sábado, 30 de junho de 2018

Lições da Suécia

Fui convidado pelo governo sueco para visitar o país. Sempre quis conhecer com mais detalhes o que fez a Suécia estar há vários anos entre os primeiros colocados no mundo nas áreas social, econômica ambiental e ética, tendo sido um país paupérrimo no início do século passado.

Realizamos visitas intensas a ministérios, órgãos governamentais e não governamentais. Quando perguntados sobre as razões pelas quais a Suécia chegou aonde chegou, a resposta quase unânime era: nós conseguimos acordar alguns consensos.

O mais importante foi a compreensão de que, para desenvolver o país de forma harmônica e sustentável, é necessário reduzir as desigualdades e estabelecer relações sociais calcadas na confiança.

Como decorrência, políticas públicas e do setor privado são orientadas a reduzir as desigualdades econômicas, territoriais, etárias, de gênero e de raça. O sistema fiscal e tributário arrecada mais de quem ganha mais ,e os investimentos públicos direcionam os recursos prioritariamente para os segmentos sociais e territórios mais necessitados.

Recursos públicos garantem educação e saúde de qualidade para todos. A educação é obrigatória até a universidade, e os universitários podem receber recursos a fundo perdido que lhes garantam a manutenção até o fim do curso.

A participação das mulheres é um dos principais eixos dessa visão de inclusão social. São maioria na política e nos órgãos governamentais. A primeira infância é tratada com grande prioridade, expressando o cuidado com a futura geração.

A licença-maternidade é de 14 meses, dos quais o pai deve cumprir o mínimo de três. As empresas procuram colocar limites para a diferença entre os maiores e menores salários. Uma agência independente governamental acompanha e propõe medidas para reduzir as desigualdades nos governos e no setor privado.

Os índices de confiança entre as pessoas e as organizações públicas e privadas são muito altos graças a uma total transparência e estabelecimento de amplos espaços de participação nos governos e nas empresas. Trabalhadores e empresários têm um interesse comum: o sucesso da empresa.

Os trabalhadores participam dos órgãos de gestão, e todas as decisões, inclusive o destino dos lucros, são tomadas de comum acordo. Responsabilidade e benefícios são consensuados e, por isso, praticamente não há greves.

A política não é vista como profissão, mas como oportunidade de servir a comunidade. As mordomias são mínimas, vereadores não ganham nenhuma remuneração. São muito poucos os cargos de confiança indicados pelos políticos. As políticas públicas são tocadas por funcionários de carreira que servem sucessivos governos. Não existe foro privilegiado, aposentadorias especiais etc. Os políticos pedem demissão de vergonha ao menor deslize ético.

A consciência ambiental é altíssima. Os objetivos do desenvolvimento sustentável com metas até o ano 2030 orientam todas as ações do governo, sob a responsabilidade do ministro da economia.

Maciços investimentos em pesquisas, em que universidades, governos e empresas cooperam, garantem excelência tecnológica e competitividade internacional.

Foram muitos os aprendizados da viagem. Apenas alguns estão aqui relatados. A pergunta angustiante que me ficou foi: quanto tempo ainda levaremos para chegar aos consensos que possam tornar o Brasil (um dos campeões mundiais das desigualdades e onde índices de confiança nas instituições são baixíssimos) um país próspero e justo?


Oded Grajew, na Folha de São Paulo

Um país contra a leitura

Preciso confessar um crime adolescente: eu lia muito. Como “muito” é uma noção relativa, vale acrescentar que lia demais. Mas o que caracteriza a demasia? Quantos livros serão livros demais? E será que falar nesses termos faz sentido num país que, lendo tão pouco, deveria incentivar todo excesso como forma de elevar sua média?
É aí que mora um problema quase invisível, apesar de imenso: por trás dos pífios índices brasileiros de leitura existe uma poderosa tradição de anti-intelectualismo e desprezo aos livros. Uma tradição que tem raízes profundas e alcance maior do que se pensa.
A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, divulgada em 2016, revelou que mais da metade dos brasileiros se declaram leitores (mas mentem um bocado também), ainda que leiam só 2,43 livros inteiros por ano em média.
Seria um erro atribuir o problema apenas ao letramento precário —menos de um terço da população enquadrado nos níveis “intermediário” (23%) e “proficiente” (8%), segundo o último Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), de 2015. Abaixo disso fica difícil ler textos minimamente complexos, mas o fato é que quem sabe ler também lê pouco.
Para azar do Brasil, ainda não inventaram ginástica melhor para o pensamento. O desdém à leitura faz parte do nosso 7 a 1 estrutural e ajuda a explicar tanto nossas vitórias magras quanto nossas derrotas duras como sociedade e como nação, embora ganhe menos atenção do que as mazelas nacionais mais óbvias —aquelas que, a cada Copa do Mundo, são enfatizadas por quem torce contra a seleção, como se fosse possível trocar títulos mundiais por Índice de Desenvolvimento Humano.
Não digo que o desprezo às letras tenha o mesmo peso do saneamento básico deficiente, que priva metade dos brasileiros de acesso a redes de esgoto. Ou de nossa desigualdade econômica entre as maiores do mundo. Ou do índice de mortes violentas comparável ao de países em guerra. De todo modo, não há dúvida de que a hostilidade aos livros faz parte dessa equação.
Eu lia escondido porque estava apaixonado demais por literatura e, hipervalorizando como todo adolescente a inserção social, sabia que pegava mal ser visto com livros não escolares debaixo do braço. Se gostasse um pouco menos da coisa, é provável que tivesse desistido daquela mania besta. Como gostava demais, transformei a leitura num prazer culpado: Kafka e Graciliano foram se misturar a revistinhas de sacanagem debaixo do colchão.
Não eram só meus companheiros de geração que lançavam aos livros olhares mais carbonizantes que as chamas dos bombeiros de Farenheit 451, a distopia de Ray Bradbury (filmada por François Truffaut e recém-recriada em versão hollywoodiana) sobre uma sociedade totalitária em que os livros são proibidos. Gerações variadas se irmanavam no complô.
Em seu clássico “Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”, de 1928, livro datadíssimo mas cheio de um pessimismo revigorante, Paulo Prado escreveu: “Não se publicam livros porque não há leitores, não há leitores porque não há livros. Ciência, literatura, arte —palavras cuja significação exata escapa a quase todos”.
À aridez da massa que nada lia, Prado contrapunha o bacharelismo, a cultura ornamental de uma pequena elite, afirmando: “Em tudo domina o gosto do palavreado, das belas frases cantantes, dos discursos derramados”. A contradição entre os dois polos é só aparente: ignorância e pirotecnia verbal vazia vão de braços dados. Não há campanha de leitura que dê jeito nisso.

Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

terça-feira, 26 de junho de 2018

Ex-usuário de crack vira assistente social e ajuda moradores de rua

Adriano Diniz, 45, já foi borracheiro, motoboy, entregador de pizzas e promotor de vendas. A morte de um primo muito próximo, em 2007, o levou a morar na rua e transformar o uso casual de drogas em uma constante. Hoje, mais de dez anos depois, formou-se assistente social e ajuda moradores de rua a terem acesso a direitos básicos.
Quando o primo morreu, não passou nem o Natal nem o Ano-Novo em casa. “Em Guarulhos tinha uma casa onde usavam crack. Parei ali e larguei mão. Fumei a minha moto na pedra”, conta. 
Percebendo a situação em que estava e com medo de voltar para casa e “querer fazer o que via na televisão, os caras roubando, batendo na mãe”, Adriano, aos 36, foi para a rua.
Foram dois anos dormindo em albergues ou, sob o efeito das drogas, em lugares como “embaixo de um viaduto da marginal Tietê, onde tem um buraco que parece uma cidade, cheia de casulinhos”, diz.
“Foi um passo para trás para dar vários para frente na vida”, diz Adriano sobre o tempo que passou na rua. “Eu encontrei muitas pessoas boas.”
Uma delas, assistente social, insistiu até que ele terminasse o ensino médio e o inscreveu no Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Com a nota, Adriano conseguiu uma bolsa no Prouni em 2013 e formou-se em serviço social em 2016. 
A rotina nos albergues era de espera. Acordar cedo, tomar café da manhã na “boca de rango” (restaurante comunitário para pessoas em situação de rua) próximo à praça 14 Bis, no centro de São Paulo, e procurar empregos ou bicos —ou até mesmo fazer atividades fora da lei na Sé. 
Conseguiu teto e cama constantes, além de um curso de panificação, no Arsenal da Esperança, um albergue na antiga Hospedaria do Imigrante, na Mooca, zona leste. Porém, os dias circulando atrás de uma vaga em uma padaria não tiveram resultado. 
Foi no café da manhã na boca de rango que encontrou a placa oferecendo o seu futuro emprego —de agente social do Consultório na Rua (Cnar).
O projeto, segundo a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, visa inserir a população de rua nos serviços de saúde. São 19 equipes pela cidade, que desenvolvem também outras ações, a depender do local e das demandas das pessoas atendidas. 
No dia em que encontrou a reportagem Adriano tinha levado moradores de rua para refazer seus documentos no Poupatempo da Sé. “Também procuramos trabalhar com atividades coletivas, como futebol, oficinas e temos em mente arrumar parcerias com cinemas”, explica.
Segundo Adriano, tuberculose, dificuldades de locomoção e o alcoolismo são os principais problemas entre os moradores de rua. “O álcool era a porta de entrada. Acordava com vontade de tomar uma breja, pinga, uísque. Tomava, ficava doidão e aí pronto.”
Mesmo recuperado e com emprego estável, a droga voltou à vida de Adriano em alguns momentos. Um deles aconteceu em 2016, quando trabalhava na cracolândia, onde conhecia a maior parte dos traficantes da região. 
“Lá era muito frequente e evidente o contato com a droga. Você entra no corredorzinho, tem barraquinha dos dois lados com pratões cheios de crack, cocaína e maconha. É igual feira livre”, diz. “Eu passava e os traficantes ficavam oferecendo [droga] de graça e jogavam fumaça na minha cara. Chegou uma noite em que eu usei.” 
Com medo de colocar tudo a perder, depois de dois anos trabalhando na cracolândia pediu transferência. 
Atualmente, trabalha em uma equipe do Cnar gerenciada pelo Iabas (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde) em uma UBS (unidade básica de saúde) em Santana, na zona norte.
Trabalhando, deixou a rua há anos. Hoje, mora em uma pensão onde paga R$ 700 por mês para ter um quarto só seu. 
Para superar as pedras que surgiram no seu caminho, diz, precisou de insistência, humildade e oportunidades. 
“Eu sou ex-usuário e ex-morador de rua. Se eu for arrogante na vida, pode ser que amanhã ou depois eu volte para a rua”, diz. “Conheço piloto de avião que está na rua. Eu sou um reles recém-formado. Quem sou eu para achar que estou blindado?”
Os planos para o futuro incluem uma pós-graduação, para se aprofundar na área de habitações de interesse social, e talvez prestar concursos públicos. “Falta só minha habitação. E meus dentes, que quero consertar”, diz Adriano.

Reportagem de Phillippe Watanabe, para a Folha de São Paulo

segunda-feira, 25 de junho de 2018

O horror do desamparo

Por que as pessoas tentam de forma tão desesperada negar o desamparo em que nós, seres humanos, existimos? Esse desamparo é, antes de tudo, cósmico: o universo é indiferente a nós. Ao contrário dos que creem na infantil ideia de que o “universo conspira a nosso favor”, o universo está, na verdade, pouco se lixando pra nós, ele é cego.
É fácil identificar a causa desse horror ao desamparo, não? O desamparo é insuportável. Seja em que nível for, ele é insuportável. Esse caráter insuportável, seguramente, impõe-se ao nosso pensamento e às nossas sensações. O resultado é que acabamos por crer em seres imaginários que nos auxiliam na fuga dessa sensação esmagadora de desamparo. Mas vamos por partes. O tema pede fôlego e reverência.
Eurípedes, trágico grego que viveu no século 5 a.C., pergunta-se na peça “Hécuba” (esposa de Príamo, rei de Troia) se os deuses para os quais rezamos de fato existem ou se a realidade não seria apenas fruto da contingência cega.
Eu creio na segunda opção. O que não implica —como bem nos diz o filósofo John Kekes (nascido em Budapeste, em 1936, e hoje residente nos EUA) em seu maravilhoso “The Human Condition” (a condição humana), de 2010— o fim do mundo. Como não? Porque somos inteligentes e morais, podemos, ainda que de modo precário, cuidar da vida em meio à contingência.
Assim como Eurípedes, Freud (1856-1939) meditava sobre essa questão. No seu “Futuro de uma Ilusão”, de 1927, Freud reflete sobre o desamparo como fonte primária da busca religiosa e espiritual. “Ilusão” aqui, como entende a fortuna crítica, é a religião. 
Mas, creio, podemos ampliar essa ilusão para qualquer forma de negação de desamparo. E aí abandonamos a ilusão de que, resolvida a crença religiosa, teremos resolvido o peso psíquico, moral, social e político do desamparo. E, como consequência, poderíamos refletir um pouco melhor sobre o presente dessa “ilusão” e o horror do desamparo hoje. O que você crê ou faz para lidar ou negar o desamparo?
Para Freud, a ilusão religiosa se sustenta numa espécie de processo psíquico regressivo em direção à experiência primitiva com os pais como defensores dela contra uma realidade hostil (cheia de “contingências”). Esses pais seriam o elemento intermediador entre essa contingência cega que a criança começa a perceber como realidade do mundo a sua volta e ela mesma. O que é essa contingência cega?
“Contingência” (está na moda a palavra inglesa “randomness”) é o nome que damos para tudo o que parece estar fora de nosso controle ou de qualquer padrão aparente de organização. Pode ser bom ou ruim. De forma comum, quando é bom, dizemos que é uma bênção ou uma graça. Quando é ruim, dizemos que é azar.
Na experiência infantil, os pais, quando funcionais, protegem a criança dos efeitos dessa contingência cega, sendo eles mesmo, às vezes, instrumentos da mesma contingência, por isso a relação com eles é sempre ambivalente. 
A criança, por sua vez, “barganha” com a contingência por meio dessas figuras mediadoras com o mundo a sua volta. Ao longo da infância, essa “barganha” será razoavelmente bem-sucedida na maioria dos casos. Essa barganha por meio dos pais humaniza a relação com a contingência de alguma forma.
A religião seria, pois, um retorno a essa posição infantil de humanização da relação com a contingência, bem-sucedida com os pais na infância. 
Por meio dos deuses, de Deus, dos orixás, da natureza, do sagrado feminino, do universo que conspira a nosso favor ou de uma consciência cósmica, as pessoas enfrentariam a contingência “acompanhadas”. Ou, melhor, que a contingência não é propriamente cega, mas que existe um sentido maior e organizado por trás da aparentemente precária situação em que nos encontramos. E que esse sentido maior ou organização nos permite repousar neles.
Percebemos, assim, que uma das funções maiores da busca de negação do caráter cego da contingência é encontrar repouso. Quando humanizamos a relação com a contingência, ou humanizamos ela mesma imaginando um “todo divino” do qual fazemos parte, repousamos. E aí, venceríamos o desamparo.
Respostas como a de Kekes parecem negar esse repouso porque afirmam que nada temos como anteparo à contingência cega e ao desamparo, a não ser nossa capacidade humana de lidar com a realidade, mesmo que de forma precária. Freud concorda com Kekes: não há repouso. Freud e Kekes investem no amadurecimento. Recurso escasso hoje em dia.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 22 de junho de 2018

O JUIZ SÉRGIO MORO DESEJA E VAI CONDENAR NOVAMENTE O EX-PRESIDENTE LULA. ALGUÉM DUVIDA DISSO???

Fiz indagação semelhante antes da publicação da primeira sentença condenatória do ex-presidente Lula (caso do apartamento do Triplex). Naquela época, todos já anteviam a fatídica condenação, criticada por inúmeros juristas, inclusive em importante livro com mais de cem trabalhos demonstrando os equívocos do juiz Sérgio Moro (Comentários a uma sentença anunciada. O caso Lula).
Agora, vem aí uma nova “sentença anunciada”, no caso do “sítio de Atibaia”. Basta assistir a um dos muitos vídeos, publicados na internet, das audiências onde estão sendo ouvidas as testemunhas arroladas pela defesa técnica do ex-presidente Lula para se perceber que o juiz Sérgio Moro já tem formada a sua convicção condenatória, embora prematuramente. Até uma pessoa menos atenta vai constatar a impaciência e até a intolerância do juiz que preside tais audiências.
Por que estará ocorrendo isso? Fácil explicar: quando juiz quer condenar um réu e já formou o seu convencimento, tudo o mais, em termos de produção de prova, para ele, é maçante, desnecessário, protelatório e mesmo impertinente. A irritação é maior ainda quando a prova produzida se mostra hábil a abalar a sua prematura convicção. Aí o desconforto é gritante, pois o magistrado quase nunca está disposto a reavaliar todo o seu convencimento, reavaliar a condenação que já traz em sua mente.
De qualquer forma, caberiam duas indagações: por que o juiz Sérgio Moro quer condenar o ex-presidente Lula? Por que o juiz Sérgio Moro formou prematuramente o seu convencimento sobre a condenação do ex-presidente Lula?
Aqui só posso responder à segunda pergunta. Não devo correr o risco de ser mal interpretado e passar a ideia de que estaria imputando ao magistrado um comportamento ilícito.
Na verdade, a primeira indagação está relacionada à alegada preliminar apresentada pela defesa do ex-presidente Lula sobre a suspeição processual do magistrado, em razão de inúmeros fatos e condutas deste juiz, amplamente noticiada pela imprensa (quase sempre a chamada imprensa alternativa, já que a grande imprensa esconde muito do que indevidamente acontece na chamada “Operação Lava Jato”, “blindada” pela imprensa punitivista e motivada por outros interesses escusos ...).
Entretanto, fácil é responder ao segundo questionamento, mormente porque tal resposta está ligada à própria estrutura do nosso processo, que adota um sistema acusatório bastante mitigado, bastante comprometedor.
Embora a Constituição da República consagre expressamente princípios processuais próprios do chamado sistema acusatório, os quais objetivam preservar a indispensável imparcialidade dos juízes, o nosso atual Código de Processo Penal, com certa anuência dos tribunais, mantém regras jurídicas que colocam os magistrados participando de atividades persecutórias, a maioria deles atuando na fase pre-processual, na fase do inquérito policial.
Ademais, várias leis posteriores ao citado código também outorgam aos nossos juízes estas atividades anômalas, impróprias a um processo democrático, incompatíveis com o mencionado sistema acusatório. Damos como exemplos, dentre muitos outros, o poder de o juiz requisitar a instauração de um inquérito policial, requisitar diligências investigatórias à autoridade policial, determinar conduções coercitivas, deferir interceptações e gravações telefônicas e homologar acordos de cooperação premiada.
Ora, se o desempenho destas atividades persecutórias, previstas em leis, pode comprometer a indispensável imparcialidade dos juízes, o que dizer quando alguns magistrados se excedem nestas tarefas investigatórias, se irmanando à Polícia e ao Ministério Público??? O que dizer quando os juízes declaram que estão em verdadeiras “cruzadas” contra a prática de determinados crimes??? O que dizer quando magistrados declaram que desejam refundar uma nova ordem iluminista em uma sociedade???
No caso de que estamos tratando, por tudo isto, fica claro que o juiz Sérgio Moro já tem formada a sua convicção condenatória em face do ex-presidente Lula, pois assumiu “um lado” e coordena um micro sistema de combate à corrupção, criando estratégias e mecanismos para maior eficiência da sua postura punitivista.
Na verdade, ele passou a “assumir”, perante a opinião pública, não apenas uma “obrigação de meio”, mas também e, principalmente, uma “obrigação de resultado”. Nesta perspectiva, mais uma condenação do ex-presidente Lula será o seu “troféu” máximo e que lhe valerá mais algumas medalhas e homenagens no exterior, quase sempre patrocinadas pelo grande capital internacional. Ele assumiu uma “missão” e vai cumpri-la.
Em resumo: o juiz Sérgio Moro quer e vai condenar novamente o ex-presidente Lula. Todos nós sabemos disso.
Neste caso, a atividade processual é só um caminho que a lei exige para legitimar uma condenação já decidida, o processo é um mero detalhe e a atividade probatória da defesa é um incômodo e uma perda de tempo para este juiz que tem uma formação não muito democrática e se coloca como sendo um “magistrado acusador”.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Depressão brasileira

As afirmações genéricas sobre o estado de espírito de um povo são facilmente enganosas: ao diagnosticarmos um grupo ao qual pertencemos, psicólogos, antropólogos, jornalistas etc., tendemos a atribuir à coletividade sentimentos que são apenas os nossos.
É por isso que, em tese, não faço diagnósticos coletivos temerários. Só que hoje é um pouco diferente: desde 1985, quando comecei a clinicar no Brasil, não me lembro de ter percebido um desânimo tão difuso e generalizado quanto agora.
Uma pesquisa recente do Datafolha aponta que 72% dos brasileiros enxergam uma piora do cenário econômico, embora só 49% declarem que passaram de fato por um retrocesso. Ou seja, não é necessário sofrer da crise para "sentir" que estamos mal.
Os dois sintomas básicos para diagnosticar um transtorno depressivo maior são o humor deprimido (sentir-se triste e sem esperança) e uma diminuição do interesse em quase todas as atividades. Justamente, uma nova pesquisa (Folha de 12/6) anuncia que 53% dos brasileiros não têm interesse na Copa do Mundo, que logo vai começar.
A esses sintomas, acrescente, segundo sua preferência, sentimento de inutilidade, capacidade diminuída de pensar ou se concentrar, indecisão, pensamentos de morte recorrentes (por bala perdida, assalto ou espera para exames no SUS).
Em 2017, segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil foi o quinto país mais deprimido do mundo e o campeão em ansiedade. A ansiedade é a grande companheira da depressão: tensão, inquietude, dificuldade de concentração, sensação de perigo iminente.
Quando soube desse ranking, pensei que talvez a gente devesse atribuir o destaque brasileiro a um excesso de diagnósticos e de medicação. Hoje, não estou tão certo disso.
Muitos colegas vão achar essas considerações bizarras, mas é difícil negar a existência de transtornos "sociogênicos", que refletem as preocupações mais difusas num momento e num lugar específicos --os quais não determinam as patologias dos indivíduos, mas, isso sim, fornecem um pano de fundo coletivo.
O que nos deu esse "pano de fundo"? Numa ordem qualquer: a sensação repetida de um fracasso econômico (acompanhada pela lenda de nossa riqueza "natural"); o fracasso da democracia representativa (persistência das elites tradicionais, corrupção generalizada, primazia das razões eleitoreiras sobre os interesses da comunidade); o fracasso moral vergonhoso (as provas repetidas de que ninguém está disposto a pagar o preço das próprias medidas que lhe parecem certas); o fracasso em proteger um lar seguro e um espaço público; o fracasso, enfim, em constituir uma esperança compartilhada que dê sentido à existência de uma nação.
A "psicologia positiva" norte-americana definia a esperança como a existência simultânea de um objetivo e de um plano definido para alcançá-lo.
O filósofo Richard Rorty ("Philosophy and Social Hope", Penguin, 1999) definia a esperança como uma narrativa que nos promete um futuro melhor. Ele mostrava que várias narrativas já se comprovaram falsas e devemos aprender a viver sem uma narrativa comum que nos faça esperar —ou seja, cada um deveria inventar sua esperança.
No desespero, não há planos de ação definidos e não há narrativas que prometam um futuro. Mas, no desespero, a esperança não morre: ela continua viva, numa espécie de pensamento mágico.
O deprimido não consegue fazer nada para mudar sua vida, mas não deixa de jogar na Mega-Sena.
O deprimido espera muito, sim, mas sua esperança é abstrata, como os discursos de uma campanha política ruim, que promete e nunca diz quais são os passos necessários para chegar lá.
Se Eric Hobsbawm estivesse vivo e quisesse dedicar um volume à nossa década, acho que escolheria o título "A Era da Farsa" e contaria que o mundo, "naquela época", tinha sérios problemas e precisava muito de pessoas sérias para resolvê-los (ou, ao menos, para tentar), mas, ironia do destino, ele foi liderado por farsantes.
Enfim, como uma espécie triste de consolação, poderíamos afirmar que os brasileiros estão encontrando uma nova unidade, um traço comum. Já tiveram em comum a primazia do coração sobre a razão que Sérgio Buarque chamou de cordialidade. Agora, quem sabe eles consigam se juntar e encontrar uma comunidade de destino ao redor de uma depressão compartilhada.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Sob tortura

“Mas é família.” Tem que aturar ou, ainda pior, tem que amar porque é família. Quem tem cachorro sabe: a gente gosta bem mais dos animais domésticos do que de 99,5% dos parentes.
Para visitar a avó no interior lotavam um Veraneio. A mãe dizia: “Vai bem na frente! Se chacoalhar muito, dá menos vontade de vomitar”. Durante o trajeto, tios e primos soltavam sonoros e terríveis flatos e falavam de “namoradas” como se fossem funcionárias insuportáveis de um telemarketing do inferno.
A garotinha é maluca porque a mãe da garotinha está cada hora com um macho. O garotinho é bicha porque a mãe do garotinho nunca prestou muito. E assim iam comentando, ao longo do trajeto e sempre com muito desvelo, as crianças próximas e, ainda com mais brandura no coração, as mães desses rebentos “degenerados”. 
Quando pequenos, fomos todos torturados por alguém da família. O mundo, ainda tão limitado, era essa galera que, mesmo sentando na frente do Veraneio, dá muita vontade de vomitar. Os filhos já deram errado antes mesmo de saberem o que é isso, as mães seguem “dando” errado, esquecendo que depois de parir não deveriam mais ter desejos. E os senhores que bufam e riem (e detestam mulheres) se juntam às senhoras que odeiam outras mulheres (e também bufam e riem) e juntos formam o espírito natalino. E o espírito natalino (Páscoa, aniversário da avó, Ano Novo, batizado, Dia dos Pais, bodas da bisa, não importa a data, o espírito natalino nada tem a ver com o Natal, e sim com uma turma bem estranha reunida em prol de se aliviar e detonar os outros) é a maior tortura da vida de um adolescente bacana.
A cada 178 humanos desnecessários (ou apesar deles), forma-se, assombrosamente, uma pessoa notável. E este jovem, essa flor de lótus que nasceu do asfalto fétido, sabe, desde os tempos de miúdo, que tem algo de muito errado com o tio do pavê que defende a intervenção militar. O parente que explica, com a grandiloquência inútil de um tenor desafinado, que nunca existiu a ditadura. Ou que foi necessária para acabar com terroristas. Ou que “precisa crescer o bolo antes de repartir”, esquecendo que ele jamais foi repartido. Ou que defende que o “milagre econômico” não foi uma “religião” apenas para ricos e empresários. Ou que tem saudade do tempo “que era realmente seguro sair na rua”, esquecendo que jovens morriam, sumiam, eram despedaçados, queimados, apagados. Desprezam as grávidas que eram estupradas, levavam choques, perdiam seus bebês. Desdenham que jornalistas, artistas, amigos eram amarrados pelos pés, currados, espancados, afogados, eletrocutados.
Esses broncos e boçais que defendem a intervenção militar são nossos torturadores de toda uma vida. Quem não tem pelo menos um na família? Nos jantares em que não rimos das piadas sobre nossos defeitos, nos almoços em que ninguém falou de livros ou cinema ou viagens ou filosofia ou artes ou psicanálise ou música ou teatro (mas sim de como a fulana é vaca e o fulano é viado e a vizinha é sapata enrustida e a prima é obesa e o namorado da tia é um artista vagabundo), nas festas em que não sentimos nenhum conforto ao abraçar as pessoas, nos casamentos em que celebramos a falsidade, fomos torturados.
Ficamos loucos, inseguros, solitários, incapacitados de amar, dependentes de terapia, dependentes de antidepressivos e, ainda assim, nada disso se compara ao sofrimento de uma ditadura. São eles, os parentes ignorantes que nos aviltam com seus comentários, os torturadores do Brasil de hoje. Agora é torcer para que eles sejam o pior que pode nos acontecer.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo