terça-feira, 21 de novembro de 2023

Sem 'mas' e sem Hamas


O que o grupo terrorista Hamas fez no dia 7 de outubro não encontra justificativas de ordem alguma por mais opressiva e inaceitável que seja historicamente a situação na Faixa de Gaza. A reação desproporcional de Bibi Netanyahu igualmente não tem perdão e iguala a ação governamental aos atos do Hamas.

Não é falsa simetria coisa nenhuma. Como o Hamas tem a desfaçatez ao dizer que seus objetivos eram militares ao invadir rave e kibutzim, mente Israel ao declarar que se esmera para não matar civis.

O Hamas age para que a reação aos seus atos aumente a indignação do lado árabe e Bibi faz o jogo dele, pessoa física, e do Hamas, pessoa jurídica. O jogo dele é o de um extremista de direita corrupto em busca de sobrevida política como fez o ditador Leopoldo Galtieri, o general que levou 649 jovens argentinos à morte no confronto com a Inglaterra de Margaret Thatcher, que perdeu 255 soldados nos dois meses da Guerra das Malvinas, em meados de 1982.

Galtieri e a ditadura caíram em seguida, destino que Bibi deverá seguir com as mãos ensanguentadas pelo terror imposto ao terror.

Nada mais exemplar para os dias vividos pelo planeta que a dificuldade das pessoas em chamar as coisas por seus nomes e achar "mas" e "mas" para puxar a sardinha para suas brasas, mesmo que nelas sejam queimadas crianças, mulheres, idosos e civis, de ambos os lados.

Que a única solução duradoura para o conflito é o Estado Palestino soberano, como determinou a ONU há mais de meio século, é chover no molhado.

A imediata devolução dos reféns pelo Hamas, o cessar-fogo e a ajuda humanitária às vítimas se impõem.

Parar de amenizar as mais de 11 mil mortes em Gaza como reação às mais de 1.000 em Israel, idem.

Deixar de mentir sobre quem é mais cruel, idem ibidem.

Responder com antissemitismo à estupidez de Bibi é dar a vitória ao Hamas, tudo o que deseja quem não quer a paz. Insuflar a islamofobia é consagrar os métodos de Bibi.

O governo Netanyahu foi eleito, dizem os extremistas que o apoiam para chamar de democrático o governo de Israel. É verdade. Adolf Hitler também foi fruto da democracia.

Quem é tratado feito animal reage como tal, argumentam os extremistas em apoio ao Hamas. É fato. E morrem milhares de inocentes que não escolheram agir como animais.

"O Hamas errou, ‘mas’, também, vive em prisão a céu aberto. Reagiu", dizem os rubros-negros.

"O governo de Israel passou dos limites, ‘mas’, também, tinha de reagir ao maior ataque aos judeus desde o Holocausto", retrucam os tricolores.

E não aparece Diego Maradona para fazer o gol com a mão de Deus para botar a questão em outros termos.

Dia desses, ao almoçar com brilhante economista, e otimista amigo judeu, sobre a aparente não solução no Oriente Médio, ouvi dele surpreendente previsão: "Esta guerra acabará em poucos dias, Netanyahu cairá e o Estado da Palestina é inevitável", cravou.

Não satisfeito, saiu-se com esta, já no café, como se estivesse brincando com assunto tão sério, qualidade rara de quem brinca consigo mesmo: "E a solução para Jerusalém é muito mais simples do que pensam: basta entregá-la para o Vaticano administrar".

Registre-se que em nenhum momento o amigo usou a indevida conjunção adversativa. O "mas" está fora de seu vocabulário.

Se não tem "mas", tem "mais": mais humanismo, menos terrorismo.


Reprodução de texto de Juca Kfouri na Folha de São Paulo.

Guerra transforma Gaza em cemitério para crianças


Descalço e chorando, Khaled Joudeh, de 9 anos, corre em direção às dezenas de corpos envoltos em lençóis brancos, cobertores e tapetes do lado de fora da necrotério superlotado em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza.

"Onde está minha mãe? Eu quero ver minha mãe", chora ele. "Onde está Khalil?" continua, entre soluços, enquanto pergunta pelo seu irmão de 12 anos. Um funcionário, então, abre um sudário branco para que Khaled possa beijar seu irmão pela última vez.

Depois, ele se despede de sua irmã de 8 meses. Outro lençol é puxado e revela o rosto ensanguentado de uma bebê. Khaled começa a soluçar novamente ao identificá-la para a equipe do hospital. Seu nome era Misk, almíscar em árabe.

"Mamãe estava tão feliz quando teve você", sussurra ele, tocando gentilmente a testa da bebê enquanto lágrimas escorrem do seu rosto para o dela.

Khaled se despediu de sua mãe, seu pai, seu irmão mais velho e sua irmã —os corpos de todos eles alinhados ao seu redor. Apenas ele e seu irmão mais novo, Tamer, de 7 anos, sobreviveram ao que parentes e jornalistas locais disseram ter sido um ataque aéreo em 22 de outubro que derrubou dois prédios onde sua família estendida se abrigava.

Um total de 68 membros da família foram mortos naquele dia enquanto dormiam em suas camas em Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza, relataram três parentes de Khaled. Segundo os familiares, vários ramos e gerações dos Joudehs estavam se reunindo antes do ataque, incluindo alguns que haviam fugido do norte de Gaza, conforme Israel havia ordenado aos moradores. O exército israelense diz que não pode responder a perguntas sobre o bombardeio.

Os membros da família foram enterrados juntos, lado a lado, em uma longa sepultura, disseram parentes.

Gaza, adverte a ONU, tornou-se "um cemitério para milhares de crianças". Autoridades de saúde no território afirmam que 5.000 crianças palestinas foram mortas desde o início dos ataques israelense. Muitos funcionários internacionais e especialistas familiarizados com a forma como os números de mortos são compilados em Gaza dizem que os números são geralmente confiáveis.

Se estiverem realmente precisos, mais crianças foram mortas em Gaza nas últimas seis semanas do que as 2.985 crianças mortas nas principais zonas de conflito do mundo combinadas, em duas dezenas de países, durante todo o ano passado, de acordo com contagens verificadas de mortes em conflitos armados da ONU.

O exército israelense afirma que, diferentemente do "ataque assassino contra mulheres, crianças, idosos e deficientes" promovido pelo Hamas em 7 de outubro, as forças israelenses tomam "todas as precauções viáveis" para "mitigar danos" a civis.

Mas o ritmo furioso dos bombardeios —mais de 15 mil até o momento, segundo o exército israelense, incluindo no sul de Gaza também— torna a campanha aérea israelense no território palestino uma das mais intensas do século 21. E está acontecendo em um território urbano denso e sob cerco, com alta concentração de civis.

Depois de questionar inicialmente o número de mortos relatado pelas autoridades de saúde em Gaza, a administração Biden agora diz que "muitos" palestinos foram mortos, admitindo que os números reais de vítimas civis podem ser "ainda maiores do que estão sendo citados".

Na sala de emergência do Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza, o doutor Ghassan Abu-Sittah diz que muitas crianças foram trazidas de escombros sozinhas e em estado de choque, com queimaduras, ferimentos por estilhaços ou lesões graves causadas por esmagamento. Em muitos casos, segundo ele, ninguém sabia quem eram.

"Elas recebem uma designação —'Criança traumatizada desacompanhada'— até que alguém os reconheça", diz ele. "A coisa paralisante é que alguns deles são os únicos sobreviventes de suas famílias, então ninguém nunca vem", continua. "Cada vez mais, parece uma guerra contra crianças."

O exército israelense afirma que "lamenta qualquer dano causado a civis (especialmente crianças)", e acrescenta que está examinando "todas as suas operações" para garantir que elas sigam suas próprias regras e cumpram o direito internacional.

Um número crescente de grupos de direitos humanos e autoridades, porém, argumenta que Israel já violou essa lei.

Depois de condenar os ataques "hediondos, brutais e chocantes" do Hamas como crimes de guerra, Volker Türk, alto comissário da ONU para os direitos humanos, disse neste mês que "a punição coletiva de Israel aos civis palestinos também equivale a um crime de guerra, assim como a evacuação forçada ilegal de civis".

"Os bombardeios massivos de Israel mataram, mutilaram e feriram especialmente mulheres e crianças", acrescentou. "Tudo isso tem um preço insuportável."

Muitas crianças estão mostrando sinais claros de trauma, incluindo terrores noturnos, afirma Nida Zaeem, uma oficial de saúde mental do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Gaza.

"Eles acordam gritando e chorando", diz Zaeem de um abrigo da Cruz Vermelha, em Rafah. Todas as noites, acrescenta, as crianças no abrigo acordam gritando: "Vamos morrer, vamos morrer". "Eles gritam, imploram: 'Por favor, me proteja, por favor, me esconda. Eu não quero morrer'", conta ela.

Gaza, uma faixa costeira no Mediterrâneo, costumava ter uma cultura de praia animada. Yasser Abou Ishaq, 34, lembra como costumava ensinar suas três filhas pequenas a nadar. "Elas sempre me pediam para ir à praia, ao parque de diversões, aos parques", conta ele. "Eu adorava vê-las brincar."

Amal, a mais velha, de 7 anos, foi nomeada em homenagem à sua mãe. Na escola, ela era uma boa aluna com uma caligrafia excelente, lembra ele. Em casa, ela se tornava a professora que fazia sua irmã mais nova, Israa, de 4 anos, que adorava chocolate e brinquedos Kinder, brincar de ser sua aluna.

Ele conta que, quando sua casa foi destruída por um ataque aéreo, perdeu ambas, além de sua mulher. No total, 25 membros de sua família, 15 deles crianças, foram mortos, diz ele. O exército israelense afirma que não pode responder a perguntas sobre o ataque.

Abou Ishaq conta que ele e sua filha de 1 ano, Habiba, foram feridos e levados para o hospital. A maioria de sua família, incluindo sua esposa e sua outra filha, foi retirada dos escombros no mesmo dia e enterrada por parentes, enquanto ele ainda estava sendo tratado.

No dia seguinte, o corpo de Israa foi retirado dos escombros, diz ele. Abou Ishaq conseguiu vê-la na sala do hospital e segurá-la pela última vez. "Eu a abracei e beijei. Me despedi e chorei", diz ele. "Só Deus sabe o quanto eu chorei."


Reportagem de Raja Abdulrahim, Samar Abu Elouf e Yousef Masoud para o New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo