sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Pêndulo

Com plácida indiferença, o economista do mercado financeiro me explica que a sociedade funciona como um pêndulo, oscilando entre a direita e a esquerda em ciclos sazonais. Depois de 20 anos sob o comando de partidos de centro-esquerda, o Brasil rumaria, inexoravelmente, para a direita da curva.
Se esse equilíbrio, de fato, existir, é provável que a inércia pendular reeleja, em 2022, o líder das pesquisas de 2018, emplacando, em 2026, mais oito anos de eleição e reeleição de um de seus filhos ou, quiçá, de uma liderança evangélica. Edir, talvez?
Cumpriríamos assim a parábola, esgotando o ciclo das forças que passaram as últimas décadas na encolha.
Da minha parente que dispara fake news no Face com o furor de um robô eleitoral ao taxista que não perdoa a roubalheira do PT, do pai de família que se sentiu acossado pela militância identitária ao eleitor da terceira via que não aguenta a Gleisi Sheela do Lula Osho, do ruralista farto do Ibama ao cidadão que se sentiria seguro com uma arma na mão, do empresário ao microempreendedor que desistiu de arrumar patrão, engrossamos tanto o peso da bola que ela tendeu para a ultradireita.
Não estamos sozinhos. Turquia, Estados Unidos, a febre é mundial. Na Alemanha, o nazi partido, que conquistou 12,9% das cadeiras em 2017, criou um aplicativo para que os estudantes apontem professores contrários aos radicais islamofóbicos do parlamento.
Aqui, sem nunca mencionar as milícias e o terror do narco-estado, Messias incita a massa a metralhar petralhas, eliminar vermelhos e enquadrar gays, a menosprezar índios, pretos, mulheres, jornalistas, ambientalistas, intelectuais e artistas.
Inimigos do povo, os petistas roubam, os gays seviciam, os índios são preguiçosos, os pretos malandros, os vermelhos perigosos, as mulheres fraquejadas, os jornalistas mentirosos, os ambientalistas xiitas, os intelectuais elitistas e os artistas mamadores das tetas.
É lavagem cerebral. A Revolução Cultural de Mao aplicada ao livre mercado.
O discurso do mama-tetas surgiu nas redes, em meados do governo PT, e foi aprimorado pelo candidato que periga chegar ao poder em janeiro. À possível extinção dos mecanismos de isenção para as artes, se somará a retórica moralizante, avessa à liberdade de expressão.
Desconfiadas de que a renúncia fiscal se transformaria numa arapuca para a classe artística, eu e minha produtora desistimos de trabalhar com a Lei Rouanet dez anos atrás. Agora, a preocupação é de outra ordem.
Por temer os humores das brigadas conservadoras, suspendemos a temporada de "A Casa dos Budas Ditosos", agendada para novembro, na periferia do Rio de Janeiro. Depois de 15 anos em cartaz, a covardia nos fez deixar a baiana libertária de João Ubaldo de molho.
A autocensura já dita regras.
O medo do coronel da reserva, que xinga Rosa Weber de corrupta empoada; do garoto, que sugere fechar o STF com um guardinha de trânsito; o pânico da porrada com barra de ferro, que o estudante levou na cabeça por panfletar por Haddad; do tiroteio para o alto, na praça São Salvador; e dos atentados ao Instituto Chico Mendes, no Pará.
A temporada de caça está aberta. Para andar em segurança, o sujeito vai ter que levar uma blusa do Ustra na mochila e fazer sinal de arminha com a mão, cada vez que o pelotão dos bons costumes passar.
O pêndulo do economista não vai resistir à pressão. A corda vai romper antes de retornar para o centro.
Eu também não queria o PT e creio na responsabilidade fiscal, mas qualquer coisa é melhor do que a teocracia armada.

Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Em 1968, tudo era melhor

Em cerimônia realizada na rua Tutoia, o virtual presidente Jair Bolsonaro apresentou os pilares de seu governo: "Tenho dito que o objetivo é fazer o Brasil semelhante ao que era há 40, 50 anos", discursou. Em seguida, ergueu uma folha de papel sulfite em que aparecia um slogan mimeografado: "O Brasil voltou, 50 anos em 4".
Em seguida, Bolsonaro apresentou seu plano de metas.
1. Em 1968 tudo era melhor. O Brasil tinha uma população de cerca de 70 milhões de pessoas. Hoje somos mais de 200 milhões. Minha primeira medida será liberar o porte de arma para, logo no primeiro ano de governo, reduzir a população a um terço.
2. Em 1968 o Brasil não tinha fraudes nas urnas eletrônicas por um simples motivo: não havia eleições. São estratégias militares como essa que resolvem problemas complexos de maneira simples.
3. Em 1968 o brasileiro abria os jornais e não via escândalos de corrupção. Não havia fake news corrompendo nossas ilibadas reputações. A maneira mais eficiente de combater a corrupção é censurar a imprensa. Em nome da segurança nacional, também vamos suspender a internet, os celulares, o teletrim e o fax.
4. Em 1968 o AI-5 foi implementado. O ato revolucionário continua moderno e será resgatado pelos motivos a seguir:
4.1. Acabou com a palhaçada de habeas corpus. Homens direitos tinham total autonomia para impôr a ordem sem mimimi dos direitos humanos.
4.2. Num corte de custos exemplar, que respeitou o dinheiro do contribuinte, o Congresso e as assembleias legislativas foram fechados.
5. Em 1968 não tinha Lei Rouanet. Artista bom era artista preso, como foram Caetano e Gil. Ou, mais à frente, exilados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Glauber Rocha e tantos outros.
6. Em 1968 ninguém se preocupava com a Venezuela. Nem com qualquer outro país da América do Sul. A não ser os artistas que, por isso, foram exilados.
7. Em 1968 não havia Bolsa Família. A economia andava na linha: redução do salário mínimo e aumento das desigualdades sociais. Tudo funcionando para os ricos ficarem mais ricos e assim não encherem o saco batendo panelas.

CONTADOR

Estamos trabalhando há 226 dias sem saber quem matou —e quem mandou matar— Marielle Franco. Em 1968 não havia sequer espaço para surgir uma Marielle Franco.

Reprodução de coluna de Renato Terra, na Folha de São Paulo

Bruna Menconi Bonvicino (1992-2018) - Detalhista e criativa, poetisa trilhou caminho não linear

Desde criança a paulistana Bruna mostrava estar além do seu tempo. Observadora, questionava o mundo e como tudo funcionava, mas nunca quis traçar um caminho linear. "Ela enxergava. Conseguia notar o que ninguém via, o que passava batido", diz a mãe, Darly.

Estudiosa e leitora assídua, precocemente passou a expressar suas impressões em forma de poesia. Algo que, segundo o pai, Régis Bonvicino, também poeta, "brotou naturalmente" na vida dela.
Os livros de história antiga e geral e de mitologia eram os seus preferidos e, na fase adulta, contribuíram para a escolha da graduação em história.
Bruna viajou bastante, incluindo vários países, devido ao trabalho dos pais. Viajar acabou se tornando um de seus passatempos preferidos.
Quando ela tinha três anos, um amigo da família se mostrou reticente quanto a levar uma criança a uma viagem de trabalho em Paris. Bastou um pouco de contato com a garota para mudar de opinião. "Ele ficou encantado com a capacidade verbal dela. Desde pequena ela observava o mundo e tinha um raciocínio muito analítico, além de ser bastante criativa", lembra a mãe.
Bruna gostava de visitar museus e, em Nova York, encontrou seus favoritos: o Metropolitan e o MoMa.
Diagnosticada com transtorno bipolar, travou uma luta pela vida e contra a doença. "Ela queria ser ela, ser vista apenas como a moça talentosa e inteligente que era, sem estar aprisionada aos medicamentos. Seu maior sonho era ganhar o mundo", diz Darly.
Bruna estava escrevendo um livro de poesias e prestes a terminar a faculdade. Os projetos acabaram interrompidos no dia 19 de outubro, quando ela resolveu encerrar a jornada aos 25 anos. Deixa os pais e os irmãos João, Marcelo e Felipe.

Reprodução da Folha de São Paulo

sábado, 20 de outubro de 2018

Em busca de novos amigos e parentes

Toda semana, quando entrego o texto desta coluna, penso se é isso mesmo ou se estou devaneando. Realmente aconteceu comigo aquilo que eu planejei aos dez anos de idade? Aos 20, 30, 39, ontem? Não existiu um único dia da minha vida em que eu não tenha desejado com cada célula do meu corpo ser uma escritora lida. Eu não sei fazer arroz, eu não sei fazer divisões matemáticas simples, eu não sei mais fazer amor, mas eu escrevo —e, além de criar a minha filha, essa é a única atribuição que me importa.
Contudo, ontem, liguei para o editor desta Folha e me demiti (calma, não comemore, já voltei atrás). Quando o encontro com o outro deixa de nos empolgar ou emocionar, escrever torna-se tão sem sentido quanto aparar os pelos. Eu estou desgostando das pessoas de que gosto, e isso é desesperador.
É tanto cansaço e desesperança que concatenar qualquer pensamento me enche de ânsia e enxaqueca. Eu queria deitar no escuro e no silêncio por meia hora e mais meia hora e mais uma meia horinha até melhorar. Se o maior saco cheio do mundo pudesse chegar à Lua, o meu, neste momento, daria mil voltas em torno dela.
Os tempos soam irremediavelmente sombrios quando parte importante dos seus queridos de outrora não mais te interessam. Eles só falam em dinheiro, eles enfiam Venezuela em frases que não têm nada a ver com a Venezuela, e por cima do rosto deles visualizo a escada ensanguentada do filme "Carandiru": uma metáfora do que acabou de acontecer com a amizade. Quantas viagens, fotos, madrugadas, ataques de risos, ombros melecados de choro, para o amor acabar num post espúrio, opressor e reacionário.
Percebi que 95% da minha família só me causa algum aprazimento quando permanece a milhares de quilômetros dos meus olhos, ouvidos e falta de tato. Nunca trazem livros ou frases doces, nunca trazem graça ou acolhimento, nunca trazem aceitação ou sentimento de orgulho, nunca trazem dúvidas ou desculpas, nunca é a mim que eles visitam, mas sim ao que, solitária e perversamente, julgam ser o mais correto de mim. Apenas me pedem, demandam, invadem, levam, julgam, culpam, cobram, não me enxergam, tentam me afogar na lama grossa de seus lamentos não elaborados, planejados ou digeridos.
Às quintas-feiras, quando estudo psicanálise, disponho de duas magníficas horas com sujeitos que se empenham de verdade em encontrar um sentido menos doloroso para a troca de ar travada com o mundo. Esses colegas não sabem, mas são, hoje (e eu nem lembro direito o nome deles), uma espécie de família possível. Freud é, hoje, apesar de certa misoginia incômoda (um homem do seu tempo) a única figura paterna conciliadora, o terceiro que liberta meu seio da minha própria fome neurótica. A literatura é, hoje, apesar da pilha de livros não terminados ao lado da cama, o único colo materno que recebo quando fico assustada demais nas madrugadas.
De resto, peguem seus "bons-dias", "durmam com Deus" e "fiquem em paz" e tenham vergonha na cara. Em tempos umbrosos, quanto menos divino e generoso é um coração, mais ele transbordará memes insuportáveis de fé, equilíbrio e amor. Eu desejo que os grupos de WhatsApp "do bem" comecem a propagar sífilis, e não esse ódio nojento travestido de desejo de um mundo melhor.
Estou em busca de novos amigos, de novos parentes, sedenta por encontros que nos elevem em vez de encher-nos de uma vontade assustadora de fenecer. Que possamos nos conhecer e começar tudo de novo.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Um governo de milícias

Terça-feira, dia 16 de outubro, largo do Arouche, São Paulo. Uma travesti —cujo nome a polícia não revelou, procedimento evidente de desumanização— foi morta a facadas por volta das 4h.
Testemunhas disseram ouvir, durante a briga, os assassinos gritando "Bolsonaro, ele sim". Outra testemunha ouviu: "Com Bolsonaro, a caça aos veados vai ser legalizada".
Dia 9 de outubro, Porto Alegre. Uma mulher apareceu na delegacia com escoriações na pele com a forma de uma suástica. Ela teria sido agredida por apoiadores do candidato Jair Bolsonaro.
Ao ver o ocorrido, o senhor delegado achou por bem zombar da vítimae afirmar a monstruosidade de que não se tratava de um símbolo nazista, mas de um símbolo budista da paz. Certamente, podemos imaginar gangues de monges budistas fazendo rituais da paz e do amor com garotas que, ao final, são marcadas por suásticas. Isso é muito comum, como todos sabem.
Dia 17 de outubro, Universidade de São Paulo. Várias portas do dormitório estudantil amanheceram pichadas com suásticas e frases como "voltem para a Bolívia". Deve ser a gangue dos monges budistas atacando novamente.
Diante de casos dessa natureza, o senhor Bolsonaro apenas reclamou do "claro descaso" das agressões sofridas por seus apoiadores, "perseguidos há anos".
Bem, alguém se lembra de algum bolsonarista que apareceu com escoriações de foice e martelo? Ou de alguém assassinado por suas posições políticas de extrema direita?
Na verdade, as "perseguições" seriam o fato de eles serem "xingados com os piores adjetivos". Uma velha tática de chefe de gangue que prefere se fazer de vítima, criando similitudes absurdas em vez de assumir responsabilidades e garantir o respeito aos seus opositores.
Bolsonaro, mais uma vez, falou sobre o ataque que ele sofreu. Mas, se o ataque foi perpetrado por alguém claramente portador de transtorno mental grave, ele não foi vítima de nenhum "complô político". Diga-se de passagem, todos os candidatos, sem exceção, demonstraram solidariedade ao ocorrido —o que se espera em situações dessa natureza.
Tudo isso mostra como será o modo normal de funcionamento de seu governo. Seu discurso, que inclui celebração da violência, caça àqueles que não pensam como ele, metralhar opositores e louvação à tortura, libera a parcela fascista da população brasileira a agir como milicianos —na pior das tradições dos camisas negras italianos.
É claro que nem todo eleitor de Bolsonaro é fascista. Muitos querem apenas uma ruptura radical com "tudo o que está aí", mesmo que essa ruptura não seja exatamente uma novidade, mas um simples retorno ao pior da tradição autoritária brasileira.
No entanto, a verdadeira novidade de Bolsonaro é a construção de um governo de milícias. Bolsonaro terceiriza a violência do Estado para grupos que, segundo ele, não seriam passíveis de controle algum. "O que eu posso fazer?", diz o candidato. É o que ele falará quando estiver no comando do Estado. Alguns chamam isso de "segurança".
De fato, há aqueles que preferem ignorar os signos evidentes de constituição de um Estado autoritário com milícias descontroladas entre nós. Mas ao menos o senhor Bolsonaro tem a virtude da honestidade. Sua última declaração explicitou o desejo de aparelhamento do Estado e de governo sem limites ao não se comprometer a respeitar a lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República. Ele indicará alguém que nunca o investigará.
Mas o problema é que o país está a quatro anos à deriva, com um ex-presidente preso, uma ex-presidente afastada por um impeachment e um presidente indiciado. Neste contexto de pânico moral, alguns sonham com as mãos fortes de um governo militarizado. Como se essa fosse a saída para tamanha decomposição.
Infelizmente, todos acordarão sentindo o peso das mãos fortes que eles próprios elegeram ou se abstiveram de lutar contra.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Os Boçais

Um dos mil relatos destes dias: uma amiga, linda, desce no metrô de São Paulo usando uma camiseta que diz "Lute como uma garota", na qual ela colou uma fita com o seguinte escrito: "#EleNão".
Um homem levanta o dedo em riste e grita na cara dela: "Fraquejada! Suja! Ridícula!".
Minha amiga respira fundo e segue seu caminho desejando amor e luz. De amor, não sei, mas de luz, certamente, o idiota que a agrediu estava precisando.
Tente passear pela cidade com uma camiseta vermelha ou entrar no shopping Bourbon com uma bandeira arco-íris, só para ter um antegosto do estranho futuro que é prometido a gays, transgêneros, negros e mulheres "suspeitas" de feminismo.
Talvez você se console com a ideia de que você não é gay, trans, mulher, negro. Lembre-se do fim da famosa poesia do pastor Niemöller: "Quando eles vieram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar".
Hoje, terça (16), aliás, recebi o vídeo de um aloprado que denuncia psicanalistas e psis em geral por eles serem todos membros do PSOL. Talvez alguém devesse avisar a Boulos.
Enfim, o boçal que queima livros quer reduzir a cinzas textos que não consegue ler por ineptidão ou preguiça.
Aquele que bate em trans e gays tenta punir seu próprio desejo homossexual e suas próprias incertezas de gênero. Aquele que persegue negros está apavorado com a possibilidade de perder os supostos privilégios de sua "raça" branca.
Mas de onde vem o ódio pelas mulheres?
Recebo um post de rede social com várias mulheres na manifestação do #EleNão: elas estão seminuas, com #EleNão escrito no peito, nas pernas, no ventre. Pensei que o post fosse a favor da manifestação, porque achei as mulheres lindas.
Logo, dei-me conta de que a imagem fora postada por uma mulher recatada e do lar, a qual queria expor ao opróbrio público essas fêmeas seminuas e sem vergonha.
Bizarro. Talvez a primeira mulher que inspirou meus sonhos de adolescente tenha sido a Liberdade do quadro "A Liberdade Guiando o Povo", de Delacroix. Eu me identificava com o menino (talvez a origem de Gavroche dos "Miseráveis", 30 anos mais tarde) e admirava os seios perfeitos da liberdade.
Alguém me perguntará: e sua mãe, você gostaria que ela se mostrasse pelada com #EleNão escrito nas coxas abertas? Claro que sim, se esse fosse o posicionamento dela.
Lembro-me de uma foto da minha mãe em 1944 ou 45. Ela está com roupa para alta montanha, encostada num casebre alpino, esquentando os ossos no sol. Um passeio? Não: não longe dela, está encostada contra o muro uma submetralhadora Sten.
Meu ideal de mulher nasceu assim, na admiração pela coragem de viver e desejar. Detalhe: minha mãe era estudante de grego antigo, liberal e monarquista. Ela e meu pai apenas achavam os fascistas boçais.
A boçalidade não corresponde a uma doutrina econômica ou política. À força de estudar o comportamento das massas nos regimes totalitários, descobri que, para mim, a boçalidade é a paixão abstrata de impor aos outros que eles ajam e pensem como a gente.
Não quero transar com pessoas do mesmo sexo. Sem problema, mas por que quer isso para todos? Como nasce a estranha vontade boçal de controlar os outros? E o que isso tem a ver com o ódio pelo desejo feminino, um dos fundamentos de nossa boçalidade?
Primeiro, um mínimo de bibliografia: "Ascensão e Queda de Adão e Eva", de Stephen Greenblatt (Companhia das Letras) e "Les Aveux de la Chair" (as confissões da carne), de Michel Foucault (Gallimard). Ou, nesta época tensa, algo mais leve e bem humorado: "A Origem do Mundo", de Liv Strömquist (Quadrinhos na Cia), uma irresistível HQ sobre a história da vulva (e, por extensão, do desejo feminino no Ocidente). Eu adotaria o livro para o ensino fundamental, sem hesitar.
Enfim, armado dessa bibliografia básica, considere este argumento:
1) o homem ocidental persegue há tempos um sonho de controle de si mesmo;
2) esse sonho fracassa diante do caráter involuntário e incontrolável do seu desejo sexual;
3) esse fracasso é atribuído à mulher, malvada Eva, por ela ser fonte constante de tentação --ou seja, a culpada pelo descontrole do desejo masculino.
Conclusão: o ódio pelo desejo feminino é a pedra angular da paixão de se controlar, a qual, ao fracassar, transforma-se em vontade de controlar os outros.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O cheiro de napalm pela manhã

Em 2016, pouco antes da eleição de Donald Trump, dizia-me um colega universitário: "Detesto Trump. Mas, se eu fosse americano, teria votado nele".
Caí da cadeira. Ou quase. Ele explicou melhor: "Votaria nele só pelo prazer de criar confusão". Registrei.
A partir daquele dia, nunca mais levei a sério as explicações clássicas para o chamado "populismo". Sim, a crise econômica tem a sua importância. O desemprego também. E o medo do crime e da imigração irrestrita ajudam a festa.
Mas existe algo de infantil, de inconscientemente infantil, no eleitorado que gosta de votar no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos.
É o momento "Apocalypse Now", em homenagem ao coronel do filme que amava o cheiro de napalm pela manhã. Há muitos eleitores que votam como votam só para sentir esse cheiro de vitória.
Um simples palpite meu? Longe disso. Li recentemente um estudo publicado no Journal of Social and Political Psychology (ver pormenores técnicos no fim) no qual os pesquisadores avaliaram o impacto do "politicamente correto" na vitória de Trump. Por "politicamente correto", entenda-se: a imposição de restrições comunicacionais para não ofender grupos, minorias etc.
Os autores concluem que o "politicamente correto" tem um impacto positivo no curto prazo: a "moralização" do discurso faz com que a maioria se adapte às expectativas da sociedade. Exemplo: "Trump? Que horror!" E depois vem a longa lista de vícios do homem (racismo, homofobia, misoginia, mau gosto capilar etc.).
O problema é que o "politicamente correto" tem resultados desastrosos no longo prazo. Isso se deve a uma reação emocional dos eleitores: cansados das restrições impostas pelos sacerdotes do "politicamente correto", os indivíduos reclamam a sua liberdade e votam no candidato que nunca se submeteu aos ditames da polidez. Mesmo que esse voto seja contrário aos melhores interesses da democracia.
Por outras palavras: Donald Trump não foi eleito apesar dos seus defeitos. Ele foi eleito por causa deles. Quando o presidente americano afirmava, com típica soberba, que podia matar qualquer pessoa na 5ª Avenida e ser eleito na mesma, ele não exagerava.
Aliás, podemos dizer mais: quanto maiores os defeitos, maior o apoio. Isso explica o motivo por que Trump, depois de eleito, não adotou uma postura mais "presidencial".
Essa metamorfose seria o suicídio de uma carreira triunfal. Seria tão absurdo como Coutinho (o jogador de futebol, não eu) dar um tiro no próprio pé.
Mas não é apenas o "politicamente correto" que leva muitos eleitores a experimentar o cheiro de napalm pela manhã. Desconfio que a "sinalização da virtude" também tem um papel relevante.
A primeira vez que encontrei essa expressão foi num artigo de James Bartholomew para a revista The Spectator, corria 2015. Argumentava o autor que "ser virtuoso" é diferente de mostrar aos outros que somos virtuosos.
Pessoas virtuosas nunca publicitam as suas qualidades. E a virtude, nelas, exerce-se por meio de gestos anônimos e até sacrificiais (cuidar de um familiar doente; alienar uma carreira de sucesso para ajudar os mais pobres etc.).
A "sinalização da virtude" é uma corrupção da verdadeira virtude. É mera exibição de "bons sentimentos" para ganhar aplausos (ou likes).
Para usar a linguagem da economia, a "sinalização da virtude" procura transformar a virtude em "bem posicional" —algo que nos distingue dos demais e que nos traz vantagens (simbólicas, sociais, econômicas etc.).
O problema, argumentava Bartholomew, é que os "bens posicionais" despertam a concorrência e levam os outros a tentar suplantar o que era exclusivo em nós.
Exemplo: aquela estrela milionária de Hollywood não está propriamente aterrorizada com Trump. Mas ela sente necessidade de sinalizar o seu horror pelo presidente, em termos cada vez mais elaborados, para se promover como defensora do "bem".
Esse moralismo militante, onipresente e sufocante cria a atmosfera perfeita para que o napalm seja jogado na cara do establishment.
Dizem os eruditos que o século 21 será o século dos populismos. Talvez tenham razão. Mas, para explicar o fenômeno, não bastam as teorias habituais.
É preciso mergulhar na psicologia das massas para encontrar um velho ditado: na política, como na vida, há momentos em que é preferível perder um amigo a perder a piada.
P.S.: O estudo citado intitula-se "Donald Trump as a Cultural Revolt Against Perceived Communication Restriction: Priming Political Correctness Norms Causes More Trump Support", de autoria de Lucian Gideon Conway III, Meredith A. Repkea e Shannon C. Houck (Journal of Social and Political Psychology, 2017, Vol. 5 (1), págs. 244-259)

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

Um ano depois

“Brasileiros amantes da pátria, venho a público em cadeia nacional, um ano após nossa grande vitória nas eleições de 2018, para anunciar medidas que nosso governo tomará contra o grave momento por que passamos. As forças subversivas que lutam dentro de nosso país contra os interesses supremos da pátria, aliados ao comunismo internacional, se voltaram contra as reformas que implementamos neste ano de 2019, semeando mentiras, cizânias e fake news entre o povo.
Quando flexibilizamos as leis de trabalho para garantir que os empresários voltassem a empregar mais, tirando entulhos que eles chamavam de ‘direitos’, esses delinquentes foram capazes de sorrateiramente convencer gente ingênua de que nós estávamos apenas governando para os ricos. Porra, quando eu falei que era melhor ter menos direitos e emprego do que mais direitos e desemprego parece que teve gente que não entendeu. O cara fica sonhando com férias, 13º, acordo coletivo, mas ninguém queria contratar.
Então a gente liberou e os empregos apareceram, tá OK?
Aí veio essa gente dizendo que os salários desses empregos eram muito mais baixos e sem garantias, que minha política era responsável por deixar os pobres ainda mais pobres, mesmo trabalhando mais e em condições piores, enquanto diminuía os impostos dos ricos. Eu botei uma alíquota única para o imposto de renda, 20% para todo mundo, e teve gente que ainda reclamou que os mais pobres perderam sua isenção fiscal. Mas todo mundo tem que colaborar. Todo mundo tem que pensar no Brasil.
Só que esse pessoal se aproveitou para criar aquela balbúrdia que vocês viram. O governo não ia deixar o país parar por causa daquelas greves e manifestações na rua. Mandei mesmo a polícia intervir. Fazer o que se aqueles vermelhos foram para cima das forças da ordem e elas reagiram? Porra, vocês acham o quê? Se teve 14 mortes, paciência. Esse país não vai virar uma Venezuela.
Depois, veio uma ONG estrangeira, dessa gente que fica comparando o Brasil às Filipinas e à Turquia, para dizer que o aumento da violência neste ano foi gerado pelo aumento da desigualdade e pela concentração de renda que meu governo teria produzido. Conversa. Violência é coisa de bandido, chega de passar a mão na cabeça de malandro. Só que esse pessoal ainda fica rodando o mundo com as cenas daqueles dois garotos que entraram em uma escola de elite de São Paulo e metralharam 25. 
O que isso tem a ver com a liberação do porte de armas que fizemos no meu governo? Tudo isso é coisa de gente mal intencionada, tá OK? Hoje, os professores andam armados e estão mais seguros. Por isso, mandei essas ONGs para fora do país e aprovamos uma Lei da Informação verdadeira. Quem mentir dançou. Cadeia.
Agora, tem gente de novo na rua dizendo que eu não estou nem aí com a saúde pública, que está tudo sucateado e o povo apodrece em fila de hospital porque não aumentei os recursos para o SUS. Eu tinha dito que não ia aumentar mesmo, que não precisava disso. Mas aqueles médicos cubanos vieram com essa história de terem que tirar dinheiro do próprio bolso para comprar medicamentos para os pacientes. É coisa de cubano.
Juntou esse povo com os estudantes riquinhos que perderam sua mamata porque as universidades públicas agora são pagas e cortamos a verba desse pessoal que tinha fetiche de diploma. Aquilo era só doutrinação comunista e gayzista, ninguém vai sentir falta dos 5.000 professores que botamos para fora porque só faziam doutrinação. 
Os pais têm que se preocupar com o ensino fundamental. Universidade para quê? O que falta é educação moral e cívica. Agora, se não tem gente que quer ser professor de ensino fundamental porque as tais condições de trabalho são ruins, paciência. Vamos fazer tudo a distância. E não venha falar em queda de qualidade. Esse pessoal gostava mesmo era da época em que o governo distribuía kit gay para nossas crianças.
Por tudo isso, eu e meu vice, o general Mourão, estamos decretando estado de exceção para limpar de uma vez por todas este país dessa escória e garantir o crescimento, a prosperidade e a paz social. Lei não é feita para bandido. O Brasil ama a ordem e o progresso. Boa noite.”

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.

Menos livros, mais WhatsApp

Inspirados pelo exemplo do Colégio Santo Agostinho, no Leblon, Rio de Janeiro, que suspendeu o livro "Meninos sem Pátria" por pressão de um grupo de pais, educadores se reuniram para lançar um manifesto. "Vamos suspender todas as aulas presenciais, bem como a leitura de livros. O aluno será instruído pelo grupo de WhatsApp que seus pais escolherem", defendeu Riobaldo Malasartes.
A medida também evita o desgaste de avaliar alunos. "Meu filho tirou nota baixa em português e ficou frustrado. Esse sistema de avaliação que pune as crianças só pode ser fruto daquele Paulo Freireesquerdopata", escreveu um pai no WhatsApp.
Uma junta de profissionais da educação chancelou a medida. Num comunicado oficial, especialistas se pronunciaram em prol de um novo modelo educacional sem partido e sem manipulação.
Eis a carta aberta:
A escola precisa ensinar os alunos a lidar com o mundo contemporâneo. A gente aprendeu nessas eleições que não devemos acreditar no Foicebook, naquela revista The Communist, na Foice de S.Paulo, na Globo Comunista, no papa, nos alemães esquerdistas que deturparam o nazismo, na Madonna e no Luke Skywalker.
A medida acertada do Colégio Santo Agostinho mostra que não devemos confiar em livros. Grande parte da literatura brasileira dita canônica é esquerdizante. "Grande Sertão: Veredas" é pura ideologia de gênero com aquele Diadorim. "Vidas Secas" é uma iniciação ao petismo. "Macunaíma" criou uma geração de preguiçosos. "Dom Casmurro" estimula a traição e o rompimento da família tradicional. Só para citar alguns exemplos.
Por tabela, vamos rechaçar também todos os filmes feitos com a Lei Rouanet e todas as canções compostas fora de Goiás.
Nossas crianças precisam aprender que a credibilidade não está em livros, documentos, dados, filmes, fotografias. A verdade está no WhatsApp. É lá que somos impactados por áudios em que um eleitor desconhecido, esbaforido, denuncia o acordo com a Venezuela para manipular as urnas eletrônicas. Ou por uma montagem que mostra Chico Buarque recebendo caminhões da Lei Rouanet para trocar o cloro de sua Jacuzzi.

CONTADOR

Estamos trabalhando há 204 dias sem saber quem matou —e quem mandou matar— Marielle Franco.

Renato Terra, na Folha de São Paulo

terça-feira, 9 de outubro de 2018

A família e a escola

Se você for estudante do ensino médio da Escola Móbile, uma das mais conceituadas de São Paulo, talvez, 15 dias atrás, você tenha recebido esta missiva (preservo a pontuação dos autores):
"Escrevemos esta carta para informar-lhes da pesquisa eleitoral que ocorrerá na Móbile, ao que tudo indica, no dia 21/09/2018." (nota de rodapé: o simulado das eleições foi cancelado). A carta segue:
"Como nas eleições de 2014, o próprio Levy Fidelix (crucificado pela esquerda e pela mídia) ganhou entre os alunos, pedimos sua ajuda para eleger em primeiro lugar este ano na escola Jair Messias Bolsonaro, com seu voto, independentemente de sua visão a respeito deste.
Entendemos que os professores da Móbile, em sua esmagadora maioria esquerdistas, precisam ser abalados e chocados pelos alunos que, como já dissemos, concordando ou não com o Capitão, não aguentam mais ser expostos a ideologia de esquerda e que o capitalismo ou qualquer outro pensamento que não o deles, é 'intolerante', 'elitista', 'fascista' e por aí vai"¦ É um recado que estará sendo dado.
Dia 21 na escola, é para mostrar aos alunos doutrinados, que tanto odeiam o candidato, que criaram o monstro que mais temiam: alunos que romperam com a lógica de que tudo aquilo que o professor expõe direta ou indiretamente é verdade absoluta.
Entendemos que votar no Bolsonaro (mais uma vez, concordando com este ou não), significa demonstrar toda a insatisfação contra este establishment, que impõe que o certo e bonito é acreditar nos ideais esquerdistas/socialistas, estes que como todos sabemos, são utopias absurdas que destruíram sociedades há mais de meio século, e tentam ainda destruir. Inclusive o nosso Brasil.
Confie, vai ser muito bom ver a cara de todos eles vendo o resultado e não podendo fazer nada. Vamos fazer acontecer."
É normal que alguns adolescentes militem em causas com as quais sequer concordam, só no intuito de apavorar seus professores. Aliás, o caso é tão trivial que não sei quais professores e adultos se apavorariam: nenhum aluno compra tudo o que o professor lhe apresenta como se fosse "verdade absoluta".
Mais surpreendente é a sensação de que os autores da missiva defendem um âmago de valores familiares contra o que é transmitido na escola.
A família e a escola são os maiores instrumentos de reprodução social: ambas instruem, formam e deformam os jovens; por isso mesmo, é desejável que elas não estejam sempre "concordando".
A discordância entre as duas cria um espaço de conflito em que o jovem pode inventar sua autonomia possível.
Enfim, assim era, até que um crescente narcisismo levou os pais a exigir que a escola ensinasse a mesma cartilha da família. Afinal, a classe média paga a escola: por que ela escolheria programa e ideologia?
Se a escola não tiver a função de apresentar conteúdos que entrem em conflito com as ideologias dominantes nas famílias, eis que a educação será apenas a reprodução do mesmo: tais pais, tais filhos.
A carta dos estudantes da Móbile me trouxe também uma outra reflexão.
Frequentei o ensino médio no começo dos anos 1960, em Milão, num colégio público.
Os professores eram quase todos centristas e liberais, em parte religiosos, em parte, não. Meu pai, agnóstico e anticlerical, poderia pedir minha exoneração da aula de religião; não o fez porque, como ele mesmo me disse, queria que eu forjasse minha crença ou descrença escutando algo diferente do que ele pensava.
O único professor que suspeitávamos que fosse de esquerda era Raimondi, que ensinava história da filosofia.
Raimondi não ensinava nem Marx nem Lênin nem Mao.
No primeiro ano, o programa era dos pré-socráticos até à filosofia romana.
A famosa frase da "Apologia de Sócrates", segundo a qual a vida que não pensa sobre si mesma não vale a pena ser vivida, serviu para introduzir uma reflexão coletiva, que durou semanas: éramos estranhos para nós mesmos? O que entendo, anos depois, sobre alienação ainda vem do debate daquelas aulas de 55 anos atrás.
De fato, era irrelevante que Raimondi fosse marxista ou não, porque as ideias com as quais ele nos convidava a pensar não eram chicletes usados.
Os estudantes da Móbile poderiam se manifestar contra qualquer ensino que cospe opiniões como se fossem verdades —na escola ou em casa, de esquerda ou de direita, tanto faz.

Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Para o mercado, o ideal é Pinochet

Dizem, com justiça, que a esquerda não entende de matemática. De minha parte, vou além: não entende nem quer entender —e isso é terrível hoje em dia.
O problema é que a direita, por sua vez, entende pouco de política. Lembro bem da campanha de Fernando Collor para a Presidência, em 1989. A agenda do PT, naquela época, era bem mais radical.
O medo das desapropriações de terra, dos aumentos salariais, da estatização, do fechamento ao mercado externo levou a que se instalasse no poder um candidato que prometia "não mexer na poupança" e "modernizar" o país no rumo de uma autêntica economia liberal de mercado.
A direita confiou no candidato, sem querer reparar no que ele tinha de populista, de farsesco e de inconfiável.
O resultado, do ponto de vista econômico (nem digo do político) foi um desastre. Uma equipe inexperiente, bisonha e aventureira sequestrou o dinheiro de todo mundo. Abriu depois sem nenhum critério as "torneiras" do crédito, fez o PIB cair 4% naquele ano —em 1991, a inflação chegou a 481%.
Isso não prova que, se Lula tivesse sido eleito em 89, a situação seria melhor. Mas indica como pode ser baixa a confiabilidade de um populista inexperiente, ainda que seu discurso caia no gosto do mercado.
Nada representava mais a direita antipetista, no ano 2000, do que Paulo Maluf. Sua passagem pela Prefeitura de São Paulo, de 1993 a 1996, e a de seu afilhado, Celso Pitta, nos anos seguintes, deixaram as finanças municipais em pandarecos.
Deu-se a vitória da então petista Marta Suplicy —que, com administradores pouco esquerdistas, como João Sayad, pôs ordem na bagunça.
Os tempos eram outros, sem dúvida. Os escândalos de corrupção no governo Lula e o desastre econômico do governo Dilma destruíram a credibilidade do petismo e alimentaram o ódio que hoje dá votos aBolsonaro.
Surge, então, um verdadeiro nó dentro das cabeças matemáticas dos economistas e dos adeptos da responsabilidade fiscal.
Vou ver se explico.
Há candidatos de todas as tendências nesta eleição. Os defensores do mercado e da austeridade podem votar tranquilamente em AlckminAmoêdo ou Meirelles.
Tranquilamente? Não, claro que não. Todo mundo sabe que esses políticos não têm chance: a direita e as cabeças "responsáveis" ficam com Bolsonaro.
Em nome da "responsabilidade fiscal", e para evitar os riscos da catástrofe econômica que anteveem com uma vitória de Haddad, estão dispostas a tudo.
Todos sabem que Bolsonaro ataca frontalmente as minorias, defende torturadores, está pouco ligando para direitos civis e liberdades democráticas.
Para os comentaristas "sérios" da área econômica fica feio, naturalmente, dizer que entre uma ditadura e o descontrole econômico, preferem a ditadura. Mas é isso mesmo.
Observo, entre parênteses, que o "mercado" sempre irá preferir uma ditadura. O candidato ideal do mercado será sempre Pinochet —que não teve problema nenhum em implantar a reforma previdenciária sonhada por todos os analistas.
Ao menos ele sabia o que estava fazendo; Bolsonaro e Mourão, nem isso.
Seja como for, não fica bem defender uma reforma previdenciária com mais ardor do que se defendem os direitos humanos, a liberdade de expressão e a ordem constitucional.
A saída é dizer que Bolsonaro não representa nenhum risco de golpe. Invoca-se o mantra de que "as instituições estão sólidas".
Estão? Os partidos explodiram; prova disso é que Bolsonaro mal tem um. O Congresso está totalmente desmoralizado.
O STF está cindido. A Igreja Católica está desorientada e sem lideranças significativas. As igrejas evangélicas, em sua maioria, não ofereceriam resistência ao novo messias da direita.
Quanto à imprensa, abalada financeiramente, e em geral simpática aos decretos do "mercado", dificilmente saberá voltar aos tempos das Diretas-Já.
Não pode negar princípios como a democracia e a liberdade de expressão. Faz-se então a aposta arriscada: Bolsonaro não representa perigo.
Acrescenta-se o tempero: Haddad também é contra a democracia, o PT se equivale a Bolsonaro em desrespeito aos direitos humanos e às liberdades civis.
E quem disser "ele não" —uma bandeira multipartidária— é um radical fazendo o jogo do Haddad.
Eu, radical? Radicais são eles.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Eraldo Herrmann, o “pai” de Manguita Fenômeno

O ex-presidente colorado Eraldo Herrmann faleceu aos 87 anos na manhã de sábado.
Integrou a comissão de obras do estádio Beira-Rio.
Foi presidente colorado no biênio 1974/75, período no qual o Inter conquistou seu primeiro título do Campeonato Brasileiro e sagrou-se hexa e hepta campeão gaúcho.
Foi enterrado no domingo.
Vai tempo escrevi uma coluna sobre Manga.
Reproduzo com uma modificação.
Na original, informei que Ballvê pirateou o goleiro para o Inter. O filho de Eraldo, João Patrício C. Herrmann, primeiro vice presidente do Inter, fez a correção.
O título era MANGUITA FENÔMENO E REMEMBRANÇAS.
O maior goleiro que vi atuar até hoje foi Manga. Imbatível por todos os tempos.
Revi Manga no Equador, em 1995.
Queria retornar ao Inter como treinador de goleiros. Uma lenda.
Queria voltar mas sabia da impossibilidade.
Pensão alimentícia, me disseram na época.
Não me perguntem como, mas tal problema estaria superado.
Sabedor disto, o Inter fará, ou já fez, um convite para que Manga retorne ao Beira-Rio.
Também estamos diante de um gesto de benemerência. Manguita, o Fenômeno, atravessa dificuldades financeiras aos 73 anos.
O Inter está pensando em montar uma escola para formação de goleiros.
História, tem: Manga, André, Benitez, Taffarel, Clemer…
O próprio Fossati já atuou no setor, não no Inter, é verdade.
Há ainda Abbondanzieri como referência.
A ideia é trazer meninos de todo o Brasil para aprender a arte de defender no Beira-Rio.
Manga não daria aula aos 73 anos.
Não aulas praticas.
Seria uma espécie de relações públicas do Inter.
Visitaria o Interior, receberia excursões no Beira-Rio.
Manga chegou ao Inter em 1974, aos 37 anos, vindo do Nacional de Montevidéu.
Ia para o Corinthians, mas foi pirateado na escala do avião em Porto Alegre por Eraldo Herrmann.
Saiu em 1977, substituído pelo paraguaio Benitez. Depois de uma passagem pelo Operário-MS, voltou à capital gaúcha para ser campeão estadual pelo Grêmio em 1979.
Gosto muito quando um clube, qualquer que seja ele, trata com carinho, reverência seus ex-jogadores, se possível repatriando-os para trabalhar.
Está respeitando sua história. Torço pela volta do Manguita.
O Rio Grande do Sul estará repatriando um herói de dois clubes.

O sistema se entrega a Bolsonaro

A lógica de Bolsonaro é ser anti-sistema, o representante do país sombrio, da maioria silenciosa que nunca se viu representada na política. No parlamento, é o baixo clero. Na mídia, é personagem secundário, restrito aos veículos regionais. Ou limitando-se a ver o país através das lentes dos programas policiais e do filtro dos jornais nacionais, sempre na posição passiva.
Os bolsonaristas são cidadãos de um país anacrônico, que acompanhava, passivamente, o cosmopolitismo provinciano do Rio e de São Paulo, mas não se sentia politicamente integrado.
É o valentão da moto, que só consegue se impor fisicamente sobre os nerds, esses moleques exibidos que querem falar chic. São os grupos, as gangs que se formaram em torno de temas não-políticos, colecionadores de motos, de veículos antigos, valentões de bar, grupos religiosos, colegas de bar, irmãos de maçonaria. Ou apenas cidadãos classe-média que escondiam preconceitos e ódios, comuns à pré e a pós-modernidade e que, graças às redes sociais, se descobriram maioria em seus redutos.
Junte-se a esse grupos empresários que aprenderam apenas a ganhar dinheiro, sendo submetidos dia após dia ao liberalismo superficialíssimo do sistema Globo, condenando qualquer forma de regulação e de atuação do Estado.
Quando a Globo decidiu levar o povo para as ruas, para atropelar a Constituição, e o STF (Supremo Tribunal Federal) convalidou o golpe, esse Brasil soturno emergiu com toda força. Pensaram repetir as maiorias silenciosas de 1964 que, depois de usadas, foram deixadas de lado. Não se deram conta do poder de aglutinação das redes sociais. Eles, agora, têm voz própria e se valem da desorganização total no sistema, da quebra de todas as regras e leis, para ocupar espaços, trazendo consigo agentes oportunistas de todas as espécies. -derrotados políticos, economistas, lideranças que foram sucessivamente derrotadas no jogo eleitoral e que, agora, se julgam em condições de cavalgar o leão sem ser devorado.
Tudo isso ocorre no país de Macunaíma. Aproveitam-se do jogo Ministros do Supremo, ministros de tribunais, economistas de mercado, mais abaixo um pouco, promotores liberados para prender, juízes liberados para condenar, fazendo acertos de contas em cada canto do país. Abrem a jaula achando que vão parlamentar com o leão faminto.
E aí acontece o paradoxo.
O Brasil que saiu às ruas no sábado, nas históricas manifestações das mulheres, é o país civilizado, defendendo bandeiras adequadas aos tempos modernos. O Brasil anacrônico dos grandes meios de comunicação, segura a informação. A reação da maioria silenciosa é aumentar a adesão a Bolsonaro – se a pesquisa IBOPE foi efetivamente séria, captando um soluço ou uma tendência.
A cada jogada de cena combinada, nos debates de presidenciáveis, mais se esboroa o Brasil institucional. A cada autodesmoralização do Supremo, mais gás para a besta.
O antipetismo desvairado da mídia, o oportunismo de presidenciáveis, de explorar o fantasma do suposto autoritarismo do PT tem efeito multiplicado nas redes sociais. Revive as maluquices do “comunista-comedor-de-criancinhas” e é tiro nos dois pés. Não demoniza apenas o PT, desmoraliza as instituições, o “sistema” – que Bolsonaro, mais uma vez, anunciou que irá destruir. E até Ciro Gomes, o presidenciável com melhores propostas, embarca nessa aventura que, em vez de levá-lo para o segundo turno, poderá levar Bolsonaro ao poder.
O PT tem defeitos enormes. Mas o oportunismo do país institucional, de atribuir ao partido propósitos ditatoriais, para navegar nas águas fáceis do anticomunismo mais primário, tem um efeito multiplicador terrível na base, nos escaninhos das redes sociais de onde se alimenta o bolsonarismo.
E fica o Brasil institucional aguardando o momento em que FHC descerá do seu ego e engrossará a frente contra o atraso. Sabe o que vai acontecer? Nada. Será anulado com um pum que Bolsonaro reteve no hospital.

Texto de Luís Nassif, no Jornal GGN