sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Não seria mais honesta uma educação que credita ao desejo o erro inevitável?

"Invasões Bárbaras" é, entre outras coisas, o nome de um filme do cineasta canadense Denys Arcand.
Nele, vemos uma singular história de reconciliação entre pai e filho. No momento final de sua doença e morte, um professor universitário, interpretado por Rémy Girard, procura se reaproximar de seus amigos e filho.
Rémy fora um professor que vivera o maio de 1968, a liberação posterior de costumes, que tivera sonhos de revolucionar a vida e o mundo, mas que, ao final, percebe quão pouco realmente realizou.
Seu tom é melancólico, baseado nas frases que versam sobre "o que poderia ter sido".
Sébastien é o nome de seu filho, com o qual ele tem poucas relações. Uma das razões da distância é a diferença em seus modos de vida.
Contrariamente ao pai, Sébastien é alguém que soube se integrar com sucesso. Alto funcionário de uma companhia que vende petróleo, noivo de um mulher pronta para ser a esposa perfeita, ele vê a vida errática e excessiva do pai como uma inadaptação infantil.
Os papéis tradicionais parecem estar trocados nesta narrativa em que as instâncias normativas estão nas gerações mais jovens. O filme será então a história de uma aproximação, mas uma aproximação que, à sua maneira, fornece uma resposta possível à questão sobre o que ainda pode ser um pai.
A esse respeito, se me permitirem o uso da primeira pessoa, lembro-me de conhecer um jovem que acabara de ser pai, no Cairo. Sabendo que eu tinha uma filha, ele se pôs a falar de como imaginava educar seu filho nos mínimos detalhes, procurando controlar e selecionar aquilo que julgava ser formador ou não.
Ele imaginava um espaço irretocável de educação. A minha única pergunta foi: "Mas o que você fará com seus erros?".
Os "erros" em questão não se referiam apenas às escolhas erradas, mas principalmente às errâncias, ou seja, aos momentos em que, por confusão ou cegueira, nós mesmos acabamos traindo o que não deveria ser traído, não somos dignos do lugar que ocupávamos, do amor que recebemos.
Errâncias estas motivadas por cálculos errados, por sintomas e divisões com os quais nunca soubemos lidar, por crenças que depois se demonstrarão ilusórias.
Não seria uma educação mais honesta aquela que faz sujeitos perceberem que o desejo nos leva, muitas vezes, a entrar em errâncias que são inevitáveis, que nos leva a lidar com um campo confuso com o qual, muitas vezes, falhamos constantemente em lidar?
Houve época em que os pais acreditavam que deveriam aparecer aos filhos como força disciplinar e sublimada. Um esteio positivo de identificação. Eles tinham então que lidar com as resistências à adaptação, com a experiência de repressão da qual eram veículos.
Mas talvez mais difícil do que isso é aparecer como aquele que mostra como há um campo de insegurança na vida assim que nos perguntamos sobre o desejo. Um campo que certamente nos levará a errar quando procuramos interpretar a injunção moral de não ceder em seu desejo. Este reconhecimento pode ser o embrião para uma forma outra de solidariedade.
Em "Invasões Bárbaras", a aproximação entre pai e filho se dá quando o filho entra em dúvida a respeito de suas escolhas, ou seja, quando sua integração perfeita parece a ponto de entrar em colapso.
Pois talvez nesse momento ele possa desenvolver alguma forma de solidariedade com os que tropeçam e caem, reconhecer a humanidade dos que se confundem. Não para repetir os impasses do pai, mas para ser capaz de separar a intenção da realização, a inquietude do limite e, assim, traçar um outro caminho.
Um caminho que, como sempre, será a ressonância dos caminhos que nos constituíram, da história dos desejos desejados antes de nós, mas que podem encontrar uma forma mais refletida e menos dolorosa.
Que seja o pai o veículo de tal reconhecimento, eis algo que não seria sem relações com uma certa curiosidade bibliográfica de um dos filósofos que nos aparece com o esteio da razão moderna, a saber, Descartes. Em dado momento, Descartes declara ter se apaixonado na juventude por uma garota manca.
Lembro-me de um professor que se servia disso para dizer que, no fundo, Descartes nunca deixara de tentar lidar com o que manca, com os fundamentos que, mesmo nos sustentando, têm sempre algo que manca. Pois esta era, afinal, uma astúcia da razão: nos fazer amar o que manca.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Triste Brasil

O IBGE entregou o jogo: um em cada quatro brasileiros vive na miséria. Dá em torno de 50 milhões de pessoas. Dá quantos países europeus? Três quartos dos miseráveis brasileiros são negros ou pardos. Mais de 13 milhões vivem abaixo da linha da miséria. Chafurdam. Pode um país dar certo assim? Claro que não. Nem sonhando. Falemos claramente: a elite brasileira é burra, insensível, cínica e ultraconservadora. Nada faz para mudar essa situação. Só pensa em manter o seu quartel. Acha que se resolve desigualdade com repressão.
Sejamos ainda mais diretos: O Brasil é racista até a medula. Ponto.
Uma das mais contundentes expressões do irrealismo brasileiro é dizer que a população não bate panelas contra Michel Temer por estar cansada, desiludida, anestesiada. As panelas não batem porque a corrupção do governo Temer não incomoda tanto quanto incomodava a do PT. No Brasil, até a corrupção é seletiva. Tem corrupção e corrupção. O corrupto chega nas altas instâncias e diz: “Você sabe com que ladrão está falando? E sai voando. Com Temer a turma dos camarotes vai se ajeitar nas poltronas de grife e continuar assistindo ao triste espetáculo da miséria nacional. Que importa a esse pessoal sofisticado se negros patinam na pobreza? Temer é herói nacional para o mercado, que ansiava pela reforma trabalhista, mesmo se ela está produzindo demissões em cascata em alguns setores. Era esse mesmo o objetivo.
Outra pesquisa, comandada pelo economista francês Thomas Piketty, mostra que o Brasil é o primeiro país do mundo em crescimento da desigualdade, o que mais concentra riqueza no 1% mais rico. O Brasil é uma máquina de perversidade, injustiça, crueldade e exclusão. A elite viaja de primeira classe ou de classe executiva e se encanta com o mundo desenvolvido, chegando a cometer a excentricidade de andar de metrô nas capitais europeias, mas não quer pagar o preço para ter em casa a qualidade de vida do chamado primeiro mundo. Quer ter padrão sueco pagando menos impostos e mantendo o nível escravista de desigualdade. Por aqui, deputado que defende ladrão público e notório é recompensado com cargo de ministro. Somos um lugar muito especial.
A corrupção é um grave problema brasileiro. Uma chaga. Um câncer. Maldita sina de uma nação com políticos e empresários desonestos. Mas a corrupção não é o nosso maior problema. A violência é outro problema gravíssimo. Apesar de devastadora, a violência tampouco é o nosso maior gargalo. Qual é então o nosso maior problema? A desigualdade. Tudo vem dela: incapacidade de controlar a corrupção, violência, miséria, subdesenvolvimento, jeitinho, cinismo e golpismo. A reforma da Previdência vai tirar milhões da miséria? Recebe visita do Papai Noel quem acredita nisso. O problema do Brasil também não é o populismo. É o elitismo. Temos uma elite do século XIX, pré-abolição, ociosa e convencida de que escraviza pelo bem do escravizado. Simples.

Do blog do Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Tipo assim, energia, meu

Escrevo para pedir sua ajuda. Sou uma mulher de quase 40 anos, suficientemente cínica e com ojeriza a papinhos furados recheados de frases feitas ou expressões que jovens muito felizes e gritantes usariam em um luau. No entanto, sofro de incontrolável apego à palavra "energia". Lanço-a por aí em almoços informais, reuniões de trabalho e feiras literárias. Depois me contorço em autodescaso. Sou uma farsa! Faço minha carinha de empáfia pra distrair as pessoas da obviedade de que sou uma idiota, mas me desnudo no exato segundo em que, sem controle, entregue ao vício, menciono a palavra energia, querendo alcançar o rabo de alguma metafísica chula trazida por um reles ventinho de fim de tarde.
Cometo tal futilidade sempre que quero ir além da minha ladainha autocentrada e abraçar sentimentos muito profundos, curiosos e misteriosos. Infelizmente, "Não sou religiosa, mas acredito numa energia boa que chamo de Deus" virou frase de lanchonete de academia. Virou frase de blogueira especializada em blush cor de bronzeado mediterrâneo. Mas, poxa, eu talvez tenha inventado esse pensamento. Eu era feliz em tê-lo na minha lista de conclusões especiais. Quando pensei isso, na infância, me achei realmente esperta. Desde então chamo de fé essa coisinha bacana, essa vibe boa... essa energia do bem. Socorro! Pareço uma anta filosofando numa doceria de shopping. Enfim, ou você me ensina um substituto cabeça, um sinônimo mais aceito nas rodinhas intelectuais, ou minha carreira estará acabada!
Outro exemplo: pessoas que nos tratam super bem, são queridas, bem intencionadas, mas quando chegam perto, é como se os pontinhos de arrepios de nossa pele fossem milhares de plantinhas floridas e microscópicas que inflam em pavor, infartam, secam e se esvaem em súbita e prematura morte. A gente sente a paulada atrás do joelho, percebe a aura cor de céu do último dia do universo. É a energia da pessoa que, putz, cara, é bem barra pesada.
Já outros coleguinhas nem vão com nossa cara, tão sempre lidando com a realidade com a feição simpaticíssima de quem acabou de cheirar um sachê de bosta. A ruguinha eterna abaixo da boca desenhada pelo constante nojinho por outrem. Mas, vai entender, rola um oxigênio queridão quando ele aparece. Se bobs, rola até um tesãozinho.
Nunca vou esquecer quando, na longínqua época que eu ia a festas que não estava a fim de ir, fui a um aniversário no Baixo Augusta. Antes que eu saísse, meu perfume novinho explodiu, espalhando uma indecente quantidade de dólares pelo banheiro. Na hora pensei "energia ruim, não saia de casa". No caminho, me perdi, a rádio só tocava musica triste, meu celular apagou e nem estava sem bateria. Cheguei no bar e minha pressão caiu, eu não parava de bocejar, minha nuca parecia pesar mil quilos. Não suportei mais e saí correndo. No dia seguinte, amigos me contaram que o lugar foi assaltado e teve choradeira, polícia, troca de tiros. Passei os dez anos seguintes dizendo a todos que eu transo um lance fortíssimo com a "energia dos lugares". Quem vai discordar?
Preciso dar um basta nisso. Já lancei livro por editora de respeito, a última reforma da minha casa me alçou ao patamar dos adultos com bom gosto e, semana passada, até o canal Arte 1 quis falar comigo. Resumindo: rolou pra mim, galera. Não posso estragar tudo agora, apenas porque sou uma junkie verbal, uma adicta, uma dependente. Conto com você.


Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

A guerra civil como forma de governo

Há dias um juiz negou o pedido de uma ex-funcionária do banco Itaú para processar seu antigo empregador por fazê-la trabalhar em horas extras não pagas, além de praticar assédio, obrigá-la a acúmulo de função e desrespeitar outros direitos trabalhistas elementares.
No entanto, baseado na nova lei trabalhista, o juiz em questão resolveu obrigar a trabalhadora a pagar os custos dos advogados do banco, ou seja, R$ 67 mil. Ele deve esperar, com isto, criar uma jurisprudência que desestimule de vez trabalhadores a acreditar terem o direito de usar a Justiça para se defender de seus empregadores.
Na mesma semana que ficamos sabendo desta nova modalidade de Justiça, uma das maiores empresas nacionais de expropriação de alunos, uma empresa que não teme macular o termo "universidade", demitiu sumariamente 1.200 professores. Sem se preocupar minimamente com o impacto de tal decisão no ensino oferecido aos alunos, nas pesquisas desenvolvidas e orientações, a dita empresa de expropriação estudantil espera aproveitar-se das nova legislação trabalhista para oferecer salários ainda mais aviltantes a professores atemorizados em regime precário.
Esses dois fatos não são fenômenos isolados, mas expressam de forma cristalina a razão pela qual atualmente existe governo no Brasil.
Há governo no Brasil para levar ao extremo uma guerra civil não declarada contra aqueles que vivem de salários, para submetê-los a um regime de medo e insegurança social absoluta a fim de quebrar qualquer ímpeto possível de mudança nos padrões de circulação do dinheiro e das riquezas. Por isto, o paradigma para entender o Brasil atual não é o paradigma do governo, mas o paradigma da guerra.
Ele começou com o uso da instabilidade política para insuflar a crise econômica por meio de pautas-bombas no Congresso, de assalto aos cofres públicos por meio de aumentos aviltantes ao Poder Judiciário, de queda completa da credibilidade internacional do Brasil por meio de um governo de presidentes indiciados. Uma crise do tamanho da que vemos atualmente não foi resultado apenas de descaminhos econômicos. Colaborou de forma decisiva uma dose maciça de produção política. Pois em situação de crise, o paradigma da guerra civil pode reinar.
Mas para que esta guerra avance a ponto de levar a população à capitulação faz-se necessário o golpe final da reforma previdenciária, que deve ser dado na semana que vem. É digno de um cinismo diabólico ver a casta de privilegiados que passa incólume da crise econômica atual (representantes do sistema bancário-financeiro, grandes empresários, políticos com aposentadorias garantidas, juízes) tentar vender à população a necessidade de destruir o sistema previdenciário brasileiro sob a capa exatamente do "combate aos privilégios".
A não ser que, de agora em diante, o simples ato de aposentar-se seja descrito, na novilíngua neoliberal, como "privilégio".
No entanto, "privilégio" não foi o termo usado para a decisão da Câmara de conceder isenção fiscal a gigantes petrolíferos que explorarão o pré-sal (MP 795/2017) impondo perdas de até R$ 1 trilhão em 25 anos. O governo aponta que tal isenção gerará bilhões para o país.
Deve ser um processo de geração da mesma natureza dos empregos que o mesmo governo prometia com a aprovação da reforma trabalhista. Algo cuja existência é da mesma ordem do círculo quadrado, do unicórnio e da honestidade do presidente Michel Temer. Se democracia houvesse em nossas terras, o fato de a maioria esmagadora da população preferir candidatos fora do horizonte de sustentação do "governo" atual seria elemento fundamental impedir sua guerra travestida de política econômica.
Como democracia aqui é só uma fachada já bastante puída e degradada, o "governo" de menor aprovação popular do mundo, que inveja até mesmo os índices de aprovação de Nicolás Maduro, pode usar todo seu aparato jurídico-policial para quebrar o ímpeto de defesa da classe trabalhadora. O que passa por prisões arbitrárias, "condições coercitivas" surreais, multas milionárias para sindicatos que procuram exercer o direito de greve, ameaças de golpe militar, entre outros.
Melhor seria que a população brasileira entendesse de vez que estamos em uma forma de guerra civil de baixo impacto no qual Estado brasileiro mostra claramente sua face de instância beligerante.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

sábado, 16 de dezembro de 2017

Nas redes, ninguém tem a menor chance de convencer ninguém

É bem possível que você tenha lido "O Código da Vinci", de Dan Brown. Em 2015, o livro (que é de 2003) tinha vendido mais de 80 milhões de exemplares mundo afora e estava entre as obras literárias mais vendidas de todos os tempos.
Também é possível que você tenha visto o filme homônimo, de Ron Howard, com Tom Hanks no papel de R. Langdon, professor de "simbologia" (disciplina que não existe) na Universidade Harvard.
Ainda hoje, em Milão, é impossível visitar a "Última Ceia" sem que haja um turista tentando confirmar a interpretação do afresco proposta no livro e, no fundo, convencido que há, sim, um complô da Igreja para esconder que Jesus tinha se casado e tido filhos com Maria Madalena, sua discípula preferida.
Dan Brown acredita firme no poder da razão e das palavras –talvez essa seja uma das razões de seu sucesso. Ele acredita que o saber de Langdon pode resolver qualquer enigma. E, mais importante, ele acredita que a revelação de um segredo poderia mudar o mundo.
No "Código", há religiosos dispostos a matar para que não seja revelado o segredo do amor de Cristo por Madalena. Ora, essa revelação, no máximo, forçaria a Igreja a ordenar mulheres e a acabar com o celibato dos padres. Mas será que ela abalaria mesmo a fé de alguém?
No novo livro de Dan Brown, "Origem", ed. Arqueiro (menciono a premissa da história, sem spoilers), um cientista fará uma revelação incontestável que, se não for impedida, acabará com qualquer fé religiosa.
Adoraria acreditar, como Dan Brown, que uma argumentação correta e sustentada por provas válidas seria suficiente para dissipar erros e crenças. Mas não é o que ocorre. Abandonar uma crença, por mais que ela se revele errada, é dificílimo. Talvez os argumentos apresentados sejam sempre insuficientes. Mas o mais provável é que a gente seja fundamentalmente impermeável a argumentos racionais, sobretudo na hora de criticar nossas próprias crenças.
Esse fenômeno tem nome: viés de crença. Sobretudo desde os anos 1990, inúmeras pesquisas verificaram que nossa relação intuitiva e imediata com uma crença é, em geral, muito mais forte do que os argumentos que podem contestá-la.
A experiência clássica consiste em mostrar, aos indivíduos testados, silogismos em que os argumentos iniciais são inválidos, mas a conclusão é uma ideia na qual é fácil acreditar ou, então, silogismos em que argumentos obviamente válidos levam a conclusões nas quais os indivíduos não acreditam etc.
Em geral, descobre-se que os argumentos, mesmo válidos, contam menos do que as crenças. De onde será que nasceu nossa confiança milenária na razão? E o que é que parece nos tornar sempre crédulos?
Deixo as perguntas de lado (momentaneamente), para acrescentar que o viés de crença cresce enormemente com as redes sociais. Por quê?
Numa pesquisa de 2009, Jonathan Evans e outros mostraram que, na nossa preferência pelas crenças mesmo contra argumentos válidos, um dos fatores cruciais é o tempo. Quando falta o tempo de pesar e meditar os argumentos, os indivíduos preferem recorrer a suas crenças, que estão sempre disponíveis imediatamente.
Uma diferença de minutos, se não de segundos, pode ter consequências significativas. E estou pensando numa diferença de tempo específica: a diferença entre o tempo de postar um comentário imediato e o tempo de procurar caneta e papel, para escrever uma carta.
O tempo da carta talvez dê uma chance aos argumentos. No comentário postado, em regra, só se mobilizam as crenças. Conclusão engraçada e triste, nas redes, fala-se muito, mas ninguém tem a menor chance de convencer ninguém.
Da mesma forma, nas conversas, orais ou por WhatsApp, poderíamos reavaliar a função crucial do silêncio antes de responder.
Agora, começando a abordar as razões de nosso viés de crença, uma delas é a coesão de grupo. Amamos as crenças porque elas nos ligam aos que acreditam na mesma coisa que nós. Ou seja, amamos as crenças porque elas nos permitem pertencer a um partido, uma torcida, uma bancada (da bíblia ou da bala), uma roda de boteco. Render-se a argumentos válidos e abandonar nossas crenças pede quase sempre que paremos de frequentar os grupos que compartilham essas crenças.
Em suma, a regra de ouro para pensar é: tempo e solidão.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

sábado, 9 de dezembro de 2017

A escolha de Sofix

Conversei recentemente com minha obstetra sobre a hora do parto. Não quero que seja meu corpo a decidir que nenêx está pronto e sim que seja nenêx a decidir que é chegada a hora de liberar minhas costelas de tamanha dor. Ela me garantiu que essa é uma decisão muito mais de nenêx do que minha. Que alívio. A natureza, em sua sabedoria esplêndida, já era hipster millennial quando inventou o parto.
Assim que bebêx nascesse, adoraria perguntar se bebêx aceita a roupa amarela, que intitulei de unissex, mas isso é uma imposição minha, não tem como saber o que bebêx acha do amarelo (muito menos se vai gostar de saber que usei o termo unissex pra me referir a algo que vai em seu corpo). Bebêx ainda não falará por um bom tempo e isso me deixa louca. Contratei então uma taróloga famosa da Vila Madalena, pra perguntar a bebêx se tudo bem as cores amarelo, branca, verde água e cinza. Ela, que além das cartas também faz uso de ultrassom holístico, disse que bebêx estava chupando o dedão, ou seja: fazendo um joinha interno. Ou seja: tá liberado.
Difícil registrar criança sem saber se criança quer ter a existência documentada. Por isso deixarei em aberto seu nascimento até que criança me diga: eu. Ou melhor: estou. Enquanto criança não aceitar que vive neste planeta, não forçarei a barra.
Exame do pezinho: pularei. Quando puder caminhar assertivamente, o próprio pezinho decidirá se deseja ser examinado. Banho, vulgo invasão de um corpo por estranhos: só darei se recém-nascidx for ao encontro da água.
Acho barra pesada a água ir ao encontro de recém-nascidx (e acho surreal pensar no Mussum agora, em meio a um assunto tão sério), oprimindo uma pequena alma a imposições mundanas de higiene.
Infelizmente, mamy natureza também pode ser bem mandona. Então, porque sou branquela e meu marido é mais pro moreno, há grandes chances de nosso rebentx nascer ou branquelx ou morenx ou uma misturx de ambox. Não resta a rebentx nenhuma chance de vir japonêx, pardex ou parecido com a Björk.
Fico na dúvida sobre trazer filhx pra casa. Filhx já sabe se quer morar comigo? Aceita a limitação de um quarto, uma família composta por dois gêneros, uma cidade? Quer ser brasileiro? Quer ouvir o ensaio de carnaval da PUC? A gente sabe como é difícil decidir "morar com alguém" mesmo com mais de 30 anos, às vezes mais de 40... e queremos o quê? Que ser humanx de poucos dias já decida isso? Nossos pais nos trouxeram pra casa (pelo menos boa parte deles) e agora onde estamos? Na terapia, na farmácia, na meditação ou, pior ainda, na Casa do Saber. A gente sabe que não foi fácil.
Milhões de pediatras do mundo todo falam dos benefícios do leite materno. Mas vamos supor que pequenx humanx, tendo à sua direita um seio entumecido e à sua esquerda uma cachaça, sinta-se atraidx pela segunda opção. O que você, hipster millennial faria? Quem sabe mais sobre desejos: a medicina ou o inconsciente de pequenx humanx?
Arrotar: já reparou que não é uma decisão natural de bebêx e que precisamos bater nas costas de bebêx? A mãe não acha que é violência, mas bebêx ainda não tem o lugar da fala pra opinar. Pare pra pensar sobre isso.
Quando seu chefe, depois de uma reunião, ou o tio do pavê, depois da ceia de Natal, lhe dá o famoso tapinha nas costas... você se sente mal ou não? E você é um adulto!
Muito complicado dar à luz pequerruchx descendente que ainda não decidiu se quer descender de mim e pode muito bem preferir o escurinho.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Personal existência

Márcia começou a trabalhar aos 17 anos. Morava num apê pequeno em Santa Cecília. Cozinhava comida baiana como ninguém, apesar de não ser baiana. Cozinhava comida árabe como ninguém, apesar de não ser árabe. Era uma estudante autodidata de francês e ioga. Gostava de fazer tudo a pé e entendia de pontos de ônibus melhor do que ninguém.
Foi crescendo na empresa e ganhando aumentos. Casou com um homem que foi crescendo ainda mais em sua empresa e tendo ainda mais aumentos. Morou numa casa gostosa em Perdizes, depois numa gigantesca em uma vila nos Jardins e recentemente abraçou a ideia bastante estranha de um dúplex dentro do mesmo condomínio que um shopping. Ela espirrava na sala e já tava na fila do Ráscal.
Nessa trajetória de ascensão, foi a primeira a ter personal pilates, personal fisioterapeuta, personal corrida, personal massagem modeladora e personal "arrumador de armários". Era uma quantidade meio descontrolada, mas como Márcia trabalhava muito, estava perdoada. Depois ela contratou um personal cuidador de cachorro, delegando passeios e cocôs para uma pessoa que passava o dia todo na sua casa apenas para isso mesmo: passeios e cocôs.
Então foi ladeira abaixo: seus dois filhos eram completamente assessorados por "personais" enfermeiras, cuidadoras, cozinheiras e educadoras. A personal analista da família ia até a casa dela, todos os dias, e até viajava com a família quando o personal agente de viagens conseguia emplacar uma dica personalizada. Se não me engano, a cachorra tinha uma personal analista que ia junto. O personal motorista era personal segurança. A personal secretária só podia falar com a personal governanta que, por sua vez, não podia falar com Márcia, o que fazia a personal secretária não ter a menor ideia do que era pra fazer.
Márcia nomeou um personal assistente para fazer todo o seu trabalho e um personal assistente do assistente somente para que o primeiro nunca ligasse incomodando. Ela nunca mais saiu de casa.
Cansada de ter que dividir a atenção do concierge do prédio com outros moradores, pagou do próprio bolso um personal porteiro. Seu Juca ficava sentado o dia todo na recepção do prédio, mas não podia dar bom dia a ninguém que não fosse Marcinha.
Um dia Marcinha contratou uma personal gêmea. Uma mulher bem parecida com ela que, após algumas intervenções com um personal cirurgião, ficou idêntica. A personal Marcinha ganhava pra ficar cinco minutos em festas infantis, lançamentos de livros, batizados e funerais. Quando era casamento de rico, a Márcia real preferia ir: pegava direto da fonte as dicas mais quentes das novidades do mercado de "personais". Agora tinha uma pessoa, parece, que era especializada em dar banho, comida na boca e até limpar a bunda. E não precisava ter problemas motores ou mentais, bastava ser como Márcia: muito rica e sem tempo pra nada.
Certa feita a personal Marcinha acabou fazendo um boquetinho amigo pro marido de Márcia. Márcia tinha acabado de fazer um "peeling renovação de luz" nas mãos, com sua personal de peeling renovação de luz de mãos, e estava cansada. Daí foi ladeira abaixo: personal Marcinha acabou aderindo a outras sacanagens, profundidades e posições.
Trancada em seu quarto há anos, sem ver ninguém, Márcia procura agora no Google alguém que possa morrer por ela. Um personal defunto Marcinha. Ela tá louca pra dar uma falecida, mas imagina o trabalho que não deve dar?


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Vamos comparar

A vida em Portugal está melhor do que no Brasil. Qualquer um percebe que há mais segurança e qualidade de vida. Portugal passou pela crise, quase sucumbiu ao seguir acriticamente os conselhos do neoliberalismo da União Europeia, corrigiu o rumo, resistiu, teimou e está em franca recuperação. Quantos brasileiros sonham em se mudar para Portugal? Quantos gostariam que o Brasil se transformasse num imenso Portugal? O curioso é que muitos querem as qualidades de Portugal sem ter de abandonar os defeitos do Brasil. Portugal é um país público. A mentalidade dominante enfatiza o senso comunitário. Paga-se muito imposto, tem-se ótimo retorno e não se quer abrir mão disso. A base da vida nos bons país europeus está na igualdade real.
O Brasil nunca será um excelente país para se viver enquanto mantiver os atuais níveis de desigualdade. Não vai funcionar. Podem combater a corrupção o quanto quiserem, criar prisões com milhões de vagas, aumentar indefinidamente o número de policiais, nada adiantará enquanto o fosso da desigualdade for oceânico. Portugal é um lugar sem grades. Quanto casa linda numa grande cidade como Porto sem grades nas janelas? O Brasil será um país gradeado enquanto bilionários pagarem proporcionalmente menos impostos do que assalariados. O problema do Brasil não é o policial que se aposentou com 40 anos de idade, como me disse um empresário, mas o fato de que o topo da sociedade vive no paraíso sem se dar conta de que se assenta sobre uma base desesperada.
A saúde, em Portugal, é quase totalmente pública para todo mundo. A direita resmunga. Mas sabe que está diante de uma conquista fundamental. Há coisas que só a educação produz. Por exemplo, o respeito ao pedestre na faixa de segurança. Em Portugal, como na maioria dos países europeus, chega a ser irritante. O motorista suspeita que a gente vai atravessar e já para. É uma humilhação para nós, brasileiros. Por que a nossa educação não funciona nesse sentido? Porque a educação só é realmente eficaz quando todos se sentem parte de alguma coisa. Num lugar onde poucos tem quase tudo e a maioria tem quase nada, sem perspectivas de mudança, o sentimento de respeito desaparece. No fundo, é cada um por si mesmo. Por que cooperar?
A desigualdade profunda desumaniza profundamente. Cada um vai se vendo como inimigo do outro. O cinismo predomina. A noção de solidariedade soa como uma piada de mau gosto. Valores só são introjetados quando cada um percebe correspondência nos outros. O Brasil não transmite qualquer ideia de compartilhamento. Não “tamu junto”. O exterior funciona como uma utopia pela qual não se quer pagar o preço necessário. O exemplo europeu socialdemocrata acaba por ser constrangedor. Qualidade de vida com igualdade parece uma relação indecente, coisa de comunista. Enquanto nos fechamos para almoçar, europeus podem comer em suas belas praças medievais. Aliás, comer ao livre é charmoso no Velho Mundo. Enquanto vivermos de desigualdade o Brasil não será um imenso Portugal. Será apenas um imenso inferno.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Meu dinheiro de volta

A essa altura já foi dito e redito: o Rio é um Estado falido em decorrência dessa calamidade pública de proporções dramáticas chamada PMDB. O partido -que governou o Estado e a cidade durante mais de uma década, com o apoio reiterado do PT e de boa parte do estamento intelectual e econômico local- continua, inacreditavelmente, no poder, mas suas perspectivas de futuro são pequeninas.
A operação Cadeia Velha, que colocou, finalmente, Picciani na prisão, apontou que o eterno presidente da Alerj recebeu cerca de R$ 58 milhões em propinas entre 2010 e 2015. No mesmo período, empresas que entraram em negócios espúrios com ele deixaram de gastar R$ 138 bilhões em impostos, através da farra das isenções fiscais.
O montante seria suficiente para cobrir cinco anos da folha salarial dos servidores e inativos do Estado, os mesmos que não recebem seus salários e pensões de forma regular há pelo menos um ano. É a prova de que propina é mesmo um negócio bem rentável: para cada real investido em comprar Picciani e seus comparsas, as tais empresas receberam cerca de R$ 2.400 em isenções. Um retorno pra analista financeiro nenhum botar defeito.
O caso da propina e das isenções mostra o óbvio: no grande circo de corrupção sistêmica que penaliza os mais pobres e rouba da população seus serviços públicos mais básicos, enriquecimento pessoal é o de menos. O que importa, mesmo, são as contrapartidas: as benesses que políticos corruptos entregam em troca de desvios e maracutaias.
Nossa imprensa local, no entanto, não parece concordar com a análise: em sua recente reportagem sobre a delação de Renato Pereira, o marqueteiro do ex-prefeito e pré-candidato ao governo do Estado Eduardo Paes, o jornal "O Globo" faz questão de destacar que Paes não teria pedido propina para si -seus malfeitos se "reduziriam" ao caixa 2 de campanha, essa questão, segundo o jornal, "polêmica" na Lava Jato. A manchete da reportagem é, simplesmente "Eduardo Paes não fez pedido de propina, diz delator" -como se as acusações de caixa 2 fossem de importância menor, um mero "embaraço", para usar a expressão empregada pelo próprio jornal. É um desserviço inacreditável, assim como seria absolutamente trágico para o Rio eleger Eduardo para o que quer que fosse.
O Meu Rio, organização que ajudei a fundar, está acompanhando as discussões sobre o Orçamento da cidade para 2018. E as perspectivas são terríveis: tudo indica que o município enfrentará uma quebradeira de proporções semelhantes à do Estado. Em que pese a parte de responsabilidade do atual prefeito-bispo Marcelo Crivella (PRB), a situação calamitosa é, em proporção muito maior, consequência direta de oito anos de incompetência criminosa de Eduardo. O prefeito quebrou a cidade justamente quando ela recebia um dilúvio de recursos públicos e privados. Só não viu quem não quis.
Por fim, o outro grande culpado que parece, por enquanto, escapar ileso desse desmonte do público, é o empresariado que se beneficiou das tais isenções bilionárias. Quem são essas empresas, e o que estamos esperando para exigir a restituição imediata de nossos cinco anos de folhas salariais? A demonização do público em favor do privado, tão em voga nesse país de prefeitos "gestores" e a nova direita do Estado mínimo pra quem não precisa de Estado, nos impede de avançar no sentido de encarar de frente a vilania absoluta desses verdadeiros abutres de recursos do comum. Da minha parte, quero meu dinheiro de volta. E o PMDB longe, bem longe, do poder.


Texto de Alessandra Orofino, na Folha de São Paulo

sábado, 18 de novembro de 2017

As coisas podem agir em nós sem estarem ligadas à vontade de alguém

"As pessoas e as coisas" (Rafael Copetti Editor, 150 páginas) é o segundo livro traduzido no Brasil do filósofo italiano Roberto Esposito. Responsável por um projeto que visa pensar os fundamentos metafísicos da política moderna e suas consequências contemporâneas, Esposito constituiu uma orientação singular capaz de expor os limites de conceitos normativos definidores de nossas formas de vida.
Poucos são os filósofos contemporâneos que exploraram de forma tão sistemática a maneira com que nossa forma de pensar continua a enraizar-se em uma metafísica implícita, que raramente diz seu nome e que, por isto, age de forma muda e forte. Nesse sentido, seus livros participam de um projeto comum paulatinamente desdobrado.
Um destes pressupostos metafísicos maiores é a distinção entre pessoas e coisas, ou seja, entre aquilo que é dotado de dignidade de agentes capazes de deliberação e aquilo que, desprovido de tal dignidade, serve ao uso e usufruto. Ele é o objeto central desse livro agora traduzido.
É rapidamente perceptível que a distinção entre coisas e pessoas aparece a nós como uma distinção de forte cunho moral (nunca tratar pessoas como coisas), mas também psicológico, jurídico, econômico e político.
Há uma espécie de "dispositivo da pessoa", isso no sentido de um conjunto de práticas e procedimentos que constituem um horizonte de ações possíveis, de modos possíveis de existência baseado no respeito à especificidade da pessoa.
É tendo em vista a desconstituição desse dispositivo e da reflexão sobre suas consequências que Esposito se envolve em uma verdadeira arqueologia dos conceitos de pessoa e coisa. Arqueologia que lhe permite lembrar como "coisa" aparece enquanto aquilo que está a serviço da pessoa, aquilo que pode ser submetida a uma relação de posse em relação à pessoa. Ou seja, ela pressupõe a generalização das relações de posse e de usufruto ligado à propriedade.
Só em uma sociedade de proprietários, sociedade nas quais o estatuto fundamental de membro confunde-se com o estatuto de proprietário, podem existir "coisas". Nas sociedades onde as "pessoas" são livres, o preço a pagar por tal liberdade é que as "coisas" sejam submetidas à servidão.
Assim, se são Tomás afirmava que a pessoa era o âmbito no qual a razão poderia exercer o domínio de seus próprios atos, como autor dos seus próprios atos, é porque, para nós, as coisas não agem mais, elas são acionadas por nós.
É claro que o ponto que complexifica tal dicotomia é o estatuto do corpo, nem completamente coisa, nem completamente pessoa. Pois há sempre algo de impessoal no corpo, algo que não é completamente próprio à pessoa, mas impróprio.
Por isso talvez seja tão difícil para nós, que naturalizamos a distinção entre pessoa e corpo em uma chave impulsionada pela teologia cristã, pensar o que é um corpo e o que implica, para nós, não exatamente ter um corpo, mas ser também um corpo.
Pensar tais questões, e essa é uma das grandes contribuições de Esposito, nos permite pensar se o verdadeiro conceito de liberdade social não seria a noção de uma sociedade de sujeitos livres, mas antes uma sociedade de sujeitos e de coisas livres. O que pode ser uma sociedade de coisas livres?
Longe de serem instrumentos ou posses, as coisas podem aparecer como o que nos causam e agem em nós sem que sua forma de agência e de causa esteja ligada à vontade de uma pessoa, à deliberação de uma consciência, um pouco como as obras de artes que nos afetam sem que tenhamos que ver, nelas, a expressão da deliberação de uma pessoa.
Elas não são apenas a sedimentação dos circuitos de histórias que a compuseram, mas também a força de seus corpos, de sua matéria, do trajeto de sua própria materialidade, de sua "vida própria".
Uma sociedade que não submete as coisas a um estatuto subalterno é uma sociedade que aprende a se afastar do estatuto da propriedade e da hierarquia como modelos fundamental de organização e sentido. Ela será capaz de pensar de forma mais adequada, entre outras coisas, seus corpos e a presença política de seus corpos.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Morto aos 81, Moniz Bandeira iluminou sonho de país grande

O Brasil que luta para não ser apequenado por sua própria gente sofreu uma baixa inestimável com a morte de Luiz Alberto Moniz Bandeira; o Brasil gigante, altivo, desenvolvido, justo e protagonista com que tanto sonhou fica mais distante sem sua contribuição acadêmica e sem seu engajamento vibrante.
Professor, pesquisador e escritor, Moniz Bandeira nunca se rendeu a modismos intelectuais, e suas obras são a combinação rara de texto de um excelente historiador com a percepção de um apurado analista de geopolítica.
Vencedor do Prêmio Jabuti, foi um dos poucos pesquisadores a compreender as relações profundas entre o Brasil e os EUA, a divulgar que elas vão muito além de questões conjunturais e históricas, que existe uma ferida estrutural e estratégica entre as duas nações e que um dia precisará ser resolvida.
O desafio do Brasil, dizia ele, será impor-se aos EUA como país realmente soberano e desfazer de forma definitiva a doutrina de que no continente americano não há espaço para uma segunda potência. Para ele, um Brasil justo e desenvolvido para os brasileiros, por suas dimensões e recursos, não escapa do destino de ser potência.
Sem chance para o meio-termo, para a timidez, trata-se de um Estado destinado a ser ator relevante ou a tornar-se um enorme fracasso.
Integracionista convicto, tinha a certeza de que o desenvolvimento da América do Sul só será possível por meio da formação de um bloco político e econômico coeso e que, para isso, uma profunda parceria entre Brasil e Argentina é requisito fundamental.
Profundo conhecedor da política externa americana e da atuação de seus serviços de inteligência, Moniz Bandeira teve, em seu último livro, "A Desordem Mundial", a sensibilidade de perceber que a grande potência aposta nesta década em uma nova ordem calcada na desordem, nas guerras e na desestabilização política e econômica internacional para manter sua hegemonia perante outros gigantes como China e Rússia.
Usou de vasta documentação e de descrição pormenorizada de eventos e conflitos recentes em diversas regiões para justificar sua tese.
Achava que os Estados Unidos continuarão sendo por algumas décadas a principal potência, mas que eles precisarão aprender a conviver com um mundo multipolar, se quiserem evitar uma catástrofe mundial.
Crítico feroz do golpe contra a presidente Dilma -assim considerava-, não teve medo de fazer com densidade as relações entre as conjunturas interna e externa que levaram o Brasil à crise.
Erros na política doméstica, conflito latente entre grupos distintos e com aliados diferentes no mundo e uma enorme miopia do país em perceber que seu crescente protagonismo internacional incomodou grandes atores foram, a seu ver, os principais componentes da derrocada.
Alertou para o fato de que o combate à corrupção se tornou tendência mundial, atingiu países tão distintos quanto Argentina, África do Sul e Coreia do Sul e, com mesmo modus operandi entre eles, um enorme protagonismo das polícias nacionais, do Judiciário e do que por aqui convencionou-se chamar de delações premiadas.
Sua apurada capacidade de análise sistêmica o fazia ver relações entre as manifestações na Ucrânia, a Primavera Árabe, a crise política sul-africana e as quedas das presidentes sul-coreana e brasileira. Relações que, para muitos, parecem pura teoria da conspiração, em grande parte por não estarem nas páginas dos jornais, mas que, em sua opinião, fariam parte de análises e dos livros de história daqui a algumas décadas.

TANQUES DE GUERRA

Escreveu por quase toda a vida e costumava dizer que os livros são como tanques de guerra, as principais armas dos intelectuais.
Sempre rechaçou de forma ferrenha o apego acrítico às teorias políticas internacionais. Para ele, teoria que aparentemente não cheirava, na verdade, fedia, pois a neutralidade não seria só uma utopia, mas, na maior parte dos casos, exercício de má-fé.
O estudo das teorias das relações internacionais, predominantemente anglo-saxãs, sem um forte componente reflexivo a partir de realidades locais e nacionais seria, em sua visão, um cavalo de Troia para países de periferia, cristalizando a hegemonia dos ricos e a irrelevância dos pobres.
Moniz Bandeira partiu, mas antes ajudou a iluminar a estrada dos que sonham com um Brasil grande.
E, sempre que tentarem escurecer esse caminho, sua obra estará pronta para servir como farol. Seus tanques estarão prontos para batalha.

Texto de Leonardo Valente, escritor e professor de Relações Internacionais na UFRJ, para a Folha de São Paulo

sábado, 11 de novembro de 2017

Ações de bloqueio tentam eliminar a existência política dos trabalhadores

Florestan Fernandes costumava dizer que o Brasil era o país da "contrarrevolução permanente". Era um modo de dizer que, em nosso país, o poder não é animado por uma forma de projeto modernizador, mesmo que uma modernização conservadora. Ele se organiza através de múltiplas ações de bloqueio das possibilidades de emergência de transformações estruturais populares.
Por exemplo, imaginar que estamos hoje no meio de um projeto de "ajuste econômico" tendo em vista a produção de riqueza socialmente partilhada é delírio que parece só acometer jornalistas econômicos.
O resto da população percebe claramente que se trata, na verdade, de uma política deliberada de submissão da classe trabalhadora a um padrão extremo de vulnerabilidade social que a impeça de realmente existir politicamente.
Mas isto não pode ser feito sem as múltiplas estratégias de silenciamento, que vão das mais discretas às mais violentas. E uma das mais violentas passa pela tentativa de definir, do ponto de vista simbólico, quem é o povo. Pois quem estaria fora do povo perderia a possibilidade de ser escutado, a legitimidade de exigir a realização de suas demandas.
Isto não poderia ser diferente e há uma dimensão constitutiva da política que passa por tal embate. Há uma certa dimensão da política que deve ser entendida como uma luta para definir onde está o povo.
Neste sentido, não é sem interesse lembrar que, no exato momento em que o povo brasileiro encontra-se submetido a um processo brutal de expropriação econômica, os campos de combate da opinião pública e da cultura assistem discussões sobre onde está o povo.
Fenômenos recentes na cultura, o encerramento de exposições artísticas e as tentativas de cancelamentos de simpósios são feitas em nome do povo, em nome da "maioria esmagadora do povo brasileiro".
Ou seja, a lógica é afirmar que eles são o "povo", com seus pretensos valores saudáveis, seus hábitos trabalhadores, enquanto nós, especialmente intelectuais e artistas, seríamos a verdadeira elite ociosa que vive de dinheiro público, de benesses de fundações privadas internacionais, propagando comportamentos viciosos e doentios.
Enquanto eles ficam calados diante do sistema neoliberal de blindagem das elites financeiras que drenam as riquezas do país e tomaram de assalto o poder político, procurando chantagear a soberania popular através da ameaça da "desconfiança dos mercados", eles querem fazer crer que artistas e intelectuais seriam os verdadeiros sanguessugas da riqueza nacional, em clássica reedição dos ataques nazistas contra o "bolchevismo cultural".
Como se vê, a estratégia gira em torno de quem é capaz de constituir o "povo" como ator político e, com isto, designar quem está fora do "povo" como enunciador.
Por isso, talvez seja o caso de inverter as acusações e lembrar que há sim momentos em que as estratégias populistas são necessárias, mesmo que provisoriamente.
Uma lembrança que pode nos levar a dizer a quem procura simplesmente nos calar: "Não, essas e esses que assim falam não são o Brasil".
Na verdade, essas e esses habitam outro país, um país inominável e infame que não se incomoda em ser defendido por militares com sanha golpista inconfessa e oligarcas que passam seus cargos públicos de pai para filho. Um país que sonha em acalmar medos apelando à violência de Estado, que delira com o comunismo saindo por todos os poros.
Esse país sem nome não se deixa afetar com as verdadeiras violências sexuais contra mulheres, travestis, homossexuais e crianças; é completamente indiferente à espoliação da classe trabalhadora através de aparatos legais criados para retirar toda capacidade de organização e luta de quem recebe salários miseráveis e humilhações cotidianas.
Um país que nunca se afetou por seus próprios genocídios indígenas e por seu racismo que, como se diz aqui, não existe, já que louvamos a miscigenação.
Esse país, no entanto, nunca foi o Brasil. Contra ele sempre existiu um outro que se chama Brasil e que sempre lutou para emergir.
Para quem não sabe onde está este país, que lembrem dos gritos de revolta de Zumbi, da tenacidade de Pagu, do espírito inquebrantável de Luís Carlos Prestes, dos cabanos, dos que lutaram de todas as formas contra a ditadura militar, dos camponeses mortos em suas lutas por terra, dos estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento.
Este país é enorme, mas muitos querem nos fazer acreditar que ele não existe e que é fraco.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

sábado, 4 de novembro de 2017

Livro de Orlando Figes sobre a cultura russa abusa de caricaturas


Com suas 700 páginas, "Uma História Cultural da Rússia" é um livro ambicioso, e útil, na profusa quantidade de informações que apresenta, mas desproporcionalmente limitado na dose de reflexão e análise que contém.
Embora afirme, na apresentação, que "a Rússia convida o historiador cultural a sondar debaixo da superfície da aparência artística" (o que, de resto, é o mínimo que se pode esperar de um historiador), tive a impressão de que o autor não atendeu muito bem o convite.
Financiado por uma poderosa fundação privada inglesa, subvencionada por uma das maiores multinacionais do ramo da alimentação e refrigerantes, o autor passou três anos se dedicando apenas a esse livro, fazendo viagens e contratando uma equipe de pesquisadores.
Por isso me atrevo a cogitar que, em alguma medida, há outro tipo de convites envolvidos aqui, "por baixo da superfície da aparência artística". Afinal, por que tantos livros sobre a Rússia (e quase sempre escritos por americanos e ingleses)?
Por que tantos financiamentos para a produção de livros sobre a Rússia, que acabam, quase automaticamente, traduzidos e publicados no mundo todo? Por que esses livros seguem uma linha editorial e até um vocabulário tão uniformes? Não seria o caso de perguntar, também, onde estão os livros sobre a história dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, do Império Colonial Britânico? Seria o assunto irrelevante? Ou a história é uma coisa horrível que só acontece com os outros?
Não creio que a explicação esteja no centenário da Revolução Russa de 1917, pois o livro de Orlando Figes, por exemplo, foi publicado originalmente em 2002.
Seja como for, ainda na apresentação que abre o volume, o autor aventura uma interpretação mais geral do seu objeto de estudo: "De forma extraordinária, talvez exclusiva, a energia artística do país foi quase inteiramente dedicada à busca da compreensão da ideia de sua nacionalidade. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarregado com a tarefa da liderança moral e da profecia nacional."
Portanto o autor reconhece aquilo que, de fato, salta aos olhos: o grau incomum do enraizamento da arte russa na vida histórica e social do país, bem como a constância impressionante dessa experiência ao longo de séculos. Isso poderia ser encarado como o maior diferencial e a fonte principal do alcance da arte russa.
Figes, porém, usa palavras que mais encobrem do que esclarecem essa constatação. Dizer que o artista é "sobrecarregado" denota algo negativo nessa experiência, postula uma espécie de peso morto que o artista tem de carregar e que reduz a dimensão de sua obra —quando se trata justamente do contrário.
Em seguida, atribui ao artista "a tarefa da liderança moral e da profecia nacional". Por que não chamar essa liderança de política, social, ou pelo menos intelectual? Seria, no mínimo, mais concreto e compreensível do que "moral".
Conceito que, aliás, é importante observar, pulula pelas páginas do livro. Sempre que o texto precisa se resguardar do risco de alguma palavra mais concreta, o autor recorre ao adjetivo "moral". Por exemplo: diante da violência das revoltas dos camponeses, no final do século 19, o autor diz que "as classes instruídas foram lançadas num pânico moral".
O emprego de palavras de algum teor religioso é sistemático no livro de Figes. A expressão "profecia nacional", no trecho citado, ilustra o procedimento retórico recorrente. O intuito, no caso, é descaracterizar o empenho intelectual e crítico dos artistas em se envolverem a fundo nos processos históricos da Rússia e na vida concreta de seu povo, para deixar, em seu lugar, na mente do leitor, algum tipo de conteúdo irracional, a-histórico e de pouco valor objetivo.
Por exemplo, quando o autor trata das ideias de um líder aristocrata da revolta dos dezembristas, de 1825, usa expressões como "cultuar o altar do campesinato", "renunciar ao mundo pecaminoso onde tinham nascido os filhos da nobreza" e (claro, não podia faltar) "a busca moral" do nobre, que conspirou contra Nicolau 1º.
Ao descrever o movimento de massas espontâneo que, em 1874, levou milhares de estudantes a viver entre os camponeses, no evento conhecido como "ir ao povo", Figes diz que "era uma forma de peregrinação", "do tipo de pessoa que vai em busca da verdade num mosteiro", "esses missionários se sentiam culpados diante dos servos", "tentavam se libertar do mundo pecaminoso dos pais", "partiam com espírito de arrependimento", "esperavam redimir o próprio pecado: terem nascido privilegiados".

LÉXICO E CARICATURA

Essa técnica retórica, essa tradução forçada de um movimento político e cultural em termos de experiência religiosa, tem por objetivo subtrair o caráter de revolta efetiva e de anseio de justiça concreta, patentes no conjunto daquele acontecimento histórico.
As palavras "inveja" e "ressentimento" são constantemente empregadas por Figes quando se trata de uma revolta de pobres contra ricos. E, em troca, o autor adota palavras como "arrependimento" e "redenção", no caso de ricos (ou remediados) que se manifestam em favor de pobres.
Não admira que a palavra "classe" só apareça nessas 700 páginas duas vezes, pelo que notei.
Uma, para se referir ao "ódio de classes", que, obviamente, para Figes, só poderia ser dos operários e da massa pobre contra os ricos, na Revolução de 1917, e não o contrário. E a outra, numa citação de Dostoiévski, que, em sua fase mais nacionalista, escreveu: "Todo russo é russo em primeiro lugar e só depois pertence a uma classe".
Uma tese rotineira no pensamento nacionalista e conservador de qualquer país e qualquer tempo e que, por isso mesmo, pouco ajuda a entender os dilemas dos intelectuais russos da época.
Mas há outras ausências lexicais significativas no livro.
A obra abrange o período entre os séculos 17 e 20 (embora, às vezes, recue mais ainda no tempo, e são esses seus melhores trechos). Mesmo assim, não vi nenhuma vez em suas páginas as palavras "capitalismo" e "colonialismo", certamente os processos centrais de toda aquela época.
O fato de o Império Russo também estar envolvido nesses processos, ainda que com algum atraso e de forma periférica, torna essas ausências ainda mais reveladoras. Sobretudo quando a atividade dos artistas e intelectuais, que constituem o próprio objeto do livro, se mostra tão explicitamente consciente dos grandes movimentos históricos de seu tempo, sobre os quais incide boa parte de seus questionamentos.
Minha hipótese é que se trata de um esforço geral, presente nesse livro e em outros semelhantes, para descontextualizar os fatos apresentados, abstrair a experiência histórica russa do seu ambiente internacional de conjunto.
Porém, como se trata de um livro de história, é impossível não apresentar algum contexto. Dessa forma, o autor procede a uma seleção programática de elementos contextuais, na qual o que fica de fora pesa mais do que o que entra em cena.
Por exemplo, ao tratar da presença de membros da elite russa em Paris, durante alguns anos, após a vitória sobre Napoleão, em 1812, o autor afirma que "eles foram profundamente marcados pelo seu breve encontro com o Ocidente, que confirmou sua convicção da dignidade pessoal de todo ser humano".
Contudo, a visão que os intelectuais russos tinham do "Ocidente" estava longe de ser tão uniforme. Pois o colonialismo, que exauria a riqueza de enormes populações em benefício de poucos, a escravidão, que submetia milhões de africanos, e a franca exploração do povo pobre das cidades de ponta, como Londres e Paris, povoavam de dilemas os pensamentos da elite intelectual russa e tornavam seu conceito de "Ocidente" muito mais problemático, e concreto, que o de Figes.
Outro exemplo do mesmo procedimento: ao relatar a persistência de crenças pagãs na sociedade russa, o autor diz que as famílias nobres se apegavam a "superstições pagãs que qualquer europeu desdenharia como bobagem de servos", numa generalização que "qualquer europeu" veria no mínimo como arriscada.
A imagem da Europa que Figes esboça para compor o fundo contra o qual, às vezes, projeta os temas russos é uma abstração, um cenário difuso, calcado em retórica.

'LEVEZA' LIMITADORA

Se Figes nos permitisse pelo menos vislumbrar esse contexto de maior escala, muitas situações apresentadas no livro ficariam mais compreensíveis e menos rasas.
Por exemplo, quando o autor diz, e repete com ênfase (como se nos avisasse: não se esqueçam), que Liev Tolstói "era um conde que queria ser camponês". Caricaturas e simplificações desse tipo, infelizmente não raras no livro, nada esclarecem, incentivam no leitor uma atitude desdenhosa e superior e, em vez de aprofundar a discussão, a reduz quase à dimensão da fofoca.
Isso nos leva a observar que, na exposição de seu material, o livro, muitas vezes, adota um critério antes jornalístico do que ensaístico.
Qualquer história ou circunstância grotesca, picante, tétrica ou cômica terá garantido um espaço de algum destaque, em detrimento do esforço para compreender significados mais gerais e em prejuízo da contextualização, quer em relação ao tempo que nos separa de tais fatos, quer em relação ao que ocorria em outras sociedades, na mesma época.
Desse modo, convenhamos, só resta ao leitor tentar entender tais informações pela perspectiva "moral".
Ao discutir a presença do elemento nacional nas obras artísticas russas, Figes tende a se deter em questões rasas.
Um exemplo é o caso do compositor italiano Catterino Cavos. Quando o Pedro o Grande fundou a nova capital, São Petersburgo, contratou muitos artistas e artesãos europeus. Entre eles, o compositor Cavos, que chegou a Petersburgo aos 23 anos de idade e ali viveu até os 65 anos.
Como Cavos foi nomeado diretor do teatro de ópera na capital, compôs obras com temas históricos russos para serem encenadas ali, incorporando melodias folclóricas russas. Isso foi, mais ou menos, o início da extraordinária tradição da ópera russa, na qual pesa bastante a temática histórica nacional.
Pois basta isso para Figes considerar a situação "irônica" e, em tom de zombaria, tirar a seguinte conclusão: "O 'caráter nacional' da música russa, portanto, foi desenvolvido pela primeira vez por um estrangeiro".
Ou seja, o pressuposto de Figes é que só valeria falar em caráter nacional das obras se o elemento estrangeiro estivesse de todo ausente. Mas o estranho, nesse trecho, não é só o fato de Cavos ter passado quase dois terços da vida na Rússia, o que, por si só, já relativizaria bastante a conclusão de Figes.
O grave, o limitador, me parece, está no método adotado pelo autor, que toma os dados isoladamente (o compositor que nasceu na Itália, de um lado; a ópera russa, do outro), em vez de tentar compreendê-los em suas relações.
Seria mais produtivo entender o caráter nacional a partir do teor das relações entre os elementos locais e os estrangeiros. Verificar como o elemento externo adquire novos e imprevistos significados em seu novo ambiente. E acompanhar essa dinâmica à luz dos grandes processos históricos em curso.
Desconfio que, no caso do compositor Cavos, Figes, além disso, não tenha resistido à tentação de fazer uma piadinha, expediente compulsório na sua orientação jornalística, que impõe que seu livro seja "leve".

ESTEREÓTIPOS E MITOS

Esse método, que deixa de lado as relações e os processos para se fechar nos elementos isolados, leva o autor a interpretar certas obras de forma também limitadora.
Ao tratar do conto "A Aldeia", de Ivan Búnin, e do livro "Infância", de Maksim Górki, Figes reduz o alcance dos textos, tratando-os como a constatação da brutalidade e ignorância intrínsecas dos camponeses, descritas nas páginas anteriores, referentes à Revolução de 1905.
No entanto, nem é preciso olhar "por debaixo da aparência artística" para enxergar naquelas obras um questionamento sobre as condições em que viviam os camponeses, sobre o regime de relações que produzia tais condições e até sobre a validade de conceitos como brutalidade e ignorância.
Mas aí se abriga uma tese constante no livro de Figes, útil para o que é, senão seu propósito principal, pelo menos uma preocupação subjacente em seus argumentos.
Vejamos um exemplo. Quando trata da ópera "Boris Godunov", de Mússorgski, Figes aponta a influência do historiador Kostomárov.
A ópera se passa num período de grande turbulência, à beira de um vazio de poder. Kostomárov, num livro de 1866, descreve assim a condição dos camponeses no fim do reinado de Godunov, em 1605:
"Estavam dispostos a se lançar com alegria a quem os comandasse contra Boris, a quem lhes prometesse uma melhora de vida. A questão não era aspirar a essa ou aquela ordem política ou social; a imensa multidão de sofredores se ligava facilmente a um novo rosto, na esperança de que, sob a nova ordem, a situação ficasse melhor do que a antiga."
Disso, Figes prontamente extrai uma conclusão ambiciosa: "É uma concepção do povo russo —sofredor e oprimido, cheio de violência destrutiva e impulsiva, incontrolável e incapaz de controlar o próprio destino— que se aplicaria igualmente a 1917".
O fato de Kostomárov estar se referindo a um período tão específico da história russa que ficou conhecido como "o tempo turbulento" ("smútnoie vrémia") não inibe Figes de ver ali uma "concepção do povo russo", "incapaz de controlar o próprio destino", e, de modo mais arbitrário ainda, evocar a Revolução de 1917 como prova de tal tese.
Assim se constroem os estereótipos e os mitos históricos, por mais que estejam municiados de notas de rodapé e referências bibliográficas.
É revelador observar como aflora, aqui, do nada, a Revolução de 1917. É uma espécie de fantasma que, num caso curioso de anacronismo em que a história anda para trás, assombra boa parte da exposição que Figes apresenta dos séculos 18 e 19.
A seção dedicada ao período soviético pouco ajuda a compreender o que se passou, no geral. O texto se resume, praticamente, a relatos individualizados dos piores momentos da repressão do regime de Stalin sobre alguns intelectuais e artistas.
Aqui, o critério jornalístico adota ênfases panfletárias, uma linguagem bombástica, ausente em todo o resto do livro, que estressa o leitor e bloqueia qualquer entendimento mais racional. Limito-me a observar que a diversidade da cultura do período soviético, que o próprio livro deixa transparecer, põe em dúvida a tese da sociedade "monolítica" que o autor repisa.
Ainda assim, o livro de Figes será útil para o leitor conhecer o fenômeno da arte russa. Contanto que esteja munido de um ferrenho senso crítico e prevenido contra armadilhas retóricas e generalizações afoitas, ele poderá, por conta própria, estabelecer relações entre os dados que o livro apresenta e, com menos espalhafato, buscar os caminhos para o entendimento da questão.
Um mérito especial é o espaço dedicado ao influxo da cultura dos mongóis, ou tártaros. Pois Gengis Khan e as tribos nômades que formaram a chamada "Horda de Ouro" ocuparam boa parte do território eslavo por 200 anos, do século 13 ao 15. A riqueza da contribuição desses invasores, que acabaram por se integrar à vida russa, não costuma ser destacada.
Outro benefício que o livro oferece está nas referências à pintura russa do século 19, pois é um período bem menos lembrado do que aquele dos artistas de vanguarda das primeiras décadas do século 20.
Grandes pintores como Levitan, Riépin, Venetsiánov, Verescháguin, Vasnetsov são comentados com algum destaque, e suas obras merecem ficar ao lado das melhores de seu tempo.

Análise de Rubens Figueiredo, para a Folha de São Paulo. Rubens Figueiredo é tradutor e escritor. 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Você também sofre com a solidão a dois?

Muitas mulheres que tenho pesquisado estão insatisfeitas com seus casamentos. Elas sentem falta de escuta, de conversa, de atenção, de reconhecimento, de intimidade etc. Algumas ainda dizem que "falta tudo".
Uma professora de 43 anos disse que sofre com a "solidão a dois":
"Ele chega e vai direto para o computador, nem me dá um beijo ou um abraço. Simplesmente me ignora, eu me sinto invisível. Ele destruiu minha autoestima. Não me conta como foi o dia dele, não pergunta como foi o meu. Faço tudo sozinha, ele não gosta de sair de casa, ir ao cinema, jantar fora, viajar. Dizem que é impossível ser feliz sozinha, mas eu acho que a pior solidão é a solidão a dois."
O marido da professora, um engenheiro de 47 anos, reclama de falta de paz e de compreensão:
"Mal abro a porta e começam as cobranças e reclamações. Ela diz que não ajudo em nada, que não escuto o que ela fala, que não valorizo o trabalho dela. É um poço de insatisfação. Trabalho o dia inteiro e quero paz em casa, mas ela vive me criticando. Pior ainda, ela adora me desvalorizar na frente de todo mundo e me comparar com os maridos maravilhosos das amigas."
Tenho observado casamentos que parecem um permanente jogo de dominação. Com suas "brincadeiras", críticas, provocações e implicâncias, muitos casais sentem prazer em envergonhar, humilhar e desvalorizar o parceiro, até mesmo publicamente. Em vez de companheiros, transformam-se em adversários que conseguem destruir a autoestima e a paz do outro.
Ele e ela afirmam que desejam uma relação mais prazerosa, leve e divertida. Mas enquanto ele enfatiza que quer paz, tranquilidade e sossego, ela afirma que quer mais conversa, atenção, reconhecimento, intimidade, beijo na boca e muito mais.
Perguntei às mulheres insatisfeitas: "Por que, então, você não se separa?". Elas responderam: "não quero que meus filhos sofram", "com o tempo, todo casamento é assim mesmo", "mulher sozinha é estigmatizada como fracassada", "estou muito velha para recomeçar", "nunca mais vou encontrar um homem que me ame", "não tenho coragem", "acho que tenho medo de ficar sem um homem para chamar de meu", "é a cultura do sou
infeliz, mas tenho marido".
Você também sofre com a "solidão a dois"?


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Desde que PT caiu, reveses do combate à corrupção se acumulam

Neste exato momento, as evidências contra Michel Temer são o que PT e PSDB sempre sonharam encontrar um sobre o outro. Quando Dilma caiu, não havia contra ela delação que fosse nem sequer comparável à de Lúcio Funaro contra Temer. Se FHC tivesse sido gravado naquela conversa com Joesley, cairia antes do raiar do dia seguinte.
E, no entanto, Temer acaba de sobreviver a mais uma denúncia. Além da gambiarra de Gilmar Mendes no TSE, já são duas fugas pelo porão do Congresso.
E isso tudo enquanto o Brasil ainda vive sob os efeitos da Lava Jato, a maior investigação de corrupção da história.
Todos os quadros importantes do governo Temer são pesadamente envolvidos nos escândalos. E o que é pior: os escândalos parecem ter destroçado PT e PSDB, que se alternavam no poder, mas deram a Presidência ao PMDB, que foi parceiro de todos os partidos em todos os escândalos.
Ninguém nunca achou que a Lava Jato conseguiria pegar todos os corruptos. Se Temer fosse um caso isolado de picareta que conseguiu fugir, menos mal. Mas há razões para ter medo de que não seja só isso.
Precisamos lidar com a possibilidade de que a janela em que os governantes brasileiros estiveram submetidos à lei, aberta quando o PT chegou ao poder, esteja se fechando.
Os governos petistas eram claramente mais fracos que seus antecessores de centro-direita: eram francamente minoritários no Congresso, nunca tiveram um único veículo de grande mídia que os apoiasse, e estavam sempre sob suspeita do empresariado. A opinião pública teria destroçado o PT se Lula tivesse indicado para o Supremo alguém tão partidário quanto Gilmar Mendes.
Nesse contexto, o jornalismo de denúncia teve uma era de ouro, Joaquim Barbosa prendeu os acusados do mensalão enquanto o grupo deles ainda estava no poder, e a Lava Jato começou seu trabalho.
Desde que o PT caiu, os reveses do combate à corrupção se acumulam. A boa notícia é que a melhor imprensa não deixou de denunciar os escândalos contra Temer; mas o apoio de todos os grandes veículos às reformas acaba colocando um limite no tom e na ênfase. O empresariado provavelmente preferia um governo liberal e honesto, mas, já que não há nenhum em oferta, acaba aceitando um liberal e corrupto. E a esquerda na oposição simplesmente não é forte o suficiente para sustentar politicamente quem enfrentar o novo grupo no poder.
Veja que o problema não é que o PT fosse inocente. É que ele era mais fraco. Sergio Moro nunca correu risco nenhum de ser escrachado pela opinião pública enquanto processava Lula, mas Rodrigo Janot foi massacrado por desmascarar Temer. Não há como comparar o poder de fogo dos blogs petistas anti-Moro com o da atual turma chapa branca.
Na última quarta-feira, após a vitória de Temer, o deputado Cunha Boy Carlos Marun (PMDB-MS) dançou para as câmeras cantando "Tudo está no seu lugar", de Benito di Paula.
As coisas não estão onde deveriam estar, Marun, mas, ao que parece, estão voltando para onde estavam antes. A janela de transparência de 2003-2016 parece estar se fechando sob governos mais fortes que os petistas. Resta torcer para que Justiça e imprensa tenham acumulado forças suficientes nesse período para sobreviver na nova fase.
Até agora, só perderam.


Texto de Celso Rocha de Barros, na Folha de São Paulo