sábado, 30 de novembro de 2013

Paris, a valiosa parceira na espionagem da NSA

A indignação manifestada pelo chefe do Estado francês junto a seu homólogo americano, depois que o "Le Monde" publicou no final de outubro documentos internos da Agência Nacional de Segurança (NSA), mostrando a extensão da espionagem sobre os interesses franceses, dava a entender que a França seria uma perfeita vítima.
Novos documentos que foram repassados ao "Le Monde" por Edward Snowden, um ex-consultor da NSA, revelam uma outra realidade: a das ligações extremamente estreitas entre os serviços secretos franceses – Direção Geral dos Serviços Externos (DGSE) – tanto com a NSA quanto com seu equivalente britânico, o GCHQ [Government Communications Headquarters], ou seja, as duas mais poderosas estruturas de interceptação técnica do mundo.
Esses novos elementos mostram como e até que ponto, em nome do combate ao terrorismo, a DGSE construiu e estruturou suas relações com os Estados Unidos e o Reino Unido. A cooperação se desenvolveu no terreno da inteligência técnica e humana. Como parte de uma troca, tomou-se depois a decisão de transferir à NSA e ao GCHQ estoques maciços de dados que transitam em solo francês.
Esses documentos internos da NSA e do GCHQ atestam que as decisões inerentes à criação desse depósito de dados privados e públicos franceses em um amplo fundo comum foram tomadas, em grande parte, por diretores dos serviços secretos técnicos desses países. Eles levantam a questão do poder e do lugar ocupado pelos técnicos da inteligência que puderam, em certos aspectos, se libertar de sua tutela política e das leis que protegem as liberdades.
A primeira nota, do dia 6 de agosto de 2007, veio da direção da NSA encarregada da inteligência por transmissões eletrônicas. Ela carregava o carimbo "top secret", o mais alto grau de classificação. Redigida pela chefe do escritório em Paris e destinada a seus superiores, ela indica que a relação com a DGSE havia "entrado em uma nova dimensão."
A partir de agora, ela escreveu, graças a "uma franca discussão entre a direção das relações exteriores da NSA e a direção técnica da DGSE, iniciada em novembro de 2006, sobre as necessidades de informações e sobre a ideia de criar um modelo de referência em termos de parceria", as trocas não se dariam somente sobre os dados técnicos, mas também sobre as informações em posse de cada um dos serviços secretos.
A chefe do escritório enfatiza o papel central exercido por Bernard Barbier, o diretor técnico dos serviços secretos franceses. "Sua atitude é muito pragmática em relação à NSA sobre questões delicadas e essa mudança de escala na troca de análises surgiu na ocasião de sua visita à NSA em dezembro." Até hoje, ela diz, o compartilhamento de análises era "entravado" pela direção da DGSE.
Agora, comemora a autora da nota, a direção da inteligência da DGSE trará todas suas informações para a conversa com a NSA sobre a África e as questões de contraterrorismo. "Os analistas franceses descobriram que os analistas da NSA tinham muito a oferecer e então ofereceram muito."
Esse acordo foi feito em todos os níveis. No dia 1o de fevereiro de 2007, o chefe da divisão para a África da direção da inteligência da DGSE se encontrou, juntamente com dois analistas, seu homólogo da NSA para a África subsaariana. Segundo a nota, eles falaram essencialmente da crise em Darfur. Outras reuniões foram organizadas para tratar da Costa do Marfim e da República Democrática do Congo. A NSA elogiou os franceses por terem cedido uma carta confidencial que indicava a localização de acampamentos militares em torno do Congo.
No dia 7 de fevereiro de 2007, uma delegação de espiões franceses foi até a NSA para fazer uma apresentação "muito detalhada", avalia a nota, sobre as duas prioridades da DGSE: o Hezbollah no Líbano e a AQMI no Sahel. A partir de então, as trocas seriam institucionalizadas. "Uma visita a Paris nos dias 19 e 20 de março de 2007 para tratar da AQMI. No dia 25 de abril, a DGSE procurou a NSA a respeito dos Bálcãs." E conclui: "Ainda haverá muito a se tirar dessa parceira nessa relação que só está começando."
Um ano mais tarde, graças a uma outra nota obtida por Edward Snowden e já mencionada pelo "The Guardian", descobriu-se que a DGSE também estreitou sua cooperação com o GCHQ britânico. "A DGSE é uma parceira extremamente motivada e competente do ponto de vista técnico que mostrou uma grande vontade de investir em protocolos de internet e trabalhar com o GCHQ na base da cooperação e da troca."
Em março de 2009, os britânicos receberam seus colegas franceses para falar sobre monitoramento da internet em grande escala. Em julho de 2009, os dois parceiros se voltaram a encontrar e continuaram suas conversas sobre aquilo que foi descrito como "o maior desafio do GCHQ": "a continuação das intercepções maciças quebrando os sistemas de encriptação entregues por fornecedores privados." O documento também elogia o caráter "muito amigável" dessas reuniões. Os franceses são apresentados como "muito dispostos" a transmitir seu conhecimento em matéria de encriptação.
Segundo um oficial de alto escalão da comunidade da inteligência na França, esse compartilhamento não está isento de alguns "segredos de ambos os lados." Mas, segundo ele, a DGSE aprofundou ainda mais sua relação com seus parceiros anglo-saxões, sobretudo a NSA, a partir do final de 2011 e início de 2012, adotando um protocolo de troca maciça de dados. A França usufrui de uma posição estratégica em matéria de transporte de dados eletrônicos através de cabos submarinos. Esse fluxo de informações entre a França e outros países, essa "matéria-prima", como classifica a NSA em uma nota revelada por Snowden, é alvo de uma ampla interceptação por parte da DGSE.
Mas o material fornecido à NSA, em grande parte retirado dos cabos, mas não somente, não é uniforme. Os dados coletados têm características técnicas muito variadas e complexas. Eles pertencem tanto a franceses quanto a estrangeiros. A DGSE pode triar centenas delas e assim preservar segredos que dizem respeito à França, mas ela não consegue identificar tudo.
"São várias as razões", explica o mesmo oficial. "Primeiro, não há uma bandeira azul, branca e vermelha atrás de cada endereço. Além disso, certas encriptações podem ser inacessíveis por um período razoável. Por fim, o tratamento de dados eletromagnéticos, por exemplo, requer recursos técnicos dos quais a França não dispõe."
Resultado: o nível de cooperação é tão grande que hoje os dados pessoais que vêm da África ou do Oriente Médio, transitam pela França e pertencem a indivíduos de nacionalidade francesa – empresários, diplomatas, ou até agentes da DGSE em missão – ou mesmo chefes de Estado africanos, podem todos cair nas mãos da NSA justificado pelo combate ao terrorismo.
Se os metadados sobre cidadãos franceses coletados e armazenados pela DGSE escapam da legislação francesa, o que dizer dos que são entregues à NSA? Pessoas próximas de Alain Zabulon, coordenador nacional da inteligência, afirmavam, na quinta-feira (28), "que até se sabia, a DGSE triava todos os dados entregues à NSA". A DGSE se negou a fazer qualquer comentário. As autoridades americanas, que não responderam, continuaram se recusando a falar em documentos protegidos por sigilo.

Reportagem de Jacques Follorou, para o Le Monde, reproduzida no UOL.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Nilton Santos, a 'enciclópedia do futebol', morre aos 88 anos


Nilton Santos, lateral esquerdo bicampeão mundial com a seleção brasileira, morreu nesta quarta-feira, aos 88 anos. Velório e enterro serão nesta quinta-feira, no Rio.
Nascido em maio de 1925 na Ilha do Governador, o ex-jogador foi internado com insuficiência respiratória no dia 23 de novembro, no Centro de Tratamento Intensivo (CTI), de um hospital do Rio. Ele sofria da doença de Alzheimer e passou os últimos anos em uma clínica para idosos, com auxílio do Botafogo.
Segundo o boletim médico, Nilton morreu em decorrência de pneumonia comunitária, prejudicadas pela doença de Alzheimer e por insuficiência cardíaca grave.
Nilton Santos ganhou o apelido de "Enciclopédia de Futebol" pelo talento e a capacidade de encantar o torcedor adquiridos ao longo da carreira. Jogou por apenas um clube, o Botafogo, onde disputou 723 partidas de 1948 a 1964 e fez 11 gols. Além da camisa alvinegra, só defendeu a seleção brasileira, com 84 jogos disputados. Disputou os Mundiais de 1950, 1954, 1958, e 1962.
Em 1998, foi incluído pela Fifa numa seleção dos melhores jogadores de todos os tempos.
Jogando numa época em que os laterais eram basicamente defensores, Nilton Santos abriu caminho para os laterais atacarem. Marcou inclusive um gol pela seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958, contra a Áustria. Em 1950, chegou a ir para o banco justamente por ter desagradado o técnico que o viu ir para o ataque.
Outra jogada que entrou para a história do futebol protagonizada por Nilton Santos aconteceu na Copa do Mundo de 1962, desta vez não pelo talento, mas pela inteligência. Após cometer falta dentro da área em um jogador da Espanha, Nilton deu um passo à frente para sair da área, o que levou o juiz a marcar falta, em vez de pênalti.

GARRINCHA

Nilton também fez história no futebol brasileiro fora das quatro linhas. Já consagrado, teve de enfrentar em um treino do Botafogo um jovem desconhecido e malvisto por ter as pernas tortas. A dificuldade para marcar Mané Garrincha naquela atividade levou o lateral a convencer o Botafogo a contratar o homem que viria a ser o maior nome da história do clube.
Depois de encerrar a carreira, Nilton chegou a fazer parte da cúpula do futebol do Botafogo, mas a carreira como dirigente chegou ao fim quando agrediu com um soco o então árbitro Armando Marques, após uma partida no Maracanã, em 1971.
Ele chegou a ter uma escolinha de futebol em Uberaba (MG) antes de se mudar para o Distrito Federal.

BOTAFOGO

O Botafogo publicou em sua página na internet uma nota de pesar sobre a morte de um de seus melhores jogadores.
"O Botafogo de Futebol e Regatas lamenta o falecimento do eterno ídolo Nilton Santos, o maior lateral-esquerdo de todos os tempos. Aos 88 anos, Nilton Santos sofria com o Mal de Alzheimer.
Tão adorado quanto Garrincha. Tão respeitado quanto Pelé. Com sua habilidade e categoria, Nilton Santos ultrapassou o conceito de maior lateral esquerdo da história do futebol mundial. Ao ser chamado de "A Enciclopédia do Futebol", teve de forma definitiva o merecido reconhecimento de sua incrível capacidade de encantar o torcedor. Em toda sua carreira jogou apenas no Botafogo e, além do Glorioso, a única camisa que usou foi a da seleção brasileira. No Botafogo, disputou 723 partidas, e marcando 11 gols. Na seleção, fez 84 jogos, marcando 3 gols.
Segurança na marcação era uma de suas virtudes. Com sua dinâmica de jogo, tornou-se o precursor dos laterais que buscavam o ataque, tendo marcado um gol na Copa de 1958, contra a Áustria, fato raro na época em que lateral era apenas marcador de ponta. Se taticamente tinha sua importância para o esquema do Botafogo e da Seleção, foi fora de campo que marcou um de seus mais belos gols: quando, após enfrentar Mané Garrincha num treino, Nilton praticamente forçou o Botafogo a contratar o então desconhecido ponta-direita.
Outra jogada de gênio sempre lembrada aconteceu contra a Espanha, na Copa de 1962, no Chile. Nilton derrubou o atacante espanhol muito perto da linha lateral da grande área, cometendo pênalti. Quando o juiz se aproximava, ele deu um passo à frente, saindo mansamente da grande área, sem estardalhaço. Para sorte do Brasil, enganado, o árbitro não percebeu e acabou marcando falta fora da área.
No alvinegro, Nilton Santos foi campeão carioca quatro vezes (1948, 1957, 1961 e 1962) e conquistou dois Torneios Rio-São Paulo (1962 e 1964). Foi bicampeão mundial pela seleção brasileira, em 1958 e 1962, e esteve também nas Copas de 50 e 54. Nunca perdeu uma decisão e, assim como Garrincha, foi eleito, em pesquisa feita pela Fifa em 1998, para a seleção de todos os tempos. Após encerrar a carreira, Nilton chegou a fazer parte da cúpula do futebol do Botafogo, mas sua carreira como dirigente deixou de existir quando mandou, com um direto, o então árbitro Armando Marques escada abaixo no Maracanã.


Reprodução da Folha de São Paulo

Jogue Bucicleide do helicóptero


Desta vez o choque foi quase insuperável. Eu ainda estava acabrunhada e perguntando a mim mesma o que poderia ter da­do errado, quando minha treslou­cada amiga Bucicleide surgiu do nada, aparentemente para injetar ânimo em minhas veias.
"Não é possível, Buci, digo, Cleide, não entendo", desabafei. "O que é que Dubai tem que São Paulo não tem?" Não me conformo. Como pode a locomotiva do Brasil, exem­plo de cidade de gente que faz e, quando não quer fazer, tem quem faça por ela, ter perdido para uma aldeia de adestradores de camelos, comedores de tâmaras, trepadores em miragens de palmeiras na com­petição para sediar a Expo 2020?
Dubai não fica lá na região da no­vela "O Clone"? Pois então. Vá ver se naquele fim de mundo tem pisci­não, vá examinar se chove e escoa como aqui, se eles possuem 300 km de corredores de ônibus para ornar as avenidas, se tem prefeito boneco Ken ou ruas com lindas guaritas, se produzem o tanto de lixo por reco­lher que a gente vê em nossas calça­das, vá! Só quem gera riqueza pro­duz lixo, sabia não, seu bando de desinteligentes que votou com a bunda em vez do cérebro?
Eliminar nossa potência logo na primeira rodada com apenas 13 vo­tos de 163 possíveis para dar a vitó­ria a uma tribo de nômades fazedo­res de xixi na areia é treta. Está na cara que tem harabishueba nesse negócio.
Bucicleide, que estava esperando meu desabafo chegar ao término com paciência de cuidador de pes­soas idosas, soltou um suspiro tão dolorido que forçou um ponto final em minha fala. "Olha só, dona Bar­barica, não é sobre isso que vim ter", anunciou. "Ah, não? Então do que estamos tratando?"
Buci mandou na bucha: "Quero arrumar um jeito de filar a bóia lá na fazenda dos Perrella, você que é jornalista e conhece todo mundo, não teria um contato bom para me apresentar, não?"
E quem seriam "os Perrella"? De­veria ter desconfiado da compaixão daquele ouvido amigo. Eterna inte­resseira, Bu (sim, Bu) foi tratando de explicar. "Fiz uns cálculos e che­guei à conclusão de que os 445 kg de cocaína apreendidos no helicópte­ro da empresa do deputado Gusta­vo Perrella (SDD-MG), devem va­ler 50 milhões no mercado".
Sei. E daí? "Daí que o piloto do he­licóptero dos Perrella recebe R$ 1.700,00 ao mês. E o advogado do parlamentar disse que o funcioná­rio estaria fazendo bico' naquele dia, sabia?" Não. "Pois é, mas piloto de helicóptero não ganha perto de R$ 15 mil?" E eu lá sei? Não sou pi­loto, ora bolas!
Senti uma mudança no tom de voz. "Ah, é? Então me diga: por que a PF não informou a quem perten­ce a fazenda em que o helicóptero pousou para descarregar a merca­doria? Qual o padrão de vida de um piloto de helicóptero que transpor­ta carga ilícita avaliada em R$ 50 milhões? Por que não foi divulgado o resultado da quebra do sigilo telefônico do deputado Gustavo Perrella, 28, ou de seu pai, o sena­dor Zezé Perrella (PDT-MG), que já foi acusado de enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro e eva­são de divisas? Sabemos se há regis­tro de conversas com o piloto?"
Nossa Bucicleide, você não tem mais o que fazer? Mas, em vez dizer isso em alto e bom tom, acabei per­guntando: "Por que você quer ir fi­lar a bóia na casa dessa gente, me explica?" Buci fez cara de pau de es­panta cupim e revelou enfim: "Ué, porque a comida na casa dos Per­rella deve ser ótima. Só pode ser por causa dela que um sujeito qua­lificado como piloto aceita receber um salário 10 vezes inferior ao do mercado para depois correr um baita risco traficando droga em ae­ronave roubada, né?"


Arábia teve reinado cristão antes do Islã

Arábia teve reinado cristão antes do Islã
Escavação feita no Iêmen revela palácio com a imagem de monarca que usava cruz cristã e tinha vestes bizantinas
Soberano pode ter sido rei fantoche dos etíopes, aliados dos romanos, que já tinham adotado cristianismo
REINALDO JOSÉ LOPESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Poucas décadas antes do nascimento de Maomé, a Arábia era o lar de um rei que usava a cruz cristã como símbolo de seu poder.
Escavações feitas por arqueólogos da Universidade de Heidelberg, Alemanha, trouxeram à tona a parede monumental de um palácio no qual a imagem do monarca (cuja identidade é incerta) foi gravada, provavelmente pouco antes de 550 d.C.
Em tamanho natural --cerca de 1,70 m de altura--, com uma longa túnica e um cetro encimado por uma cruz, a imagem lembra mais os imperadores bizantinos que os atuais xeiques do deserto.
A análise desse retrato e a estimativa de datação estão em artigo na revista científica "Antiquity", assinado por Paul Yule, do Departamento de Línguas e Culturas Orientais de Heidelberg. Yule e seus colegas acharam a imagem em alto-relevo nas ruínas da antiga cidade de Zafar, no Iêmen.
Zafar foi, por séculos, capital do reino de Himyar, cujo poderio chegou a se estender por 2,5 milhões de quilômetros quadrados (pouco mais de um quarto do Brasil).
Textos da época do Império Romano, bem como algumas inscrições nativas, trazem dados sobre a história de Himyar, mas muito do que aconteceu nesse reino perdido continua misterioso.
Sabe-se que a região era estratégica para o comércio de especiarias, perfumes e objetos de luxo no oceano Índico, em um quadrilátero comercial que envolvia também Etiópia, Índia e Roma.

CRISTÃOS VERSUS JUDEUS

Quando os romanos adotaram o cristianismo no século 4º d.C., seus aliados e parceiros comerciais começaram a considerar se valia a pena adotar a nova fé. Na Etiópia, o reino de Axum (principal potência africana da época), seguiu esse caminho, mas a nobreza de Himyar decidiu agir de forma independente.
"Na época, como agora, religião e política estavam fortemente ligadas", diz Yule. Tudo indica que, para marcar a posição não subordinada aos romanos e entrar no "clube" dos povos que adoravam o suposto "Deus verdadeiro", os nobres de Himyar se converteram ao judaísmo.
Parecia uma solução politicamente brilhante, mas o xadrez geopolítico da região se complicou. O Império Romano do Oriente, governado a partir de Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), resolveu aliar-se aos etíopes para impor seu controle, inclusive religioso, sobre Himyar. Motivo: a área também era considerada estratégica no confronto entre Constantinopla e os persas, seus arqui-inimigos. Por carta, o imperador romano Justino 1º exigiu que os aliados etíopes atacassem "aquele hebreu abominável", o rei Yusuf (José), de Himyar.
Yusuf foi derrubado do trono em 525 d.C. A descoberta dos alemães sugere que o ataque deu frutos políticos, e que o trono passou a ser ocupado por um rei fantoche dos etíopes. A hipótese é reforçada pelos detalhes da coroa e das vestes do soberano, que imitam retratos reais etíopes e bizantinos da época.
"Os contatos com o reino de Axum parecem ter sido o elemento mais importante nessa transição", diz Paul Freedman, professor da Universidade Yale (EUA).
"Com os dados atuais, não há dúvidas sobre a instalação de um regime cristão no sudoeste da Arábia entre os anos 525 e 560", diz Glen Bowersock, historiador de Princeton (EUA).
Tudo indica que esse reino entrou em colapso logo depois, e a cidade de Zafar foi abandonada. A região voltou a ser dominada por grupos tribais até a ascensão do islamismo a partir do ano 622.
Pode-se dizer que o Islã seguiu estratégia parecida com a dos reis de Himyar antes da invasão etíope: adotou elementos tanto do cristianismo (veneração a Jesus e Maria) quanto do judaísmo (associação com Abraão), mas com características locais que davam independência à fé.


Reprodução da Folha de São Paulo

Adorável 'Jovem e Bela'

Adorável 'Jovem e Bela'


"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes franceses conseguem ser.
Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns pontos (sem "spoilers").
1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.
2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família: eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.
Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora, joguem com o irmão ou namorem com a irmã.
Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais: dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de casa.
Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?
3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.
4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site. Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.
5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o irmãozinho.
Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia "Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud, 17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa história de amor dos dois amigos.
Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14. Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.
Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas possíveis.
A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma arma para pegar inocentes desprevenidos.
A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam. Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.


Educação e produtividade

O assunto me rondou no último feriadão. No sábado, 16/11, o correspondente do "Estado de S. Paulo" Gustavo Chacra destacou no Twitter que universidades europeias estão sendo chamadas de fábricas de desempregados, o que me fez comentar que ainda há quem acredite que os problemas na educação sejam a causa definitiva do subdesenvolvimento brasileiro. Como não notar que a geração mais bem preparada da história da Espanha está desempregada?
A repercussão foi grande para o padrão de meu Twitter (@mtmiterhof). No dia seguinte, na Folha, o ex-presidente do BC Henrique Meirelles involuntariamente sumarizou os argumentos levantados contra meu comentário.
Seu objetivo era discutir como o Brasil pode elevar a produtividade para superar as restrições ao crescimento. A partir de um estudo do Banco Mundial, sua conclusão é que há uma relação direta do nível de educação com a produtividade e a renda de um país.
A correlação é inequívoca. O problema é que a simples verificação estatística de que duas ou mais variáveis aparecem simultaneamente na realidade é um campo fértil para mal-entendidos acerca da causalidade entre elas.
É difícil negar que a educação influencia a produtividade. Para Meirelles, um nível maior de aprendizado, medido em testes internacionais, é o que efetivamente eleva a produtividade. A cadeia de causalidade se completa com o entendimento de que elevar produtividade é condição para permitir acelerar o crescimento.
De fato, uma boa escola prepara trabalhadores mais capazes para tudo. Cursos técnicos formam mão de obra para setores complexos. Ter universidades de alto nível é crucial para o desenvolvimento tecnológico. Aliás, ter uma boa educação é desejável independentemente de seus efeitos econômicos.
Contudo, será que deficiências na educação são um obstáculo tão severo aos ganhos de produtividade? Afinal, um mexicano, ao cruzar a fronteira para trabalhar numa fábrica nos EUA, tem sua produtividade elevada algumas vezes.
No capitalismo, o principal mecanismo de aumento da produtividade é incorporar novas máquinas e obras civis, como em infraestrutura.
Em geral o progresso técnico ocorre de forma que os novos bens produzidos, de capital ou consumo, possam ser manejados por pessoas comuns. Alguns podem exigir treinamento, mas as empresas costumam ter sucesso nisso. No século 20, numa enorme mudança produtiva estrutural, a instalação da indústria de bens duráveis no Brasil empregou trabalhadores recém-emigrados de áreas rurais.
Hoje, a incorporação de tecnologias de informação e comunicação tem um amplo caminho para aumentar a produtividade da indústria e dos serviços. Por que jovens acostumados a usar tablets e telefones inteligentes não se adaptariam?
A falta de profissionais especializados pode em alguns casos ser restrição relevante, porém isso pode ser em parte contornado pela imigração.
Decisivo para a elevação do investimento e da produtividade é a demanda. Não à toa, apesar de sua volatilidade por natureza maior, desde 2005 o investimento cresceu acima do consumo, fazendo a taxa de investimento subir de um patamar de 16% do PIB para cerca de 19%.
A evolução da produtividade acompanha o crescimento (lei de Kaldor-Verdoorn). No Brasil, isso é ainda mais sensível porque a estrutura produtiva é grande, diversificada e heterogênea. Um crescimento baixo protege as firmas arcaicas. Mas uma demanda crescente é facilmente atendida pela atualização produtiva dessas empresas ou pelo deslocamento de trabalhadores para setores mais modernos.
A cadeia de causalidade se completa porque o crescimento também amplia a disponibilidade de recursos para melhorar os serviços públicos, como a educação.
De qualquer maneira, a relação é complexa. O aumento dos gastos para melhorar os serviços públicos é uma forma de distribuir renda e alavancar o crescimento.
Ademais, a atuação indutora do Estado na formação de empresas industriais bem-sucedidas, como discutido nas colunas anteriores, é chave para que o crescimento não seja limitado pela escassez de divisa externa, caso emblemático da Embraer, que, entre outras coisas, envolve o conhecimento produzido no ITA.
Se não é uma restrição absoluta ao crescimento, como indica a ortodoxia, a longo prazo a educação o influencia. O mais razoável parece ser que ter uma boa educação é mais resultado do que causa do desenvolvimento.


Texto de Marcelo Miterhof, publicado na Folha de São Paulo.

Esconde esconde

A acusação do senador Aécio Neves e de outras eminências do PSDB ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, de envolvê-los em ilicitudes para desviar as atenções postas nos petistas presos, não resiste a um simples olhar aos jornais ou telejornais. Até um exame médico de José Genoino continuou mais importante do que a distensão EUA/Irã, do que um pronunciamento conservador do papa aparentemente inovador, do que manifestações de entidades de magistrados e da OAB contra o presidente do STF --e, claro, do que o tal envolvimento de peessedebistas.
Mas uma parte e outra tornam necessárias mais duas linhas investigatórias nessa história de corrupção nas licitações de metrô e trens em São Paulo. "Mais duas" não é bem o caso, porque até agora sabe-se de investigações que o Ministério Público Federal em SP deixou de fazer, mas nada se sabe com certeza de investigação em processamento. A propósito, as condutas que, por vários anos, evitaram investigações aqui e até uma singela colaboração do MP com a investigação suíça deveriam ser objeto de inquéritos rigorosíssimos. Tanto no próprio Ministério Público Federal no Estado, apesar de pouco promissor contra a força do corporativismo, quanto no plano federal, pelo dano a relações internacionais do país.
Aécio Neves começou por acusar de manobra a entrega à Polícia Federal, pelo ministro, de uma carta em que é feito o envolvimento de políticos do PSDB com a corrupção. Mas o que Cardozo deveria fazer senão entregá-la à PF? Ao que parece, o que se deseja é exatamente que toda suspeita de corrupção, como faz a carta, seja encaminhada à PF e suas congêneres. O original da carta, porém, segundo as eminências do PSDB, não incluiria citação alguma ao seu partido, só existente na versão divulgada. Ao que Cardozo responde com a informação de que a carta exibida pelo PSDB, sem as incriminações, tem menos folhas, ou menos texto, do que o original por ele recebido e encaminhado à PF.
Nesta altura, os dois lados nos lançaram no terreno do inacreditável. Aécio Neves, José Eduardo Cardozo e José Aníbal são igualmente inimagináveis como autores ou como coniventes em acréscimos ou supressões documentais para incriminar adversários políticos. Há algo estranho e encoberto no confronto de leviandades mutuamente atribuídas.
Estar encoberto é o traço característico da sequência que começa em dinheirama correndo debaixo de mesas governamentais, segue em contratos que escondem os valores corretos e mergulha no arquivo do Ministério Público Federal em São Paulo, onde uma correspondência de investigação se esconde e esconde a própria investigação --esta, feita na Suíça porque o Brasil não a faz. É necessário e urgente interromper a característica do caso, para esclarecer os sigilos da carta. Um dos lados vai sair mal do esclarecimento. Mas isso, provavelmente, começará a esclarecer o mais importante. Talvez, o mais escondido na história toda.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Privacidade na internet

Os brasileiros formam um dos maiores mercados mundiais de internet. Estimativas recentes avaliam o total de internautas brasileiros em mais de 100 milhões.
Não surpreende, portanto, que uma coalizão de grupos empresariais de internet, hardware, software e telecomunicações, entre as quais Facebook, Google, Microsoft e eBay, esteja fazendo lobby contra as propostas da presidente Dilma Rousseff quanto à segurança na internet.
Os oponentes alegam que o Brasil corre o risco de se excluir da internet. A proposta de Dilma envolve usar um cabo submarino que não passa pelos EUA, criar um serviço criptografado de e-mail, exigir que Google e Facebook armazenem dados sobre brasileiros em servidores instalados no Brasil, e que haja pontos de intercâmbio de tráfego de internet instalados no Brasil.
As medidas propostas são consequência das revelações de Edward Snowden, que denunciou práticas irregulares da Agência Nacional de Segurança dos EUA, a qual espionou e-mails e telefonemas da presidente do Brasil.
Na realidade, Dilma não é a única vítima de espionagem americana. As revelações de Snowden mostram que ela foi apenas um dos 35 líderes internacionais, entre os quais Angela Merkel, cujos celulares foram alvo de escuta dos espiões norte-americanos.
Na ONU, esta semana, uma proposta de Brasil e Alemanha quanto à privacidade na internet e em outros meios de comunicação foi adotada pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, que trata de questões sociais, humanitárias e culturais. A proposta será votada em dezembro pela Assembleia Geral e insta os países a tornar internacional o direito à privacidade, o que abarcaria a "vigilância extraterritorial de comunicações". Os EUA vêm fazendo lobby contra a proposta.
A Comissão Europeia também está agindo para reforçar as normas de privacidade e oferecer resposta à bisbilhotice americana por meio do estabelecimento de "portos seguros" para dados, que evitariam a jurisdição dos tribunais secretos dos EUA, que forçaram companhias de internet sediadas em seu país a entregar dados sobre pessoas que não são cidadãs norte-americanas.
Thomas Traumann, porta-voz de Dilma, declarou que "não estamos regulamentando o fluxo de informações, mas apenas requerendo que dados sobre brasileiros sejam armazenados no Brasil, para que fiquem sob a jurisdição de tribunais brasileiros. Isso nada tem a ver com as comunicações mundiais".
Em abril de 2014, o Rio de Janeiro receberá uma reunião da Icann, a organização neutra que administra o sistema de nomes de domínio da internet. Está claro que essa questão não será solucionada em breve.

Olhar estrangeiro

O prefeito Eduardo Paes (PMDB) comemora agora que o Rio está nas páginas do "New York Times" não pela violência, mas em razão das transformações que acontecem na cidade. O olhar estrangeiro tenta decifrar este país, de inefável desigualdade, que busca ter uma economia de Primeiro Mundo.
Ao tratar da dengue, o jornal alemão "Tagesspiegel" descreve uma favela carioca: "As casas são construídas próximas umas das outras, as ruas são estreitas, as condições de higiene precárias. A confusão de pessoas, animais e bens evoca associações da Idade Média".
O indiano Suketu Mehta escreveu para a "New York Review of Books": "Os brasileiros gostam de se considerar uma sociedade multirracial, mas basta dar um passeio pelas favelas das cidades para que esse mito caia por terra. A maioria dos moradores tem pele escura, muito mais escura do que a da maioria dos ricos, que moram perto da praia ou nos subúrbios, e mais escura do que a da maioria dos jovens que protestaram nas ruas".
Sarcástico, o "NYT" diz que as autoridades estão se esforçando para reinventar a cidade ("onde as diferenças de classe e a corrupção são quase tão inamovíveis quanto as montanhas"). Define o bem-vindo projeto de renovação da região portuária como "grande jogada comercial de um governo preso aos incorporadores imobiliários". Graceja com o Museu do Amanhã ("o que quer que isso possa ser") e ridiculariza quem o projetou ("Santiago Calatrava, o arquiteto do ontem").
O Rio está melhor hoje. A economia cresce. Em algumas áreas já não há fuzis nem balas perdidas. Muito foi investido. Pouco foi discutido. Milhares de famílias ainda vivem em casas de um cômodo, em vielas por onde escorre esgoto e que só se atingem após subir centenas de degraus.
Acostumado à falta de perspectiva, o país deve celebrar avanços, mas indignar-se com o presente.


Texto de Paula Cesarino Costa na Folha de São Paulo

O PSDB deve explicações

Aécio promoveu um showzinho anteontem em Brasília para defender o PSDB de São Paulo das suspeitas de roubalheira nas obras do metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Fez cara de indignado, acusou o governo federal de manipular as instituições para enxovalhar adversários e até cobrou a substituição do ministro da Justiça. Só faltou levantar o punho fechado para o alto.
Embora o presidenciável tenha tentado reduzir o caso a uma simples perseguição política, como fez e ainda faz o PT no mensalão, o escândalo das licitações metroferroviárias em São Paulo é muito mais grave do que isso e recai sobre três governos do PSDB (Covas, Alckmin e Serra).
Três pontos são inquestionáveis. O primeiro é que a multinacional Siemens confessou ter atuado em um cartel entre 1998 e 2008 com o objetivo de partilhar obras e elevar o preço das concorrências em São Paulo. Gigantes como a Alstom, a Bombardier, a CAF e a Mitsui teriam integrado o esquema. O segundo é a condenação, na Suíça, de um ex-diretor da CPTM acusado de lavar dinheiro de corrupção. Por fim, uma conta atribuída a Robson Marinho, que foi chefe da Casa Civil de Covas, foi bloqueada no mesmo país por suspeita de ter recebido propina.
Ainda que tenha ocorrido manipulação política em torno do caso (o ex-diretor da Siemens citou ou não políticos tucanos como beneficiários de corrupção?), é falacioso dizer, como fez Aécio, que tudo não passa de uma reedição do episódio dos "aloprados", quando petistas foram presos com dinheiro que seria usado para comprar um dossiê contra Serra.
As investigações estão apenas no começo e ainda há muita coisa a esclarecer. Mas é difícil acreditar que um cartel desse porte tenha conseguido burlar ao menos cinco licitações bilionárias em SP sem a conivência de autoridades, de maior ou menor escalão. Por mais que Aécio tente confundir as coisas, o fato é que o PSDB deve explicações.


Texto de Rogério Gentile, na Folha de São Paulo

No subúrbio de Londres, os serviços públicos sucumbem ao peso dos imigrantes

Olhando em retrospecto, Grzegorz Sommerfeld teria preferido não vir ao Reino Unido. Faz três anos e meio que esse polonês de 29 anos desembarcou em Slough, um subúrbio popular situado cerca de 30 quilômetros a oeste de Londres, e teve muitas suas dificuldades. Primeiro ele pulou de bico em bico, depois aos poucos acabou ficando sem emprego, nem moradia. Ele dorme ou em um prédio invadido ou em um quarto que um amigo deixa à sua disposição quando este trabalha à noite. "Mas nem penso em voltar para a Polônia como um fracassado", ele diz. "Quero ganhar um pouco de dinheiro antes de fazer as malas."
No Serena Hall, um abrigo para sem-tetos em Slough, histórias como essas vêm se proliferando. "Os poloneses representam mais ou menos metade da população atendida", calcula a voluntária Sam. Eles começaram a chegar há uma década, com a autorização dada em 2004 aos habitantes de oito novos Estados-membros da União Europeia, entre eles a Polônia, de virem trabalhar no Reino Unido. Na época, somente a Suécia e a Irlanda haviam feito o mesmo, enquanto outros, como a França e a Alemanha, adiavam a data.
O governo britânico contava com 13 mil entradas por ano, mas em dez anos chegaram 900 mil pessoas. O primeiro-ministro falou sobre essa imigração em seu artigo no "Financial Times" de 27 de novembro, questionando a livre circulação dentro da União Europeia (UE).
Mesmo entre os mais pobres as tensões vêm aumentando. "Nossa infraestrutura não está aguentando o peso dos recém-chegados", explica Ricky Bowden, um sem-teto. "Somos uma pequena ilha e não estamos mais dando conta". O fato de Ricky, com a voz um tanto pastosa por causa do álcool, estar repetindo quase que literalmente os argumentos apresentados pelos principais políticos do momento, diz muito sobre o debate que tem abalado o Reino Unido. Segundo as pesquisas, a imigração agora é a segunda maior fonte de preocupação dos britânicos, atrás da economia.
Entre os censos demográficos de 2001 e de 2011, a população da Inglaterra e do País de Gales aumentou 7%. A imigração, em sua imensa maioria legal, é a principal causa disso. O afluxo veio dos novos países-membros da UE – um quinto das chegadas - , mas também do subcontinente indiano, da África, do Oriente Médio e da Europa Ocidental. Mas a onda não se distribuiu de forma homogênea pelo país e se concentrou em cidades como Slough, onde a população cresceu 18% em uma década. Essa cidade, onde se encontram várias sedes de grandes empresas, tem um mercado de trabalho de baixa qualificação, que atrai os recém-chegados.
Sua rua principal é prova dessa diversidade. Depois dos mercadinhos mantidos pelos indianos vieram os dos poloneses, que vendem charcutaria e geleia do país. O café do centro comercial é mantido por um libanês, que empregou uma polonesa, uma húngara, uma ganense e um afegão. Na loja que oferece pequenos empréstimos bancários – geralmente algumas centenas de euros, destinados a fechar as contas do mês - , quatro dos cinco funcionários são poloneses.
No geral, os atritos continuam sendo poucos. É difícil encontrar em Slough uma voz negativa contra alguma minoria ou outra. A coesão é até notável, para uma cidade que agora só tem um terço de britânicos brancos, segundo o último censo. "Desde que cheguei, em 2006, nunca senti qualquer tipo de discriminação", conta Robert Burzynski, um engenheiro polonês. "Tem tantos imigrantes que é difícil atacar um grupo específico". Anna Wright, vereadora de Slough, ela mesma uma polonesa que chegou em 2005, confirma: "As comunidades não se misturam necessariamente, mas não chega a haver tensão entre elas."
Os indianos e os paquistaneses, que chegaram uma geração antes, são os únicos que se mostram severos. "Os poloneses bebem demais e os habitantes locais não encontram mais emprego por causa deles", se queixa Shabbir, dono de um mercadinho. Mas, em todo caso, ele tomou o cuidado de colocar algumas palavras em polonês em sua fachada...
Os novos imigrantes são até apreciados, sobretudo pelos empregadores, que os consideram trabalhadores e pouco exigentes quanto às condições de trabalho. A CIP Recruitment, uma agência de trabalhos temporários especialista em indústria alimentícia, 95% dos 600 funcionários são estrangeiros. "Os britânicos não querem trabalhar", acredita Paul Sheppard, um de seus diretores, embora ele mesmo seja inglês.
O problema dessa onda de imigração é outro: os serviços públicos e a infraestrutura estão sobrecarregados. A diretora da prefeitura, Ruth Bagley, faz a lista de suas demandas abissais. "Nós temos 6.500 moradias populares, todas ocupadas, e uma lista de espera de 7.500 pessoas. Nós temos onze escolas secundárias, mas as projeções indicam que é preciso construir mais seis e meia delas. Dentro das fronteiras administrativas da cidade, é algo impossível de se fazer. Slough sempre foi uma cidade muito receptiva, mas pressão é tanta que atingimos os limites físicos".
Não são somente as autoridades públicas que estão se queixando. Em Slough, o YMCA serve de moradia de emergência para pessoas em dificuldades. Seus diretores também acreditam que a pressão demográfica está se tornando insustentável. "Os assistentes sociais não têm mais tempo de fazer seu trabalho da forma devida", explica seu diretor, Colin Young. "Eu, que nasci em Slough, estou contente que tenha imigração, isso torna o lugar muito mais interessante. Mas fomos longe demais e não estamos mais dando conta."
O YMCA também tem um abrigo que recebe seis menores de idade em dificuldades: três vieram da África, dois do Afeganistão e um britânico. Entre eles está Lorissa, uma jovem de 17 anos, vinda de Camarões, que chegou a Slough aos 12 anos de idade. Quando atingir a maioridade, em fevereiro, a jovem, que continua frequentando a escola, corre o risco de ser deportada, uma vez que nunca obteve a nacionalidade britânica. "Minha vida é aqui. Estão me expulsando agora, mas por que deixaram que eu viesse cinco anos atrás?"
Para Edward Reiss, o presidente do YMCA local, "é preciso ser muito mais restritivo para reduzir o número de pessoas que chegam." Agora, até os assistentes sociais estão pedindo por um endurecimento das fronteiras...


Reportagem de Eric Albert. para o Le Monde, reproduzida no UOL

Empresas estrangeiras expulsam cambojanos de suas fazendas


A cada ano, empresas agrícolas estrangeiras privam milhares de agricultores cambojanos de seus campos --e isso com ajuda do governo. Grupos de direitos humanos alegam que dinheiro dos contribuintes alemães é usado para financiar um programa que beneficia os tomadores de terras.

Todo mundo na aldeia cambojana de Chouk lembra do que aconteceu na manhã de 19 de maio de 2006, quando tratores apareceram na Rota Nacional 48, que corta a cidade. Homens de uma empresa tailandesa, a Khon Kaen Sugar Industry PCL, apresentaram documentos aos aldeões cambojanos e disseram: "Esta terra agora nos pertence".

Dezenas de agricultores tentaram deter os tratores quando começaram a destruir suas plantações de arroz. A polícia chegou ao local, disparos foram feitos e uma manifestante foi ferida. Uma cerca de arame farpado agora cerca os campos, que foram transformados em uma plantação de cana-de-açúcar. O agricultor Teng Kao, 53, passa pelas cercas, pula sobre valas e finalmente aponta para um local ao longe. "Ali", ele diz. "Meus campos ficavam ali."

Duzentas famílias de Chouk perderam seu meio de subsistência naquele dia. "Nós não éramos pobres --nós éramos muito pobres", diz o agricultor Chea Sok. "Eu não consigo mais sustentar três refeições por dia." Muitos jovens deixaram Chouk, com alguns se transformando em trabalhadores imigrantes na Tailândia e na Malásia.

Muitos cambojanos sofreram o mesmo destino que os aldeões de Chouk. Empresas e elites privilegiadas, frequentemente membros do Partido do Povo Cambojano do governo, sob o primeiro-ministro Hun Sen, estão tomando posse dos campos e áreas florestais.

As empresas, frequentemente estrangeiras, recebem "concessões econômicas de terras" do governo quando precisam de terras para plantações e fábricas. Organizações não-governamentais cambojanas estimam que cerca de 400 mil pessoas foram expulsas desse modo desde 2003.

'Grande injustiça'

A tomada de terras é um fenômeno mundial, mas o Camboja é único, porque o governo alemão exerce um papel controverso lá. Segundo ativistas de direitos humanos, dinheiro do contribuinte alemão está sendo usado para financiar um programa que beneficia inadvertidamente os tomadores de terras.

"Nós estamos no caminho de nos tornarmos uma sociedade de grandes proprietários de terras", diz Lao Mong Hay, um ativista de direitos civis cambojano veterano. Com sua barba branca, ele se parece um estudioso de Confúcio. "A elite do governo está aliada às grandes empresas, e juntas estão ganhando dinheiro fácil", ele diz. Ele pressiona seus dedos juntos para ilustrar essa aliança profana. "Tudo o que eles precisam é de terras, algumas poucas serras e alguns tratores", ele diz, "e num instante a floresta é cortada".

As empresas estão tirando proveito de uma situação legal não clara. Ninguém sabe exatamente que terra é propriedade privada e que terra pertence ao governo, em parte porque os documentos relevantes desapareceram anos atrás. O Khmer Vermelho, que governou o país de 1975 a 1979, declarou cada centímetro quadrado do território cambojano como sendo de propriedade do governo.

O Parlamento aprovou uma legislação que dá direito a cada cambojano à terra que ele ou ela cultivou por pelo menos cinco anos. Se a terra for tomada, o proprietário precisa ser indenizado. Mas há uma "grande injustiça", diz Lao Mong Hay. "As leis são ruins e são mal implantadas."

Véu de sigilo

Christina Warning da Ação Agrária Alemã (Welthungerhilfe) presenciou isso pessoalmente. "Em uma aldeia", ela diz, "eles embebedaram as pessoas para que colocassem suas digitais no fim do contrato. Tudo o que receberam como indenização foi roupas, remédios e celulares". E deixaram de ser proprietários de seus campos.

No ano passado, o relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no Camboja relatou que apenas uma minoria se beneficia com a concessão de terras, enquanto as empresas operam "por trás de um véu de sigilo".

A situação no Camboja também coloca em dúvida o grau com que os trabalhadores de ajuda humanitária podem trabalhar com um regime autoritário. A tomada de terras provavelmente será tema das negociações entre Alemanha e Camboja em Phnom Penh, no início de dezembro. Thilo Hoppe, um político do Partido Verde alemão, quer que Berlim "suspenda a cooperação do governo" se necessário. O Banco Mundial tomou uma medida semelhante quando cancelou empréstimos ao Camboja em 2011 por causa dos despejos de pobres proprietários de terras.

O governo cambojano ao menos está prometendo estabelecer uma maior certeza legal. Segundo seu plano, todos os cidadãos poderão registrar suas propriedades com a criação de um órgão de registro de terras. Cerca de 2 milhões de pessoas possuíam títulos de terras até o final de 2012.

O papel alemão

A Alemanha está auxiliando o governo cambojano no desenvolvimento do órgão. Especialistas em registro de terras da Sociedade Alemã para a Cooperação Internacional (GIZ) prestam consultoria às autoridades cambojanas desde 2002. Mas agora "os alemães se tornaram parte do problema", diz Eang Vuthy, da ONG Camboja Equitativo.

Outros ativistas de direitos civis e trabalhadores de ajuda humanitária alemães acusam a GIZ de encobrir o fato de o primeiro-ministro Hun Sen estar apenas usando o projeto para criar a impressão de que as tomadas de terras são legais, e argumentam que ele não tem nenhuma intenção de distribuir terras justamente.

Por exemplo, os alemães não são autorizados a viajar para o interior para verificar se a concessão dos títulos de propriedade de terras está de fato sendo implantada. Segundo Vuthy, o premier Hun Sen consideraria uma interferência nos assuntos internos do seu país se os alemães analisassem os casos individuais para assegurar que o projeto deles está de fato proporcionando justiça. "Mas os alemães precisam saber o que está sendo feito com o dinheiro de seus contribuintes", diz Vuthy.

O escritório do diretor regional da GIZ, Adelbert Eberhardt, fica localizado em um prédio próximo do Monumento da Independência em Phnom Penh. Ele está familiarizado com as críticas ao seu programa. Todavia, ele diz, "se você quiser que algo aconteça, é preciso trabalhar com os órgãos do governo. Isso deixa você vulnerável. É um ato de equilibrismo que temos que tolerar". Mas Eberhardt nota que os benefícios do programa superam seus revezes. "Nós criaremos uma certeza legal para 6 milhões de pessoas", ele diz. "Dois milhões de pessoas já contam com ela."

O Ministério das Relações Exteriores em Berlim também defende a cooperação com Hun Sen. Em uma discussão a portas fechadas sobre o programa de terras com especialistas em Phnom Penh, um diplomata apontou que o governo alemão não pode forçar o primeiro-ministro a fazer algo. Um "envolvimento construtivo" é melhor do que encerrar o acordo de cooperação com Hun Sen. "Nós não podemos conseguir tudo em toda parte ao mesmo tempo", diz o diplomata.

Resolução da UE

Manfred Hornung, da Fundação Heinrich Böll, que trabalha a poucos quilômetros do escritório de Eberhardt, diz: "O pessoal da GIZ não tem prova dos 2 milhões de títulos de propriedade de terras. Afinal, eles não estiveram no interior e não têm ideia do que está acontecendo".

A abordagem da União Europeia é ainda mais controversa, porque facilita indiretamente a tomada de terras. Em 2009, Bruxelas concedeu ao Camboja o direito de exportar açúcar para a UE sem tarifas alfandegárias. Mas isso apenas exacerbou o problema, diz Evi Schueller, uma advogada americana da organização de direitos humanos cambojana Licadho. "Milhares sofrem quando perdem suas terras para dar espaço à plantações de cana-de-açúcar", ela diz.

Em 2012, o Parlamento Europeu adotou uma resolução em relação ao açúcar, criticando o que chama de "violações sérias de direitos humanos ligadas às concessões de terras".

Mas a Comissão Europeia se recusa a suspender o privilégio do Camboja de acesso livre de tarifas para todas as suas exportações. "Ela não reconhece o relatório do relator especial da ONU", diz Schueller. "Em vez disso, ela quer um do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra. Isso é absurdo."


Reportagem de Andreas Lorenz, para a Der Spiegel, reproduzida no UOL. Tradutor: George El Khouri Andolfato.

Detento é morto com 38 facadas em Passo Fundo

Detento é morto com 38 facadas em Passo Fundo

Crime ocorreu no presídio regional da cidade

Um detento de 37 anos foi morto com pelo menos 38 facadas na noite dessa quarta-feira no Presídio Regional de Passo Fundo. O crime ocorreu na cela 5 da galeria A, onde está recolhidos outros 14 homens no regime fechado. A vítima foi identificada como Paulo Valdir da Silva.

Um dos presos que estava na cela, de 45 anos, assumiu a autoria da morte de Silva. O corpo dele só foi descoberto pelos agentes penitenciários por volta das 5h, quando os detentos começaram a bater nas grades, um sinal usado para avisar quando alguém esta doente. Pelo estado de rigidez do cadáver, a Polícia Civil acredita que o crime tenha ocorrido no começo da noite de ontem.

Paulo Valdir da Silva apresentava ferimentos por todo o corpo, principalmente na região do tórax. O suspeito do crime alegou que a vítima era acostumada a bater nos demais detentos e, por isso, o matou. A polícia não acredita que ele tenha cometido o crime sozinho. Na cela, os policiais apreenderam facas de fabricação artesanal sujas de sangue. 

A vítima cumpria pena por homicídio e o acusado por latrocínio – roubo seguido de morte. Em seis dias, este foi o segundo homicídio registrado no presídio regional de Passo Fundo. O último ocorreu nesse sábado, quando um detento, autor da morte de um bebê de 10 meses, foi encontrado morto em uma das galerias. Ele foi vítima de agressão e estrangulamento.


Reprodução do Correio do Povo

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vale o ingresso

Vale o ingresso
 
'Blue Jasmine', de Woody Allen, concentra numa personagem as ilusões do mercado financeiro

Conheço gente que, em especial depois da crise de 2008, tornou-se fundamentalista em matéria de investimentos financeiros. "O que você faria?", perguntam. "Apostaria de novo todo o seu dinheiro em papéis e impulsos eletrônicos?"
Recomendam que se compre ouro. O velho metal amarelo é confiável há pelo menos 10 mil anos. O resto, com a possível exceção dos imóveis, não passa de fluxos de informação. Promessas de pagamento. Cartas de crédito.
Papeizinhos, em suma, que qualquer governo ou banco, um belo dia, pode rasgar. Pior que isso, bits na tela do seu computador.
Sim, pode haver algo de ilusório em tudo isso. Só que tendo a ser mais radical. O próprio ouro, afinal, concentra menos valor em si do que mitos e crenças. Supondo que valha para alguma coisa além de fazer anéis e obturações dentárias --mas estas já entram em desuso--, nada impede que seu preço desabe em definitivo.
Não entendo nada de finanças, mas já vi muita coisa de Woody Allen, e esses comentários sobre a importância do ouro vêm a propósito de "Blue Jasmine", filme seu que entrou em cartaz recentemente.
Cate Blanchett (aposto meio quilo que ganha o Oscar) é Jasmine (na verdade Jeanette, mas ela trocou de nome), uma mulher grã-finérrima que perdeu tudo num escândalo financeiro. O marido (Alec Baldwin) era um desses magos do mercado que, a exemplo de tantos outros em 2008, manipulavam créditos podres em cima de créditos podres, iludindo milhares de poupadores e vivendo como nababos.
Woody Allen fez um filme bem mais dramático do que de costume. Não entrou, como costuma fazer de modo tão encantador, na fantasia dos seus personagens --caso de "Meia-Noite em Paris", por exemplo.
Aqui, Cate Blanchett e algumas pessoas em volta dela vivem num plano de irrealidade mais ou menos intenso, mas o espectador se mantém a uma distância nítida daquilo que acontece.
A loucura, a ingenuidade, a simploriedade de muitas personagens faz com que o humor não desapareça de "Blue Jasmine", mas a fonte de inspiração para a Jeanette/Jasmine de Woody Allen não poderia ser mais dramática.
Cate Blanchett é uma espécie de nova Blanche Dubois, a delirantemente refinada solteirona de "Um Bonde Chamado Desejo", de Tennessee Williams. A exemplo daquela peça dos anos 1940, a grã-fina vai morar na casa da irmã, que tem uma vida pobre, simples, real.
No cinema, "Um Bonde Chamado Desejo" tinha um Marlon Brando belíssimo e brutal no papel do cunhado de Blanche. No filme de Woody Allen, o macho de plantão é Bobby Cannavale, namorado da irmã.
O ser humano, nos filmes de Woody Allen, nunca será tão mau como nas peças de Tennessee Williams. Há muitos patifes, mas não demônios. Há tentação e fraqueza, mas não perversidade.
Talvez isso seja a última ilusão de Woody Allen, que bem ou mal está com quase 80 anos, e não pretendo, de todo modo, fingir que sou mais experiente do que ele. Cada um julga as coisas segundo a própria experiência, e a minha, felizmente, de modo geral não me leva a desmenti-lo.
Nesse gênero de diagnósticos sobre a humanidade, tudo talvez se resuma a rótulos, palavras, papéis assinados ou escritos, tendo como testemunha Rousseau, Kafka, Nietzsche, Deus ou o Diabo.
Crédulo, em todo caso, Woody Allen não é. "Blue Jasmine" concentra na personagem de Cate Blanchett uma capacidade para a ilusão e para a mentira que, no fundo, parece disseminada na sociedade americana --e no mundo todo, por extensão.
Compramos produtos e mais produtos baseados no que nos diz a publicidade, sabendo perfeitamente que os anúncios não correspondem à verdade. As compras são feitas com cartões de crédito, que muita gente usa sem ter certeza de como vai pagar depois.
Parte de toda a dinheirama é, ou pelo menos foi, aplicada em títulos e fundos de investimento, sabe-se lá mais o quê, cujo valor se baseia na promessa de que alguém, algum dia, vai devolver todo o dinheiro, com um bom chantili de juros por cima.
Deu-se o calote, e o governo produz dinheiro para cobrir as perdas gerais; dinheiro no qual todos acreditamos, mas é papel, promessa de pagamento. Nem isso: ficaria louca a autoridade que quisesse produzir, fisicamente, todos os dólares que circulam por aí.
"Confiança" é a palavra mágica, em torno da qual gira a máquina e, com ela, todos os argumentos dos economistas. Não entendo de economia, como já disse; entendo um pouco de palavras, e sei que podem ser substituídas.
Que tal, em vez de "confiança", "credulidade", ou "mentira"? O cinema, como a literatura, produz as suas, claro; mas "Blue Jasmine" consegue dar à ilusão o peso, o lastro em ouro, do real. Vale, pelo menos, o preço do ingresso.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Honduras confirma vitória de direitista

Honduras confirma vitória de direitista

Estudantes e policiais entram em confronto
 
FABIANO MAISONNAVE ENVIADO ESPECIAL A TEGUCIGALPA (HONDURAS)

Horas depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de Honduras ter declarado "irreversível" a vitória do candidato direitista Juan Orlando Hernández na eleição presidencial de domingo passado, dezenas de simpatizantes da esquerdista Xiomara Castro entraram em confronto com policiais em Tegucigalpa, a capital do país.
O conflito ocorreu no início da tarde perto da Universidade Nacional Autônoma de Honduras (Unah).
Formado principalmente por estudantes, o protesto era contra uma suposta fraude eleitoral em favor de Hernández, do Partido Nacional, atualmente no poder.
A tropa de choque usou gás lacrimogêneo contra os manifestantes, que atacaram os policiais com pedras. Há relatos na imprensa local de que pelo menos 18 pessoas foram detidas.
Liderado pelo ex-presidente Manuel Zelaya, marido de Xiomara, o partido Libre disse que venceu a corrida presidencial e acusou o tribunal eleitoral do país de ter alterado o resultado.
Ontem, nem Zelaya nem Xiomara se pronunciaram sobre a eleição.
De acordo com o último boletim divulgado, quando 67% da apuração já estava concluída, o candidato governista aparecia com 34% dos votos; a candidata da oposição estava com 29%.
O presidente da corte eleitoral, David Matamoros, afirmou que a vitória do candidato do Partido Nacional é "irreversível".
Várias missões de observadores internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a União Europeia e os EUA, estiveram no país e declararam as eleições legítimas.


Reprodução da Folha de São Paulo.

Um cheiro de Munique em Genebra

Um cheiro de Munique em Genebra
 
O acerto das seis potências com o Irã arrisca resultar na bomba dos aiatolás ou numa guerra com 
Israel

O primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu classificou de "erro histórico" o acordo que deu ao Irã seis meses para que comprove o congelamento de seu programa de construção de uma bomba atômica, oferecendo-lhe em troca uma suave suspensão das sanções impostas à sua economia. Teatral, durão, ingênuo manipulador do lobby de Israel nos Estados Unidos, Netanyahu encarna as mudanças ideológicas e demográficas ocorridas em seu país. Falta-lhe a densidade moral que, faz tempo, tiveram muitos de seus antecessores. O paralelo com a paz obtida em Munique pelo primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain depois de conversar com Hitler, em setembro de 1938, vem de Ari Shavit, um respeitado jornalista israelense. Ele é o autor do melhor livro publicado nos últimos anos sobre os dilemas de seu país ("My Promised Land", ou "Minha Terra Prometida") Ao contrário de Netanyahu, Shavit é um pacifista moderado, crítico da política de ocupação de terras palestinas e do comportamento do Estado judeu nessas áreas.
Seu argumento é simples: Assim como o acordo de Munique não impediu que um ano depois a Alemanha invadisse a Polônia, a moratória não parará a bomba iraniana. Deixando-se de lado o valor da palavra de Hitler em Munique, Israel empenhou a sua dezenas de vezes, garantindo que não fabricaria uma bomba a partir do seu reator de Dimona. Ao contrário do Irã, que está a um passo de montar o artefato, nos anos 50 Israel nem isso tinha. Iludiu sucessivas missões de inspetores americanos e, em 1967, montou sua primeira bomba.
Não é Shavit quem diz, mas se depois do acordo de Genebra não prosperar um dificílimo processo de reconhecimento de Israel pelos árabes, necessariamente acompanhado por uma clara definição das fronteiras do Estado judeu, vem aí uma guerra. É certo que Washington jogará na mesa a carta da desnuclearização do Oriente Médio. Nesse caso o Irã (mais a Arábia Saudita, o Egito e a Turquia) suspenderiam seus projetos e Israel entregaria suas bombas (dezenas). Sem um acordo mais específico, no dia seguinte começa-se a planejar a retomada de Jerusalém.
Até as pedras sabem que Barack Obama detesta --com razão-- o governante israelense, mas Shavit mostra que o descaso das potências ocidentais diante da bomba iraniana não é coisa só dele. A responsabilidade deve ir também para dois outros presidentes americanos, três governantes israelenses e mais uma dúzia de europeus.
A semelhança com Munique está num conjunto que ele chama de "ilusões". O Irã não fala sério nem de seu regime se pode esperar moderação. Do outro lado da trincheira, enquanto em 1938 a França e a Inglaterra não ameaçavam terras alemãs, hoje Israel ocupa territórios árabes e há 700 mil refugiados palestinos no mundo.
A crise do Oriente Médio é uma daquelas questões nas quais muita gente desiste de prestar atenção, perdendo o fio da narrativa. Israel de hoje não é o do século passado. Passou por profundas mudanças sociais, religiosas e políticas. Para quem quiser tomar o pé na história recente desse país, terá boa leitura no livro de Shavit. É uma empolgante reportagem em que ele mostra as glórias e desgraças de Israel, narrando a vida e dando voz a dezenas de personagens. Está na rede, infelizmente em inglês, por US$ 11,84.

Reprodução de texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

Embrapa usa sistema de segurança da NSA

O governo federal usa um sistema de proteção de dados produzido pela NSA, a agência de segurança norte-americana acusada de espionagem em diferentes países, entre eles o próprio Brasil.
A Embrapa, empresa nacional responsável por pesquisa agropecuária em diferentes lugares do mundo, listou a NSA como "fabricante/provedora" de um dos quatro sistemas de criptografia usados para proteger seus dados.
Apontando só o tipo de solução tecnológica, o propósito e o fabricante/provedor, o presidente da Embrapa, Maurício Lopes, assinou ofício encaminhado ao Senado na semana passada citando a NSA como provedora do "algoritmo SHA-256" para "ambiente de business intelligence".
Trata-se de um produto desenvolvido pela NSA e publicado como padrão do governo dos EUA que transforma dados, como um arquivo de texto, em códigos de tamanho fixo. É um padrão de segurança que pode ser usado por qualquer programador.
"Esses algoritmos são padronizados pelo NIST [National Institute of Standards and Technology, espécie de associação de normas técnicas americana], mas projetados pela NSA", diz o professor da ciência da computação da UnB Diego Aranha. "Qualquer pessoa ou empresa é livre para implementá-los sem qualquer exigência de licença, pois trata-se de padrões."
A Embrapa, contudo, se recusou a informar há quanto tempo e por que usa a criptografia da NSA.
A empresa tampouco deu detalhes sobre as outras soluções tecnológicas listadas. "Não nos pronunciaremos justamente para garantir a segurança e a reserva da empresa quanto o tema", afirmou a Embrapa, por meio de sua assessoria.
Questionada sobre a segurança do sistema, informou que "não há indícios de qualquer acesso indevido às informações consideradas sigilosas da Embrapa".
Para pesquisadores, não há consenso se o fato de o sistema ter sido idealizado pela NSA, agora alvo desses escândalos de espionagem, representa perigo para quem usa esse tipo de algoritmo.
"O fato de ela ter tido um papel preponderante na escolha do algoritmo vencedor e que, por sua vez, tornou-se o padrão de fato da indústria, acarreta, sim, preocupação", afirma o professor Leonardo Barbosa Oliveira, da UFMG.
Diego Aranha, da UnB, afirma que a própria academia ataca sistemas para identificar suas falhas, e as interferências da NSA diminuem à medida que as soluções tecnológicas evoluem.
Por meio da assessoria, a diretora-executiva de administração e finanças da Embrapa, Vania Castiglioni, disse que a empresa adota todas as medidas para garantir a segurança de suas informações.
"A empresa monitora constantemente os ativos de TI [tecnologia da informação] visando o aperfeiçoamento contínuo dos serviços e padrões de segurança estabelecidos", afirmou.
RESOLUÇÃO NA ONU
O projeto de resolução sobre direito à privacidade apresentado por Brasil e Alemanha no início do mês foi adotado na terça-feira (26), por consenso, na Terceira Comissão das Nações Unidas.
O documento, que foi a primeira resposta internacional de peso à sequência de denúncias do ex-técnico da CIA Edward Snowden, ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Assembleia-Geral, em dezembro.

Reportagem de Fernando Odilla. Colaborou JOANA CUNHA, de Nova York

Reprodução da Folha de São Paulo.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Ritmos tortos

Os eleitores petistas podem não ter razão em tentar canonizar seus antigos líderes envolvidos em escândalos de corrupção, mas têm razão em se indignar com a maneira seletiva, própria à Justiça do Brasil, de tratar os partidos brasileiros. Não é preciso ser petista para reconhecer que algo de estranho acontece quando o partido-alvo não é o PT.
Por exemplo, uma mutação peculiar ocorre com o ímpeto investigativo e punitivo do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), sr. Joaquim Barbosa, quando o dito escândalo do mensalão passa à sua segunda fase, aquela na qual se conta a incrível história de sua origem nas campanhas tucanas mineiras e que, segundo o próprio deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG), teria também ajudado a encher os cofres da campanha de reeleição do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 1998.
Tomado por certa paralisia e horror, é como se nosso presidente do Supremo não pudesse tocar no processo, deixando-o adormecer durante meses, anos, até que os porões do Palácio da Justiça lacrem tudo com o devido silêncio do esquecimento redentor.
Algo semelhante ocorre com um dos mais impressionantes escândalos de corrupção do Brasil recente, o que envolve o metrô paulistano. O mesmo metrô que se expande na velocidade de um carro subindo a rodovia dos Imigrantes em dia de volta de feriado com chuva.
Empresas multinacionais julgadas em tribunais suíços e franceses, pedidos de informação vindos da Justiça suíça e inacreditavelmente "esquecidos" por procuradores brasileiros, denúncias feitas por funcionários das empresas envolvidas citando nominalmente toda a cúpula dos tucanos bandeirantes que vão à imprensa apenas para encenar sua indignação por seus anos de dedicação franciscana à política serem jogados no lixo: nada, mas absolutamente nada disso foi capaz de abrir uma reles CPI.
Uma série de denúncias sobre assalto ao bem público durante quase duas décadas, tão bem fundamentadas que tiveram a força de abrir inquéritos em países europeus, não foi capaz de justificar uma reles CPI na província de São Paulo.
Ao menos nesse ponto, os eleitores do PT têm razão em não levar a Justiça brasileira a sério. Se o escândalo do metrô fosse com seu partido, meus amigos, vocês poderiam esperar um comportamento bastante distinto da Justiça e de certos setores caninos da imprensa nacional.
Agora, o próximo passo será um assessor de imprensa tucano mandar uma carta ao Painel do Leitor, neste jornal, tentado fazer, como sempre, o velho jogo da desqualificação "ad hominem". Assim caminha o ritmo torto da indignação brasileira.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.  Destaques do blogueiro.

Igreja Católica importa padres para conter queda do número de fiéis 1


Diante da falta de padres, a Igreja Católica da Alemanha está recrutando um número crescente de pregadores no exterior, como Benjamine Gaspar, que é originário da Índia e agora conduz sermões em uma igreja localizada na cidade alemã de Bocholt.

Quando Benjamine Gaspar ouviu pela primeira vez o nome da diocese –Münster-- ele se ajoelhou e orou. Ele se lembra de que, em seguida, se levantou, sentou-se na frente de seu computador e procurou o nome da diocese na Wikipedia, onde ficou sabendo que Münster é uma cidade situada no noroeste da Alemanha, tem uma população de 300 mil habitantes, é a sede de um bispado e é conhecida como a "cidade das bicicletas".

Gaspar, 32, é um indiano católico. Quando ficou sabendo de sua mudança para Münster, em 2012, ele morava na cidade indiana de Chennai, onde circulava vestindo jeans, camisa polo branca e sandálias.

Desde o início, Gaspar parecia aberto e animado com sua aventura alemã. "Deus tem um plano", disse o padre Benjamine, como sua antiga congregação o chamava. "Deus sabe para onde nos envia". Atualmente ele trabalha para a Diocese Católica de Münster, na cidade de Bocholt, próxima da fronteira com a Holanda.

A época em que os missionários alemães se aventuravam pelo mundo se encerrou há muito tempo. Nos dias de hoje, a Igreja Católica da Alemanha tem enfrentado uma escassez de novos sacerdotes. Quase 10% dos sacerdotes católicos da Alemanha (ou cerca de 1.300) são estrangeiros --e muitos são originários da Índia. A Spiegel visitou Gaspar tanto em sua Índia natal quanto na Alemanha.

Chennai, Índia, maio de 2012

Benjamine Gaspar olha para o Oceano Índico, onde o horizonte é apenas uma linha brilhante sob o calor do meio-dia. Ele está prestes a embarcar em uma longa viagem.

Gaspar faz parte de uma comunidade chamada "Sociedade Missionária dos Mensageiros da Boa Nova", cujos membros pregam em igrejas do mundo inteiro. Para o jovem, seu compromisso com a igreja é também uma oportunidade de conhecer o mundo. "Minha família é cristã há dez gerações", diz Gaspar, que observa que, talvez, seus antepassados tenham encontrado o caminho para a fé cristã por meio dos missionários europeus. "O fato de eu ter podido me tornar padre e que agora eu esteja indo para a Alemanha é como um sonho transformado em realidade", diz ele.

O jovem sacerdote não decide para onde será enviado. A burocracia da Igreja Católica é que decide por ele. Suas habilidades linguísticas não são um fator decisivo. "Nós fazemos o nosso melhor, independentemente de para onde somos enviados", diz Gaspar. Deus não conhece fronteiras, acrescenta ele.

Mas as autoridades alemãs conhecem. Para obter um visto, o padre Benjamine tem de provar que fala pelo menos um pouco de alemão. É por isso que ele manobra sua moto pelas ruas movimentadas de Chennai todas as manhãs, passando por favelas e opulentas mansões coloniais durante uma jornada de cerca de 20 quilômetros entre o seminário e o Instituto Goethe.

O centro de idiomas funciona em um prédio moderno de concreto e vidro, com um terraço com vista para o mar turbulento. Durante seis horas por dia, Gaspar luta com a pronúncia e a sintaxe alemãs e, geralmente, após seu culto noturno na igreja, gasta mais tempo memorizando o vocabulário. Espera-se que em cerca de três meses o jovem sacerdote esteja pronto para se comunicar de forma eficaz durante seu dia a dia na Alemanha.

Desafios do idioma

O professor de Gaspar, Jerome Rajan, chama seu curso de alemão de "minha aula santa". Às vezes, metade dos assentos da sala de aula de Rajan estão ocupadas por sacerdotes tímidos e diligentes. Na verdade, a falta de padres na Alemanha é responsável pelos cursos de alemão lotados na Índia, país localizado a mais de 10 mil quilômetros de distância.

Os sacerdotes indianos tendem a falar Inglês fluentemente, a terem diploma de ensino médio e terem concluído sua formação em seminários. "Mas muitos vêm de famílias pobres", explica o professor, "e nem todos são tão bons em línguas como Benjamine". Para eles, diz Rajan, é um grande desafio alcançar os objetivos do curso e não decepcionar suas ordens nem suas famílias.

Será que o curso de alemão está verdadeiramente os preparando para a vida cotidiana como sacerdotes na Alemanha? Às vezes, Gaspar se mostra cético. A lição de hoje em seu livro de alemão tem o título de "caça à pechincha". Um dos exercícios enuncia: "eu comprei um novo relógio cuco de você há dois dias. Mas eu gostaria de devolvê-lo". Gaspar ignora o exercício e folheia o livro.

Ele tem uma agenda apertada, especialmente nos fins de semana, o que deixa pouco tempo para que ele pratique seu alemão. Em algumas congregações, a missa é rezada oito vezes aos domingos, e cada sacerdote pode conduzir até quatro cultos por dia. Durante um culto na congregação de Gaspar, entre 500 e 600 pessoas se sentam em cadeiras de plástico brancas simples. Quando a missa é conduzida em Tamil, a língua local, a frequência pode chegar a 2 mil pessoas. No verão, quando as temperaturas atingem 45 graus Celsius, a frequência nas missas é especialmente elevada nas primeiras horas da manhã, às 5h ou 6h.

A maioria dos fiéis é composta por mulheres jovens envoltas em luminosos saris nas cores azul cobalto e cor de rosa, e muitas delas carregam bebês em seus braços. Alguns homens usam as tradicionais calças de algodão chamadas de dhoti, que se assemelham a uma saia-envelope.

Os cristãos são minoria na Índia, onde compõem cerca de 2,3% da população. Mas, considerando-se o fato de que a Índia é um dos países mais populosos do mundo, esse total chega a 28 milhões de pessoas. O sul da Índia abriga um número particularmente grande de cristãos, cujas raízes remontam aos chamados cristãos Saint Thomas. Supostamente, o apóstolo Thomas teria chegado à Índia em 54 D.C., o que tornaria a igreja cristã na Índia mais antiga do que a da Europa.

Os cristãos de Chennai cantam em alto e bom som. O culto, realizado ao ar livre sobre a grama e sob a luz de holofotes, é permeado por um cheiro de incenso e de mangas maduras. A sequência mal difere de uma missa na Alemanha, uma vez que a liturgia da Igreja Católica é a mesma em todos os lugares. Gaspar abre os braços e abençoa as crianças.

"Eu estou muito animado com os cultos que vou conduzir na Alemanha", disse Gaspar. Ele ouviu dizer que a frequência à igreja na Alemanha está em declínio, mas não entende o porquê dessa tendência. Será que os alemães estão perdendo sua fé? Ou será que eles estão apenas perdendo sua fé na igreja? "Em todo caso, eu quero ajudar a mudar isso", diz ele.

Bocholt, Westfália, outono de 2013

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Gaspar faz o sinal da cruz quando o culto chega ao fim e olha para sua nova congregação em Bocholt. De pé em frente a um altar barroco gigantesco, ele cruza as mãos levemente sobre o peito. Ele acentua cada palavra que diz em alemão: "Eu. Desejo. A todos. Vocês. Um. Bom dia". Em seguida, ele sorri.

"Ele está realmente se esforçando", diz uma mulher de 84 anos de cabelo encaracolado todo branco. Para ela, o novo padre indiano é "simpático à primeira vista" e acrescentou que "o jovem se adaptou muito bem" à congregação. O sacerdote indiano trabalha duro e conduz a missa "de maneira muito devota", que agrada à senhora – ao contrário do padre africano, cujo sermão proferido em uma congregação vizinha há alguns meses não pode ser compreendido pelos fieis.

Gaspar sorri com alegria quando lhe contam sobre o diálogo com a velha senhora. Nem sempre é fácil conquistar as pessoas mais velhas da congregação, diz ele, "mas esse é o meu objetivo mais importante". Na verdade, os idosos são os seus clientes mais importantes. Há cerca de 70 idosos participando do culto de Gaspar nesta terça-feira de manhã. Quase todas são mulheres, todas têm mais de 60 anos e as cores predominantes de seus casaquinhos de verão são marrom e bege. Suas vozes finas rapidamente desaparecem na nave pedra.

"Uma grande oportunidade para a igreja"

Há alguns anos, a Paróquia de Nossa Senhora onde Gaspar trabalha foi unificada com outras quatro outras paróquias do entorno, e uma quinta paróquia será adicionada ao grupo em 2016. Atualmente, uma equipe de sete sacerdotes atende aproximadamente 16 mil católicos da região. "Nós precisamos urgentemente de apoio", diz o pastor, Matthias Conrad, de 70 anos. "Benjamine Gaspar é uma dádiva de Deus para nós". Conrad observa que os tempos estão mudando e diz que a necessidade de recrutar novos sacerdotes do exterior teria sido algo impensável no passado.

Jovens motivados como Gaspar, diz Conrad, são "uma grande oportunidade para a Igreja na Alemanha", pois eles trazem uma lufada de ar fresco para as congregações. "A vantagem de uma igreja global como a Igreja Católica é que você pode conhecer outras culturas". Para Conrad, atualmente a igreja é "uma grande rua de mão dupla". E ele acrescenta: "durante tempo demais a igreja foi uma rua de mão única, cujo fluxo partia da Europa em direção ao restante do mundo".

Gaspar, porém, tem expectativas realistas em relação a sua nova posição. "Ambos os lados simplesmente não podem esperar milagres", diz ele. Construir a confiança leva tempo, explica Gaspar, cujo visto alemão atual é válido por cinco anos. Ele não quer pegar ninguém de surpresa. Uma família convidou-o para almoçar alguns dias atrás. Foi uma grande oportunidade de trocar pontos de vista – oportunidade que ele gostaria de desfrutar mais vezes, diz Gaspar. "Às vezes, me deparo com ceticismo, mas também com muita gratidão e respeito".

Durante a apresentação de Gaspar à congregação, ele pediu que os fiéis o incentivassem. "Eu preciso de sua ajuda, de seu apoio, sua cooperação e, acima de tudo, do Espírito de Deus para que eu possa viver e trabalhar aqui como um sacerdote", leu ele, de maneira hesitante, uma declaração preparada previamente, apesar de ter praticado seu discurso diante do espelho.

"Eles vêm para chorar, raramente para rir"

Apesar de um membro da congregação editar os sermões de Gaspar, atualmente o padre é capaz de conduzir a missa da manhã sozinho. Em breve ele vai começar a conduzir funerais. "Eu ainda tenho muito a aprender, mas me sinto muito confortável nesta paróquia. Estas pessoas são quase como uma família para mim agora", diz Gaspar.

Ao resumir suas impressões iniciais, Gaspar diz: "ao contrário da Índia, os jovens daqui não parecem ter muitas preocupações – ou, pelo menos, eles não nos contam sobre essas preocupações na igreja". Só quando se trata de temas existenciais da vida é que os alemães buscam consolo com um padre, acrescenta ele. "Eles vêm para chorar, raramente para rir".

Na Índia, ele costumava passar as tardes visitando espontaneamente os membros de sua congregação em suas casas para lhes perguntar sobre seus filhos ou, talvez, sobre uma sogra doente. Em Bocholt, ele rapidamente aprendeu que existem regras sociais mais rígidas a serem observadas. "Eu já sabia que os alemães são pontuais, mas agora eu também sei que você sempre tem que ligar antes de visitá-los", disse Gaspar com uma risada entre dentes.

Gaspar geralmente roda por Bocholt e pela zona rural do entorno durante a noite em sua nova moto – um presente de boas-vindas dado a ele pela paróquia. O padre fica visivelmente emocionado quando conta a história de como seus colegas derem a moto a ele durante um culto. Isso o fez pensar sobre o artigo da Wikipédia que ele leu em Chennai e sobre aquela estranha denominação de "cidade das bicicletas".
 
 
Reportagem de Simone Salden, para a Der Spiegel, reproduzida no UOL. Tradutor: Cláudia Gonçalves 
 
Nota do blogueiro: Obviamente, quando o texto fala em "Saint Thomas", ele está falando em São Tomé, o apóstolo que duvidava da ressurreição de Jesus.