se você pode dar uma carteirada na fiscalização e fazer o trajeto em 10 minutos? A gestão de Crivella é mais uma calamidade, mas o Rio continua lindo.
Fabio, 13, passa os dias em frente a uma agência bancária no Leblon. Fez amizade com a vizinhança, que leva livros e lanches para o garoto. Desde os nove, vende panos de prato e balas. É o único responsável pelo sustento da casa. O que ele faz no bairro mais rico da cidade é trabalho infantil. Mas o Rio continua lindo.
Crianças da Maré entregaram 1.500 cartas à Justiça pedindo menos violência na comunidade. Uma delas diz: “O ruim das operações nas favelas é que não dá para brincar muito. E também morrem moradores nas comunidades”.
Parte o coração, todo mundo se indigna, não falamos em outra coisa por dias, rende assunto nos jornais. Mas logo essas tragédias são digeridas e esquecidas, assim como tantas outras, começa o verão, chega o Carnaval, afinal, o Rio continua lindo.

Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Eduardo em Washington

Paul Hollander, que morreu poucos meses atrás, escreveu repetidamente, desde 1995, sobre o antiamericanismo. Sociólogo, fugiu da Hungria para os Estados Unidos em 1956, quando seu país foi ocupado pelos soviéticos. Não estranha que tenha sido um crítico atento a qualquer esquerdismo fácil.
​Hollander fazia a seguinte distinção: 
1) Existem críticas legítimas e merecidas à política estrangeira dos Estados Unidos e ao modo de vida de seus cidadãos; 
2) E também existe o antiamericanismo propriamente dito, graças ao qual cada um culpa os EUA por todas as injustiças que acometem seu próprio país, mesmo que os EUA tenham pouco ou nada a ver com isso.
No Brasil é fácil ouvir que a ditadura militar foi uma trama da CIA, sustentada por uma frota dos EUA presente ao longo da costa brasileira para dissuadir qualquer reação contra o golpe de 1964. 
Agora, é certo que os EUA, menos de dois anos depois da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, não gostariam que o Brasil entrasse no bloco comunista. Mas também é certo que eles se prontificaram a intervir (caso precisasse) mais do que intervieram. Culpar os EUA pelo golpe é um jeito de negar o peso e o tamanho das paixões totalitárias e fascistas que se expressavam nas marchas da Família com Deus pela Liberdade e que continuam vivas no Brasil de hoje.
Moral da história, em geral, o antiamericanismo serve para fazer de conta que nossos países não são responsáveis por suas mazelas: foi a culpa do tio Sam. 
Inversamente, o que é o filoamericanismo e para o que serve?
Na fim da Segunda Guerra, para um europeu, era uma forma de gratidão. Durante a Guerra Fria, era uma maneira de se declarar anticomunista. 
Mas hoje o filoamericanismo parece ser apenas uma adulação servil, que mal esconde um sentimento de inferioridade e uma decepção histórica por não ter dado certo. Ao filoamericanismo, em geral, os americanos destinam um desprezo condescendente, tipo: lá vem de novo o papagaio de pirata na hora do selfie… 
Enfim, para ser embaixador do Brasil em Washington, certamente não é bom ser estupidamente antiamericano e tampouco é bom ser estupidamente filoamericano.
O presidente Bolsonaro afirmou que o filho Eduardo, que ele gostaria de ver embaixador em Washington, fala inglês e fritou hamburguesas nos EUA. 
O inglês fluente é irrelevante de tão básico. Mas fico feliz com as hamburguesas. Admiro, no modo de vida dos EUA, o fato de que os jovens de classe média façam trabalhos manuais sem por isso se sentirem aviltados socialmente. 
Além disso, a experiência ajudará Eduardo a simpatizar com o grande número de brasileiros que vivem nos EUA sem visto de trabalho: para alguns, fazer faxinas ou fritar hamburguesas nos EUA é socialmente mais digno do que ser professor no Brasil. Enfim, graças às hamburguesas, Eduardo embaixador vai saber protegê-los e representá-los com carinho.
Mas vamos ao que mais importa. Um embaixador representa o governo do momento, mas, além ou aquém disso, representa o país —o que é bem mais complexo.
Tudo bem, qualquer aluno do Instituto Rio Branco lê, e ainda dá para encontrar num sebo, os três volumes de “Intérpretes do Brasil” da Nova Aguilar (ed. Silviano Santiago). Os colegas de Eduardo o ajudarão com  o resto da bibliografia.
Agora, os EUA não são menos complexos do que o Brasil. Mas não é nada irremediável: Eduardo adorará, suponho, aproveitar sua estada para se inscrever em um mestrado ou em uma pós-graduação em estudos americanos. 
O curso certamente o ajudará a ser o melhor embaixador possível. Se ele precisar de um tema de pesquisa, lembro justamente que quase nada foi escrito sobre filoamericanismo. Um orientador? Sem hesitar: Louis Menand, autor da melhor obra sobre as origens do pragmatismo americano, “The Mataphysical Club” (2001). 
Enfim, enquanto espera a sabatina do Senado, Eduardo poderia ler (ou reler) “Da Democracia na América” (1835), de Tocqueville, só para se lembrar que a simpatia pelos Estados Unidos não exclui a capacidade de crítica. 
Quem sabe, Eduardo, embaixador em Washington, possa escrever de lá despachos que, falando dos EUA, jogarão uma luz singular sobre o próprio Brasil.
Por exemplo: “Pai, imagina que aqui eles pensam que as leis (e a própria Constituição) não existem para proteger as maiorias, como você bem lembrou, mas para proteger (pasme!) as minorias! Esses americanos são bizarros!”.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Você não é tudo isso

Contratei um roteirista. No começo, ele trouxe várias ideias legais e parecia empenhado, mas, em menos de 15 dias, começou a dar defeito.
Na entrevista, eu tinha deixado bem clara a minha preguiça em relação aos típicos “millennials superangustiados de família com dinheiro”.
O tipo que ainda não se encontrou na vida com mais de 30 anos e que, ao ser confrontado com alguma responsabilidade ou incumbência mais chatinha, responde pérolas (aristocráticas disfarçadas de aristotélicas) como: “Acho que minha verdade não está nesse trabalho”; ou ainda: “Desculpe, achei que gostava de comédia, mas vou voltar para as minhas traduções de haicai para o russo”.
Apesar de ter nascido na década de 1970 e de não ter família rica, eu também fui bastante mimada e demorei a ganhar algum dinheiro. Eu também trocava de emprego a cada dois meses, porque aquelas pessoas e aquele lugar e aquele serviço não me serviam.
Era tão doloroso encarar que eu que não prestava para nada e tão mais fácil sair por cima e menosprezar todo mundo! Mas, pouco antes dos 30 anos, eu resolvi parar com essa palhaçada e então, por isso, a minha profunda fadiga com quem, já bastante adulto, se comporta como um poeta tuberculoso do século 19 a cada chance de ter um emprego real e não um “trabalho sonhado”.
Eu tenho emprego e tenho trabalho. Eu posso bancar meus devaneios pouco monetizados, pois sou uma filhinha de papai de mim mesma. Eu tenho, sobretudo, bode de quem busca “o trabalho perfeito” usando o dinheiro do emprego imperfeito de pais ou avós batalhadores.
Sorry, não vem cagar regra pra mim com esse papinho de “a minha verdade, a minha arte, a minha angústia, a minha pós em proxenetas do romantismo inglês”. Prefiro o coxinha honesto que pega a grana da família e vira influencer de hotel de luxo ao intelectual riquinho blasé que nunca vai trabalhar porque não precisa, mas chama o emprego dos outros de “hmmm, não sei, não é muito a minha”. Vai pagar o plano de saúde da família inteira depois me liga.
A mesma impotência camuflada por arrogância acomete aqueles solteiros chatos, egoístas, que não deixam ninguém falar, os “automonotemáticos” que, ao levar um pé na bunda, vêm com o clássico papinho de “o outro não aguentou o quanto eu sou autêntico, bem-sucedido e tenho personalidade”.
Talvez o outro não tenha aguentado o quanto você é casado com você mesmo e prefira alguém livre. E aqui, como me é de costume, faço uma crítica a mim. Foram mais de 20 anos de vida erótica por esse Brasil, culpando todos os moços por não aguentarem essa mulher incrível.
Coitada! Se eu sou insuportável agora, depois de doses cavalares de terapia e de 48 horas com contração uterina na tentativa de parir como mandava a professora do curso humanizado, fico imaginando a vaca que eu era quando prolonguei meus 16 anos por mais 16 anos.
Se eu tivesse como mandar um WhatsApp do túnel do tempo para a Tatinha de outrora, diria: “Aff, você não é tudo isso!”.
Por isso, se você passou dos 30 e é tão especial, sensível, angustiado e artista que nenhum emprego ou pessoa lhe serve, pensar que você não é tudo isso talvez resolva parte dos seus problemas; porém, sem dúvida, abre as portas para outros muito maiores, os quais você, mesmo sendo um idiota, sabiamente dá um jeito de evitar.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Quero uma palavra nova

Semana passada falei do desgaste sofrido por adjetivos como “asqueroso” e “grotesco” diante da frequência com que o Presidente da República dá declarações que exigem ser qualificadas assim.
Terminei propondo sinônimos raros para adiar o esgotamento da linguagem: nauseoso, horrípilo e quizilento.
Muita gente pensou que eu tivesse inventado essas palavras, mas não foi o caso: garimpei as três no “Houaiss”.
No entanto, é evidente que, mantido o atual ritmo de agravamento da verborreia presidencial, o léxico logo será insuficiente.

A retórica da barbárie vencerá? É possível que sim, mas não necessariamente. Se uma das atribuições dos escritores é zelar pelo justo encaixe entre palavras e coisas, situações extremas de anemia vocabular podem fazê-los recorrer a uma arma secreta: o neologismo.
Neologismo —palavra nova, inventada— é um recurso infinito. Querem ver? “Mórtigo, brúmbio, escosso, bilinhento, vômil, peçoncôrnio, neféstilo, nojúnculo, cloástico, peidófilo.” Fernanda Torres não precisou de mais de dez minutos para conceber essas belezuras.
A mensagem privada que a autora de “Fim” me enviou na última quinta (1°), alarmada com o esgotamento linguístico previsto em minha coluna, exigia resposta à altura. Neologismo gera neologismo.
Retruquei: “Escombruloso, remelético, xonho, gosmorrúnculo, viborongo, pustulibundo, espanta-mulho, esfornedor de bóstola, górgulo, nucuz.” Em meia hora, tínhamos dobrado a lista de sinônimos de “repulsivo”.
Era pouco. Logo eu disparava convites a outros escritores para garantir que nunca ficaremos à míngua de palavras equivalentes a “ignominioso”. 
Antonio Prata, que vem tentando em vão mudar de assunto, foi o primeiro a responder: “Diminúnculo, tubértrico, metastofélico, mefistostático, mierdosta”. Empolgado, acrescentou: “Ainda veremos esse Bolsonaro piar na jarabiroca”.
Renato Terra engrossou o caldo: “Queirótico, diabundo, analtrofóbico, tripulsivo, todo-escroto”. A coisa estava indo bem, e eu ainda nem tinha recorrido a não colunistas da Folha. Hora de abrir o leque.
“Carniciliano, lambetrumpeiro, destruirento, fascisqueiro”, adiantou-se Paulo Scott, mesmo ocupado com o lançamento do romance “Marrom e Amarelo”. 
Acrescentou Leonardo Villa-Forte: “Anticéfalo, pistólatra, abrunto, cunhaz, trunlítico, tramoiético, pocilgono, histépodre, luciferôntico, vomíssuno, morxado”.
Alguns neologistas pediram anonimato. Uma escritora que já foi ameaçada de demissão por criticar Bolsonaro compareceu com “ascrachoso, depretífero, miliciondo, nojencéfalo, pavorível e senhumano”. Motivo semelhante alegou o tradutor que propôs “escrotibundo, hominhoso, patúfrio, mijérrimo, cagalhesco”.
Prolífico, o cronista Luiz Henrique Pellanda contribuiu com “putrecéfalo, flatófago, anemolento, jequitibundo, chorumentalista, arregolitoso, suga-sebo, rancorífico, furicocida, desmalmado, retróloquo, fecaficionado, falsicultor, borramínguas, jebólatra”.
O mesmo Pellanda lembrou que, no romance “Sargento Getúlio”, João Ubaldo Ribeiro prenunciou tudo isso ao fazer seu personagem declarar: “Perde a força os nomes quando eu lhe xingo e por isso vou inventar uma porção de nomes para lhe xingar...”.
E inventa coisas como “crazento da pustema”, “disfricumbado firigufico do azeite”, “carniculado da isburriguela”, “retrequelento do estrulambique”. Todas palavras excelentes. Quem quiser que invente outras.

Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Cardápio filosófico

O combate à desigualdade se tornou o grande assunto das democracias. Não discordo da pertinência nem da urgência, mas devo confessar que fico ligeiramente decepcionado com o fato de pouco se discutir qual é o princípio distributivo que deveríamos adotar para perseguir esse objetivo. A filosofia, afinal, oferece um amplo cardápio de opções.
A mais intuitiva delas é o igualitarismo, que considera moralmente reprováveis situações que resultem em benefício muito maior para um grupo do que para outro. Por esse critério, se A ganha R$ 100 mil, e B, apenas R$ 1.000, é meritório um sistema de taxação que onere proporcionalmente mais A para transferir rendimentos para B.
É claro que as coisas nunca são tão simples. Há um grupo de filósofos como Harry Frankfurt que sustenta que não é a desigualdade, mas a pobreza, que constitui um problema moral. Com efeito, se A tem patrimônio de R$ 3 bilhões, e B, um de "apenas" R$ 1 bilhão, não é obviamente necessário tomar nenhuma ação para reduzir essa desigualdade.
Quem segue essa linha de raciocínio tende a abraçar ou o suficientarismo ou o prioritarismo (sei que os neologismos são horríveis, mas são os nomes que existem). Pelo primeiro, as ações distributivas devem ter o objetivo de assegurar que todos obtenham o suficiente para levar uma boa vida (leia-se "eliminar a pobreza"). Diferenças de rendimento para quem estiver acima do patamar arbitrado são moralmente irrelevantes.
Já no prioritarismo, ajuda-se antes quem está em pior situação. Ao contrário do que ocorre no suficientarismo, a tarefa nunca acaba, já que não há uma linha de chegada, mas, ao contrário do igualitarismo, esse princípio não nos força a eliminar toda e qualquer diferença.
Não pretendo resolver em 56 linhas um dos principais problemas que o mundo enfrenta hoje, mas estou convicto de que uma discussão mais técnica seria enriquecedora.

Texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Cenas de morte

Ouço dizer que os corredores da alta cultura têm se ocupado com a discussão sobre se a sequência da morte de Mufasa, pai do herói do desenho “O Rei Leão”, em cartaz, é mais eficaz do que a da mãe de Bambi em, idem, “Bambi” (1942). A do leão, pisoteado por milhares de cascos e ainda caindo de um despenhadeiro, é mostrada em detalhes. A da corça não se vê. Nem precisa. Ouve-se um tiro, e só. É clássica.
A morte sempre foi importante para o cinema. Muitas das maiores sequências da história têm a ver com ela. A de “King Kong” (1933), em que o macaco, metralhado pelos aviões, despenca do edifício Empire State. A de “Sabotador” (1942), de Hitchcock, em que Robert Cummings tenta salvar o nazista Norman Lloyd de cair da estátua da Liberdade, segurando-o pelo paletó, mas os pontos da roupa vão se desfazendo. A espetacular morte de Anna Magnani em “Roma, Cidade Aberta” (1945), em que ela é fuzilada ao correr para seu marido. 
A da velhinha na cadeira de rodas, que Richard Widmark, com uma diabólica risadinha, faz rolar da escada em “Beijo da Morte” (1947). A de James Cagney, no alto do gasômetro em chamas, em “Fúria Sanguinária” (1949), gritando: “Olha só, mamãe! Estou no topo do mundo!”. E qual diretor começaria uma comédia com uma chacina? Só Billy Wilder, em “Quanto Mais Quente, Melhor” (1959). 
Adoro a morte de Jean-Paul Belmondo em “Acossado” (1959), caído na rua depois de levar vários tiros pelas costas e soltando a última baforada do cigarro. E a de Janet Leigh, no chuveiro, em “Psicose” (1960). Já a falsa morte do ET em “E.T.” (1982) é só uma das costumeiras trapaças sentimentais de Steven Spielberg. 
Quanto ao leão morto que “volta” para o filho numa nuvem no final de“O Rei Leão” é um recurso manjado. Começou com Jeanette MacDonald e Nelson Eddy, que, depois de mortos em “Primavera” (1937), “ressuscitam” na nuvem, cantando “Ah, Sweet Mystery of Life”.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Se você ainda

Se você acha Jair Bolsonaro um horror só porque ele detesta índios, gays, transexuais, nordestinos, crianças, professores, estudantes, cientistas, artistas, jornalistas, pacifistas, imigrantes, doentes mentais, dependentes químicos, presidiários, desaparecidos políticos, ambientalistas, veganos e até famintos; ou se você se assusta porque, em vez daqueles, ele prefere torturadores, milicianos, fabricantes de armas, chacinadores, devastadores do ambiente, mineradores, disseminadores de agrotóxicos, exploradores do trabalho infantil, criminosos do trânsito, censores e, de modo geral, as piores pessoas do país;
Se ele lhe provoca náuseas ao fazer declarações impiedosas sobre pessoas mortas, tanto as que morreram de fome, nos presídios, nas ruas ou mesmo em combate, e ao insultar suas famílias, que têm o direito de amá-las; ao demonstrar seu cavalar desconhecimento sobre artistas que elevaram o nome do Brasil no exterior, como João Gilberto; e, dizendo-se cristão, frequentar igrejas por motivos políticos tanto quanto estádios de futebol;
Se você se indigna porque ele despreza instituições que nos tornaram adultos e respeitados, como o Itamaraty, o Inpe, a Funai, o Ibama, aFiocruz e a OAB, e, diariamente, agride uma Constituição que jurou respeitar e nunca leu; ou porque desmerece o trabalho de brasileiros que têm dedicado a vida a construir o Brasil, e não a parasitá-lo durante 28 anos num covil da Câmara dos Deputados;
Se você continua esperando que ele se explique sobre as histórias mal contadas que o cercam, envolvendo seus filhos, motoristas que “sabem fazer dinheiro”vendedoras de açaí, ministros suspeitos, candidatos laranjas e mentiras puras e simples;
Enfim, se você ainda se surpreende ouvindo-o dizer coisas inenarráveis ao ser filmado cortando o cabelo numa cadeira de barbeiro, imagine o que ele não faz sozinho, sem testemunhas, sentado em outra espécie de trono.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo