quinta-feira, 27 de outubro de 2016

É ilógico que o Congresso fique sujeito a um juiz de 1ª instância, e não ao STF

O esbravejar de associações de juízes e de procuradores contra um protesto do presidente do Senado não é, apenas, mais uma das tantas manifestações de corporativismo com que tais categorias se privilegiam. A reação desproporcional teve também a finalidade de depressa encobrir, com o barulho exaltado, uma ordem judicial vista como abusiva. É dar as costas à democracia.
Nem por ser quem é, Renan Calheiros está impedido de ter, vez ou outra, atitudes corretas. Se a forma como o faça for descabida, e no caso foi, não é o sentido da atitude que deve pagar. Mesmo porque, se falarmos em democracia, defender a soberania relativa do Congresso é tão democrático quanto invadi-lo policialmente não é.
Ainda não consta, embora não falte muito, que os cidadãos –quaisquer cidadãos –tenham perdido o direito de verificar se seus telefonemas, sua correspondência, sua casa e trabalho, enfim, sua intimidade, estão sendo violados. Mesmo a ordem judicial para a violação não cassa tal direito, pois se é desconhecida do vigiado. E não só por ordem judicial há violações à intimidade. É só constatá-lo nos anúncios de detetives particulares e seu instrumental de violações remuneradas.
É inesquecível o caso criado por Gilmar Mendes quando, gravado em telefonema no seu gabinete, acusou Lula de instaurar o estado policial. Um escarcéu. Nelson Jobim foi à Câmara, com prospectos de uma aparelhagem que o Exército comprara e, a seu ver, era a usada para gravar Mendes. Logo se viu que Jobim só mostrara o que era, de fato, uma propaganda na internet. E a gravação foi feita pelo próprio amigo telefônico a quem o ministro do Supremo pedira, para sua enteada, um emprego boca-rica no Senado.
Gravadores clandestinos do SNI foram encontrados por "varreduras" em muitos gabinetes da ditadura. Fernando Henrique foi gravado manipulando a "privatização" da Vale. Depois que Eduardo Cunha deixou a presidência da Telerj, evidências de gravações clandestinas tornaram-se epidêmicas no Rio. Até que foi descoberta, perto de uma instalação da FAB no centro, uma central onde foram presos um ex-técnico da Telerj e um sargento. Na Barra da Tijuca, foi localizada uma central chefiada por um coronel. Em São Paulo, usar apelidos e metáforas era frequente em muitos círculos. Nunca deixou de sê-lo por completo, mas mudou: agora é o permanente. A insegurança no país, pela bandidagem ou pelos novos poderes, torna as "varreduras" aconselháveis: hoje, até a palavra amigo é associada a crime.
Fazer "varredura" é ilegal? Não. Ou sim, desde que direitos, vários, ficaram à mercê do que pretenda um procurador ou um juiz das novas forças – poucos, ainda bem. A conclusão deles, de que "as 'varreduras' nas casas de três senadores e de um ex-presidente eram obstrução à Lava Jato", carece de sentido. Ninguém está obrigado a se sujeitar à hipótese de que esteja com suas conversas sob gravação. Impedir de ter a intimidade violada clandestinamente não é obstrução ilegal. Além disso, nem houve obstrução prática, por falta do que fosse obstruível.
Grampo ilegal foi posto na cela de Alberto Youssef por policiais federais, em Curitiba. Alguns dos que faziam campanha nas redes contra Dilma e o PT e pró-Aécio, o que hoje se pode ver como uma das primeiras evidências da missão político-ideológica que tinham. Têm. Mas a gravação clandestina e a propaganda ficaram nisso mesmo: certas ilegalidades são mais legais do que a lei, a depender do policial, procurador ou juiz que as cometa.
Como disse a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, "cada vez que um juiz é agredido, eu e cada um de nós juízes é agredido". Sem ressalvas. Logo, não importa o que o juiz faça. Calheiros fez pequena agressão verbal ao juiz de primeira instância que mandou a PF apreender equipamentos do Senados e prender quatro da Polícia Legislativa.
Se um congressista só pode ser processado e julgado pelo Supremo, no mínimo é ilógico que o próprio Congresso fique sujeito a um juiz de primeira instância, e não a decisões do Supremo. Ainda mais se a ordem é de que a Polícia Federal, dependência do Executivo, arrebate bens patrimoniais do Poder Legislativo.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Morre Jorge Batlle, presidente do Uruguai de 2000 a 2005

Morre Jorge Batlle, presidente do Uruguai de 2000 a 2005

Político de 88 anos sofreu queda em casa e estava internado há dez dias
O ex-presidente do Uruguai Jorge Batlle (2000-2005) morreu nesta segunda-feira, aos 88 anos. Ele ficou dez dias internado, após uma queda que provocou um dano cerebral severo, informou a clínica onde estava internado. "Lamentavelmente, o esforço realizado por toda a equipe de saúde não foi o suficiente para reverter o quadro clínico com o qual ingressou o Dr. Batlle após o acidente que sofreu há alguns dias", assinalou um comunicado.
O ex-presidente, que na terça-feira faria 89 anos, foi hospitalizado em estado crítico no dia 13 de outubro com "traumatismo no crânio por queda" que lhe provocou um coágulo intracraniano.
Durante seu mandato, Batlle enfrentou a pior crise financeira da história recente do Uruguai, com uma forte corrida bancária e a disparada do dólar, no rastro da crise econômica argentina de 2001. Herdeiro de uma dinastia política que marcou a história do Uruguai, Jorge Batlle era filho de Luis Batlle Berres, que exerceu a presidência entre 1947 e 1951.

Reprodução do Correio do Povo

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

PEC 241 reduz deveres do Estado com saúde e educação

No Brasil, a vinculação de recursos tributários para a educação pública teve origem na Constituição de 1934. A ideia que fundamenta a vinculação é de que, para garantir direitos aos cidadãos, é necessário atribuir deveres ao poder público. O artigo 112 da Constituição de 1988 define que a União nunca aplicará menos de 18% da arrecadação de impostos na "manutenção e desenvolvimento do ensino". Em 2000, o mesmo princípio foi estendido para saúde, que inicialmente acompanhava o crescimento do PIB e, a partir de 2016, passou a estar associada à evolução da arrecadação total.
A exposição de motivos da PEC 241 diz a que veio: "(...) É essencial alterarmos a regra de fixação do gasto mínimo em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que as despesas com saúde e educação devem ter um piso, fixado como proporção da receita fiscal". Em um governo aberto ao debate democrático, a PEC do "teto de gastos" deveria chamar-se PEC da "desvinculação de recursos".
Sob a alegação de que despesas obrigatórias engessam o Orçamento, a emenda altera o mínimo destinado a essas áreas para o valor vigente quando da implementação da regra, ajustando-o apenas pela inflação do ano anterior. Hoje a União gasta com saúde e educação mais do que o mínimo constitucional. Se em 2017 a União se ativer a esse mínimo, tal valor real passaria a funcionar como piso constitucional por 20 anos, mesmo em caso de expansão da arrecadação.
O governo alega que trata-se de um mínimo, e não de um teto, o que não implicaria necessariamente em um congelamento real dos recursos destinados a essas áreas. No entanto, dada a previsão de crescimento dos gastos com benefícios previdenciários —que ocorrerá por muitos anos mesmo se aprovada a reforma da Previdência—, o teto global para as despesas de cada Poder tornaria inviável a aplicação de um maior volume de recursos nas áreas de saúde e educação públicas. Caso contrário, despesas com outras áreas —cultura, ciência e tecnologia, investimentos em infraestrutura ou assistência social, por exemplo— teriam de ser ainda mais comprimidas ou até mesmo eliminadas.
Na prática, isso significa o abandono do princípio básico que norteou essas vinculações desde 1934, qual seja, de que enquanto não chegarmos aos níveis adequados de qualidade na provisão de educação e saúde públicas, eventuais aumentos na receita com impostos devem ter uma parcela mínima destinada à provisão destes serviços.
Embora haja sempre alguma margem para aumento na qualidade dos serviços pela maior eficiência —sem elevação de despesas—, a evidência é que houve melhora nos indicadores de resultado de ambas as áreas com a destinação maior de recursos na última década.
Ainda assim, os gastos em educação e saúde per capita no Brasil se mantém em níveis muito abaixo da média dos países da OCDE. Com o crescimento populacional nos próximos 20 anos, o congelamento implicará em uma queda vertiginosa nesses indicadores. O envelhecimento da população, em particular, reduzirá muito as despesas com saúde por idoso, com consequências dramáticas sobre os mais vulneráveis.
Na contramão de países como Chile e EUA, que hoje caminham na direção de uma ampliação da gratuidade na provisão desses serviços, a proposta disfarça a desistência de levar o Brasil aos níveis de qualidade de ensino e atendimento em saúde públicos das economias mais avançadas. Em um país com níveis altíssimos de desigualdade social, não é difícil perceber as implicações.


Texto de Laura Carvalho, na Folha de São Paulo

Os impactos da prisão de Cunha

Chegou o dia que o Brasil tanto esperava e que Brasília tanto temia: Eduardo Cunha está preso. Tardiamente, é verdade. Contra Cunha, ao menos desde o ano passado, pesam muito mais do que convicções. Há provas contundentes, como os extratos de contas na Suíça associados à corrupção na Petrobras.
Que, a esta altura, sua prisão seja "preventiva" chega a soar irônico, após ele ter chantageado uma presidente aos olhos do país, ter conduzido o processo de impeachment que a derrubou e feito ameaças a torto e a direito. O ônus deste atraso cabe a Teori Zavascki. O ministro do Supremo demorou mais de quatro meses para afastar Cunha após o pedido do MPF, feito ainda com Dilma no governo, e negou seu pedido de prisão em junho último.
Cabe agora entender os impactos desta prisão. Para o governo Temer e para os próximos passos da Operação Lava Jato.
De um lado, uma eventual delação de Eduardo Cunha pode ter efeito explosivo para o PMDB e o governo. Ele já havia apontado para Moreira Franco, homem forte da guarda palaciana, insinuando que teria provas de seu envolvimento em esquema de propina no financiamento das obras do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. Mas isso seria apenas o aperitivo.
É fato corrente nos bastidores que Cunha e Temer teriam uma parceria na gestão do porto de Santos, ligada ao grupo Libra –principal doador de Temer e favorecido por Cunha com uma emenda na MP dos Portos. O atual presidente chegou a ser alvo de dois inquéritos relacionados ao recebimento de propinas no porto, em 2002 e 2006, ambos arquivados. Suspeita-se que Cunha tenha gravações de conversas com ele sobre o assunto.
Se Cunha resolver falar e tiver condições de apresentar provas –e é claro se os procuradores da Lava Jato aceitarem sua delação –o governo Temer poderá ter seus dias contados. Neste caso, ironia da história, Temer seria derrubado pelas mesmas mãos que o colocaram no poder. Sem falar no Congresso, sobre o qual supõe-se que uma delação do ex-deputado tenha efeitos devastadores.
Mas, de outro lado, a prisão de Cunha pode ter ainda um impacto diferente, relacionado à ofensiva da Lava Jato contra o ex-presidente Lula. A obsessão de Sergio Moro e da chamada "força tarefa" em prender Lula já se tornou algo notório. Foram com muita sede ao pote, tanto na condução coercitiva em março, quanto na desastrada denúncia do power point.
Esses excessos reforçaram a percepção de seletividade e perseguição da Lava Jato contra Lula, principalmente ao considerar que a enorme maioria dos presos e indiciados do núcleo político são do PT. A prisão de Cunha neste momento pode ser entendida como uma preparação da opinião pública para uma eventual prisão de Lula. Neste caso, Moro estaria defendendo-se preventivamente da acusação de seletividade.
Nas últimas semanas, uma enxurrada de novas denúncias da Polícia Federal e do Ministério Público contra Lula –com base probatória que beira o ridículo– alimentaram boatos de uma prisão iminente.
Além disso, os que achavam que Lula era já um "cachorro morto" tiveram uma surpresa com a divulgação nesta terça (18) de uma pesquisa do Instituto Vox Populi, curiosamente pouco repercutida na grande imprensa. Mesmo em meio a um prolongado linchamento público, Lula aprece com 34% das intenções de voto para 2018, mais que o dobro de Aécio Neves, com 15%.
Por isso, é razoável supor que aqueles que têm o interesse de destruir a figura do ex-presidente precisem ir além. No caso de Sergio Moro, as iniciativas anteriores devem ter deixado a lição de que é preciso ter mais cuidado, calibrar os tempos e a narrativa. Nesse sentido, a prisão de Eduardo Cunha –necessária e tardia– pode ser convenientemente utilizada para dourar a pílula de uma arbitrariedade contra Lula. Afinal, passaria à sociedade a mensagem de que a Lava Jato não é seletiva, ocultando que dos tucanos citados permaneceram ilesos, bem como a cúpula do PMDB.
Os dados foram lançados. A prisão de Cunha foi uma jogada ousada de Moro. Resta saber como sua República de Curitiba conduzirá os próximos lances. 


Texto de Guilherme Boulos, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Discurso da austeridade é infantilizador e caipira

Mal rompe a manhã e os tenores da gerontocracia brasiliense gorjeiam a guarânia que o Brasil é uma família, deve gastar só o que ganhou. A charanga do eixo Leblon-Faria Lima repica então que é preciso pôr a casa em ordem. Apertemos o cinto, entoam todos, tenebrosos, todo santo dia.
Como o país não é apê nas Perdizes, a sua economia não tem nada a ver com a da padoca na esquina, e os brasileiros não são a Fat Family, o discurso da austeridade é infantilizador e caipira. O deficit fiscal virou boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta.
Contra a mistificação ideológica há agora a imaginação mitológica de "O Minotauro Global" (Autonomia Literária, 300 págs.), livro no qual o touro fabuloso do rei Minos enfrenta o boi que entorpece o pensamento.
Seu autor, Yanis Varoufakis, analisa a austeridade na teoria e na prática. Porque tem formação (doutorou-se em economia e matemática e foi professor em Cambridge), militância (começou na social-democracia e elegeu-se deputado pelo Syriza) e experiência (foi ministro das Finanças da Grécia).
Para chegar à austeridade, ele parte da hecatombe de 1929. A seu ver, a grande crise não foi dirimida pelo incremento de obras públicas –o New Deal, nos EUA– e sim pela militarização geral da economia, bem como pela imensa destruição de forças produtivas na 2ª Guerra.
Ao final do conflito, Keynes propôs na conferência de Bretton Woods a criação de uma moeda internacional para transações financeiras. Foi vencido pelos vencedores da guerra, e o dólar virou a moeda mundial, lastreada pelo ouro. Em 1971, Nixon acabou com a referência ao ouro.
Surgiu então, sob a égide do dólar solto e do domínio americano, o Minotauro. A besta-fera combina num corpo dois déficits, o comercial e o fiscal. Comercial porque os EUA terceirizaram parte da produção. E fiscal porque o seu orçamento esteve aquém do orçamento do Estado.
A explicação para o monstrengo está numa rua, Wall Street. Porque, por mais terras que percorra, o capital vai sempre aonde rende mais. E Wall Street criou miríade de produtos financeiros –resseguros, hedges, hipotecas subprime, alavancagens várias.
Em 2008, esse edifício de dinheiro fictício revelou o seu âmago: papel. Varoufakis mostra que a explosão não se deu porque Wall Street estava desregulada, ou tivesse sido tomada pela ganância. Estourou porque o Minotauro da economia global funciona assim.
A conta foi encaminhada aos mais fracos –aos países da periferia europeia, que tomaram emprestado dos bancos; aos governos que cevaram déficits para preservar os ganhos dos donos da dívida pública. Austeridade neles.
O Minotauro significou, aqui, as décadas perdidas da crise da dívida e da hiperinflação. O monstro segue no seu labirinto, impondo sacrifícios e disseminando a crença infantil de que o déficit será contido com decreto.
Varoufakis perdeu a parada para a União Europeia. O Syriza capitulou e ele se demitiu do ministério. Participa agora de coalizão da nova esquerda europeia, que faz propostas para tirar o Velho Mundo do buraco.
É difícil que a esquerda latino-americana faça algo assim? Que ela se articule e elabore uma opção para o continente? É complicadíssimo. Mas a alternativa é crer nas cantigas de ninar dos austerocratas. Ou esperar um Teseu que, demagogo e oportunista, prometa matar o Minotauro em 2018.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo.

'Belos velhos' ensinam a construir projetos de vida

Recentemente, a Folha publicou uma matéria com o título: "Após recorde de 122 anos, a tendência é que as pessoas vivam até os 115 anos", mostrando que os avanços médicos das últimas décadas aumentaram não apenas a expectativa de vida, mas, também, a qualidade de vida.
Lutamos tanto para ter sucesso, dinheiro, fama e poder, mas o que é realmente importante na velhice? Quais são as características dos homens e mulheres que estão inventando uma "bela velhice"?
Na minha pesquisa "Corpo, envelhecimento e felicidade" tenho entrevistado brasileiros de mais de 90 anos.
Sara, 91, começou a nossa conversa dizendo: "Já sei, você quer saber quais são os meus projetos de vida". Surpresa com seu entusiasmo, concordei: "Isso mesmo, quero saber quais são os seus projetos".
Ela contou que está escrevendo um livro com histórias da sua família e quer publicar alguns casos engraçados na rede social Facebook.
Sara, 91 anos, está escrevendo suas memórias; Telma, 90 anos, estuda na Universidade da Terceira Idade; Anderson, 93 anos, toca pandeiro em um grupo musical; Regina, 90 anos, dança todas as sextas-feiras; Luiz, 92 anos, caminha diariamente 5 km; Ivone, 90 anos, viaja com as amigas; Ruth, 92 anos, não perde um só filme ou peça de teatro; Taís, 94 anos, conversa com as filhas pelo Skype; João, 92 anos, estuda filosofia; Maria, 91 anos, toca piano para os amigos; Irene, 90 anos, planeja uma viagem para o exterior com os netos.
Todos são independentes, lúcidos e têm boa saúde ou, como dizem, com problemas de saúde "administráveis" e "sob controle". Eles não se aposentaram de si mesmos. Todos têm seus projetos, grandes e pequenos, que dão significado às suas vidas.
Quanto mais observo os "belos velhos", mais tenho o desejo de conseguir chegar aos 90 anos (ou mais), com a mesma energia, entusiasmo e vitalidade. Eles estão me ensinando a construir os meus projetos de vida que irão dar algum sentido à minha existência. Com eles, perdi o medo de envelhecer.
Há quase 30 anos pesquiso homens e mulheres de todas as idades, mas, agora, prestando atenção nos que têm mais de 90 anos, sempre me pergunto: Quais são os meus projetos de vida? O que é realmente importante para construir uma "bela velhice"?


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Ao custo de sangue inocente, próximos cem dias serão cruciais para a Síria

O imobilismo político que marcou a reunião em Lausanne, Suíça, deu a impressão que o encontro foi realizado mais para tentar dar satisfação à comunidade internacional do que propriamente focado em busca de conclusões.
O que está em jogo, no momento, é como cada lado procurará manipular a validade das cartas do outro. Russos e americanos estão entrincheirados em suas estratégias e, sobretudo, em suas inflexibilidades.
Enquanto o regime e seus aliados preparam a ofensiva final para conquistar a parte oriental de Aleppo, o eixo EUA-Arábia Saudita, em desvantagem no tabuleiro, demonstra disposição para protelar possíveis soluções políticas à espera da nova administração americana.
Da perspectiva do eixo Moscou-Teerã, o regime retomou o controle dos principais pontos estratégicos do território à exceção da parte oriental de Aleppo, tem total controle sobre a capital Damasco e preservou a unidade das Forças Armadas.
Ademais, Bashar al-Assad segue visto como o principal líder do país. Para russos e iranianos, portanto, a realidade do terreno é que serve de fator determinante para o curso de quaisquer negociações diplomáticas.
Já o bloco antirregime utiliza a importância estratégica de Aleppo para inflar a importância de suas cartas, além de manipular, convenientemente, a composição de quem seriam os grupos armados tipificados, fantasiosamente, de "rebeldes moderados".
O principal impasse entre Moscou e Washington recai, precisamente, sobre a classificação da organização terrorista Jabhat Al-Nusra que, recentemente, alterou o seu nome para Jabhat Fateh Al-Sham.
No fundo, sem a inclusão da organização terrorista Jabhat Al-Nusra —que à cada período transmuta de nome— no grupo denominando de "rebeldes moderados", as cartas de sauditas e qataris, defensores desse posicionamento, se tornam inúteis —paradoxalmente, os americanos os endossam.
Os grupos armados que poderiam, talvez, ser tipificados como "rebeldes moderados" sequer chegariam a 10% da força militar de resistência ao regime.
Além disso, qual seria o conceito utilizado para definir o que é um "rebelde moderado"? Essa "moderação" é comparada a que ou a quem? Esmagadora maioria desses grupos utiliza fortes caracteres e denominações religiosas em suas flâmulas, como o próprio Estado Islâmico e a Al-Nusra —seriam estes "moderados"? Indivíduos radicalizados na ortodoxia do salafismo-wahabita poderiam ser "moderados"? Pois, é essa a matriz de EI e Al-Nusra.
Ao cabo, o encontro de Lausanne revelou o antagonismo existente entre os países presentes.
Os sauditas impõem como pré-condição a saída de Assad. Os americanos reafirmam a necessidade de não haver vácuo de poder, mas sem oferecer proposições concretas. Os iranianos defendem a conservação intacta do regime.
Os egípcios defendem a integridade territorial da Síria e das instituições. Os turcos advogam pela constrição do poder dos curdos e exclusão da Al-Nusra da lista dos "rebeldes moderados". Os russos concordam com parte dos pontos anteriores, mas fazem a ressalva de que o futuro de Assad e de qualquer rearranjo governamental pertencem ao povo sírio.
Desse imbróglio pode se extrair algumas conclusões.
Primeiro, confluência de interesses entre Moscou-Ancara. Segundo, a discrepância de visões entre os dois principais países árabes, Egito e Arábia Saudita. Terceiro, a incapacidade do eixo antirregime de forjar, após cinco anos, uma liderança crível e legitima para o povo sírio.
Os próximos cem dias serão cruciais e podem diluir a força das cartas de um dos lados. Resta saber quem irá determinar o formato do novo status quo —tudo isso, é claro, ao custo de sangue de gente inocente.


Texto de Hussein Kalout, na Folha de São Paulo.

domingo, 16 de outubro de 2016

Com novos protagonistas, coronelismo segue matando

Em 1956, revoltado pela falta de interesse despertada por relatórios que davam conta dos assassinatos que envolviam as eleições no interior do Brasil, Mário Palmério, deputado federal e educador, escreveu "Vila dos Confins": obra prima.
Ao longo da história, o leitor acompanha as peripécias de um jovem político para driblar atentados. "- Sou um deputado federal –que diabo! E não se mata gente assim sem mais nem menos... O município é meu". E para garantir tal posse valia tudo: tocaia à beira das estradas, traições, capangas armados, rondas noturnas dos chamados "bate-paus" até ser "acabado a tiros".
Tudo bem... Era ficção. Mas na vida real não faltaram descrições sobre homicídios ao vivo e a cores. O deputado e advogado Waldemar Pequeno, por exemplo, registrou episódio ocorrido, nos anos 30, com um amigo e com ele durante as eleições para a Câmara de Aimorés (MG). O amigo acolheu um moço que lhe pedira um prato de comida. "Servido este e uma xícara de café, retirara-se o homem para, protegido pela escuridão da noite, disparar a arma contra quem, alvo fácil à luz do lampião da sala, o havia agasalhado e alimentado".
Avisado que sua morte fora encomendada e que seria executado por "capanga peitado", Waldemar foi caçado por nove pistoleiros nas matas do Rio Doce. Ficou mais de uma semana alimentando-se do que encontrava e disputando frutas com pássaros. Conseguiu safar-se e se apresentou à casa de um juiz de Direito para escapar de ser morto.
Coisa do interior? Não. Houve "duelo" até no cenário da capital. Estrelando Tenório Cavalcanti e Antônio Carlos Magalhães. Numa ocasião, Cavalcanti, ainda no mandato de deputado federal, discursava na Câmara. Ele acusava o presidente do Banco do Brasil, Clemente Mariani, de desvio de verbas. Antônio Carlos, então deputado e baiano como Mariani, defendera o conterrâneo respondendo que "vossa excelência pode dizer isso e mais coisas, mas na verdade o que vossa excelência é mesmo é um protetor do jogo e do lenocínio, porque é um ladrão." Tenório Cavalcante, sacou o seu revólver e berrou: "Vai morrer agora mesmo!".
Colegas correram para tentar impedir o assassinato enquanto outros fugiram do plenário. Antônio Carlos, tremendo de medo, teve uma incontinência urinária. Mesmo assim, gritava: "Atira." Tenório, por fim, resolveu não atirar. Rindo da situação em que ACM se encontrava, recolheu o revólver, dizendo que "só matava homem".
Representante do coronelismo na Baixada Fluminense, Tenório ou "o homem da Capa Preta" provou que as práticas violentas do interior, podiam migrar para a periferia das grandes capitais. Junto à população local, ele protelava ou executava sentenças, com auxílio de "Lurdinha", nome de sua metralhadora.
A história das execuções sumárias vem de longe. Segundo sociólogos, elas se multiplicaram nos anos 60 e 70, com a criação de esquadrões da morte que agiam sob o lema "bandido bom é bandido morto". Policiais se transformaram, então, em agenciadores dos serviços para vereadores, deputados e prefeitos que, por sua vez, solucionavam problemas de seus financiadores. Delegados trabalhavam junto dando cobertura.
Assim, políticos ligados à teia do crime continuaram a fortalecer, pela violência, sua base política e eleitoral. Todos eles ávidos para ter acesso às populações encurraladas por degradantes índices de pobreza, educação, saúde e segurança. Se o coronelismo existe desde os tempos da República Velha, ele não morreu. Hoje, com novo nome, técnicas e protagonistas, ele segue matando. Foram mais de 90 execuções durante o último processo eleitoral.


Texto de Mary del Priori, na Folha de São Paulo.

Teto generalizado ou indiscriminado de gastos é uma brutalidade

Henrique Meirelles e o grupo de Michel Temer reproduzem, combinadas em seu comportamento, as mirabolâncias de Collor que salvariam a economia do país e as criações do caos que ressuscitariam o Plano Cruzado, no governo Sarney.
O projeto que fixa um teto estrangulante para os gastos de governo durante 20 anos, cortando todo o necessário para a retomada do crescimento econômico, equivale à extorsão de 50% dos recursos financeiros de pessoas e de empresas, executado por Collor a pretexto de sustar gastos inflacionários. A incapacidade de Meirelles, Temer & cia. de apresentar ideias convincentes, ou de ao menos fazer uma demonstração respeitável das suas hipóteses, repete o blablablá e o gasto em propaganda no governo Sarney contra igual carência.
A campanha defensiva do tal teto, por parte do governismo, recorre a argumentos patéticos. Meirelles: "Sem o teto, a alternativa será muito pior". Onde está um mínimo de demonstração disso? A alternativa pode ser ótima, a depender da criatividade e da competência técnica já vistas, por exemplo, no Plano Real, de André Lara Resende. E ausentes agora.
Rodrigo Maia, presidente da Câmara, avisa que só o teto salvará o Brasil de ficar "como o Haiti". Se fosse exagero, seria ridículo. É, porém, um ato de propósito enganador e nenhuma inteligência. Michel Temer: "Se as medidas fossem tomadas antes, agora não se precisaria disso". Foi o que Joaquim Levy, com os mesmos princípios conservadores e sem aventureirismo, tentou durante todo o 2015, em negociações com as lideranças do Congresso. Sempre bloqueado por PSDB e PMDB. Sozinho, o primeiro nada poderia. Decisivo foi o outro: o PMDB então presidido por Michel Temer. Já era a conspiração.
É dessa maneira que o governismo defende seu projeto milagroso. Nesta ocasião, também, em que uma pesquisa internacional faz oportuna constatação (editorial da Folha, 14.out). Apesar de incluir-se nos países de maior violência interna, o Brasil continua mais preocupado com o sistema de saúde (50%) do que com os problemas de violência (48%). O que lhes reserva a respeito o projeto governamental do teto?
Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estima perda até de R$ 743 bilhões no sistema de saúde, durante a vigência do teto. O presidente do instituto, Ernesto Lozardo, tratou de emitir uma nota antiética para dizer aos de cima que o Ipea é a favor do teto. Mas não é, nem contra, por ser instituição apenas de pesquisa, não de política econômica. Ainda assim, Fabíola Sulpino Vieira, economista co-autora da pesquisa, deixa seu cargo no Ipea.
Se a violência não tem estudo, outra preocupação nacional aumenta o alarme: a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara –a Conof dos melhores técnicos da Casa em questões orçamentárias– concluiu que a educação perderá R$ 20 bilhões por ano, R$ 480 bilhões na pretendida vigência do teto.
Mas a solidez do plano e o critério que determinou sua duração estão expostos pelo próprio Temer, segundo o qual, na GloboNews, a duração pode ficar em "uns quatro, cinco, seis anos". O fato, simples e incontestável, é que teto generalizado ou indiscriminado de gastos é uma brutalidade. E nega a razão de ser dos governos, que é administrar circunstâncias a cada dia, a cada hora, e seu provável futuro.
O Brasil necessita é de racionalização de gastos. E isso não requer alterações constitucionais. Só precisa de critérios competentemente honestos e de um presidente firme e íntegro, que não se caracterize por oscilações e recuos.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

O Ipea censurou o Ipea

Na última terça, esta coluna publicou um estudo do Ipea que projeta cortes bilionários na saúde após a aprovação da PEC do teto de gastos. No mesmo dia, o presidente do instituto, Ernesto Lozardo, chamou a seu gabinete uma das autoras do texto, a nota técnica nº 28.
Doutora pela Universidade Federal de São Paulo, Fabiola Sulpino Vieira entrou na sala do chefe como coordenadora de estudos de saúde do Ipea. Saiu exonerada do cargo e alvo de uma censura pública, fato inédito nos 52 anos do instituto.
Na reunião, a pesquisadora ouviu de Lozardo que seu trabalho criou constrangimento ao governo. Foi avisada de que ele divulgaria uma nota contestando o estudo do próprio órgão e endossando a versão do Planalto sobre a PEC. Sob pressão, decidiu entregar o posto de chefia.
Na nota nº 28, Fabiola e o colega Rodrigo Benevides projetaram quatro cenários para a saúde no novo regime fiscal. No pior, a perda chegaria a R$ 743 bilhões. O estudo reconhece a penúria do governo, mas sustenta que um ajuste focado nas despesas primárias "afeta particularmente as políticas sociais". É possível concordar ou discordar, mas não há nada no texto que autorize a desqualificação dos pesquisadores.
Nomeado há quatro meses pelo presidente Michel Temer, de quem é amigo, Lozardo reagiu com a ferocidade de um cão de guarda. Tachou o estudo de "irrealista" e "desconectado" e afirmou que suas conclusões "são de inteira responsabilidade dos autores" e "não representam a posição" do Ipea. Entre outras coisas, omitiu que o trabalho foi submetido previamente à direção do instituto.
A censura do doutor Lozardo é preocupante porque sugere que o novo regime está disposto a barrar estudos que contrariem suas teses. Se a regra prevalecer no Ipea, pode se alastrar para o IBGE e as universidades federais. Em outros tempos, a tentativa de submeter órgãos técnicos à vontade política do governo era chamada de aparelhamento.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Omissão sobre massacre saudita no Iêmen é algo estarrecedor

A inércia da comunidade internacional com as atrocidades cometidas no Iêmen é algo estarrecedor. A chamada "coalizão árabe", uma aliança militar forjada pela Arábia Saudita –com alguns bilhões de dólares– para dar coloração legítima a sua intervenção armada em favor do grupo político local subordinado a seus interesses, vem massacrando diariamente, há mais de um ano, civis iemenitas sem poupar mulheres, idosos e crianças.
Para lá de questionáveis, os resultados estratégicos da intervenção militar no Iêmen não trouxeram, até o momento, nenhuma vantagem política a Riad no intrincado tabuleiro regional.
O contorno da estratégia saudita transformou-se em nada mais do que uma política sanguinária de punição coletiva. A infraestrutura mais básica do país –mercados, escolas, hospitais e mesquitas– está sendo reduzida a pó, com o silêncio do "civilizado" mundo ocidental.
Os sucessivos fracassos de cessar-fogo tornam a saída política da guerra uma meta irreal, já que os sauditas buscam impor nas negociações diplomáticas demandas disformes à realidade local.
No último sábado (8), o alvo da ação saudita foi um funeral, em Sanaa, ceifando a vida de mais de 140 pessoas e ferindo outras 500, todos civis. Não se tratou de erro. O ataque foi deliberado. Supostamente, participavam do funeral líderes opositores vinculados aos houthis e ao ex-ditador Ali Abdullah Saleh, e o objetivo era claro: assassinato em massa.
Como já é de praxe, os sauditas negaram o fato. Depois, tentaram escondê-lo. Posteriormente, tentaram culpar terceiros atores e, por último, sucumbiram ao peso das irrefutáveis evidências.
A gravidade do fato fez o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, expressar seu repúdio, aludindo a crimes de guerra e solicitando a instalação de uma comissão internacional independente para investigar o caso.
No fundo, nada disso irá pra frente. A imoralidade de interesses econômicos –sempre postos acima de quaisquer princípios– não impedirá o mais medieval e extremista dos regimes totalitários do mundo a seguir com suas atrocidades no Iêmen ou a continuar sendo a fonte ideológica e uma das matrizes de financiamento do terrorismo internacional.
Do lado de cá do Atlântico, esperava-se do governo brasileiro uma manifestação mínima de solidariedade para com as famílias das vítimas do Iêmen, para não dizer uma necessária e firme condenação ao hediondo crime –isso, é claro, se o Itamaraty quisesse manter a coerência de seu discurso de respeito aos direitos humanos.
As notas à imprensa do Itamaraty números 384 e 385, referentes, respectivamente, aos atentados em Jerusalém e na Turquia, publicadas no dia 10, expressam, corretamente, solidariedade e condenaram a violência que deixou dois mortos e seis feridos, em Israel, e 18 mortos e 27 feridos, na Turquia. Já no Iêmen, apesar dos mais de 140 mortos e 500 feridos, a solidariedade da diplomacia brasileira pode tardar para vir, ou quiçá, nunca chegar.
Ao se tratar de Oriente Médio, é importante que a diplomacia brasileira tome cuidado com a seletividade de seus posicionamentos e, inclusive, de seu silêncio.


Texto de Hussein Kalout, na Folha de São Paulo.

Criador do Fofão e Patropi, ator Orival Pessini morre aos 72 anos

Criador do Fofão e Patropi, ator Orival Pessini morre aos 72 anos

Artista tinha câncer de baço e estava internado em hospital de São Paulo
Morreu na madrugada desta sexta-feira, em São Paulo, Orival Pessini, criador dos personagens Fofão e Patropi, aos 72 anos. Ele tinha um câncer no baço e estava internado no Hospital São Luiz do Morumbi, na zona Sul da cidade.
"Perdemos hoje às 4 horas da manhã um grande artista, uma pessoa que trouxe alegria a várias gerações com seu humor adulto ou para as crianças com o Fofão", escreveu no Facebook o empresário Alvaro Gomes. 
O ator nasceu em Marília, interior de SP, em 1944, começou a carreira no teatro amador e estreou na TV Tupi em 1963. 20 anos depois, criou o Fofão para o Balão Mágico, da Globo, talvez o personagem infantil mais popular da TV brasileira nos anos 1980, que depois migrou para a Rede Bandeirantes.
Ele também criou o Patropi, no programa Praça Brasil, um hippie universitário que também apareceu em outros programas, como A Praça é Nossa! e Escolinha do Professor Raimundo.

Reprodução do Correio do Povo

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Na maioria dos casos, o estudante começa a estudar só na pós-graduação

O currículo escolar, na Itália da minha infância, era assim: depois do maternal, que não era considerada escola, havia cinco anos de escola primária, três anos de média e, enfim, cinco de liceu.
O liceu levava ao exame de maturidade e à possibilidade de acessar a universidade. A maturidade clássica dava acesso a todas as faculdades, a maturidade científica só permitia se inscrever nas faculdades científicas.
Minha geração foi perseguida pelo azar –ou pela sorte, essa é a questão. O fato é que as reformas escolares facilitadoras sempre aconteciam logo depois da gente.
Fomos os últimos a ter que passar por um exame no fim do terceiro e do quinto ano do primário. Um belo dia, algum ministro achou que não fazia sentido submeter a vexames os alunos da escola obrigatória. Todos iriam até o fim da escola média: por que testá-los e avaliá-los?
E não seria melhor "simplificar" o programa para que todos terminassem sendo aprovados? Pronto, o latim saiu da escola média. O liceu sofreu em consequência: os alunos tiveram que começar, ao mesmo tempo, latim e grego antigo. E por aí vai.
Os progressistas se vangloriavam de "incluir" assim os alunos das classes menos favorecidas. De fato, era o contrário: eles conseguiram "excluir" esses alunos da possibilidade de acesso a uma fatia considerável de saber.
Cá entre nós, "escola obrigatória" não significa apenas que os jovens são obrigados a frequentar as aulas até uma certa idade, significa também que o Estado tem a obrigação de lhes ensinar o que está no programa. O Estado, quando fracassa, se safa da obrigação decretando que não era preciso conhecer as matérias que ele não soube ensinar.
Os "reacionários" gritavam com razão: vocês estão nivelando por baixo. Era em vão, o clichê sendo que todos os jovens seriam muito mais interessados por uma pelada do que pela leitura de Tácito.
É uma obviedade? Não, essa é a crença de uma geração de adultos narcisistas, decididos a criar rebentos que fossem caricaturas de seus próprios sonhos confusos de felicidade e folga.
Ou seja, alguns adultos a fim de férias imaginaram que jovens preguiçosos e ignorantes seriam felizes e, a partir disso, privaram as crianças de aprender coisas que tornariam o mundo infinitamente mais interessante para elas. Depois disso, curiosamente, os mesmos adultos queixaram-se de que as ditas crianças pareciam sempre entediadas.
Os "progressistas" também se tornaram, paradoxalmente, os defensores do funcionalismo da produção: para o que servem o latim, o grego, o próprio italiano clássico, a filosofia, a história, a história da arte? A indústria não precisa de letrados, mas de trabalhadores que participem do processo produtivo. Ler latim e filosofia não adianta nada; o que adianta é saber lavrar ao torno. Falar a norma culta da língua também não adianta nada; o que adianta é a eficiência.
As coisas continuam assim, não só na Itália. Na grande maioria dos casos, um estudante começa a estudar só na pós-graduação. E há bases que são perdidas para sempre.
Pensemos agora no sucesso dos livros de Dan Brown (e dos filmes relativos, desde "O Código da Vinci"). "Inferno", o filme adaptado do quarto romance das aventuras do professor Robert Langdon, "simbologista", entrou em cartaz agora.
Nos livros de Brown, uma cultura de bom vestibulando descobre e decifra sinais ocultos, resolvendo o mistério da hora, salvando assim o mundo e a verdade.
Li "Inferno" em 2013, quando saiu. Gostei de ver que o conhecimento da "Divina Comédia" e da história da arte de qualquer estudante italiano de liceu servia para revelar sinais ocultos mundo afora. Mas isso com uma ponta de melancolia, porque esse conhecimento era o privilégio do professor Langdon e não mais o patrimônio banal de todos.
A reforma escolar aparentemente "progressista" produziu o triunfo absoluto do elitismo. Agora, um povo privado de seu direito à cultura, em geral, não encontra o simpático Robert Langdon, mas o obscurantismo –religioso ou não.
O cidadão entediado e iletrado espera que outros, os quais sequer leem o latim da Bíblia Vulgata e ainda menos o grego e o aramaico originais, digam-lhe quem ele é e qual é o sentido de sua existência.
Robert Langdon, libera nos et ora pro nobis.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.

Beltrame deixa segurança do Rio com sensação de ter enxugado gelo

O mais longevo dos enxugadores de gelo do Rio despede-se da função nesta semana. José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Estado por quase uma década, deixa o cargo vendo a maior marca de sua gestão, as Unidades de Polícia Pacificadora, desmoronar.
Com as UPPs, Beltrame colocou em prática uma ideia conceitualmente simples, mas de difícil execução: a polícia precisava se aproximar dos moradores e do cotidiano das favelas, em vez de entrar nelas só para impor medo e trocar tiros com bandidos. Mas o resto do Estado precisava subir o morro também. Se a única face visível do poder público nas comunidades fosse a policial, jamais haveria paz duradoura.
Beltrame sempre soube que o sucesso das UPPs como força de ocupação militar teria duração limitada. E ela expirou. Não apenas por conta da calamidade financeira em que o PMDB jogou o Rio, mas por uma falha de execução do projeto. Porque os governantes se preocuparam mais em levar teleféricos do que saneamento às favelas.
É difícil evitar o desânimo ao ver que a melhor oportunidade que a cidade já teve para controlar a violência não durou nem uma década. Beltrame superou seus antecessores em longevidade porque teve condições para trabalhar como ninguém antes dele, e aproveitou-as com inteligência. Mas se despede do cargo em baixa como os demais.
Parabéns, secretário. O senhor foi o mais eficiente dos dublês de Sísifo que o Rio já teve. Por alguns anos, chegou mesmo a convencer ao menos parte da sociedade de que seu plano lograria êxito.
Mas jamais haverá pacificação sem que se trate seriamente da inclusão social. Sem que se admita o fracasso da guerra às drogas como executada até hoje. E sem que se garanta à polícia formação e remuneração dignas.


Texto de Marco Aurélio Canônico, na Folha de São Paulo

Morre o rei da Tailândia aos 88 anos

rei da Tailândia, Bhumibol Adulyadej, morreu nesta quinta-feira aos 88 anos em um hospital de Bangcoc onde estava internado há mais de um ano, informou a Casa Real em comunicado.

No comunicado se detalha que o monarca morreu às 15h52 (horário local, 5h52 em Brasília) no Hospital Siriraj da capital tailandesa.
Bhumibol, que era o decano dos chefes de Estado do mundo após 70 anos no trono, morreu após ser submetido no sábado a um procedimento para drenar líquido em seu cérebro, o que lhe causou uma forte queda de pressão.
"A equipe médica fez todo o possível, mas seu estado de saúde piorou", segundo o comunicado, acrescentando que o rei morreu em paz.
Bhumibol estava internado no Hospital Siriraj de maneira quase ininterrupta há mais de um ano e desde então a Casa Real emitiu 37 comunicados sobre o desenvolvimento de sua hospitalização.
A última aparição pública do monarca foi no dia 11 de janeiro, quando realizou durante algumas horas uma visita ao palácio real de Chitralada.
O estado de saúde de Bhumibol é um assunto muito sensível no país devido à lei de lesada altivez, que castiga com entre três e 15 anos de prisão os insultos contra a família real.
Bhumibol, no trono desde 1946, é o único rei que conheceu a maioria dos tailandeses, que o tinham como um ser quase divino, símbolo de unidade e guia da nação. 


Notícia da EFE, vista no Terra.  

Comentário rápido: pena que com o rei, não acabe também a monarquia.

Morre italiano Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura em 1997

Morre italiano Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura em 1997

Escritor ganhou fama com a peça "Mistério Bufo"

 O italiano Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura em 1997, morreu aos 90 anos, informou nesta quinta-feira a imprensa de seu país. "A Itália perde um dos grandes protagonistas do teatro, da cultura, da vida civil de nosso país", afirmou o primeiro-ministro Matteo Renzi ao prestar homenagem ao escritor.
"Sua obra satírica, sua busca, seu trabalho cênico, sua atividade artística de múltiplas facetas são a herança de um grande italiano do mundo", completou Renzi. Inconformista e observador de sua época, Fo, que também era ator, ganhou fama em 1969 com a peça "Mistério Bufo", uma epopeia sobre os oprimidos inspirada na cultura medieval. Na obra, o herói, um malabarista, estimula a rebelião com o sorriso.
A convocação à rebelião contra os poderosos e os hipócritas, com uma linguagem criativa, é um tema constante da obra Dario Fo. Entre suas obras teatrais mais conhecidas estão "A Morte acidental de um anarquista" e "Ninguém Paga, Ninguém Paga", entre outras.

Dario Fo pregou a criação de um teatro libertário

Ao lado de sua principal colaboradora, a mulher Franca Rame, Fo valorizava a importância do ator em cena, apontado não apenas como meramente um intérprete mas especialmente um criador.
Cada palavra dita em cena tem seu peso, pois os textos de Fo têm um face política, fortemente ligada à sua personalidade, e uma artística, renovadora e voltada ao passado. Autor de peças como Morte Acidental de Um Anarquista (sucesso no Brasil com Antonio Fagundes, Sérgio Britto e, ainda em cartaz, Dan Stulbach), Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico (montagem-chave de Denise Stoklos), Brincando em Cima Daquilo (primeiro encenado por Marília Pêra) e Pegue e Não Pague (outro sucesso, com Gianfrancesco Guarnieri), Dario Fo ganhou o Nobel "porque seguiu a tradição dos trovadores medievais criticando o poder e restaurou a dignidade dos humilhados", segundo comunicado da academia sueca.
De fato, por conta de sua irreverência, ele foi processado mais de 40 vezes por "delito de opinião" e ainda censurado pela direita. Franca Rame foi sequestrada e estuprada por um grupo fascista em 1973. Mesmo assim, no ano seguinte, ele montou seu teatro (Coletivo Teatrale da Comuna) em Milão, em um edifício abandonado - o Palazzina Liberty. Lá, sempre pregou a criação de um teatro libertário, que tratasse de temas muito próximos do cotidiano, como sexualidade, violência e dignidade.


Reprodução do Correio do Povo.

Cantor e compositor americano Bob Dylan vence Nobel de Literatura

Cantor e compositor americano Bob Dylan vence Nobel de Literatura

Academia Sueca destacou prêmio devido a "modos de expressão poética"


O cantor e compositor americano Bob Dylan se tornou nesta quinta-feira o primeiro músico a vencer o prêmio Nobel de Literatura "por seus novos modos de expressão poética", anunciou a Academia Sueca.
"Dylan criou novos modos de expressão poética dentro da grande tradição da música americana", anunciou a secretária-geral da Academia, Sara Danius, entre os aplausos dos jornalistas reunidos no majestoso salão da Bolsa em Estocolmo.
A secretária da Academia afirmou ao canal público SVT que as canções de Dylan são "poesia para os ouvidos", antes de destacar que ocorreu uma "grande coesão" entre os membros da Academia sobre a escolha. O artista, que aos 75 anos permanece ativo, é um "ícone", ressaltou a Academia Sueca.
Em maio, o cantor e compositor lançou o álbum mais recente, "Fallen Angels", no qual interpreta canções americanas popularizadas por Frank Sinatra. Este foi 37º álbum de sua carreira.
O prêmio Nobel consiste em uma premiação de oito milhões de coroas (822 mil euros, 907 mil dólares).


Reprodução parcial do Correio do Povo

domingo, 9 de outubro de 2016

Xadrez da próxima prisão de Lula

Xadrez da próxima prisão de Lula

Peça 1 - a instituição da prisão perpétua 


Sinal 1 - a prisão temporária de Guido Mantega e Antônio Palocci, depois convertida em prisão preventiva. Na prática, o juiz Sérgio Moro instituiu a prisão perpétua no país, com penas que começam a ser cumpridas mesmo antes da condenação.
José Dirceu, com mais de 70 anos, Palocci, com mais de 60, passaram pela prisão provisória, entraram na prisão preventiva e emendarão com a condenação final, com penas de 100 anos em um país em que parricídio e matricídio condenam a 15 anos de prisão.
Sinal 2 - O TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4a região) legitimando o Estado de Exceção na operação Lava Jato. 

Sinal 3 - o desmembramento da Lava Jato, com a aceitação da denúncia de Lula por corrupção e organização criminosa.

Sinal 4 - A aceitação do início do cumprimento da pena após sentença em 2a instância.
Tudo isso leva à Peça 2 do nosso xadrez.


Peça 2 - a prisão de Lula

Por todos esses indícios, paira sobre Lula a ameaça de prisão imediata.
Até algum tempo atrás julgava-se que o clamor popular seria tão intenso que ninguém ousaria testar.
No momento, o que mais a aliança midia-Lava Jato-Temer pretende são agitações populares, que possam justificar o aprofundamento do regime de exceção, desviando o foco dos fracassos políticos da junta golpista.

Haverá dois caminhos para Lula.

Um deles será buscar o asilo político em alguma embaixada e, fora do país, ter liberdade de ação para denunciar o regime de exceção instaurado.

O segundo caminho seria aceitar a prisão e transformar-se na reedição de Mandela. Pesa contra essa possibilidade a própria idade de Lula. Até que a democracia seja restabelecida, provavelmente não voltaria a ver a luz do dia.
Com as reações internas débeis à escalada do estado policial, o único obstáculo  às arbitrariedades serão as reações internacionais.


Peça 3 - os trânsfugas do lulismo


Uma das questões mais intrigantes desse jogo politico  tem sido a ira que Lula passou a despertar em personagens que são criaturas óbvias do lulismo, mesmo jamais tendo militância partidária.

É o caso do Procurador Geral da República Rodrigo Janot.
Antes da chegada de Lula, pertencia ao grupo dos Tuiuiús, de procuradores escanteados no Ministério Público Federal na era Geraldo Brindeiro. Reuniam-se toda sexta-feira em torno de uma mesa, com bons vinhos, tendo uma estátua de tuiuiú no meio, para lamentar a sorte.
Faziam parte Cláudio Fontelles, Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, futuros PGRs, mais Wagner Gonçalves, e o próprio Janot e o anfitrião Carlos Frederico Santos.
 Nenhum deles jamais teria ascendido ao poder se não fosse o lulismo.
 Sem espaço no MPF, outros grandes procuradores, como Eugënio Aragão e Joaquim Barbosa, recorriam a cursos no exterior.
O mesmo ocorreu com os Ministros Ayres Brito e Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Suas indicações geraram críticas no meio jurídico, de quem não os via preparados para o cargo.

Ascendendo na hierarquia do MPF e do STF, pelas mãos do PT, aparentemente essas pessoas julgavam-se  autoridades de segunda classe, posto que da cota de um partido visto pelo establishment como de segunda classe.
Daí a enorme gana de abjurarem essa ligação incômoda, para passar da cozinha para a sala de estar da casa grande, limpando-se do pecado original.
É sintomático que, quando o grampo sobre Lula captou uma frase sua, lamentando a ingratidão de Janot, este tenha se apressado em declarar que devia seu cargo a ele próprio, ao concurso, não ao Lula. Conversa! Sem Lula, jamais teria chegado a PGR.
 Tornou-se PGR não por concurso público, mas por trabalho político junto aos líderes do PT, José Dirceu e José Genoino entre outros.
O mesmo novo-richismo acometeu  Ayres Brito. De juiz humilde do Sergipe tornou-se uma estrela, após presidir a AP 470 com a gana de um inquisidor. Em um encontro de uma seccional da OAB, sua esposa recusou o carro enviado para transporta-los, alegando não estar a altura de um Ministro do STF.


Peça 4 - o subdesenvolvimento institucional 
 

São mais que episódios reveladores de carácteres individuais. Não é norma prudencial tratar as pessoas como se a maioria fosse dotada de firmeza de caráter. Egoísmos, ambições pessoais, desejo de prosperidade são motores muito mais influenciadores de decisões pessoais do que apelos de ordem moral. E salve Fontelles, Aragão, Wagner Gonçalves e outros que não abjuraram mesmo quando o galo cantou pela terceira vez.
Mas quando ocorre a generalização das pequenas e grandes deslealdades, é porque o ambiente externo não mais atua como agente coordenador de decisões. E, decididamente, há um caráter nacional impregnando a política, através da mídia, no qual valores civilizatórios, como a democracia, o voto, os direitos individuais, não são  considerados. Somos decididamente um país atrasado.
Os erros do PT e a despolitização da disputa política ajudaram nessa dissolução das lealdades. Forneceu a muitos beneficiados o álibi para se afastar indignados dessa malta que manchou minha imagem. E toca a pular para o outro barco.
Mas só os erros não justificam. Dia desses conversava com um bravo cientista político que discorda do poder absoluto creditado à mídia. Esse poder decorre dos erros do governo, dizia ele, com toda razão. Mídia, Ministério Público, Judiciário ganham protagonismo quando a política falha. E exercem um papel claramente desestabilizador.
Analise-se o papel do TCU (Tribunal de Contas da União). Ganhou um protagonismo absurdo graças à reação de Dilma Rousseff no caso de Pasadena. O Ministro José Jorge forçava de todas as maneiras os técnicos do TCU a encontrar irregularidades na operação, em vão. De repente, cai no seu colo uma vendeta de Dilma contra o ex-presidente da Petrobras Sérgio Gabrieli, tratando como suspeitos intens convencionais de um acordo de acionistas. Não apenas criminalizou uma operação legítima, como conferiu ao TCU um poder absurdo que acabou se voltando contra ela.
Mesmo assim,  há algo de profundamente errado no modelo, quando exige, para seu funcionamento, governantes com dimensão de estadista. Um modelo que não é à prova de governantes frágeis, tem algo de errado. Tão errado que periodicamente corporações, mídia, grupos de influência testam crises políticas agudas, ao menor sinal de fraqueza do Executivo.
Depois da Constituição de 1988 ter sido estuprada, não se conseguirá sair dessas armadilhas institucionais sem uma nova constituição em um ponto qualquer do futuro. E não haverá como fugir de temas como o do enquadramento do MPF e das corporações públicas e formas de controles da mídia.

Reprodução do Blog do Luís Nassif


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Democracia sem representantes reais da maioria não é democracia

Se o Brasil se inclui nos regimes chamados de democracia representativa, como a Constituição se esforça para sustentar, ou o batismo do regime está errado ou o que aqui se pratica não é democracia representativa. Esta é a verdadeira mensagem das eleições recentes, reiterada com números vergonhosos na tentativa de afinal ser notada no que de fato diz.
As duas principais cidades ilustram a incógnita, não por lhes ser exclusiva, mas por sua maior ressonância. Em São Paulo, João Doria é saudado por vencer no primeiro turno paulistano, recebendo maioria absoluta de 53%. Com isso, diz a quase totalidade dos comentários, os primórdios da sucessão presidencial em 2018 recebem nova configuração, saindo Geraldo Alckmin, patrono de Doria, fortalecido com e no PSDB.
No Rio, Marcelo Crivella foi levado ao segundo turno com 28%, contra Marcelo Freixo e seus 18%. O prefeito Eduardo Paes, diz a quase totalidade dos comentários, teve o seu futuro político posto sob sombras, e o PMDB, alijado do segundo turno, enfraquecido pela rejeição ao candidato de ambos, Pedro Paulo.
Os eleitos em definitivo e para segundo turno, em São Paulo e Rio, representam a quem e o quê, para merecer o direito e o poder de governar as duas maiores concentrações humanas do país? Apesar de discreta, foi possível descobrir no noticiário que a quantidade de eleitores que recusaram seus votos aos três mais votados, em São Paulo e no Rio, é maior do que os votos recebidos por cada um deles. O resultado oficial não sofre consequências porque a esperteza injetada na lei eleitoral, a que introduziu o segundo turno, fixa os totais dos candidatos depois de excluir do verdadeiro total geral os votos brancos e os nulos. Como se estes não fossem opiniões eleitorais –a reprovação de todos os candidatos– ou seus autores nem existissem.
Mas continuam existindo, continuam cidadãos e continuam a ter opinião, inúmeros com opinião ativa. À parte o voto que cada um dê ou recuse, os eleitores são o que a sociedade tem de mais legítimo, do ponto de vista institucional: são os que falam oficialmente por todos. Não pela lei eleitoral em vigor, cujo sentido é impedir a democracia representativa.
Os 53% obtidos por João Doria são 53% dos votos que a lei autoriza computar para fixar o total de votos aos candidatos. Assim retirados os votos brancos, os nulos e juntadas as ausências, os 100% de eleitorado paulistano caem para o equivalente a 61,5%. Os 53% desse novo percentual é que revelam a parte dos paulistanos que votaram em João Doria: 32%.
É isto: João Doria torna-se prefeito por preferência de um eleitorado que não chega nem a um terço dos cidadãos habilitados a votar em São Paulo. Logo, Doria vai administrar a maior cidade brasileira como representante apenas de uma minoria. E recusado na escolha de 68% das 8.886.159 vozes da cidadania paulista.
No Rio, o mesmo ajuste dos eleitores à sua verdade e das urnas à sua realidade, para os dois caminhantes ao segundo turno, o resultado é ainda mais dramático. Os 28% oficiais de Marcelo Crivella são, na verdade, 16% do total verdadeiro de eleitores. Os 18% de Marcelo Freixo são, de fato, 10,5% do eleitorado. Se vitorioso no segundo turno, o primeiro o será foi depois de excluído na escolha de 72% dos cidadãos do Rio; o outro, recusado por 89,5%.
A democracia eleitoral sem representantes autênticos da preferência majoritária não é representativa e não pode ser democracia. Tal realidade abarca toda a política, que tem seus controles primordiais determinados em eleições majoritárias, de presidente, governadores e prefeitos, sujeitas à perversão das verdades eleitorais. Aí está uma das mais fortes causas da já insuportável deterioração da política no Brasil.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

Dias piores virão

É impossível minimizar o tamanho da derrota eleitoral de Eduardo Paes e do PMDB na eleição municipal do Rio. Seu candidato, Pedro Paulo, foi o campeão do país em arrecadação de pessoas físicas (R$ 6,7 milhões). Teve uma coligação de 15 partidos que lhe garantiu mais tempo na TV do que qualquer outro.
E teve uma Olimpíada bem-sucedida, além de incontáveis obras inauguradas na maior reforma urbana que a cidade experimentou em mais de meio século. Paes estava tão seguro de que elegeria qualquer poste que bancou um candidato sem carisma e totalmente queimado pelas acusações —que não prosperaram na Justiça— de ter agredido a mulher. Sustentou-o mesmo contra a opinião da maioria do partido, mesmo quando o próprio Pedro Paulo quis desistir.
Não chegar sequer ao segundo turno contando com toda essa vantagem foi o maior "esculacho" que um prefeito poderia levar de seus governados. Paes era invejado pelos demais governantes por sua sorte de estar à frente do Rio em uma fase de ouro. Era visto como potencial presidenciável.
Agora, vai terminar seus oito anos de mandato mais pato manco do que nunca, com um oposicionista eleito bombardeando os pontos fracos de sua prefeitura e advertindo a população para a herança maldita. A derrota de Paes e do PMDB na capital marca o fim de uma década em que os três níveis de governo estiveram alinhados em prol do Rio. Iniciada no tempo de Lula e de Sérgio Cabral, essa sinergia foi muito benéfica à cidade.
Doravante, o futuro se anuncia sombrio: os peemedebistas que levaram o Estado à calamidade financeira já sinalizaram que vão se opor ao novo prefeito e torcer para o circo pegar (mais) fogo, até para terem alguma chance nas eleições de 2018. Se a situação do Rio já estava péssima quando havia alguma união, imagine-se o que vem por aí.


Texto de Marco Aurélio Canônico, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Brasileiros reconstituem rosto pré-inca

Brasileiros reconstituem rosto pré-inca

PHILLIPPE WATANABE
DE SÃO PAULO

Um cadáver repousa sobre uma placa de ouro. O corpo está junto a um capacete que forma uma meia-lua. Na tumba, estão presentes ainda dois guardas, enterrados junto ao esqueleto. Esse é o Senhor de Sipán, governante, entre os séculos 2 e 3, de uma civilização peruana pré-Inca, os Moches.
Os restos do esqueleto foram descobertos em 1987.
Paulo Miamoto, professor de odontologia da Faculdade São Leopoldo Mandic, e Cícero Moraes, vice-coordenador da Ebrafol (Equipe Brasileira de Antropologia Forense e Odontologia Legal), usando somente um smartphone e seu potencial de processamento, conseguiram reconstituir em 3D como seria a aparência do governante.
A utilização de um smartphone para fotografar o crânio foi especificamente pensada para mostrar como o processo pode ser reproduzido por outras equipes sem a necessidade de aparelhos caros e sofisticados. Da mesma forma, a reconstituição foi feita com um software gratuito de código aberto.

SENHOR DE SIPÁN

Com o estudo da ossada, foi possível, determinar que se tratava de um homem entre 35 e 50 anos. Os restos são mantidos no acervo arqueológico do Museu Tumbas Reais de Sipán, em Lambayeque, no Peru.
Quando pensamos em governantes de eras pré-Estado Moderno, é possível imaginar mortes sangrentas, conspirações pelo trono e traições.
Contudo, pelo menos a parte da violência ficou de fora da morte do Senhor de Sipán, ainda que sua causa exata não seja conhecida. O crânio acabou esmagado pela ação do tempo e pelo peso do solo acumulado sobre a tumba.
Os restos do governante colocaram em evidência, na região da descoberta, a importância da preservação da cultura e da história. "As pessoas da zona rural, pelas poucas fontes de renda, estavam saqueando sítios arqueológicos", afirma o professor Miamoto.

ATUALIDADE

Miamoto é também coordenador da Ebrafol e pesquisa identificação humana. Ele afirma que, além de contribuir para preservação da história, estudos como a reconstituição realizada têm objetivos forenses.
"Quando existe uma ossada e não há ninguém procurando por ela, alguém pode reconhecer a reconstrução do rosto e entrar em contato", diz Miamoto.
"Pode melhorar a produção da prova pericial."
O pesquisador afirma que o próximo desafio, já em negociação, é fazer a reconstituição facial de duas múmias egípcias.


Reprodução da Folha de São Paulo

Meu professor preferido da escola tinha partido e surtava diariamente

Na minha escola a gente podia escolher entre o literário e o científico. Quem escolhesse o primeiro teria oito horas de filosofia por semana. Todas elas com o mesmo professor. Um sujeito que podia ser tudo menos simpático.
Levy Midon tinha uma barriga dura e um bigode ruivo de gaulês, como Abracourcix —mas sem o carisma. Não sorriu. Não perguntou nossos nomes. Na primeira vez que entrou na sala, tivemos a certeza de que nossa vida seria um inferno.
Um aluno falou, blasé, que aquela aula seria tempo perdido porque "filosofia não servia pra nada". Antes que o aluno terminasse, o sangue subiu à cabeça já vermelha do professor: "Nada serve pra porra nenhuma, seu imbecil!" ele berrava, batendo os punhos na mesa. "Você vai morrer! Não importa o que você faça! Sabe o que não serve pra nada? Você. Eu também não sirvo pra nada. Mas você serve pra ainda menos, porque você acha que serve pra alguma coisa." E ele foi acalmando, aos poucos, enquanto deixava claro o quão pouco servia a vida. Sem que percebêssemos, a aula tinha começado.
Quando descobrimos que ele podia surtar a qualquer momento, assistíamos à aula vibrantes e estarrecidos, como quem brinca com um tigre. Uma vez, falei que os franceses eram fascistas porque tratavam mal as crianças. Midon virou um camarão graúdo: "No seu país meio milhão de crianças mora na rua! E você está cagando pra elas! Fascista é você que se importa só com criança branca e rica." Iaaaaau, todos berravam, fazendo a famosa onomatopeia de humilhação moral, hoje talvez substituída por "Chupa!".
Sempre que consultado, o professor versava sobre qualquer assunto: futebol, cinema, dicas de masturbação, a vida íntima dos outros professores, sua própria vida íntima, a morte da mulher num acidente de carro. Tudo estava em pauta. A não ser o assunto da semana. Hegeliano, sobre atualidades não falava de jeito nenhum. "A coruja de minerva só levanta voo no crepúsculo", dizia, e calava-se.
Ficamos amigos dele. Quando se apaixonou, levou a namorada pra sala pra que a gente a conhecesse. Quando me formei, não sabia o que cursar. Tinha medo de, escolhendo a literatura, ser pobre pra sempre. Perguntei a ele o que achava. "Você já escolheu", ele disse "quando escolheu um professor pobre pra escolher. Você não perguntou a um banqueiro. Essa é a tragédia da vida, meu amigo. Você não consegue não-escolher." Nunca mais nos encontramos.
Quarta-feira visitei a escola. Perguntei por ele. Morreu no início do ano, disseram-me. Do coração.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

domingo, 2 de outubro de 2016

Era uma vez uma cidade

Era uma vez uma cidade que se considerava "a locomotiva do Brasil", mas cuja tara rodoviária era, ironicamente, uma das responsáveis por quase não haver locomotivas no Brasil. O lema escrito no escudo da cidade, em latim, era "Não sou conduzido, conduzo", mas bastaria a ela olhar em volta para suspeitar que não fosse especialmente boa na condução. Em cima da frase em latim, no escudo da cidade, havia uns ramos de café, um castelinho e um braço de armadura segurando uma alabarda. O café era uma homenagem à cultura responsável pela derrubada de boa parte da nossa mata atlântica no passado, o castelinho, uma premonição dos prédios neoclássicos no futuro, e a armadura, uma intuição do que seria a nossa polícia, sempre.
Era uma vez uma cidade que se considerava "de primeiro mundo", mas tratava só metade do seu esgoto e reciclava só 3% do seu lixo. Os rios a cruzarem a cidade eram águas mortas a levar nossas fezes, pneus e garrafas na mesma direção em que, séculos atrás, rumaram os bandeirantes para caçar índios e pedras preciosas.
Era uma vez uma cidade que se considerava moderna, mas onde gays apanhavam na rua, crianças dormiam embaixo das pontes e as margens do Ipiranga ainda ouviam, em pleno século 21, o brado retumbante: "Você sabe com quem está falando?!"
Era uma vez uma cidade que se orgulhava de seu espírito empreendedor, mas onde alguns dos maiores empreendedores se viam envolvidos em escândalos de pagamentos de propinas para políticos, visando assim garantir o monopólio do empreendedorismo.
Era uma vez uma cidade que se orgulhava de ser o berço dos dois partidos a governarem o país nas últimas duas décadas, mas cujos partidos se viam envolvidos em escândalos de recebimento de propinas de empresários, visando assim garantir o monopólio da governança. (Contra um dos partidos, é verdade, havia muito mais provas do que contra o outro, o que talvez se explique, entre outras razões, pelo fato de que só um dos partidos vinha sendo sistematicamente investigado.)
Era uma vez uma cidade em que a pobreza era feiíssima –centro degradado, oceanos de autoconstrução sem árvores ou praças, fios legais e ilegais fatiando o céu–, a classe média era feiíssima –avenida Santo Amaro, Eusébio Matoso, shopping Eldorado– e a riqueza era patética –mansões "peru no pires" estilo Casa Branca, prédios chamados "Maison-sei-lá-o-quê" e "Villa-não-sei-das-quantas" com colunas jônicas e pinheirinhos a cinquenta metros de altitude.
Era uma vez uma cidade em que matar 111 presos desarmados era considerado "legítima defesa", mas quem saísse para protestar contra o governo poderia ser encarcerado e enquadrado na lei antiterrorismo –antes mesmo da manifestação.
Era uma vez um país em que acidentes de trânsito matavam mais de 50 mil pessoas todo ano, num planeta que vinha cozinhando por causa da queima de combustíveis fósseis. Era uma vez uma cidade que, a menos de uma semana da eleição municipal, tinha nos três primeiros colocados nas pesquisas defensores ferrenhos do aumento da velocidade dos automóveis e de menor rigor na aplicação das multas de trânsito –as melhores respostas, sem dúvida, para os enormes desafios daquela cidade, daquele país, daquele planeta.
Era uma vez uma cidade.


Texto de Antônio Prata, na Folha de São Paulo

sábado, 1 de outubro de 2016

Autópsia da omissão

Nos últimos 30 anos aprendemos que o fim do regime autoritário e o início da democracia não significaram o início do estado de direito e muito menos da universalização dos direitos humanos.
O massacre do Carandiru talvez constitua o maior símbolo da incompletude de nossa transição. Seja pela brutalidade que marcou aquele momento, seja pela negligência das diversas instâncias de aplicação da lei em reconhecerem o abuso e responsabilizarem os que o praticaram. Nesse sentido, a mais recente decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, anulando decisão do Tribunal do Júri que condenava 74 partícipes daquela chacina não chega a surpreender. O que gerou maior perplexidade foi o voto do desembargador Ivan Sartori, que absolveu policiais, em clara usurpação da competência constitucional do júri.
Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.
Se foi surpreendente que policiais militares tivessem incorrido naquela desastrosa operação, na presença de juízes corregedores, que até hoje não sabemos como agiram, o mais inquietante foi a absoluta incapacidade das instituições de aplicação da lei do Estado de São Paulo para realizar uma investigação autônoma e levar ao devido termo a apuração das responsabilidades dos que ordenaram e realizaram o massacre.
Como demonstram Marta Machado e Maíra Rocha Machado, em "Carandiru não é coisa do passado", as falhas começaram pela desfiguração da cena do crime, o que dificultou imensamente a produção de provas periciais. Uma segunda omissão gritante foi a ausência de qualquer investigação sobre o envolvimento de altas autoridades civis no massacre, apesar do Ministério Público ter sido oficiado pela Promotoria Militar sobre indícios de envolvimento dessas autoridades. É de setores do Tribunal de Justiça, no entanto, a responsabilidade maior pela demora neste julgamento. Da pronúncia até hoje vão quase 20 anos. Estima-se que o processo tenha ficado ao menos dez anos para- do, sem qualquer justificativa, em seus escaninhos.
Alguns magistrados também demonstraram sua inapetência para aplicar a lei de forma imparcial ao subverterem a decisão do Tribunal do Júri, que havia condenado o Coronel Ubiratan Guimarães, ou ao arbitrarem valores indenizatórios irrisórios aos familiares das vítimas.
Este processo deveria há muito ter tido a sua competência deslocada para a Justiça Federal, em conformidade com o artigo 109, V, parágrafo 5º da Constituição Federal, por patente e constrangedora incapacidade das instituições estaduais de oferecer uma resposta jurídica eficaz a este caso. Talvez ainda haja tempo para a federalização deste julgamento, antes que a prescrição cubra o massacre com o manto da impunidade.


Texto de Oscar Vilhena Vieira, na Folha de São Paulo

Julgamento do massacre é exemplo do processo penal de exceção vigente no país


Nunca superamos a cultura da escravidão. Se antes identificávamos casa grande, senzala e capitães do mato como elementos sociais bem delineados, hoje devemos compreender a estrutura camuflada na qual convivem veladamente Estado de direito, Estado de exceção e polícia militar.
Em 1861, no “Diário do Rio de Janeiro”, Machado de Assis denunciou a dicotomia entre um Brasil oficial e um Brasil real, ainda em 1861: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”. Não apenas seguimos com países distintos coexistindo numa mesma roupagem, mas institucionalizamos as diferenças por meio da aplicação do direito.
A casa grande enquanto reduto do senhorio deu origem à forma jurídica de um Estado pretensamente democrático de direito destinado à população incluída, onde direitos e garantias fundamentais são assegurados de acordo com a conveniência de um pensamento dominado pela elite econômica.
Em situação diametralmente oposta, a senzala evoluiu para um Estado de exceção permanente destinado aos excluídos, onde vige a lógica do combate seletivo à população pobre e marginalizada por meio da imposição do medo e do terror a partir da aplicação severa das normas incriminadoras e negação ao direito de defesa.
Não é difícil perceber que a missão outrora atribuída aos capitães do mato, agentes da repressão e castigo aos escravos, foi confiada à Polícia Militar ― instituição incompatível com um regime democrático ― que atua, por um lado, como força de proteção dos interesses (bens jurídicos?) da classe dominante e, de outra parte, como força de ocupação territorial e repressão à população pobre.
Como nos ensina Pedro Serrano, essa é a lógica do Estado de exceção contemporâneo: combater o inimigo com aparência de legalidade institucional. Nesse contexto, o sistema de justiça criminal desempenha a função de agente da exceção, com o intuito de atribuir legitimidade à prática de medidas essencialmente autoritárias com verniz de legalidade.
Ao contrário do Direito Penal do Inimigo à moda de Günther Jakobs, não temos dois direitos penais regulamentados abstratamente de forma distinta para cidadãos e inimigos (tal qual o combate ao inimigo terrorista estadunidense e seu Patriotic Act).
Em nosso ordenamento jurídico, vige oficialmente o mesmo direito penal, as mesmas normas do sistema criminal, porém aplicadas e interpretadas de modo diferente por meio do que temos denunciado como processo penal de exceção.
Se o inimigo de séculos atrás era dominado no contexto de uma relação escravocrata, atualmente é o sistema de justiça criminal quem desempenha a mesma função. Segundo levantamento realizado pelo IDDD, mais de 90% dos presos entrevistados respondem por crimes contra o patrimônio (furto, roubo e receptação) ou tráfico de drogas: eis a pura e simples criminalização da pobreza.
O inimigo interno veio da senzala, é o pobre e quase sempre negro, ou quase negro de tão pobre, como bem retratado por Caetano Veloso, afinal são “111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, quase brancos quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.
O discurso hipócrita por trás das medidas de exceção atende aos anseios autoritários do senso comum, segundo os quais “direitos humanos não se aplicam a bandidos” ou “bandido bom é bandido morto”.
Sem a pretensão de uma análise técnica sobre o julgamento proferido pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, limito-me a destacar os argumentos lamentavelmente apresentados pelo desembargador Ivan Sartori na sessão da última terça-feira (27/09): “Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do deve legal. Agora, não nego que, dentre eles, possa ter existido algum assassino“.
Ora, como adotar a tese de legítima defesa diante da execução de 111 presos (nenhum policial morto), a maioria dos detentos atingida com tiros na cabeça e pescoço, assassinados dentro das celas, alvejados covardemente pelas costas? Nem é preciso dizer que o Código Penal fala em uso moderado dos meios necessários para repelir agressão injusta como requisitos para caracterização da legítima defesa.
Como imaginar obediência hierárquica (estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal?) ou estrito cumprimento do dever legal (estrito. cumprimento. dever. legal.) diante da pilha de corpus nus em um mar de sangue?
Além disso, não é demais lembrar que, ao entrar no exame do mérito, a manifestação do relator viola de forma inadmissível o princípio constitucional da soberania dos veredictos. Óbvio, pois de nada adiantaria submeter alguém a julgamento popular se o Tribunal de instância superior pudesse alterar a decisão final dos jurados.
O fato de ter prevalecido entendimento diverso (também deveras controverso), adotado pelos desembargadores Camilo Léllis e Edison Brandão, pela anulação do julgamento em detrimento da absolvição direta dos réus ― caso a decisão não seja reformada, deverão ser submetidos ao Plenário do Júri novamente ― não atenua a gravidade da mensagem transmitida pelo relator desembargador Ivan Sartori.
Não defendo que a punição severa aos policiais pudesse servir de exemplo para reduzir a violência institucionalizada (penas criminais não se prestam a isso). Não tenho acesso os autos para avaliar a individualização das condutas ou a forma como os quesitos foram redigidos. Não reputo a violência da polícia militar como manifestação individual dos seus agentes, mas como fenômeno essencial a uma instituição concebida para a guerra.
Nesse contexto, a desmilitarização do policiamento ostensivo ― nos termos propostos pela Deputada Zulaiê Cobra em 1998 e bem justificados por Pedro Serrano― é o caminho democrático a ser trilhado, pois a segurança pública da sociedade civil não deve ser confiada a uma força de natureza militar, naturalmente incompatível com a ideia de proteção ao cidadão.
Em sentido diametralmente oposto, porém, ao legitimar o massacre do Carandiru, transmite-se mensagem em prol do autoritarismo, que pode ser interpretada como licença para matar a partir dessa forma sui generis de fuzilamento em “legítima defesa, obediência hierárquica ou cumprimento do dever legal”.

Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).



Texto do Justificando, via Jornal GGN