quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Valeria Luiselli dá voz a crianças que entraram ilegalmente nos EUA


"Mãe, você conseguiu ajudar os meninos perdidos?".
Depois de um dia desgastante de trabalho voluntário, em Nova York, traduzindo respostas de dezenas de crianças imigrantes para que um grupo de advogados quem sabe ajudasse a salvá-las da deportação, a escritora mexicana Valeria Luiselli, 33, não tinha palavras para responder à pergunta da própria filha: "Não sei, eu só traduzo as respostas".
A menina de seis anos não se conformava, queria detalhes. Luiselli contava, então, algumas das histórias com as quais ia topando.
Uma delas deixou a filha obcecada. Era a de duas menininhas de uma aldeia da Guatemala, de 5 e 7 anos; indígenas, tinham o espanhol como segunda língua. Cruzaram a fronteira acompanhadas somente de um "coiote" —um atravessador de imigrantes ilegais— pago pela mãe, que havia se instalado nos EUA anos antes.
Angustiada com a possibilidade de perder as meninas no meio do caminho, a avó, com quem até então elas viviam na Guatemala, costurou nos vestidos das duas o número do telefone da mãe e deu apenas uma recomendação às netas: "Não tirem o vestido nunca, jamais, nem para tomar banho".
Esse e outros relatos estão no ensaio "Los Niños Perdidos" (Sexto Piso), que a autora de "A História dos Meus Dentes" (Alfaguara), um dos destaques da última Flip, lança agora em espanhol. O livro, com prefácio do jornalista Jon Lee Anderson, logo será traduzido para o inglês.
"Quando comecei esse trabalho voluntário, não tinha ideia de transformá-lo em um livro, mas depois pensei que, se minha experiência servisse para iluminar um pouco quem escreve para jornais, quem forma opiniões nos EUA, teria uma razão de existir, e por isso o fiz", conta.
O texto parte de uma viagem de Luiselli com o marido, o também escritor mexicano Álvaro Enrigue, e os filhos. Eles cruzaram o interior dos EUA enquanto esperavam que saísse o "green card" do casal —que há tempos já vivia e dava aulas em universidades norte-americanas.
No meio da viagem, começaram a ouvir a história dos mais de 200 mil menores desacompanhados que, naqueles 2014 e 2015, vinham atravessando a fronteira dos EUA.
"O bacana foi ver que, desde então, muita gente se mobilizou voluntariamente, advogados, gente querendo de fato ajudar", diz Luiselli, que acabou se juntando a eles.
"A parte ruim é que isso ocorreu já no meio da campanha eleitoral, e Donald Trump fez da imigração ilegal um inimigo a ser combatido."
 
QUESTIONÁRIO

O ensaio se estrutura em torno do questionário que Luiselli tinha de aplicar às crianças, em espanhol, e depois traduzir para o inglês.
Segundo o conteúdo das respostas, os advogados poderiam argumentar que as crianças não deveriam ser deportadas por correrem riscos ou por estarem abandonadas.
A lista de perguntas foi formulada para tentar indicar se os menores haviam sofrido abusos em seu país de origem ou se tinham sido atacadas nos EUA. Nesses casos, caberia um pedido de asilo. Qualquer outra alternativa levaria à deportação imediata.
A crise dos "meninos perdidos", para usar o termo criado pela filha de Luiselli, é apenas uma das facetas da terrível epidemia de violência pela qual passam os países do chamado Triângulo do Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras), no qual uma guerra de gangues vem causando violência e destruição.
Pais que enviam seus filhos ao Norte ou mandam busca-los, estando já nos EUA, são motivados pelo medo de que seus filhos sejam recrutados pelas facções criminosas.
O livro mescla um experimento de linguagem com crítica social. Por um lado, Luiselli joga com dois idiomas, o inglês e o espanhol, e quiçá um terceiro, a língua das crianças, uma vez que, em muitas ocasiões, tem de traduzir a linguagem burocrática e técnica dos advogados para que elas entendam.
Ao mesmo tempo, tem de se manter imparcial, não pode dar conselhos ou sugerir respostas. "Não me serviria também tentar arrancar histórias medonhas sobre o que sofreram no caminho se elas não queriam contar. Eu não sou psicóloga, não saberia lidar com aquilo."
Em pouco mais de cem páginas, a obra lança questões que serão cada vez mais atuais caso o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, queira de fato promover uma deportação em massa.
"Muitas dessas crianças buscavam pais e parentes também ilegais. Ao saber que eles tinham chegado, esses adultos se apresentaram, se registraram. Esse é um arquivo que Trump pode usar para deportar essas pessoas. É um perigo imenso", diz Luiselli.
O livro também mostra matizes da questão não aventados nas campanhas contra e pró imigração —como as que saltam da história do menino hondurenho Manu, que é retirado de seu país às pressas pela tia, que vive nos EUA, depois que uma das gangues mata seu melhor amigo.
Manu chega "com a picardia de um adolescente", sem a visão edulcorada dos "United" —como chamam o país.
Do subúrbio nova-iorquino em que vai viver enquanto espera o julgamento de sua causa, diz: "Isso aqui é igual a Tegucicalpa, tem gangues na escola e tudo". Luiselli passa a refletir, então, sobre a impropriedade do uso do termo "imigrante ilegal".
"O que temos é uma situação de refugiados, mas admitir que é uma guerra seria pedir que os governos tomassem outra postura diante do problema, que admitissem parte da responsabilidade, e talvez nenhum deles queira fazer isso nesse momento".
A boa notícia —uma das poucas que Luiselli teve, porque, no geral, perdeu a pista das crianças que entrevistou— é que Manu conseguiu regularizar sua situação. Hoje o menino vive na mesma vizinhança que ela e se engajou na ajuda aos imigrantes.
"É uma alegria no meio de muitas sagas que para mim ficaram em aberto para sempre", resume a autora.


Reportagem de Sylvia Colombo, na Folha de São Paulo

Resisto às labirintites da religião, mas a alma segue seu próprio caminho

Dentre as alegrias do cinema mudo, há quem se lembre dos "Keystone Cops", policiais amalucados que, a qualquer alarme, partiam correndo em todas as direções ou se apinhavam em calhambeques explosivos, para maior descrédito de sua autoridade.
Também os seguidores de são Francisco de Assis saem desabalados sem maior motivo no filme de Roberto Rossellini lançado há pouco na coleção de cinebiografias da Folha.
Começa a chover: peregrinando sem rumo, os fradezinhos pulam nas poças d'água como se fossem crianças. Chega a primavera, resolvem colher flores para enfeitar a mísera capela que construíram; espalham-se então com a pressa de quem vai apagar um incêndio.
São, todavia, amigos do fogo, que também brinca com eles. Exageram na quantidade de lenha utilizada em suas pobres atividades culinárias; o burel de um frade começa a queimar-se também. Não há porque reclamar disso, intervém são Francisco: o fogo é nosso irmão, "belo e jocundo, vigoroso e forte".
Passagem mais assustadora na vida do santo é comentada por Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). Com uma séria doença nos olhos, Francisco tem de cauterizá-los com um tição em brasa. Até nesse momento ele brinca: "Irmão fogo, Deus o fez belo, forte e útil; peço-lhe que seja gentil comigo".
O livro de Chesterton sobre são Francisco sai agora em nova tradução no Brasil, pela editora Mundaréu, e faz excelente companhia para o filme de Rossellini. Como sempre, o autor inglês não recua diante dos mais improváveis paradoxos e dedica o melhor de sua extraordinária inteligência para iluminar as simplicidades do santo.
Assim, no episódio da brasa aplicada ao olho, Chesterton assinala o quanto havia de irônico, e mesmo de cortês, na relação de são Francisco com o mundo real. Mesmo na máxima pobreza, são Francisco reteve alguns farrapos da vida de luxo que tivera na juventude.
É que não abandonou as maneiras da corte: pede licença, pede desculpas, faz reverências ao mais humilde animal.
A diferença, diz Chesterton, é que, se na corte existe um rei e cem cortesãos, na vida de são Francisco ele era um só cortesão circulando no meio de cem reis. Suas gentilezas com o fogo, a lua, a água ou os pássaros não representavam, entretanto, um mero "amor à natureza".
Bem ao contrário: a natureza, como entidade algo abstrata e sentimental, era coisa que ele desconhecia. Para Chesterton, o santo era precisamente alguém que via as árvores —cada árvore—, e não a floresta.
Donde, talvez, tanta correria, tanta pressa em chegar mais perto. Como na criança que não deixa nunca de perguntar, numa viagem, se "já estamos chegando", a pressa é elemento inseparável de todo espírito de entrega.
São Francisco saiu correndo atrás de um mendigo a quem não pôde atender no momento exato —e é essa celeridade, notada no começo do livro de Chesterton, que dá um tom de comédia, entretanto terna e serena, ao filme de Rossellini.
Dois dos seguidores de são Francisco são verdadeiros patetas. Jogam lenha na panela, por exemplo, em vez de jogá-la ao fogo; ou então cortam viva a perna de um porco, achando que seus gritos de dor são expressões de alegria por estar contribuindo para saciar a fome de alguém.
No filme, os franciscanos fazem jus ao título de "jograis de Cristo", ou, se quisermos traduzir, os saltimbancos, os comediantes de Cristo. Na cena final, todos devem separar-se para espalhar os ensinamentos do mestre. São Francisco manda que girem em círculos até ficarem tontos e que sigam o caminho que cada cabeça apontar no momento em que caírem no chão.
O mais tolo dos frades é o que mais tempo demora a sentir vertigem. Velho cabeça-dura, também resisto às labirintites da religião. Mas a alma, esta segue seu próprio caminho.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Abandono escolar de jovem tem custo igual a gasto do país com ensino médio

O trabalhador que tem ensino médio consegue renda bem maior do que aquele que para no fundamental.
Cada brasileiro que conclui todo o ciclo da educação básica acumula ao longo da vida, aproximadamente, R$ 15 mil (trazidos a valores de hoje) a mais do que seus pares que ficam para trás.
O problema é que, a cada ano no país, o número dos que não avança é enorme.
Cerca de 900 mil jovens de 17 anos —espantosos 25% do total— fogem do script todos os anos, pelas mais variadas razões, e não completam o ensino médio.
Se somarmos o que todos eles deixam de ganhar, temos que o custo privado total da evasão na última etapa do ensino básico é de quase R$ 14 bilhões por ano.
Os cálculos são do especialista Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper. E ele vai além.
Com base no que indicam pesquisas internacionais, Paes de Barros também estimou o chamado "custo social do abandono" no ensino médio.
O jovem que sai da escola prematuramente tem mais chance de se envolver com violência. O gasto público com um adolescente encarcerado é muito maior do que com um aluno de ensino médio.
Esse jovem tem maior probabilidade de usar drogas, o que pressiona as despesas com saúde pública.
Ele acaba pagando menos impostos. E assim por diante.
Tudo isso entra na conta do custo social do abandono escolar pelo jovem.
Segundo Paes de Barros, se a adição de todos esses fatores como percentual da nossa renda per capita for semelhante ao verificado em outros países, temos um prejuízo de cerca de R$ 35 bilhões por ano.
Somando, portanto, o custo do abandono escolar pelo jovem para as pessoas individualmente e para a sociedade como um todo, chegamos a um prejuízo de quase R$ 50 bilhões por ano no Brasil.
Paradoxalmente, esse é o valor que o setor público do país investe anualmente no ensino médio.
Ou seja, a mesma quantia que é gasta de um lado, é perdida de outro.
Esses números ajudam a dimensionar a gravidade e a urgência do tema no Brasil.
Temos demorado —e falhado— tanto que chegamos a um ponto em que precisamos entender melhor as causas do abandono e apontar soluções para saná-las ao mesmo tempo.
Em um estudo que está conduzindo, apoiado por Instituto Unibanco, Insper, Instituto Ayrton Senna e Fundação Brava, Paes de Barros tenta identificar o que está por trás da elevada evasão escolar no Brasil.
O objetivo da pesquisa, ainda em fase preliminar, é munir os gestores educacionais com evidências que ajudem a orientá-los sobre os caminhos mais eficazes.
Até agora, Paes de Barros e sua equipe identificaram 124 práticas pedagógicas distintas que vêm sendo aplicadas pelo Brasil afora no ensino médio.
É um sinal claro de que estamos atirando para todos os lados, com muito pouca evidência comprovada da eficácia do que está sendo feito nas escolas.
Isso ajuda a explicar por que temos falhado miseravelmente com nossos jovens e por que o custo dessa falha é tão alto para o país.


Texto de Érica Fraga, na Folha de São Paulo

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Louvado seja o mercado

"Incrível! Um verdadeiro Mussolini!" Sem ironia, soprou Alberto Moravia ao ouvido de Régis Debray. O italiano e o francês estavam na Praça da Revolução, em Havana. Era 1966. Só com o verbo, Fidel Castro mantinha 1 milhão de cubanos hipnotizados havia uma hora.
"Você está tirando um sarro", reagiu Debray, que achou a comparação de mau gosto. Italiano por italiano, disse, o certo seria aproximar Castro de Garibaldi. "Não, não, acredite em mim, você nem era nascido", insistiu o autor de "O Conformista".
Declarado persona non grata por Mussolini, Moravia mudara de nome para sobreviver ao fascismo. Foi castrista até morrer, depois da queda do Muro de Berlim. De há muito a esquerda europeia rompera com Cuba.
Debray esteve com Che Guevara na guerrilha na Bolívia, onde ficou preso durante quatro anos. Colaborou com Allende no Chile. Entrou com os sandinistas em Manágua para tomar o poder. Integrou o único governo socialista francês do pós-guerra, o de Mitterrand.
Afastou-se de Castro em 1989, quando o Líder Máximo encenou um enésimo tribunal stalinista, o affaire Ochoa. Debray se disse há pouco um "gaullista de esquerda" –o que não quer dizer nada, mas coroa um trajeto de nosso tempo, o de companheiro de viagem da revolução.
Em "Louvados Sejam Nossos Senhores", o seu cortante livro de memórias, ele reconhece que, naquele dia distante, Moravia achou "a chave do poder de sedução que a ilha oralizante e declamatória exercia sobre nossos espíritos progressistas".
O improviso e a teatralidade latina do Líder Máximo eram uma revolução retórica dentro da revolução real. A União Soviética se mantivera fiel a suas origens livrescas, racionalistas e filosofantes. Cuba contrapunha juventude e aventura à escolástica decrépita do socialismo à la Stalin. A revolução ficou pop.
Debray diz que Castro tinha "mentalidade narrativa, localista e anedótica". Não se ocupava de teoria, fugia do debate de ideias e não ouvia os adversários. Lia muito, mas só sobre história, pois era "obcecado com os historiadores do futuro e com sua imagem póstuma".
O homem do Livro era Che, que lera Conrad, Lorca e Cervantes na adolescência. Era médico e estudara economia; buscava embasar a política na ciência. Espírito aberto, chamou a Cuba o trotskista Mandel e o maoísta Bettelheim, além de Sartre e de Beauvoir. Discutiu com eles os rumos do socialismo.
Concluiu que, para salvá-lo da burocratização, era preciso internacionalizá-lo. Escorou-se no Debray de "Revolução Dentro da Revolução", teorização da experiência cubana que apostava em focos guerrilheiros rurais e escanteava os trabalhadores urbanos. Toda uma geração de revolucionários latino-americanos foi derrotada junto com Che.
Castro passou a apoiar mais e mais, e a se apoiar, na URSS, que morreu antes dele. Ironicamente, o seu internacionalismo, de vertente estatal e geopolítica, vingou: Angola, Namíbia e a África do Sul não teriam se libertado, nem o apartheid seria vencido, sem a intervenção cubana. Mandela repetiu até morrer que Castro era um grande herói africano.
A toupeira da revolução desceu ao inferno. O socialismo sumiu de vista. A política se tornou o ofício preferencial de patifes. A oralidade rebelde foi suplantada pelo marketing do conformismo. A juventude pop virou item de consumo. Submeteram-se todos ao verdadeiro Líder Máximo desse mundo maravilhoso, o mercado.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

Aldir Blanc leva mais de 20 anos escrevendo um romance policial

A Tijuca — terra que deu régua e compasso ao ex-ministro Marcelo Calero — cultiva mistérios. Os adúlteros do bairro tinham predileção pelo Bar das Pombas, na descida do Alto da Boa Vista, onde se encontravam à tarde para ouvir o barulhinho do rio Maracanã. O cartunista Jaguar, apreciador de Underberg, fabricado na região, jamais descobriu a receita da beberagem. O endereço do bordel das normalistas era segredo absoluto; nem do caderninho de Nelson Rodrigues constava.
O livro policial de Aldir Blanc é mais uma lenda da Tijuca. Dizem que, nas frias madrugadas, dá para ouvir o bater furioso nas teclas de uma velha máquina de escrever. "O homem está trabalhando...", sussurram os últimos notívagos da rua Garibaldi.
O certo é que Aldir, há mais de 20 anos, escreve e reescreve uma história sórdida, que continua apurando com escrivães de delegacia e fontes insuspeitadas. Do conteúdo, nada ou pouco se sabe. Apenas que um capítulo é destinado a destruir a reputação dos moradores do Grajaú. "Falsos moralistas", o autor deixou escapar em rara conversa de telefone.
Uma obra recém-lançada — "O Gabinete do Doutor Blanc", pela editora carioca Mórula, reunindo artigos sobre jazz e literatura — dá algumas pistas sobre o que vem por aí. Nela, Aldir elenca seus autores prediletos no gênero: Hammett, Chandler, Ross Macdonald, Vázquez Montalbán, James Ellroy, Lawrence Block, Henning Mankell e, não por último, Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Vai, Blanc, termina logo esse livro. Aproveita e bota na trama um deputado federal adepto do caixa dois, da lavagem de dinheiro, do peculato, e, claro, envolvido na Lava Jato e com o nome na lista da Odebrecht — mas que prega a anistia. E um presidente da República que age como zangão dos interesses privados de seus amigos no balcão de mamatas do PMDB.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita

A democracia liberal como a conhecemos é uma invenção que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos. Sua base de sobrevivência foi a capacidade em orientar a política em direção a uma espécie de "luta pela conquista do centro".
Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores da social-democracia e do dito Estado de bem-estar social europeu. Mesmo os partidos comunistas da Europa, fortes até o final dos anos 1970, operaram no interior dessa lógica. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo em vistas à liberalização da economia.
O primeiro tremor neste pacto se deu com a leva neoliberal de Thatcher e Reagan. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal de Franklin Roosevelt foi desmontado por meio de uma política de retração do Estado e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais.
No entanto, os anos 1990 pareciam inicialmente implicar certa retração do horizonte neoliberal com a ascensão do que se chamou à época de "onda rosa". Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, o novo centro de Gerhard Schröder e a volta dos democratas com Bill Clinton demonstraram outra coisa.
Na verdade, tratava-se de um alarme falso. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de certa forma, deveriam representá-la. A França de Lionel Jospin, com alguns tons de rosa mais vermelhos, foi apenas um ponto fora da curva, já que foi lá, em 1995, que ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado de bem-estar.
Essa conversão da "esquerda" à gestão de um neoliberalismo "com o rosto mais humano" era irreversível.
Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. Todos os atores políticos mundiais foram forçados a aplicar a mesma política de "austeridade", com suas contenções de gastos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável.
Nesse processo, os partidos de esquerda foram simplesmente dizimados, já que perderam de vez sua função de contraponto.
O resultado disso estamos vendo hoje. A ascensão de aberrações como Donald Trump, a protofascista Marine Le Pen, na França (em primeiro lugar nas pesquisas), e o Alternativa para a Alemanha, além da vitória do "brexit", são partes de um mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam a ausência de escolha dentro da democracia liberal.
Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, que seu acordo não existe mais. A crise econômica destruiu a democracia liberal e levou populações a irem em direção ao extremo em vez de aceitarem as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro.
Há uma certa ironia macabra nessa situação. Durante anos, a imprensa mundial tentou nos fazer acreditar que EUA e Inglaterra eram dois países que haviam deixado a crise econômica para trás com suas políticas de austeridade. No entanto, não é assim que pensam os próprios cidadãos desses países. Na verdade, eles escolheram discursos que insistiam na pauperização, na insegurança econômica, na precarização e no fim da globalização.
Daqui em diante, esta será a dinâmica política. Como não há mais acordo possível de conservação de conquistas sociais elementares, a política irá para os extremos. Só que, neste momento, a "esquerda" não consegue mais organizar um discurso de alternativa econômica. Em países como França e Alemanha (já que o SPD governa com a CDU há anos), foi ela que levou a cabo os choques de austeridade.
Nessa lógica, o único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita com sua mistura de discursos de proteção social e proteção paranoica contra tudo o que é tachado como "corpo estranho" no interior de um delírio identitário de vida social. Por isso, ela cresce vertiginosamente.
Qualquer um que tentar, mais uma vez, a lógica fracassada de conquista do centro tem seu lugar garantido no balcão de devoluções dos equívocos históricos.
Os tempos são outros.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Muito barulho por muito que está em jogo para a sociedade brasileira

A presença, terça feira, de Deltan Dallagnol na Comissão Especial que examina o projeto de lei relativo às "10 Medidas" proposto pelo Ministério Público Federal (MPF) com uso populista do instrumento de iniciativa popular, teve algo de grotesco. Estava o procurador cercado de militantes do sedizente "Movimento Brasil Livre" (mais conhecido como a turma do Quim Cataguiri, que esquece de ir às ruas para pedir a cabeça de Geddel Vieira Lima), a regozijar-se com sua popularidade, sob fortes holofotes da mídia.
Ingressei no MPF em 1987, época em que buscávamos nossa inserção na sociedade civil, mais ouvindo do que falando. Colegas participaram do Primeiro Encontro dos Povos da Floresta no Acre, outros se juntaram à Ação pela Cidadania liderada pelo saudoso Senador Severo Gomes e mais outros se articulavam com o movimento indigenista. Ninguém tentava impor agendas, buscávamos discretamente identificar demandas e usávamos nossas atribuições para vir em seu apoio.
Nosso perfil institucional era baixo. E entendíamos que era importante mantê-lo assim, para não desviar de nossos propósitos, na luta por um Brasil mais respeitador de direitos. Foi assim que a sociedade foi reconhecendo, aos poucos, a importância do ministério público nas agendas de direitos humanos, individuais e coletivos. De uma relação de desconfiança (não são evidentes virtudes de um órgão de estado vinculado à repressão), foi-se solidificando uma profícua parceria.
Na constituinte de 1987-1988, fomos festejados com entusiasmo por muitos parlamentares identificados com o esforço de democratização das relações sociais e logramos ser enormemente fortalecidos no nosso estatuto constitucional. Agora éramos erigidos à condição de instituição defensora da democracia e dos direitos fundamentais. Nunca houve na história do Brasil galardão maior para o ministério público. Mas, também, nunca tínhamos recebido responsabilidade mais grave do que essa e corresponder-lhe seria missão delicada. É mais fácil perder a confiança do que conquistá-la. Manter o baixo perfil, fugir do personalismo, cultivar autocontenção e ter mais ouvidos do que boca seriam condições fundamentais para preservar nosso papel no estado brasileiro.
Esse modelo de ministério público prevaleceu, pode-se se dizer a grosso modo, até o impeachment do presidente Collor de Mello. A visibilidade enorme que o lado punitivista das funções ministeriais recebeu então na mídia reforçou muito o prestígio da atuação em matéria criminal. Aliado a isso, atraiu muitos jovens que se miravam no exemplo dos procuradores sérios e "incorrompíveis". Esse perfil de jovem foi a clientela de inúmeros concursos desde então, com raras exceções, é claro.
Com o passar dos anos, assistimos ao crescimento da atuação criminal sobre a tutela coletiva. Cada vez mais, procuradores enfrentavam administradores e políticos, seja na persecução de crimes financeiros ou contra a administração, seja na propositura de ações de improbidade.
O modelo mais punitivista do que resolutivo da atuação do ministério público foi cristalizando mentalidade moralista na instituição, vendo-se, muitos procuradores, como vocacionados  a esgrimir a espada afiada da justiça. E, convenhamos, se dá Ibope, mais fácil é agir pelo viés da culpa, do que pelo viés da solução de problemas.
Paralelamente, o poder de fogo do ministério público lhe conferiu muito prestígio numa sociedade bombardeada por notícias interesseiras de malfeitos dos outros. Esse poder de fogo foi correspondido com o crescimento dos ganhos da categoria. Logo se verificou que, quanto mais risco se produzia, mais fácil a administração cedia aos reclamos de aumento de subsídios. Procuradores não precisaram jamais fazer greve, sempre foram atendidos com toda pompa em gabinetes parlamentares e governamentais.
Criou-se um ciclo vicioso na instituição, em que objetivos corporativos foram se mesclando com fins institucionais. A Força Tarefa da chamada Operação Lava Jato é o exemplo mais eloquente disso. Trata-se de iniciativa de jovens procuradores da república, embevecidos com seu poder de fogo e muito cúpidos em aparecer na mídia para posarem de bons moços, enfim, o "lado do bem". Esse marketing é essencial para alavancar a corporação para patamares mais altos de prestígio social e de reconhecimento como ativo essencial do estado, merecedor de maior investimento orçamentário.
Não é à toa que propostas de "combate" ao mal vêm acompanhadas de sugestões de incremento de meios financeiros através da apropriação de parte dos recursos desviados por ações criminosas, com escopo de destiná-la ao orçamento do ministério público. Por isso, também, a reação da Procuradoria-Geral da República à PEC 241 (PEC 55 no Senado) não foi de desafiar sua constitucionalidade por conta da inviabilização de direitos fundamentais e, sim, de fazê-lo por restringir sua iniciativa orçamentária: quando o pirão é pouco, o meu primeiro.
As chamadas "10 Medidas" são mais do mesmo: uma tentativa de sacrificar garantias fundamentais em nome do "combate" à corrupção. Como é feia essa expressão "combate", pois pressupõe uma "guerra", em que "os criminosos" são os "inimigos" - assim como qualquer um que ouse se opor a essa empreitada (esses são os "desonestos", na visão estreita do Procurador-Geral da República).
Desonesta é a iniciativa em si. Tomando forma de "iniciativa popular", dela nada tem. As propostas foram elaboradas por um seleto grupinho de procuradores vinculados à Operação Lava Jato, sem maior discussão interna. Foram abraçadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão  (órgão da cúpula institucional) e pelo próprio Procurador-Geral da República. O marketing das medidas foi feito no sítio oficial do MPF na rede mundial de computadores e vários veículos de serviço foram envelopados com a publicidade das medidas Brasil afora. Tudo com recursos públicos.
Colher 2.000.000 de assinaturas foi a parte mais fácil com esse apoio de campanha publicitária oficial e com o induzimento permanente, na opinião pública, de que o mal maior a "combater" no Brasil é a corrupção. O MPF é ator que carrega a maior responsabilidade pela disseminação da obsessão nacional pelo tema da corrupção, que conseguiu empurrar para o fundo do palco a luta por direitos, a luta pela inclusão, a luta contra a desigualdade social, esta sim, o maior problema brasileiro.
E o MPF não é um ator desinteressado nesse "combate" que estimula. Dele depende hoje a intangibilidade de seu perfil institucional (e corporativo) vigente, pois muitos outros atores políticos já se deram conta da disfuncionalidade desse "monstro" (apud Ministro José Paulo Sepulveda Pertence, procurador-geral à época da constituinte) em que o ministério público se transformou ao longo das últimas duas décadas. E só mantendo aceso o fogo do moralismo punitivista conseguem, os procuradores da república, afastar, hoje, qualquer iniciativa de redução de seu status e de mudança do regime de atuação do órgão.
O uso indevido da iniciativa popular como forma de apresentação das "10 Medidas" configura, em verdade, profunda deslealdade para com o legislativo. Quer-se submetê-lo à pressão do clamor das ruas, ferindo o princípio do convívio harmônico entre os poderes. O MPF teria meios mais idôneos para colocar em debate parlamentar propostas de controle da corrupção. Tem o Procurador-Geral da República iniciativa legislativa no que toca à atuação da instituição. Tem, ele, também, acesso permanente aos chefes de poderes para fazer suas propostas dentro de um quadro de cooperação. Então para quê essa iniciativa popular travestida? É porque a instituição ministerial não tem confiança e sabe que dela também deixou de gozar, na relação com os demais poderes, dada sua reiterada atuação conflitiva, com finalidade de reforçar sua musculatura reivindicativa.
Chegou a hora da verdade, quando a Câmara dos Deputados está a discutir o relatório do deputado Onyx Lorenzoni sobre as medidas. A presença de Deltan Dallagnol nesse teatro não significa nada de bom. É mais uma desaforada "pressãozinha" sobre a comissão especial, não tendo o membro do MPF sequer escrúpulos de se mostrar rodeado pelo que há de pior no cenário político brasileiro: os militantes celerados e seletivos do MBL, verdadeira "Sturmabteilung" (SA) formada pela oposição ao governo legítimo de Dilma Rousseff, para desestabilizá-lo e criar um ambiente de comoção social no País.
As medidas propostas, aliás, se coadunam  bem com esse espírito de "Sturmabteilung". Reforça-se na ordem jurídica brasileira o direito penal da pessoa, em contraposição ao direito penal dos fatos. Essa visão fascista da função punitiva do estado pressupõe que há pessoas mais ou menos inclinadas ao crime. E as que revelam essa inclinação não merecem outra coisa que serem expurgadas da comunidade sadia do povo: "ausgemerzt aus der gesunden Volksgemeinschaft", no melhor jargão nacional-socialista. Cria-se, assim, a figura essencial do inimigo do povo, bode expiatório necessário para mobilizar o ódio cego da coletividade e torná-la servil aos que querem conduzi-la para fora do "lamaçal" da política parlamentar e partidária. O que sobra depois é somente um líder "moral" autoproclamado que pretenda governar contra os direitos e sepultar a própria política.
Apenas para exemplificar, examinemos algumas das propostas, sem esforço de exauri-las, dados os naturais limites deste artigo.
Uma das medidas pretende tornar obrigatórios, no serviço público, os chamados "testes de integridade", verdadeiro ataque à dignidade humana. Servidores devem se submeter a situações simuladas, sem seu conhecimento, de tentativa de corrupção. Se o servidor falhar e aceitar a ilusória propina, será afastado do serviço público. Lembra-me a prática escravocrata de madames que querem testar a honestidade de suas criadas domésticas. Colocam um anel de ouro sobre a mesa para incitar a empregada ao furto e uma câmera escondida. Flagrada no "crime", a mesma é dispensada por justa causa! Ocorre que nenhum juiz do trabalho consciente sacramentaria essa prática degradante. E por que deveríamos tolera-lá no serviço público? Parece-me que o estado deve dar exemplo de integridade na relação de trabalho e não se portar como um escravocrata.
Outra medida trata da convalidação de prova ilícita colhida de "boa fé". Como em várias outras propostas, cuida-se de enfraquecer a defesa e de "turbinar" a acusação, de certa "meganhização" da persecução penal.
É importante lembrar que garantias processuais existem para estabelecer um contrapeso ao desproporcional poder do estado na contenda contra cidadãos individuais. Falar em paridade de armas no processo penal é um despropósito. A assimetria entre acusação e defesa é tamanha, que se impõe reforçar os direitos do imputado. A acusação, no Brasil, senta ao lado do juiz. Nos tribunais, ao lado do presidente. Com ele cochicha e depois participa do lanchinho dos magistrados, numa relação marcada por tapinhas nas costas. Os advogados não gozam desse privilégio. Submetem-se a horas de chá de cadeira, são muitas vezes recebidos sem qualquer interesse ou gentileza do magistrado, sobem à tribuna para defender seus constituintes e expõem suas teses orais enquanto os magistrados ficam ostensivamente batendo papo entre si.
Chega a ser um escárnio à cidadania querer, nesse contexto, facilitar ainda mais o trabalho da acusação. Antes de mais nada, cumpriria tirar o acusador do lado do juiz, fazê-lo subir à tribuna para se expor ao contraditório real de teses e vedar-lhe a frequência anti-republicana aos lanchinhos com tapinhas nas costas.
Os poderes investigatórios da acusação são quase ilimitados e frequentemente se nega à defesa o acesso pleno aos elementos de convicção colhidos. O mínimo que se deve exigir que esses elementos sejam arrecadados num quadro de indiscutível legalidade. Convalidar prova ilícita é abrir a caixa de Pandora para mais abuso, mais autoritarismo e menos direitos. Desequilibra fundamentalmente a relação processual.
O direito brasileiro, desde o processo contra Collor de Mello, no Supremo Tribunal Federal, se guia, na validação da prova, pelo princípio da árvore envenenada, de origem norte-americana. Todas as provas derivadas de prova ilícita são nulas, como a prova ilícita em si. É curioso que o ministério público em sua travestida iniciativa popular, se ampara, em algumas das medidas propostas, no direito comparado norte-americano, mas só no que facilita a acusação. Quando se tem instituto da mesma origem que protege os direitos da defesa, quer-se eliminá-lo na experiência brasileira. A esse tipo de oportunismo jurídico pode-se chamar de "law shopping" e consiste em se servir a gosto do vasto cardápio de institutos encontradiços no direito comparado, fora de seu contexto e isolados de seu sistema de compensações. O direito norte-americano pode dar enormes poderes às autoridades persecutórias, mas impõe-lhes gravames correspondentes. Optar por trazer ao direito brasileiro os poderes excepcionais sem esses gravames leva a uma situação absurda de desprezo a direitos e garantias processuais.
Nessa mesma linha também está a tentativa de se acabar com a prescrição retroativa. Cria-se com essa medida enorme zona de conforto para a acusação. A prescrição retroativa, aquela que extingue a punibilidade a partir da pena aplicada pelo juiz no caso concreto, incidindo sobre o prazo excessivo entre o fato e a denúncia ou entre esta e a condenação, foi estabelecida pela reforma do Código Penal de 1984. A intenção era claramente a de obrigar a acusação e o juízo criminal a agir com maior celeridade e eficiência, mormente num País onde a vasta maioria dos encarcerados está a aguardar ainda pelo início do processo ou por seu desfecho, isto é, não contam com uma sentença condenatória. A se por fim a esse tipo de prescrição, a tendência será o enorme aumento do número de detentos sem sentença no País e a maior demora na atuação da justiça criminal, tornando-a um cágado de ineficiência, mas, claro escondido por detrás do direito de o ministério público se haver com maior lentidão em detrimento da segurança jurídica dos imputados.
Só esses exemplos mostram a que vieram as "10 Medidas": tornar mais abusado quem abusa de nossos direitos. Sim, porque no Brasil, para ser acusado e preso, basta estar no lugar errado, na hora errada. Quem não deve, faz bem em temer tanto quanto quem deve, porque se você não deve, o ministério público pode dar um jeito de vir a dever.
Os procuradores da república são tudo menos salvadores duma sociedade corrompida. Não há razão para festejar Deltan Dallagnol ao se dispor, este, a colocar contra a parede o legislativo. O parlamento pode não ser santo (e de fato não é, como se constatou ao longo do golpe parlamentar contra a presidenta legítima e como se continua a constatar com a recente iniciativa de se auto-anistiarem, os parlamentares, por seus malfeitos no trato com recursos públicos), mas é nosso único instrumento para deter o crescimento da arbitrariedade policial-judicial-midiática no neste País e conter o leviatã do ministério público, que não cabe em si de tanto poder que acumulou ao longo dos anos de Força Tarefa da Operação Lava Jato e de omissões da cúpula do judiciário em por limites ao apetite populista de seus protagonistas.


Texto de Eugênio Aragão, no Jornal GGN

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Reclamações contra os impostos escondem interesses de classe

A sociedade não aguenta mais impostos: vejo a frase repetida diariamente pelos especialistas em política e economia, coisa que em absoluto não sou. Tira-se dessa constatação a consequência terrível: o único caminho é cortar, cortar mais, cortar sempre as despesas do Estado.
Não há dúvida de que cortes são necessários e possíveis. Uma conhecida conseguiu, nos seus tempos de estudante, vaga de estagiária numa grande empresa estatal de energia. Morava num dos Estados mais pobres do país.
Surpreendeu-se quando lhe mostraram a sala exclusiva de que dispunha para suas vagas atividades. A persiana era acionada por meio de controle remoto. Passado algum tempo para se habituar ao novo ambiente, ela perguntou o que teria de fazer.
O departamento estava em grande atividade. Preparava-se a festa de aniversário de uma colega. A decoração, o bolo, as bebidas e docinhos iam por conta de uma verba pública. A rotina, como a estagiária não demorou a perceber, repetia-se mais de uma vez por mês. Até mesmo a mãe de uma funcionária foi homenageada nesses eventos.
O exemplo é minúsculo, mas choca saber que a coisa acontecia num Estado paupérrimo, num cargo sem poder nenhum.
Acrescento que não tenho maiores restrições a propostas normalmente tachadas como "ultraliberais". A privatização da Petrobras não prejudicaria em nada, a meu ver, os ideais de igualdade e justiça social que gostaria de ver fortalecidos no país.
Dito isso, volto ao grande mantra: a sociedade não aguenta mais impostos.
A sentença é irresponsavelmente imprecisa. De que se está falando quando se fala em "sociedade"?
Dou um exemplo pessoal. Até 1995, eu pagava 35% de alíquota do Imposto de Renda. Não morri por causa disso. Veio o governo de são Fernando Henrique, e meu imposto –assim como o de qualquer pessoa da classe alta–baixou para 25%, subindo depois para os 27,5% em que se encontra até hoje.
No Chile, país menos "estatista" que o Brasil, a alíquota máxima é de 45%. Nos Estados Unidos, chega a perto de 40%.
Outro exemplo. Para toda palestra que me convidam, artigo que me encomendam ou coisa parecida, na hora do pagamento perguntam se eu tenho microempresa.
Por que haveria de ter? As pessoas se espantam: aí você paga muito menos imposto! É o que todo mundo faz! Sei bem do que se trata.
Em princípio, cobra-se pouco das microempresas porque isso seria uma forma de estimular o pequeno produtor, favorecendo afinal de contas a criação de empregos.
O fato é que não sou pequeno nem microempreendedor. Sou apenas uma pessoa física, e não contrato nenhum funcionário. Constituir-me em "pessoa jurídica", ainda que ato perfeitamente legal, nada mais me parece do que um subterfúgio, uma forma de evasão tributária.
Ai dos governos que quiserem acabar com essa mamata. Com todo o ódio que despertava entre os beneficiários do esquema, o PT não teve coragem de mexer nesse vespeiro.
A "sociedade" não aguenta mais impostos. Sim, se pensarmos no que se cobra a cada litro de gasolina ou a cada mísero casaco de lã. Não, quando se pensa que o Brasil, ao lado da Estônia e não sei mais quem, é um dos poucos países do mundo em que os ganhos de capital de uma pessoa física são isentos de imposto. O assalariado paga, o capitalista não.
Já que o atual governo não corre o risco de panelaços da classe alta, e já que está notoriamente afogado em dificuldades financeiras, bem que seria o momento de corrigir essa iniquidade. Ah, mas "a sociedade" não aceita.
Enquanto isso, vejo escolas em petição de miséria sendo ocupadas por estudantes enraivecidos, e policiais invadindo a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Registrou-se o caso de membros do Batalhão de Choque solidarizando-se com os invasores.
Corretos ou não esses protestos, e já digo que alguma mudança na previdência do funcionalismo público teria mesmo de ser discutida, uma coisa é inegável: quando "a sociedade" encontra dificuldades até em reprimi-los, é sinal de que também "não aguenta" a política proposta.
Uma greve total da polícia, de professores, de funcionários da saúde... Será que temos mais condições de aguentar uma situação dessas do que de aceitar um aumento dos impostos sobre os ricos?
Não é a sociedade que não aguenta. Os ricos é que não querem.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.  Grifos do blogueiro.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Salmos 115:1

Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Teu Nome dá glória, por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade.


O salmo completo em: https://www.bibliaonline.com.br/vc/sl/115
Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória, por amor de vossa misericórdia e fidelidade.
Salmos 115:1
Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória, por amor de vossa misericórdia e fidelidade.
Salmos 115:1
Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória, por amor de vossa misericórdia e fidelidade.
Salmos 115:1

Se computador de Deltan funcionar, PowerPoint de Temer se monta sozinho

As prisões de Sergio Cabral e Anthony Garotinho serviram como válvulas de escape para as frustrações da população do Rio de Janeiro com o ajuste fiscal em curso. Há uma sensação de que, se haverá cortes em serviços essenciais, salários e aposentadorias, ao menos os culpados pela crise foram presos.
A princípio, isso poderia jogar a favor do ajuste. Os cortes anunciados no Rio de Janeiro são duríssimos. A insatisfação popular é inevitável. Se a forma de expressão desse descontentamento for fazer festa pela prisão de políticos corruptos, o ajuste terá saído barato, do ponto de vista político.
Entretanto, há dois fatores que complicam esse cálculo.
Em primeiro lugar, as prisões podem reforçar a convicção popular de que o dinheiro acabou porque os políticos o meteram no bolso.
Essa é, no mínimo, uma análise bastante incompleta. Se ninguém tivesse roubado nada, os gastos do Estado do Rio de Janeiro ainda teriam subido demais, as isenções ainda teriam sido excessivas e o preço do petróleo ainda teria caído.
Mas a explicação é reconfortante: se tiver sido só roubalheira, nenhum grande ajuste é necessário. Em vez de Levy, Barbosa ou Meirelles, nos bastará Sergio Moro.
Em segundo lugar, as prisões só servirão como válvula de escape para a insatisfação com o ajuste enquanto os presos não forem as autoridades responsáveis pelos cortes.
Faça a lista dos políticos mais próximos a Temer. Cruze com os nomes mais cotados para aparecerem nas delações que já vêm vindo. Estão todos lá. Todos. Não, não tem nenhum fora. Se o computador do procurador Deltan Dallagnol estiver funcionando, o PowerPoint com Temer no meio se monta sozinho.
Como no caso de Lula, será besteira: ninguém é chefe da corrupção brasileira, um negócio que sempre resistiu bem às trocas de presidente. Mas quem aplaudiu o último show do PowerPoint não vai ter como reclamar do próximo.
E, enfim, o mesmo Congresso que deve aprovar as reformas, o mesmo Congresso que escolherá o sucessor de Temer em caso de cassação deve aprovar também uma anistia para si mesmo.
Até agora, Temer está dando uma aula de sobrevivência a Dilma Rousseff. Dilma caiu por não conseguir fazer o ajuste e por não ter conseguido parar a Lava Jato. Nos dois casos, cada um pode substituir "não conseguiu" por "não quis" conforme sua preferência partidária.
Ao fazer o ajuste econômico, Temer aumentou muito o preço de uma nova troca de presidente. Pouca gente se anima com a possibilidade de nova turbulência política justamente na hora em que a economia deve começar a melhorar.
E, se alguém duvida que o governo joga contra a Lava Jato, a nomeação de Romero "estancar a sangria" Jucá para líder no Senado fala por si mesma.
Mas a estratégia de fazer o ajuste e salvar os políticos será severamente testada nos próximos meses. As investigações da Lava Jato e o ajuste econômico são processos independentes, e foi um certo azar que acontecessem ao mesmo tempo. Mas o aperto de cintos gera um enorme apetite por bodes expiatórios, e as acusações de corrupção produzem ótimos candidatos para o papel. O pessoal não está gostando do ajuste, e está gostando de ver gente sendo presa. Não é uma combinação boa para o governo.


Texto de Celso Rocha de Barros, na Folha de São Paulo

Sonho dos gurus da tecnologia é fazer da humanidade um parque de idiotas

Uma das áreas em que modismos mais fazem estrago é a educação. Mas, quem pensa que esses modismos vêm apenas do universo da autoajuda para serem usados nas escolas, se engana. As bobagens também vêm de lugares onde se reúnem pessoas inteligentes e competitivas e visam a universidade. Há uma nova bobagem no mercado das modinhas: o idiota da singularidade. O que é isso? Já te explico.
Sou um animal da academia. Adoro seu cotidiano. Dar aulas, para mim, é um pequeno pedaço do paraíso. Sim, critico muito a academia porque ela virou, em grande parte, um espaço para gente fazer (apenas) ascensão social via manipulação dos colegiados a favor de grupos de poder institucional, portanto, um antro da mais baixa política (o PMDB é ingênuo se comparado às baixarias de muitos colegiados).
Isso para não falar na burocracia infinita a serviço de uma produção quase irrelevante em termos do que as pessoas reais buscam no conhecimento. Dito isso, vamos ao que interessa hoje.
A nova bobagem é bem chique. Vem do Vale do Silício e vem temperada no velho argumento de que a universidade como conhecemos acabou. Veja: claro que mudanças ocorrem. Da Idade Média para cá, a teologia perdeu seu lugar máximo para diversas formas de conhecimento. E a ideia, defendida pelos gurus do Vale do Silício, de que a universidade pode ser menos burocrática e voltada para a criatividade dos alunos e professores, não é seu grande problema. Na verdade, concordo com essa ideia. Estimular a criatividade e a ousadia é bom. A besteira vem depois.
A modinha para bobos é que os gurus da "singularidade" (como se autodefinem) querem destruir a universidade para reduzi-la a "mera" técnica. Segundo eles, a criatividade deve ter apenas oito focos em mente: alimentar toda a população do planeta, garantir o acesso a água potável, educação para todos, serviços básicos de saúde, energia sustentável, segurança, cuidado com o meio ambiente e acabar com a pobreza.
Depois disso tudo, seremos felizes em nossas gaiolas. O sonho desses gurus é fazer da humanidade um parque temático de idiotas alegres.
Ingênuos talvez não vejam o engodo de uma ideia como essa. Esses gurus nunca devem ter lido o "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley e, portanto, não sabem que a perfeição técnica é inimiga da humanidade.
Só iniciantes na inteligência, ou gente que quer destruir a capacidade humana de pensar, imaginam que reduzir a universidade a uma oficina para deixar o mundo limpinho seja uma ideia nova ou a função do pensamento na espécie.
Há 17 mil anos, em Lascaux, na França, homens de Cro-Magnon (sapiens como nós) pintaram imagens xamânicas em busca de entender a si mesmos e ao mundo para além da tinta que usavam para pintar essas imagens. Logo, o homem de Cro-Magnon estava à frente dos gurus da singularidade: para estes, as tintas são tudo que importa.
O filme "A Guerra do Fogo" (1981), de Jean-Jacques Annaud, mostra na sua cena final o casal principal após "vencer" a guerra do fogo na pré-história, sentados ao lado do fogo, ela grávida, e ambos contemplando a barriga dela, e a Lua brilhando na vastidão escura do céu.
Nossos idiotas da singularidade provavelmente acham que, colocando uma luz de xênon no universo, resolveriam a questão presente nessa cena. A questão é: quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Qual nossa relação com o universo? Mesmo se você é niilista, essas questões continuam existindo.
Claro que ciência e técnica são essenciais. O erro desses gurus é achar que o problema todo da humanidade se resolve com um empreiteiro competente.
Mas nem tudo está perdido. Um representante de outro gigante do conhecimento nos EUA, o reitor do MIT, Rafael Reif, defende a relação entre alta competitividade em formação tecnológica e as humanidades, justamente porque, segundo ele, é nesse encontro das duas grandes áreas que se produz o aluno que eles buscam: pessoas raras e inquietas.
Espero que, aqui no Brasil, nenhum "empreiteiro da educação" embarque nesse novo modismo e tente fazer das universidades empresas de faxina.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

sábado, 19 de novembro de 2016

No que mesmo você trabalha?

Já reparou como algumas pessoas têm empregos indecifráveis? Nunca entendi se elas simplesmente não fazem nada e enrolam com um papinho hipster confuso, se fazem algo moderno e/ou chique demais para minha idade e/ou limitação econômica ou se elas próprias não sabem o que fazem e, portanto, não conseguem explicar direito.
Quase sempre tem a ver com energia, tendência, consultoria, reposicionamento, eventos, big idea, coaching de alma, terapia do espírito, personal arrumador de gavetas de meia. Mas de quê? Pra quem? Onde? Que horas você sai da cama? Quem te paga? Que cazzo você faz exatamente da vida? O quê, por Deus, é um design thinker ou um trendhunter? Nunca saberemos.
Alguns dificultam tanto a descrição de seus afazeres que ganham uma importância descomunal. Uma amiga que mora em Barcelona tenta me explicar, há anos: "Eu conecto artisticamente pessoas de interesses similares em eventos virtuais com temas socioambientais patrocinados por empresas não governamentais que se utilizam ou não das peças criadas via redes sociais para fomentar a discussão política das pessoas não conectadas". Quando a visitei ela passava o dia combinando baladas e a noite curtindo as baladas.
Na fila do cinema, semana passada, um cara de uns 30 e muitos anos tentava convencer uma jovenzinha de 20 e poucos: "Eu trabalho com projetos". Ela insistiu: "Mas quais?". "Projetos artísticos". Ela não desistia: "Mas pra que área?". Ele suava, esmagava as sobrancelhas: "Para todas". A garota então pegou o celular na bolsa e, totalmente tomada por sua bolha narcísica (não à toa estamos tão ensimesmados, o outro não tem valido muito a pena), passou a ignorá-lo. Decidido a reverter o jogo, o "sem profissão" foi comprar duas águas e voltou contando "um dos meus projetos talvez seja contemplado". Ela apenas sorriu, prometendo a si mesma jamais entrar novamente no Tinder.
O site de um conhecido diz que ele é professor de expressão corporal focado em danças nativas, ator coadjuvante de uma websérie patrocinada por uma marca de antiácidos, escritor premiado no Festival de Contos de Terror de sua cidade, produtor de vídeo marketing, DJ, chef de cozinha e consultor de moda. Em suma: ele está desempregado desde que o conheço.
E o eterno intelectual "ainda não estou pronto"? Ele está no 20º mestrado ou jamais saiu da página 20 do seu livro. O pavor de expor seus buracos é tamanho que ele próprio faz morada quentinha no furo do seu discurso. Vai passar a vida achando que os amigos que ganham dinheiro são mais burros do que ele, afinal, se o cara estivesse lendo e se preparando, não estaria trabalhando. Talvez ganhe mil reais em algum prêmio super cabeça de literatura e fique incomodado com a fortuna. Se deu certo é porque ele não tentou o suficiente!
Outra coisa que não me conformo: a quantidade de militantes de redes sociais que não trabalham. Me fale, sinceramente, como você pretende ajudar a causa indígena se a cerveja da sua geladeira é a que sobrou da festa do seu amigo e você, na cara dura, trouxe umas pra casa? Miga, passar o dia no Facebook "lutando" por melhores salários e pagar as contas com a grana do (sugar) daddy não vale.
Tenho mais carinho pelos que desistiram de explicar o inexplicável e mandam na lata os clássicos "estou em período sabático para autoconhecimento (há 30 anos)", "eu sou feliz" ou "eu vivo a vida".


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Você tem medo de morrer?

Nos últimos 15 dias, peguei 12 voos. Não tenho problema em viajar de avião, ao contrário de muita gente que sua frio só de pensar. Sinto muito mais medo de ônibus. Sofri um acidente que matou três pessoas. Desde lá só de entrar em um o pânico me consome.
Mas dia desses, chegando ao Rio num voo supertranquilo, o avião já fazia aquela curva ao lado do Pão de Açúcar, aquela que parece que a aeronave vai encostar na água, quando o piloto arremeteu e foi lá para os lados de Niterói. E nada de ninguém falar o que havia acontecido. E os poucos passageiros com os pescoços espichados nas janelas.
Só uns cinco minutos depois, aqueles cinco minutos que podem durar uma maratona, soubemos que uma chuva tinha despencado de repente, com ventos de 70 km/h. Achei o piloto meio nervoso. Prolixo. Parecia querer explicar muito algo aparentemente simples. E o avião foi se afastando da costa, dando voltas. Só era possível ver mar e nuvens. Pronto. E se ele estiver sequestrando o avião? E se ele for um maluco que resolveu acabar com a vida e se atirar no mar?
O voo está vazio. Todo mundo sabe que avião vazio não cai. Tragédia mesmo é sempre com avião cheio. Eu tentava me acalmar, ocupando a cabeça com estatísticas elaboradas por mim mesma. Em vão. Pela primeira vez na vida senti o maior e mais absoluto cagaço. Desculpe o português, mas só isso descreve o tamanho do pavor.
Só o que me faltava, depois de velha ficar cagona. Tenho no meu currículo um salto de paraquedas, dois de asa-delta, dois de parapente, um revezamento de corrida de São Paulo ao Rio, além de outras "sandices", como se refere às minhas peripécias meu cardiologista.
O coração, aquele músculo involuntário, sempre aguentou firme todas as fortes emoções, incluindo homéricos pés na bunda, saldo negativo no banco, uma temporada de "Making a Murderer".
Nunca tive medo de morrer. Até a semana passada. Morrer passou a ser um problema. Como se não bastassem os que já tenho. A sensação da imortalidade era ainda um dos últimos resquícios da minha resistência à maturidade.
Tem uma explicação científica para todas as merdas que fazemos até os 25 anos. A gente não tem noção do perigo. A gente nunca acha que vai morrer seja dirigindo depois de beber ou usando heroína. A gente acha que pode tudo. Até o dia em que não saímos mais de casa sem um casaco com medo de ser atropelado e não acreditamos em mais ninguém.
O avião dando voltas sobre o mar e eu percebi que estava realmente preocupada com minha possível falta de futuro. Olhei a última mensagem trocada com meu marido, tão cheia de amor e sacanagem. Não, não posso morrer agora. A gente ainda quer se casar na Toscana, num fim de tarde, rodeados de poucos amigos queridos. Tudo bem, meu amor, pode ser em Bento Gonçalves.
Pensei nas coisas linda que comprei em Cartagena para arrumar uma mesa festiva com as cores da Colômbia e usar a panela de barro que o Marcos trouxe de Goiânia. Minha moqueca de camarão é um espetáculo. Se eu fosse você não perderia essa chance enquanto eu estiver viva.
Tenho textos para entregar, projetos para concluir. Logo agora que resolvi ser YouTuber. Não é hora. O livro, "deosdoceu", o livro. Já me pagaram o adiantamento e nada de eu entregar. Como vou explicar que dessa vez sai, se morrer agora?
Logo agora que faço o que gosto, que casei com o amor da minha vida, que adotei um gato. Prometi repetir uma viagem com minha mãe no ano que vem. Fazer uma festa escandalosa para comemorar meu aniversário. As férias estão pagas. Que desperdício.
Quarenta e cinco minutos depois, e quando eu já me preparava para começar a comer as unhas que ainda restavam, o piloto anuncia que o pouso estava próximo. Pensa que eu acreditei?



Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Carta a jovens policiais

Querido leitor desta, cuja vida ainda tens por viver. Quem te escreve traz uma vida a contar. O bom de nossas caminhadas humanas é que, em determinado momento, elas nos fazem carregar duas malas pesadas. Uma de acertos e vitórias, nem todas conscientes. Outra de erros e equívocos que, precisamos admitir, alguns talvez tenham sido até necessários, outros simplesmente abalizados por qualquer julgamento de instante. Ser humano é assim. Ser imperfeito.
Há um momento, entretanto, em que paramos à beira de nossa própria estrada, querendo ou não, e abrimos estas malas. Contemplamos o que dela salta: nossos passos, nossos pesos. E, quase em defesa de nós mesmos, pensamos no que pode ser deixado ali pelo caminho, antes de prosseguir. Aí descobrimos que nada é descartável. Nem o que não gostamos. O que foi feito está feito, está vivido e sentido, só resta transformar em lições. A grande sacada de nossas vidas: a possibilidade de aprender. E então ensinar.
Será sempre a primeira lição: ter cuidado. És único, sem superpoderes. Mas ninguém te tolerará imperfeito, ainda que continue humano. Terás poder sem ter poder algum, pois o que fizer ou cercear não será em teu nome, mas em nome de um povo. Terás que pensar por ele. Decidir e optar por ele. Matar ou morrer por ele. Quase sempre em átimos, cacos de instante. E por teus atos serás sempre e até severamente questionado por qualquer um que se sinta prejudicado ou ofendido, ainda que tenhas agido pleno de razão e apuro. Nem sempre a justiça dos homens é justa. E a divina te parecerá desatenta. No vão destas, um desejo quase incontrolável de justiça pelas próprias mãos arderá na alma inquieta. Eis o pior remédio.
Não te habitues à espera do elogio. Os beberrões amaldiçoarão tuas providências, mas culparão tua ausência pelas mortes na estrada. Os manifestantes jogarão pedras em ti, não nos governos que dizem combater. O traficante será denunciado pela mesma sociedade que aprecia suas drogas e as consome cada vez mais. Os que considerarão barbárie o ato do assaltante, mudarão de alvo caso a tua indignação deixe escapar um gesto a mais de raiva ao prendê-lo. E os que gritam contra a impunidade, ah, estes serão os mesmos a negociar contigo, entre sussurros, as multas de seu carro.
Só as crianças e as vítimas te olharão com algum sonho.
Outros, eleger-te-ão a imagem da injustiça. E a foto de quem bem sabes que a semeia, todos os dias, ao teu redor e ao redor de todos, feito uma serpente em seu bote, essa não te acompanhará. Levarás contigo um amor alvejado de ódios. Serás continuamente heroico, invariavelmente anônimo. Quase sempre invisível. Diariamente alvo.
E alguém te oferecerá vantagens. Lucro em tua própria ausência, ou glórias efêmeras, medalhas ou posições sob exemplos distorcidos. E te oferecerá valores que, talvez, quem deveria te dar já esqueceu.
Aí, verás se tua dignidade tem preço. Pois também há um preço no sustentar de tua família.
O que sai mais caro?
No compromisso que juraste, saberás quem paga a conta e quais são os caminhos de luta. Terás a chance da escolha. Pense no corpo que adoece e se entrega, ou resiste à chaga. Pois há alguém que leva teu amor, perto ou longe de ti, e este alguém está sob os cuidados de um colega teu. Que vive os mesmos dilemas. E que também fez as suas escolhas.
Ser policial é sacerdócio. Luta constante, quase injusta. Vocação. E jamais esqueça que há muitos sonhos de paz em jogo. Não ignores o teu coração logo agora.


Texto de Oscar Bessi, em seu blog, no Correio do Povo.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Vitória de Trump mostra cegueira seletiva das instituições

A vitória de Donald Trump teve o aspecto positivo de revelar para muita gente que estamos vivendo dentro de uma gigantesca "bolha" informacional. Várias pessoas nas redes sociais -logo após a vitória do magnata- afirmavam indignadas no dia seguinte que não conheciam uma pessoa sequer que tenha votado nele.
O que ninguém imaginava era o tamanho da bolha. A bolha de distorção da realidade não é mais só um fenômeno das redes sociais. A vitória de Trump demonstrou que ela engloba instituições inteiras: a imprensa, as universidades, as organizações não governamentais.
Nenhuma foi capaz de enxergar as condições que levaram ao resultado da eleição. A bolha engloba até mesmo os mercados. Nem as Bolsas de Valores nem as de apostas foram capazes de sinalizar minimamente o que estava prestes a acontecer.
O símbolo mais impressionante disso é o gráfico que mostrava até as 23h do dia 8 —quando a apuração já havia se iniciado— que a "chance de vitória" de Hillary Clinton permanecia em 80%, ante menos de 20% de Trump. Em três horas, esse gráfico, que vinha se mantendo no mesmo patamar havia meses, inverteu-se completamente.
Identificar quem está na bolha é fácil. Todo o mundo que acordou em 9 de novembro de 2017 se dizendo "surpreso" com a vitória de Trump está nela. O mesmo vale para quem afirmou que o resultado foi "inesperado".
A constatação do tamanho colossal da bolha é um chamado para a necessidade de reinventar todas as instituições acometidas de cegueira seletiva, a começar pela imprensa, pelas redes sociais e pelos partidos políticos. Operar sem considerar a integral complexidade do mundo tornou-se irresponsável e perigoso.
Outros fracassos vieram à tona. Um deles foi o fiasco dos sistemas de "big data" (ciência dos dados) para fins políticos. Desde a primeira eleição de Obama houve um investimento maciço nesse tipo de tecnologia por parte do Partido Democrata.
A ponto de que suas mensagens políticas começaram a ser personalizadas para cada eleitor, dependendo de suas preferências individuais. Já Trump não usou nada disso. Preocupou-se em construir uma mensagem única, baseada em sentimentos universais simplórios, como o medo.
Ao mesmo tempo, escolheu o Twitter —com seu limite de 140 caracteres— como principal canal editorial da campanha. A imprensa caiu no jogo. Qualquer tuíte mais desbocado do magnata era amplificado à enésima potência por jornais, revistas e TV. Esse baile entre Twitter e a imprensa foi um dos fatores que mais contribuíram para a disseminação da plataforma Trump.
Diante dos fatos, fica clara a necessidade de o próprio sistema democrático se reinventar. Nos EUA já surgiu campanha para eliminar o modelo de Colégio Eleitoral, que permite que um candidato ganhe com menos votos que o derrotado, como nesta eleição. Tudo isso vale para o Brasil. Nossos desafios são similares. A bolha está também entre nós.


Texto de Ronaldo Lemos, na Folha de São Paulo

sábado, 12 de novembro de 2016

Morre Robert Vaughn, ator da série 'O Agente da UNCLE', aos 83 anos

O ator norte-americano Robert Vaughn, mais conhecido por seu papel como Napoleon Solo na série televisiva de espionagem "O Agente da UNCLE", morreu nesta sexta-feira (11) de leucemia, anunciou seu empresário Matthew Sullivan.
Sullivan disse que Vaughn, 83, morreu no hospital, cercado por sua mulher e seus dois filhos. O ator estava recebendo tratamento para leucemia aguda, afirmou o porta-voz.
Vaughn contracenou com David McCallum na série, um programa que misturava comédia com drama e que fez sucesso no auge da Guerra Fria.
A produção, que foi exibida entre 1964 e 1968, originou diversos "spinoff" (programas derivados da mesma trama), incluindo "Está Sobrando um Espião" e "Desapareceu um Espião", que também contava com os dois atores no elenco.
Vaughn fez aparições em mais de 200 filmes e séries de TV ao longo de sua carreira, incluindo "The A-Team", uma versão televisiva do faroeste "Sete Homens E um Destino" e, em 2012, como um personagem da novela britânica "Coronation Street".


Reprodução da Folha de São Paulo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Fracasso civilizacional

Ainda não dá para cravar, mas tudo indica que há policiais envolvidos no assassinato dos cinco jovens paulistanos que estavam desaparecidos havia duas semanas. Não chega a ser surpresa. As polícias brasileiras são o retrato do fracasso civilizacional do país.
Como já escrevi aqui, a criação da polícia foi um dos passos mais decisivos para a humanidade. O surgimento de Estados fortes com suas milícias e o monopólio do uso da violência, no século 16, fez as taxas de homicídios despencarem para algo entre um décimo e um quinquagésimo dos valores anteriores. Mas, se a polícia é a conquista mais fundamental da civilização, o controle do aparato policial é sem sombra de dúvida a segunda mais importante. Nesta, o Brasil falha miseravelmente.
Dados do recém-divulgado 10º Anuário de Segurança Pública mostram que a taxa de letalidade das polícias brasileiras é de 1,6 óbito por 100 mil habitantes, o que é uma enormidade. Nos EUA, o mais violento dos países industrializados, esse índice é de 0,34, que já é incomparavelmente mais do que o 0,0034 da polícia finlandesa ou o 0,0016 da inglesa. Nossos agentes da lei matam mil vezes mais que seus homólogos britânicos.
É verdade que os policiais brasileiros também são assassinados em proporções muito maiores do que os de nações avançadas, o que os deixa visceralmente predispostos a puxar o gatilho. A questão é que cabe ao Estado adotar medidas que possam superar essa lógica de vendeta. Não tem conseguido fazê-lo.
No caso de São Paulo, que tem tido sucesso em reduzir de forma consistente os índices gerais de homicídio, a persistência da alta letalidade policial (1,9 por 100 mil em 2015) se torna ainda mais gritante.
Aqui não dá para exonerar o PSDB de culpa. O partido governa o Estado já há mais de 20 anos, tempo suficiente para trocar toda uma geração de agentes da lei, e não chegou nem perto de criar uma polícia civilizada.


Texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo

Um desmanche na privataria

O ministro Gilberto Kassab anunciou que o governo estuda a edição de uma medida provisória para intervir na Oi. Ela é a maior operadora de telefonia fixa do país, com 70 milhões de clientes em 25 Estados, deve R$ 65,4 bilhões e está com um pé na falência. Em 1998, quando foi arrematada por uma "telegangue" num memorável lance da privataria tucana, chamava-se Telemar.
Veio o comissariado petista, a operadora mudou de nome, chamou-se Oi, vulgo SuperTele, e foi uma das "campeãs nacionais" do BNDES de Lula. Na lona, deve R$ 9,5 bilhões aos bancos da Viúva.
Aos 18 anos, a Oi poderá voltar para o colo da Boa Senhora, embalada numa medida provisória que se destina a tapar os buracos abertos na privataria tucano-petista.
O que se cozinha no Planalto não é apenas a intervenção na Oi, mas um novo desenho para as negociações com os concessionários de serviços públicos. A fila é enorme, com seis aeroportos que não pagaram R$ 2,3 bilhões de aluguéis contratados, mais portos, rodovias e ferrovias que pretendem espichar os prazos das concessões, encolhendo suas obrigações contratuais.
Desde maio, quando começou a choradeira dos aeroportos, os empresários apresentaram argumentos estapafúrdios. Atribuíram seus maus resultados à crise econômica, como se retrações da demanda não fossem um risco do negócio.
Fariam melhor se olhassem para as relações incestuosas que mantinham com o governo petista quando ofereceram ágios milionários pelas concessões. A Odebrecht levou o Galeão; a OAS, Guarulhos; a UTC, Viracopos; a Engevix, Brasília. E todos acabaram em Curitiba.
Mal começou, o governo de Temer deu um refresco aos concessionários que não pagavam os aluguéis. Disse que eles deveriam pagar em dezembro. Era lorota.
Seja qual for o problema, seja qual for a concessão, o remédio é sempre o mesmo, vem aí uma medida provisória que se propõe milagrosa, mas produzirá a próxima rodada de ruínas. O programa do aeroporto que não paga o aluguel da concessão nada tem a ver com o de uma rodovia que pretende rediscutir seus investimentos ou com a ferrovia Transnordestina, com seus seis anos de atraso.
Assim como a Oi nasceu errada quando a "telegangue" arrematou a concessão, outras privatizações foram encrencadas por erros na arquitetura dos contratos, na concessão de financiamentos e, sobretudo, pelos contubérnios de empresários com os poderosos. Nesse hospital, o pior remédio é o da medida provisória milagrosa, enfeitada com expressões salvadoras. Fala-se, por exemplo, em "modernização dos contratos". A repórter Alexa Salomão mostrou o que há de moderno na iniciativa. Há dias, o artigo 26 dava à Agência Nacional de Aviação Civil o poder de "repactuar e realinhar o cronograma de pagamento da outorga" (leia-se aluguéis) dos aeroportos. Se há alguém interessado em atrair investidores sérios, é assim que se consegue espantá-los.
Temer e sua caravana mostram um certo fascínio pelas medidas provisórias. Com a "modernização" das privatizações, certamente mobilizarão o maior exército de jabutis já visto em Brasília. Passado algum tempo, quando as coisas começarem a dar errado, virá outra medida provisória com outro projeto de anistia para capilés de políticos.


Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Moro e Deltan revestiram loquacidade com exaltação apolítica do bem geral

Se antes faziam figura de paladinos silenciosos da Justiça, Sergio Moro e Deltan Dallagnol deram agora para falar. Eles revestiram a sua loquacidade com a exaltação apolítica do bem geral. Na verdade, respondem a dois fatos políticos concretos.
O primeiro: a delação da Odebrecht periga pegar na testa da burguesia. Ela irá escancarar que grandes empresários corromperam e nobres políticos foram corrompidos. Juntos, eles aparelharam o Planalto e o Congresso –e agora nos mandam trabalhar mais e ganhar menos.
O segundo fato: para proteger seu poder de mando, os beneficentes e beneficiários do caixa 2 urdem uma autoanistia geral e irrestrita. A articulação dos dois fatos abala o poder de Dellagnol e Moro.
Dallagnol defendeu, num artigo na Folha, que é um "disparate!" (com exclamação) dizer que a Lava Jato foi partidarizada. A resistência a punições, porém, surgiu só depois de Dilma ter sido afastada e Lula incriminado. A postura apolítica fica menos crível na boca Moro.
Afinal, o juiz ordenou a exposição, ilegal e fora do prazo que ele mesmo estipulara, de um telefonema da presidente. No plano jurídico, fez troça da presunção da inocência de Dilma. No político, inviabilizou que Lula fosse ministro. Sem o seu atropelo, a história teria sido outra.
Numa entrevista a Fausto Macedo e Ricardo Brandt ("Estadão", 6.nov), Moro fez política o tempo todo. Disse que tem poder –"o apoio da opinião pública tem sido essencial"– e defendeu que o Congresso aprove dez medidas específicas, além de pôr fim ao foro privilegiado de parlamentares e governantes.
Foi de um corporativismo que mal coube na palavra "muito". Teori Zavascki, que não o puniu por ter alardeado a gravação de Dilma, "tem feito um trabalho intenso, muito importante e relevante". O magistrado que Renan Calheiros chamou de "juizeco" é um "colega muito sério e competente". O projeto que pune abusos de juízes precisa ser "muito melhorado".
Tanto para ele como para Dallagnol, a corrupção é a serpente no paraíso. No seu artigo (escrito com o procurador Orlando Martello), Dallagnol sustenta que, se a corrupção sumir, surgirá "um Brasil competitivo, inovador, igualitário, democrático, republicano e, sobretudo, orgulhoso de si".
A única evidência que oferece para tal milagre é Hong Kong. Mas como ignora que a metrópole é uma região da China, e silencia sobre a sua história, o seu estatuto econômico, político e jurídico, chamando-a de "país", o seu vaticínio é vazio, senão ridículo.
Mais sinistro é o encerramento do seu sermão: "Parafraseando Martin Luther King, estamos rodeados da perversidade dos maus, mas o que mais tememos é o silêncio dos bons". Está-se de volta à concepção simplória da sociedade como palco da luta entre o Bem e o Mal; entre os bons da Lava Jato e os maus que não a apoiam.
A referência a Luther King é abusiva. O reverendo não escrevia sobre corrupção. Ele estava preso, no Alabama de 1963, por ter liderado marchas ilegais contra a segregação racial.
Seu texto, a Carta da Cadeia de Birghman, é um ataque eloquente a oito líderes religiosos que o acusavam de subversão, e defendiam –veja só– que o combate ao apartheid no Sul ficasse restrito aos tribunais.
É um documento da luta doída por direitos civis e políticos. Não é uma mistificação, moralista e autoelogiosa, de quem se acha –de quem acha que lidera uma santa cruzada.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo

domingo, 6 de novembro de 2016

Discípula de Ana C., escritora insiste no registro de sua vida

Discípula de Ana C., escritora insiste no registro de sua vida


FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É bem possível que Alice Sant'Anna seja quem mais racionalize e aplique, em sua poesia, as técnicas de despistamento e o intencional movimento pendular de confissão e ficção presentes na poesia de Ana Cristina Cesar.
Num ensaio recente sobre os rascunhos e originais que compuseram o livro "A Teus Pés", a aplicada discípula salienta, justamente, o "tom de segredo ao pé do ouvido", entre vários outros aspectos que caracterizam os poemas daquele livro de 1982.
Apropriação de versos alheios, citações disfarçadas, recurso ao palimpsesto, vampiragens (Alice Sant'Anna alerta: "ou homenagem, bem entendido") têm serventia para a constituição das falsas memórias, das criativas reinvenções de espaços e tempos que podem ou não terem existido, uma vez que toda memória é traição, toda biografia é recordação falseada.
A mesma fluidez enganosa das lembranças se reproduz na falta de distinção entre poema e prosa que caracteriza "Pé do Ouvido".
O longo poema de quase 50 páginas se divide em duas partes (a segunda, brevíssima) e flagra a poeta em constante movimento: "descer a brook street/ os sapatos novos/ reluzentes com sola de madeira/ que fazem barulho".
A partir daí, tem início uma série de justaposições e de interferências, que inserem blocos de mais poemas, com pensamentos, anotações, reparos, perguntas, observações díspares de quem se desloca: "se tivesse o corpo macio / faria a posição dos jogadores de beisebol / antes de arremessar a bola / talvez o beisebol tenha sido inventado / só para que esse movimento seja possível.
Dificilmente o poema abandonará esse padrão de inserir livres associações e alusões indecifráveis (mesmo porque o que está em foco é a história pessoal de uma "ela").
Obviamente, o leitor poderá discordar de partes autônomas do poema, a exemplo da afirmação pueril de que "na poesia japonesa quase não / se vê metáfora".
Um poeta como Hagiwara Sakutaro confrontou a tradição do simbolismo e assim escreveu sobre o mesmo barulho dos sapatos em "Uivando à Lua" (1917), com seu vigoroso controle das metáforas e expansivo coloquialismo.
Em "Pé do Ouvido", as menções à poesia japonesa estão distribuídas ao longo do poema, mas, ironicamente, não surgem dúvidas sobre uma palavra, um verso ou uma expressão naquela língua oriental.
Deslocando-se sempre, "ela" pode, no entanto, perguntar abruptamente questões de inglês, ecoando, de novo, Ana Cristina Cesar: "a diferença entre solitude / e loneliness qual é?".
"Pé do Ouvido", por suas características, mal se distingue da sensibilidade e do estilo de quem compôs "Rabo de Baleia" (2013), o livro anterior de Alice Sant'Anna.
Existe em "Pé do Ouvido" a mesma tendência ao registro que se manifesta, por exemplo, em "14, Dorchester Place". É o que eu agora denomino de aventuras planas, acúmulo de notações sem qualquer culminância.
Longos trechos de indubitável prosaísmo poderão surgir ("a bolinha que joga dentro da secadora/ é para evitar a eletricidade estática/ no frio as roupas dão choque/ a cortina o lençol até o carpete / dão choque/ nos fones uma voz feminina/ muito aguda"), mas a poeta segue célere na marcação diária da sua vida –, e o leitor, hipócrita ou não, que a siga até onde for possível.


Reprodução da Folha de São Paulo

Cotidiano tem ar medieval em novo livro de Fabrício Corsaletti

Cotidiano tem ar medieval em novo livro de Fabrício Corsaletti

A polícia de ponta-cabeça

Não é surpreendente o resultado da pesquisa realizada pelo Datafolha para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: além de temer criminosos (o Brasil tem um dos mais elevados índices de homicídio do planeta), a maioria da população (59%) tem medo de agressões da PM. O número cresce (67%) entre jovens de 16 a 24 anos.
A Polícia Civil, com a imagem historicamente comprometida pela corrupção, também gera medo em 53% dos entrevistados.
A PM é preparada para enfrentamentos. Trata todos como suspeitos. Quanto mais distante do olhar crítico da imprensa, quanto mais afastada do centro geográfico das grandes cidades, mais excessos, mais truculência. O país se acostumou e vê com certa naturalidade tiroteios, batidas indiscriminadas, humilhação e prisões para averiguação.
Outro resultado da pesquisa do Datafolha, aparentemente contraditório, ajuda a explicar o sentimento de insegurança: 57% dos entrevistados concordam com a frase "bandido bom é bandido morto". O número cresce em cidades menores e na população com menos escolaridade. Neste círculo perverso de violência, "bandidos" se confundem com "não bandidos" simplesmente porque se parecem com "bandidos".
Se o Brasil está cansado da impunidade, o que estimulou a festejada decisão do Supremo Tribunal Federal a favor da prisão do condenado após o julgamento de segunda instância (antes, portanto, do veredicto judicial definitivo), em relação a abusos de autoridade a intolerância deveria ser ainda mais drástica. Mas não é.
Policiais envolvidos em ocorrências graves não deveriam ser imediatamente afastados? Permanecem nas ruas. Para a pessoa comum, as corregedorias são escritórios de intimidação. No Judiciário, a palavra de policiais prevalece, quase sempre, quando há confronto de versões. No Parlamento, a bancada da bala se fortalece e defende interesses corporativos. A lei de abuso de autoridade do regime militar, ainda em vigor, é incapaz de punir as violações das liberdades constitucionais.
O número de mortos pelas polícias no Brasil em 2015 cresceu 6,3% em relação a 2014. Foram 3.345 mortos pelas forças de segurança, nove indivíduos por dia, a maior parte (45% dos casos) concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo. "Tenho ódio da polícia", diz a mãe de uma vítimaouvida pela reportagem da Folha.
A guinada do Brasil para a direita é componente novo. A Justiça da Infância e da Juventude de Brasília autorizou o uso de estratégias inusitadas para a desocupação de escola em Taguatinga, inspirada, talvez, em Guantánamo: privação do sono e da alimentação. É assim que se enfrenta movimento estudantil, certo ou errado, justo ou estúpido?
Em Santos, a PM interrompeu encenação de peça teatral ("Blitz - O império que nunca dorme"), algemou e prendeu um dos atores por considerar o espetáculo em praça pública uma "afronta" à corporação (os atores usavam fardas) e também pelo desrespeito a "símbolo nacional", a bandeira brasileira hasteada de ponta-cabeça.
Uma coisa nada tem a ver com a outra? Talvez. De ponta-cabeça está a polícia, que mata e assusta demais. Além do latente despreparo psicológico das tropas, a veia autoritária dos seus comandantes encontra mais espaço para prosperar.


Texto de Luís Francisco Carvalho Filho, na Folha de São Paulo

O barco

O mais importante é o cheiro. Não passa de um velho barco, descascado, cheio de rachas que deixam entrar água. Não é sólido nem belo, embora navegue bem: parece um ataúde desbotado, sem a parte de cima. Tem três bancos, sendo que o da popa é móvel, podendo ser removido para a colocação de um motor. Não passa de uma tábua encaixada nas laterais do barco. Parece um embrião e uma ruína. Mas há o cheiro. Cheiro de marés, areias molhadas, ventos e ondas.
Foi numa tarde que decidi comprá-lo. Indicaram-me os barcos aportados no canal, eram pesados e enormes. Não me serviam. Num bar onde fui tomar um trago, ouvi dizer que, próximo ao Forte, na enseada que marca o fim da praia, vendiam barcos:
—Procure o Vavá. Ele tem o que o senhor deseja.
Aproveitavam o cair da tarde para jogar suas redes. Um velho pescador, apoiado numa canoa em escombros, apontou em direção ao largo:
— Ele está ali, jogando a rede, depois daquelas pedras.
— Demora muito?
—Não. Deve estar de volta, por causa da maré.
Caminhei pela areia áspera. Ali funcionava uma colônia de pescadores, a praia estava cheia de detritos, pedaços de redes e barcos que haviam entrado em decomposição. Sentei-me para esperar.
Vi a silhueta de um barco surgindo das pedras que formavam uma espécie de ilha à minha frente. Os remos eram suspensos com cansaço. O remador procurava cortar a correnteza. Teria de vencer o canal, estreito, e logo entraria no remanso das águas que o trariam de volta.
O pescador apontou:
–Ai vem o Vavá.
À distância, o barco parecia uma tábua perdida, resto de naufrágio. Só parecia barco quando os remos faziam brilhar, ao sol da tarde, as suas pás encharcadas. Bem, aí tenho o meu barco.
Angela vinha vindo, trazida pela tarde. Apertou-me a mão.
— Como é bonito!


Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo