sexta-feira, 28 de abril de 2017

O falante decide: de 'judiar' a 'denegrir', PC acerta tanto quanto erra

No livro "Meu Menino Vadio" (ed. Intrínseca), relato seco e corajoso de sua experiência como pai de um menino autista, o jornalista carioca Luiz Fernando Vianna condena o emprego depreciativo que a palavra "autista" ganhou na política brasileira.
"Tornou-se comum políticos –inclusive um ex-presidente da República– chamarem seus opositores de 'autistas', acusando-os de estarem dissociados da realidade", anota. "Também já fizeram isso intelectuais, artistas, jornalistas, uma presidente do Supremo Tribunal Federal."
O problema com isso? "Em primeiro lugar, é um uso mentiroso. Em segundo lugar, significa estigmatizar uma parte da população que precisa ser incorporada à vida social, e não rotulada como incapaz de fazê-lo", argumenta Vianna. "Se hoje evitamos adjetivos como 'retardado' e 'mongoloide', devemos poupar de agressão semelhante as pessoas com autismo."
Se o tal uso não é propriamente mentiroso, mas metafórico, o segundo argumento me convence no ato. Vasculho a memória para descobrir se eu mesmo usei algum dia a palavra "autista" com esse sentido. Talvez sim, não me lembro bem. O que garanto é que não o farei de novo.
Trata-se, como se vê, de uma daquelas controvérsias que costumamos agrupar sob um amplo guarda-chuva no qual, em letras garrafais, está escrito "PC –politicamente correto".
Amplo demais, o guarda-chuva presta um desserviço ao debate. Abriga preocupações muito diversas e sugere que, diante delas, temos dois caminhos: aceitar ou repudiar todas. Em bloco. Não é uma dicotomia inteligente.
Rejeitar como "coitadismo" a totalidade dos argumentos PC é menosprezar o papel da língua, reflexo da sociedade, na perpetuação de vilezas. Nenhum uso está acima da crítica.
Aceitar de saída todos esses argumentos é ignorar que a língua, arena política onde o pau quebra, pertence à sociedade que a fala e não a um ou outro grupo. Toda crítica está sujeita à crítica.
Enquanto a coletividade não chega a uma conclusão (debates eternos não estão descartados), a decisão cabe ao indivíduo. Senhor da sua fala, ele não precisa esperar o veredito da sociedade para fazer sua escolha política e moral.
Examino o verbo "judiar" (maltratar). Tem óbvio ranço antissemita, embora haja dúvida sobre seu sentido original: referência aos maus-tratos que os judeus infligiram a Jesus ou aos que eles sofrem desde então? De uma forma ou de outra, decido cortá-lo do meu vocabulário.
Agora examino "denegrir". Racista? Procuro algo que sustente a tese. O que se suja fica escuro, encardido, fuliginoso, e o resto parece coincidência cromática. Nem todo charuto é um símbolo fálico, como provam o elefante branco e a febre amarela. No meu tribunal íntimo, absolvo a palavra.
Somos convocados a tomar decisões desse tipo o tempo todo. O que é ótimo.
O PC comete abusos e se expõe ao descrédito quando, por exemplo, insiste em eufemismos ridiculamente rebuscados para palavras funcionais ou tenta censurar dicionários, como se estes inventassem o vocabulário que apenas retratam.
No entanto, a reflexão permanente que ele propõe tem o mérito de nos deixar ligados. Os problemas sociais não serão resolvidos na língua e pela língua, mas negar que ela esteja incluída no pacote é desconhecer sua natureza.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Reforma trabalhista não responde aos desafios do século 21

Reagindo à greve geral convocada para esta sexta-feira (28) contra as reformas do governo Temer, o prefeito João Doria declarou que a "reforma da Previdência não afeta ninguém" e que a trabalhista muda uma "legislação arcaica que prejudica a todos".
Segundo ele, a lei trabalhista atual "não protege o trabalhador. Ela prejudica, à medida que não gera mais empregos".
Poucos temas na economia são mais controversos do que os efeitos da flexibilização de leis trabalhistas sobre a criação de postos de trabalho.
Os estudos existentes para sustentar a hipótese defendida por Doria carecem, no mínimo, de robustez estatística. A proliferação de estudos sugerindo o contrário —ou seja, que a desregulamentação do mercado de trabalho não eleva, ou até prejudica, o nível de emprego— parece ter levado a uma mudança de posição até mesmo de alguns organismos multilaterais que costumavam preconizar maior flexibilidade.
O relatório de 2003 do Banco Mundial "Economies Perform Better In Coordinated Labor Markets" concluiu, por exemplo, que, "ao nível macroeconômico, taxas maiores de sindicalização levam a uma menor desigualdade nos rendimentos e podem aumentar a performance econômica (na forma de taxas menores de desemprego e inflação e resposta mais rápida aos choques)".
Mas o debate sobre o suposto dilema entre garantir direitos de trabalhadores e aumentar o dinamismo e a eficiência econômica ganhou complexidade com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação e com a chamada "uberização" no mercado de trabalho.
Como apontam Jacques Barthélémy e Gilbert Cette no livro "Trabalhadores no Século 21", trabalhadores independentes do ponto de vista jurídico também ficam frequentemente em situação de dependência econômica em relação às empresas prestadoras, que detêm o poder de fixação de preços, sanção e interrupção das relações de trabalho.
A greve de motoristas de Uber em dezembro de 2016 em Paris trouxe à tona esse desequilíbrio e jogou ainda mais luz em um desafio hoje global: como adaptar-se à criação dessas novas atividades sem desproteger e precarizar trabalhadores?
O caminho defendido por Barthélémy e Cette não é nem transformar todos os trabalhadores independentes em assalariados nem manter o status quo. O que os autores propõem é a garantia de direitos a todos os trabalhadores em estado de subordinação —assalariados ou não.
Para eles, um código amplo de novos "direitos da atividade profissional", que não substitui os direitos dos trabalhadores assalariados, teria de preservar para o chamado "cidadão-trabalhador" o direito à saúde, à renda razoável e à aposentadoria digna, além de impedir a ruptura de contratos de um dia para o outro, por exemplo.
Construir uma agenda para a modernidade não significa, portanto, confundir trabalhadores autônomos em clara situação de dependência econômica com os empreendedores altamente qualificados da era da internet e do "home office", que também proliferam em todo o mundo.
Em ambos os casos, "não ter patrão" pode até ser objeto de escolha —em um contexto de desemprego crescente e falta de oportunidades no mercado formal de trabalho, fica mais difícil dizer—, mas há graus distintos de subordinação.
No Brasil, a criação do status de MEI (microempreendedor individual) e a PEC das Domésticas, por exemplo, aprofundaram o debate sobre essa agenda, concordando-se ou não com o formato final das legislações.
Na reforma trabalhista, aprovada na Câmara nesta quarta (26), por sua vez, além da falta de debate com a sociedade, não há modernidade alguma. Afinal, não há nada de mais arcaico do que aumentar ainda mais o poder dos que já o têm de sobra.


Texto de Laura Carvalho, na Folha de São Paulo

Israel é o único a negar que colonizou terra estrangeira, diz historiador

Israel é o único a negar que colonizou terra estrangeira, diz historiador


Mais um adubo na terra

Nasceu e viveu naquelas várzeas. E agora, depois de dias e dias de estafante jornada, trotando, caminhando, cortando campos e andando por antigas estradas, está a vê-las de novo. E por isso chora. Não se preocupa, está sozinho, ninguém enxergará essas lágrimas sentidas.  Lá está o açude que desde muito novo nele brincou com sua mãe. E olha, lá perto da restinga, o cocho ao lado do umbu solitário, onde comia com seus amigos, em impetuosas manhãs de setembro, correndo de lá e para cá, em disparadas, aproveitando o vento na cara e em suas melenas jovens e, sim, eram potros sem dono, na flor da idade, livres pelas invernadas.
Depois, bueno, quanta água rolou, quanto casco na estrada, meses se cansando em matagais, nadando dia e noite em aguaceiros. Quanta saudade no lombo. Eram gritos diferentes, um gado diferente, um charco e um calor tão estranho. Ainda lembra daquele caminhão que um dia chegou bufando e nele foram encaixotados à força, a laço, a gritos e a mangaço. Foram muitos dias de estrada. O destino não importa. Era uma terra seca, áspera e árida. E lá os homens eram hostis, mal-educados, não fez amizade com ninguém. Ele e os demais foram tratados como jamais haviam sido. E os usaram para tudo, sem dó, em tudo que era serviço.
Até que um dia decidiu pular a cerca. Isto ele lembrava desde os tempos da Vila Rica. Era uma brincadeira preferida de um antigo companheiro, dono de bolicho, que largava tudo para estar com ele. Juntos, cruzavam várzeas, riachos, coxilhas, estradas de chão, invernadas, tudo, tudo mesmo. Aquele sim era um bueno amigo para a lida de campo. Guri, ainda, mas já um homem na forma de tratar, no jeito de falar, e sempre trazia um  mimo de amigo para amigo.  Então, ficava ali, bem na porteira à espera, à espreita, do amigo que às vezes demorava, mas sempre vinha. Quase sempre de freio e pelego na mão. E ganhavam o mundo, os dois, como uma dupla haragana sem destino. Ele e o amigo, depois de muito galopar, buscavam a sombra das pitangueiras das velhas sangas. O amigo sempre levava um livro, para ler e recitar poemas ao entardecer. Ele, que não sabia ler, ficava ao lado olhando o sol colorado indo embora, tingindo aquelas tão lindas tardes do Sul.
Agora, enxerga ao longe o umbu solitário e ali deita, pois o corpo se mostra extenuado, os músculos estão exaustos, e, enfim, se dá conta que esta velho, muito velho.  Com os olhos rente ao chão percebe que ali não existe mais campo, só uma enorme lavoura. Ouve o ronco do trator e não se importa, se estica todo sobre  a terra em que nasceu. Como está dentro de um baixio, uma espécie de cova na terra fofa, quando o trator aparece nem dá tempo de fugir. Uma roda enorme estoura-lhe a cabeça e tudo finda. Lá em cima, na cabine, o tratorista, escutando música sertaneja moderna em seu celular com fones de ouvido pensa “é só uma pedra”.
No outro dia, uma plantadeira passa espalhando sementes de soja sobre seu corpo inerte. E ele, que voltou já matungo velho para rever sua querência, morto, não tem nem o direito de saber que veio apenas para servir de adubo para a mais badalada commoditie do rincão.

Conto de Paulo Mendes, na Correio do Povo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Dirigente regional do MST de Minas é assassinado no Vale do Rio Doce

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de Minas Gerais informou que um dos seus dirigentes regionais, Silvino Nunes Gouveia, 51, foi morto com dez tiros no domingo (23).
Segundo o MST, Gouveia estava em casa quando foi chamado por volta das 20h. Ao sair, foi recebido com os tiros.
O crime aconteceu no Assentamento Liberdade, no município de Periquito, no Vale do Rio Doce, região com mais de 1.200 famílias em cinco acampamentos, de acordo com o MST.
A entidade afirmou ainda que os conflitos por terra têm se intensificado no Vale do Rio Doce e que Gouveia já tinha sido alvo de ameaças.
"A solução destes conflitos só será possível com medidas concretas do Estado: assentar nossas famílias e punir os responsáveis por estas atrocidades. A impunidade é uma das principais causas destes crimes, por isso exigimos a imediata apuração e prisão dos criminosos", afirmou a direção do MST de Minas em nota.
O MST estima que o Estado tenha 47 acampamentos com aproximadamente 7.000 famílias acampadas em nove regiões.


Rerprodução da Folha de São Paulo

quarta-feira, 26 de abril de 2017

O agronegócio nacional é tudo isso?

Até o ambientalista mais radical reconhecerá que a agropecuária brasileira é uma potência. Com tanta água, terra e sol, a produtividade é boa –e vem crescendo. Mas será que o setor é isso tudo que a propaganda diz?
Até o ruralista mais radical reconhecerá que uma propriedade rural precisa ser sustentável. Isso, claro, se não viver de grilagem de terras ou de lavagem de dinheiro com transações de gado, casos em que produtividade e esgotamento de recursos naturais –com solo e água– passarão longe de suas preocupações.
Até o nacionalista mais radical reconhecerá que a imagem do país no exterior tem importância e consequências. Caso contrário, não ficaria tão agastado quando se publicam lá fora avaliações negativas sobre o Brasil.
Pois bem, a Economist Intelligence Unit (EIU, divisão de dados da célebre revista britânica) desenvolveu para o Centro Barilla para Alimentos e Nutrição um Índice de Sustentabilidade de Alimentos que não corrobora a imagem de provedor infalível que o agronegócio nacional gosta de cultivar.
Os analistas da EIU consideraram 31 indicadores reunidos em três grandes grupos: perdas e desperdício de alimentos; agricultura sustentável; e desafios nutricionais.
Dos 25 países avaliados, o Brasil figura na 20ª posição do ranking geral. Só ganhamos de Indonésia, Emirados Árabes, Egito, Arábia Saudita e Índia.
A pior colocação brasileira (22ª) se dá no quesito das perdas. É o padrão de desperdício comum na América Latina e no Caribe, onde 127 milhões de toneladas de alimentos vão para o lixo todos os anos, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde.
Em sustentabilidade agrícola, o país aparece no meio da classificação, em 12º lugar. Nosso campo vai do céu ao inferno nos 15 indicadores deste grupo.
Ganha nota zero em diversificação de culturas e dez em biodiversidade e em mitigação da mudança climática (queda de desmatamento). Tem avaliação alta pela disponibilidade de água, mas despenca quando se trata de impactos sobre recursos hídricos e solos.
Por fim, na área de nutrição, aparecemos de novo perto da rabeira, na 17ª posição. O mau desempenho decorre principalmente de excesso de peso na população, prevalência de açúcar na dieta, quantidade de pessoas que recorrem a fast-food e falta de políticas públicas para influenciar hábitos alimentares.
Proprietários agrícolas poderão alegar que muitos dos itens avaliados –como a questão da dieta– escapa a seu controle. Médio: segundo a propaganda, agro é tudo, a cadeia alimentar inteira, da fazenda à indústria e à mesa do brasileiro.
Agro é muito, claro, mas não é tudo. Se não há razão para estigmatizar o setor, tampouco há para canonizá-lo.
Não se pode sair impune apenas por ter dado contribuição inestimável para a balança comercial, nos últimos anos, ou porque seus representantes conservadores no Congresso retomaram a iniciativa política.
A insistirem na política de terra arrasada contra unidades de conservação e povos indígenas, os ruralistas só agravarão as ameaças ao patrimônio natural do país –biodiversidade, solos férteis e recursos hídricos abundante. De quebra, colherão grave prejuízo à imagem de suas commodities no mercado mundial.


Texto de Marcelo Leite, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 21 de abril de 2017

'Nossas Noites'

Imagine que você tenha 60-70 anos –ou mais. Você está sozinho ou sozinha. As "crianças", se você teve filhos, já estão longe, com suas vidas feitas. Seu companheiro ou companheira (da vida toda ou dos últimos tempos) foi-se. Você sobrou, viúvo, separado, tanto faz.
Você está bem de saúde –apenas envelhecendo. A aposentadoria é suficiente, paga o supermercado a cada semana e, de vez em quando, um restaurante, um cinema, um teatro. E os livros; você lê, sempre leu.
Há dias em que você não fala com ninguém. Às vezes, são semanas.
Você mora desde sempre, como se diz, na casa onde viveu seu tempo de casal e criou seus filhos –talvez no mesmo bairro onde você foi, por exemplo, professor de colégio. Poderia ser uma casa vitoriana, num subúrbio norte-americano, ou um sobrado, num bairro de classe média de uma cidade brasileira –ou um apartamento, num prédio da mesma cidade.
Um dia, alguém toca a campainha da sua porta ou bate de leve. É uma vizinha, que você conhece de vista e de vocês se cumprimentarem de longe. Tem a mesma idade que você, mais ou menos; ela viveu lá a vida inteira, com o marido dela, e agora é viúva ou separada, que nem você.
"Quero fazer uma sugestão para você", ela diz. "O que você acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?"
O quê? Como assim?
"É que nós dois estamos sozinhos. Já há muito tempo. Há anos. Eu me sinto sozinha. E acho que é possível que você também se sinta. Então fiquei pensando se você gostaria de ir para minha casa à noite e dormir comigo. E conversar."
Ela não está falando de sexo, mas de uma companhia: falar, cada um de si, "porque as noites são a pior parte. Você não acha?".
Assim começa a história de Addie e Louis, que é contada em "Nossas Noites", o último romance de Kent Maruf, que morreu em 2014, aos 71 anos (Cia das Letras, tradução de Sonia Moreira). Li o livro numa sentada, e me tocou fundo, talvez pela minha idade, que avança.
Como o menino Jamie, neto de Addie, eu tinha medo do escuro quando criança. Acordava meu irmão; eu não pedia para ele ligar a luz (o interruptor estava ao lado da cama dele), só queria que ele me respondesse.
Anos depois, durante a minha análise, eu lia muita poesia e estudava alemão. Georg Trakl era um de meus poetas preferidos; fascinava-me ele ter morrido cedo e de overdose, mas, sobretudo, na poesia dele, percebia o medo, que me era familiar, dos conúbios ameaçadores do silêncio com a escuridão.
Freud conta ("Introdução à Psicanálise", 1923): "Um menino, angustiado por estar no escuro, chama a tia, que está num quarto ao lado. 'Tia, fala comigo; estou com medo'; 'De que te serve que eu fale, se no escuro você não me enxergaria?' responde a tia. E o menino: 'Quando alguém fala, tem sempre um pouco de luz'".
Tenho a lembrança de uma estrofe de um poema de Hölderlin (não sei mais qual) em que o andarilho, de noite, canta para se dar coragem. Deveria ter um provérbio que diz: quem canta seu medo espanta; e outro: quem conversa seu medo espanta.
Addie e Louis são parecidos com Jamie. Eles não têm medo do escuro que está no fim do caminho, mas é porque acharam um jeito de resistir. Jamie, quando acorda no escuro, vai para a cama deles, e eles, no escuro, contam suas vidas, um para o outro. Cada um com o seu remédio.
Não seria mais fácil dormir? De novo, Hölderlin: um verso de "Pão e Vinho" diz: "Besser zu schlafen, wie so ohne Genossen zu sein", melhor dormir do que estar sem companheiro. O problema é que nem sempre é fácil dormir sem companheiro.
Há uma insônia típica da terceira idade, pela qual a gente acorda de madrugada e espera a luz do dia, para poder dormir de novo. Cai bem, nessa estranha suspensão do sono, contemplar o outro que continua dormindo ao seu lado ou acordá-lo, para que converse conosco.
"Nossas Noites" é um história de resistência à morte e ao tempo que passa, pela descoberta que ainda é possível encontrar amizade e amor.
Os idosos sabem disso como nunca. Hoje, aliás, 80% dos adultos entre 50 e 90 anos são amorosa e sexualmente ativos.
Só não sei se os jovens aguentam isso. Os filhos sempre acham escandalosos os prazeres dos pais idosos.
E, contrariamente ao que reza a lenda, eles aguentam bem a morte dos pais, que é natural. O que eles acham contrário à natureza não é que os pais morram, mas que os pais vivam.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Morre a atriz Neuza Amaral, aos 86 anos, após sofrer embolia pulmonar

Morreu nesta quarta-feira (19) a atriz Neuza Amaral em decorrência de uma embolia pulmonar. O enterro acontece na quinta-feira (20) no Cemitério Israelita de Belford Roxo, no Rio de Janeiro.
Nascida em 1930 e filha de pais analfabetos, mudou-se para o Rio quando tinha quatro anos de idade. Depois, foi trabalhar em uma construtora, que a mandou para São Paulo. Foi quando, em uma visita à Rádio Record, deu início à sua carreira como artista.
Amaral passou pela rádio Tupi e em 1953 migrou para a televisão da emissora. A atriz fez parte em mais de 30 produções da Rede Globo, entre novelas, séries e programas de TV, como "Anastácia, a Mulher sem Destino" (1967), "Sangue e Areia" (1968), "Ossos do Barão" (1973) —pelo qual ganhou o prêmio de melhor atriz da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA)— "Elas por Elas" (1982), "Sinhá Moça" (1986) e "Senhora do Destino" (2004). Seu último trabalho na novela "Pé na Jaca", em 2006.
Em entrevista ao "Memória Globo", projeto da emissora para registrar sua história, lembrou que em ao protagonizar o folhetim "Bravo!" (1975), sugeriu à autora Janete Clair que passasse por uma cirurgia plástica durante a trama.
"Olha, eu ia namorar um rapaz jovem, queria fazer uma cirurgia para ficar emparelhada com ele'", disse a atriz à emissora.
"Falei: 'Janete, se você me enrola toda a cara e põe bandagem, quando tirar, vou ter a mesma cara. Por que não fazemos uma plástica?' 'Você não acha ruim, não?', ela quis saber. 'Eu não. E ainda vou ganhar uma cirurgia. Duas vantagens, porque vou ser a primeira do mundo, numa novela de Janete Clair. Você documenta isso e, se eu morrer na operação, será um documento da morte de Neuza Amaral', argumentei. Janete Clair resolveu fazer, e assim foi feito", lembrou.
Além da carreira artística, Amaral teve atuação na vida pública e foi vereadora do Rio de Janeiro na década de 1990 e ajudou em causas de hemofilia e leitura para cegos. No início dos anos 2000, também atuou como controladora-geral de Cultura na Prefeitura da Araruama, onde tinha residência.
A atriz deixa um filho e dois netos.


Rerprodução da Folha de São Paulo

Por que repetimos há séculos que os jovens vão matar a cultura escrita?

Na plateia do debate na Bienal do Livro de Fortaleza, segunda-feira (17), a jovem estudante de jornalismo pede a palavra para se queixar da inapetência das novas gerações para a leitura de textos com mais de cinco linhas, algo que ela atribui à cultura digital. Onde vamos parar?
Menos jovem, respondo que, quaisquer que sejam os problemas atuais de leitura e concentração, convém ter cuidado com visões apocalípticas.
O meio eletrônico dominante na minha infância era ágrafo. Quando a televisão reinava, ninguém –excetuados compromissos escolares ou profissionais– precisava ler ou escrever absolutamente nada.
O mundo era cada vez mais audiovisual. Quem negaria naquele momento que a palavra escrita, se não estava com os dias contados, teria uma triste sobrevivência artificial em santuários frequentados por gatos pingados?
A internet e as mensagens de texto revalorizaram a escrita de forma surpreendente e cabal. Claro, não se trata mais da velha escrita, os códigos são outros. Mas qualquer visão de futuro que não levar isso em conta será incompleta.
Mais uma vez, a perspectiva histórica é a melhor vacina contra uma falácia que o senso comum vive tentando nos impingir: o da decadência irremediável da língua e da escrita.
Parece intuitivo. Antes havia civilização, agora estamos à beira da barbárie. Tínhamos o paraíso; caímos em desgraça. Trata-se de um mecanismo psicológico imemorial, com ramificações religiosas. A catástrofe atinge todo mundo, mas quem a denuncia sente algum conforto moral.
Em seu livro "Guia de Escrita - Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância" (editora Contexto), o linguista e psicólogo Steven Pinker rebobina de forma deliciosa a história das visões apocalípticas sobre o inglês.
Poderia partir de hoje, mas opta por começar em 1978 ("milhões de asneiras e descuidos de gramática, sintaxe, fraseologia, metáfora, lógica e senso comum") e recuar até 1478 ("nossa língua... difere de longe daquela que era falada e usada quando eu nasci", escreveu um tipógrafo).
Pinker ainda vai além. Chega até milhares de anos atrás ao afirmar que "algumas das tabuletas decifradas do sumério antigo incluem queixas sobre a deterioração da habilidade de escrita dos jovens". O sumério é a língua escrita mais antiga de que se tem notícia.
Conclusão do linguista: "Na realidade, o pânico moral sobre o declínio da escrita pode ser tão antigo quanto a própria escrita". Seria difícil expor de modo mais claro a vaziez do bordão preferido dos apocalípticos: "Antigamente, havia respeito às regras".
O fato é que as "regras" da norma culta –como as de todas as variedades da língua– mudam sem parar, lentamente, mas com efeitos dramáticos a longo prazo. Nossa eterna ladainha de decadência é um espetáculo tão risível quanto o de um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Reconhecer isso não significa negar os problemas e desafios ligados à escrita e à leitura. Também não quer dizer abandonar o apreço pela língua elegante, literária, cultivada –como Pinker não abandona.
O Brasil precisa de mais educação, não de menos. Só não vale suspirar pelo tempo em que as bacharelices afetadas do Hino Nacional passavam por bom estilo e os analfabetos eram 80% da população.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Ao ordenar que Lula compareça a 87 audiências, Moro tem atitude rasteira

A exigência de mais acusações a Lula, como condição para reconhecer ao ex-presidente da OAS o direito à delação premiada, de uma parte indica que à Lava Jato continuam faltando provas de muitas ilegalidades que atribuiu (e difundiu) ao seu principal alvo; de outra, reacende o problema do facciosismo com que procuradores deturpam a função constitucional do Ministério Público. A Lava Jato quer, além de novidades acusatórias, saciar a sua obsessão com o mal afamado apartamento no Guarujá, que Leo Pinheiro diz ser da OAS, não se efetivando a compra que Marisa iniciou e Lula rejeitou.
Apesar da intimidação a Leo Pinheiro, a expectativa da Lava Jato está mais no grupo de funcionários e ex-dirigentes que o acompanhariam na delação. É a continuada prioridade às delações, em detrimento de investigações. Só o atual estágio de "negociação" com Leo Pinheiro e a OAS já consumiu quatro meses. Nem parece que a Polícia Federal recolheu numeroso material na empreiteira e na cooperativa financiadora do apartamento, para base documental de investigações e eventuais provas.
Por essas e muitas outras no gênero, tem sentido a preocupação no Judiciário com a probabilidade de muitas prescrições.
Assim como têm razão os ministros do Supremo que negam a responsabilidade do tribunal na lentidão judicial desse caso. O ritmo de valsa está no Ministério Público, tanto na Lava Jato como na Procuradoria Geral da República.
Estava com endereço errado, por exemplo, a pressa cobrada do ministro Edson Fachin para examinar, decidir caso a caso e liberar o pacotaço proveniente de delações da Odebrecht.
O acúmulo desse material na Lava Jato, em vez da remessa ao Supremo em lotes sucessivos, resultou em atraso nas duas pontas. A Lava Jato acumulou para ser retumbante na entrega. É a prioridade ao escândalo.
O retorno da Lava Jato à fase em que tinha controle sobre seus rumos, sem envolver o PSDB e o PMDB como a Odebrecht obrigou, não se deu só em procuradores e policiais.
O juiz Sergio Moro ofereceu mais uma demonstração de como concebe o seu poder e o próprio Judiciário. Palavras suas, na exigência escrita de que Lula compareça às audiências das 87 testemunhas propostas por sua defesa:
"Já que este julgador terá que ouvir 87 testemunhas da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva (...), fica consignado que será exigida a presença do acusado Luiz Inácio Lula da Silva nas audiências na quais serão ouvidas as testemunhas arroladas por sua defesa, a fim de prevenir a insistência na oitiva de testemunhas irrelevantes, impertinentes ou que poderiam ser substituídas, sem prejuízo, por provas emprestadas". É a vindita explicitada.
Um ato estritamente pessoal. De raiva, de prepotência. É uma atitude miúda, rasteira. Incompatível com a missão de juiz. De um "julgador", como Moro se define.
O Judiciário não é lugar para mesquinhez.


Por Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Atenção: contém spoiler!

Atenção para o spoiler: todo mundo morre no final. A coisa começa com uma imagem projetada na tela de um cinema. Na imagem, cinco bandidos apontam armas uns para os outros enquanto trocam frases ameaçadoras. A câmera vai para fora da sala de projeção. No hall do cinema, o vendedor de pipoca aponta uma pistola automática para um cliente e grita: "Salgada ou doce?". O cliente está com um rifle AR-15 apontado para a cabeça do vendedor e responde: "Com sal, e muita manteiga!". Perto dali, fora do cinema, no corredor do shopping, uma senhora aponta um revólver calibre 38 para um segurança de terno preto e pergunta: "Por favor, onde é o toalete feminino?". O segurança saca uma pistola, encosta a arma no peito da senhora e grita: "É no fim do corredor, à direita, por quê?!". Neste mesmo corredor, a câmera chega até a porta do escritório de uma agência de publicidade. A câmera entra e vai até uma sala de reunião. Na cabeceira de uma grande mesa está um senhor e em volta estão mais seis pessoas. O senhor aponta uma pistola semiautomática modelo James Bond, com silenciador, para as outras pessoas e pergunta: "E aí? Alguém teve uma ideia genial para essa campanha pelo desarmamento?". As seis pessoas na mesa sacam armas de vários tamanhos e potências, mas todas muito modernas, e apontam para o senhor na cabeceira da mesa. Uma das pessoas responde gritando: "Estamos desenvolvendo o conceito da narrativa, mas precisamos de mais tempo e uma verba maior, porra!". A câmera volta para o corredor do shopping e chega no elevador, onde um uma mulher entra, aponta para o ascensorista uma pistola cromada, com cabo de madrepérola. Ela pergunta:"Desce?". O ascensorista aponta um revólver 38 para ela e responde: "Sobe." A mulher encosta a pistola na cabeça do ascensorista e grita: "Não! Agora vai descer!". O elevador desce, a câmera sai do elevador e vai para fora do shopping. Na rua, a câmera passa por um grupo de pessoas em volta de um pastor evangélico. O pastor está com uma das mãos na cabeça de um fiel e com a outra aponta uma pistola para ele. O pastor grita: "Sai, demônio! Sai desse corpo que não te pertence!". O fiel aponta um revólver para o pastor e grita: "Aleluia!". Perto dali, uma babá está passeando com um bebê num carrinho. O bebê está apontando para a babá uma dessas pequenas pistolas de bolso, que se ajusta perfeitamente na mãozinha da criança. O bebê grita: "Buááá!". A babá tira da parte de trás do carrinho uma submetralhadora UZI, aponta para o bebê e fala: "Para de chorar, garoto!". Ali ao lado, no ponto de ônibus, um motorista, com um cigarro apagado no canto da boca, aponta um 38 para um idoso que está na fila e pergunta: "O senhor tem fogo?". O idoso tira do bolso uma pistola e responde: "Tenho!". Neste momento, todos puxam os gatilhos.


Texto de Reinaldo Figueiredo, na Folha de São Paulo

Nenhum passageiro se sente atendido na classe econômica

Companhias aéreas fazem parte, pelo que sei, do setor de transportes –como as de ônibus, de táxis ou navios de cruzeiro. Mas talvez o correto seria dizer que se dedicam ao mundo do carregamento –como caminhões frigoríficos e trens de carga.
O caso do passageiro arrancado à força de um voo da United Airlines pode ter sido uma exceção. Só que nem tanto assim.
O médico David Dao tinha comprado direitinho sua passagem no voo 3411 de Chicago para Louisville. Mas a United Airlines, seguindo uma prática usual nesse mercado, tinha vendido mais lugares do que os disponíveis; é o "overbooking".
Como havia funcionários da companhia interessados em entrar no voo, ofereceu-se uma quantia de US$ 400 dólares, mais estadia em hotel, para o passageiro que desistisse da viagem. Ninguém se dispôs a tanto, e a oferta subiu para US$ 800.
A situação se manteve: os funcionários da United não poderiam embarcar. Invocou-se então uma lei (como é que isso existe?) autorizando a tripulação a retirar os passageiros que bem entendesse, sem consentimento.
O médico David, de 69 anos, foi um dos escolhidos; resistiu. Chega a segurança do aeroporto, arranca-o da "poltrona" (convenhamos, a palavra é um acinte). Ele grunhe como um animal conduzido ao matadouro. Terminou sem dois dentes, um nariz quebrado, uma concussão não sei onde, e um lugar, espero que confortável, na ambulância.
O presidente da United, ou melhor, o "CEO" (nomezinho besta, esse também), tomou a palavra para um comunicado oficial.
E cumprimentou os funcionários!
Oscar Munoz ganha uma fortuna de salários, bônus, ações, "shares", "stocks" ou o que quer que seja para desempenhar o papel de "liderança corporativa". Segundo o site salary.com, foram US$ 6,7 milhões em 2015.
Depois de sua intervenção, quando o caso já corria na internet, as ações da United entraram em parafuso na Bolsa de Valores. Oscar Munoz acordou então de seu sono entre as nuvens, tomou seu desjejum, escovou os dentes e foi às redes sociais pedir desculpas.
"A Família United não é desse jeito", esclareceu o alto canastrão –que não foi, longe disso, ejetado do cargo: promete "fazer melhor" da próxima vez.
O "overbooking" até que tem razões de ser. Se compro ingresso para um teatro, e deixo de ir, não me garantem lugar na plateia em outro dia. Bem ou mal, se perco o voo, as companhias aéreas me põem no avião seguinte.
Seja como for, é fora de dúvida que nenhum passageiro se sente plenamente atendido em seus direitos ao viajar na classe econômica.
Por motivos de segurança, mas não só isso, ele se vê numa situação mais próxima de um internato para adolescentes rebeldes, de um hospital público, de um destacamento militar.
Acordam-no na hora que acharem melhor; nem sempre está autorizado a ir ao banheiro; a comida é aquela, e se quiser; a aeromoça o inspeciona, para ver se está sentado retinho na cadeira; para pedir alguma coisa (e ele não conseguirá) é preciso que levante a mão.
Trata-se de uma das poucas ocasiões, de resto, em que o cidadão de classe média alta se vê confrontado por flagrantes desigualdades sociais. Logo além de uma fina cortininha, estão os privilegiados da Executiva: que conforto, que luxo, que bem-estar! Fica ao encargo de sua imaginação o mundo da Primeira Classe.
Ei-lo, para resumir, na Terceira, ouvindo patacoadas sobre o prazer de voar em nossas aeronaves.
Que passe a ser tratado aos cachações, como um refugiado subsaariano ou um adolescente negro do Capão Redondo, já passa dos limites.
Vivemos na plenitude um estado de revolta contra os políticos e o Estado de maneira geral. A Odebrecht, com tudo o que fez de errado, pelo menos entregava suas obras. São os deputados, os ministros, os governadores que concentram nossa indignação.
Talvez –daqui a 10 ou 20 anos– esse sentimento desapareça, por tédio, conformismo ou reforma radical. A revolta haverá de concentrar-se, então, sobre as grandes corporações e seus abusos.
As fraudes da indústria automobilística no controle da poluição, a arrogância das companhias aéreas, a mão de obra escrava nas grifes de moda, a manipulação nos preços dos remédios, os falsos rótulos de comida "light", os estelionatos bancários, tudo isso aparece nos jornais; poderes estatais desacreditados e corruptos respondem mal ao que acontece. A luta continua; aliás, nem começou.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 18 de abril de 2017

Para muitas mulheres, sexo se tornou só ação que rouba minutos de sono

Uma matéria do jornal "The New York Times", publicada na Folhaaponta um fenômeno que tenho observado nas minhas pesquisas: "o sono é o novo sexo".
Muitas mulheres que entrevistei sofrem com a insônia constante. Elas estão insatisfeitas, exaustas, estressadas e deprimidas.
Para elas, a dupla jornada feminina é coisa do passado. Hoje, elas têm múltiplas jornadas e novas exigências profissionais e familiares. As pressões sociais também se multiplicaram. Além das excessivas demandas, compromissos e cuidados com os filhos, marido, casa, pais, sogros, cunhados, irmãos e amigos, e da cobrança para serem excelentes profissionais, elas ainda devem ser magras, bonitas, saudáveis, sensuais, interessantes, divertidas etc. Também precisam ser bastante atuantes no Facebook, Instagram, grupos do WhatsApp, acompanhar as notícias nacionais e internacionais, assistir a filmes e a peças recomendados, ler os livros indicados entre inúmeras outras tarefas impossíveis de serem realizadas por um único ser humano. E, pior ainda, elas não se sentem reconhecidas pelo enorme esforço que fazem para cumprir todos estes papeis da melhor forma possível. Afinal, o que elas mais escutam é: "você não faz mais do que a sua obrigação".
Na interminável lista de tarefas cotidianas que elas precisam cumprir, o sexo passou a ser mais uma obrigação. Elas afirmam que falta tempo, energia e disposição para o sexo. O sexo não é algo tão simples para elas como parece ser para os homens. Elas precisam se desligar de todos os problemas e preocupações, o que é quase impossível para a maioria das mulheres. O sexo, para muitas, deixou de ser um prazer e passou a ser mais um dever para satisfazer o parceiro, algo que rouba alguns minutos preciosos do seu desejado sono.
Não é por acaso que elas estão muito frustradas, ansiosas e angustiadas. Elas invejam e se comparam com outras mulheres que são mais magras e bonitas, esposas, mães e profissionais exemplares e que ainda conseguem transar três ou quatro vezes por semana. Elas estão sofrendo por se sentirem um verdadeiro fracasso como mulher. E ainda têm pânico que o parceiro busque outra mulher para satisfazer seu desejo sexual.
Você também trocaria o sexo por uma boa noite de sono? 


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

Xadrez da política após o vendaval

Xadrez da política após o vendaval


Luis Nassif


Peça 1 – sobre o essencial e os detalhes

Para colocar um pouco de ordem nessa barafunda.
1.     No epicentro do terremoto relaxe e espere a terra assentar. A realidade nunca é tão ruim quanto parece no olho do furacão.
2.     Toda essa movimentação em torno da lista de Fachin tem dois objetivos claros. O atual, é o desmonte do sistema de seguridade social e outras reformas antissociais; o de 2018 obviamente são as eleições.
O que está em jogo é o desenho de país que se terá, o futuro dos avanços civilizatórios das últimas décadas, o destino de milhões de pessoas hoje em dia amparadas pelo sistema de seguridade social. 
Esse é o ponto central. O restante são os meios, as táticas políticas.

Peça 2 – sobre o jogo político

O segundo cuidado é entender de que lado estão os principais personagens da Lava Jato:
1.     Globo, Procuradoria Geral da República e Lava Jato estão do mesmo lado. Eles são o chicote nos parlamentares para acelerar a reforma da Previdência, a reforma trabalhista, o desmonte da seguridade social. A cenoura é o imenso leilão que ocorre no Congresso. 
2.     Só é aceita a delação cujo conteúdo corresponder plenamente aos desejos do procurador. Se não concordar com as condições impostas , o sujeito continua preso. Se corrigir as delações depois de solto, o sujeito volta para a cadeia.
3.     As delações são a seco, procurador e delator, sem nenhuma espécie de mediação. Os procuradores têm poder absoluto para induzir os delatores e sua intenção maior é colher elementos para reforçar as teses previamente definidas.
4.     Delação sem provas não tem valor penal. Mas, politicamente, ajuda a construir a narrativa necessária para insuflar a opinião pública.
5.     A qualificação de crime de peculato (aquele praticado por funcionário público) depende de um benefício atrelado a uma contrapartida.
Entendidos esses pontos, vamos ao jogo.

Peça 3 – Lula, Aécio, Serra e Alckmin

O que havia entre Lula e Emílio Odebrecht era uma relação de estreita confiança política e pessoal baseada em um projeto: as empreiteiras seriam a ponta de lança do soft power brasileiro na África e América Latina.
Dentro dessa estratégia, criaram-se inúmeros mecanismos de apoio, ferramentas de políticas públicas utilizadas por qualquer país em estímulo à expansão externa de suas empresas, como financiamento à exportação e ofensiva diplomática.
Aí se entra na zona cinzenta. A partir dessa parceria, o PT passou a ter acesso a um butim no qual já se refastelavam o PSDB e o PMDB. Com a explosão da economia, o butim ficou imenso para todos os comensais.
A prova do pudim, para separar propinas de financiamento eleitoral, é a relação causal: se a cada contribuição correspondia uma contrapartida ou não. Na Petrobras, a relação era nítida. Fora da Petrobras, não.
Nos três casos tucanos – José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves -, por exemplo, há a acusação de pagamento de propinas: o dinheiro correspondia a um percentual das obras em andamento. No caso de Serra, uma propina adicional pelo pagamento à Odebrecht de um dinheiro bloqueado na justiça.
Mais ainda: as delações da Odebrecht confirmam o que já adiantamos aqui do que seria a delação de Léo Pinheiro, da OAS. Na gestão Alckmin, o percentual era de 5% sobre as grandes obras do Estado. Serra entrou e exigiu uma redução no valor das obras. A empreiteiras descontaram da propina. Imediatamente Serra enviou Paulo Preto para renegociar os percentuais de propina.
Constata-se, portanto, que, na cobrança de propinas, a maior garganta era de Alckmin.
Por outro lado, por enquanto ainda não se sabe se o dinheiro recebido por Alckmin foi utilizado para enriquecimento pessoal. Depende do rastreamento dos R$ 10 milhões entregues ao seu cunhado. No caso de Aécio e Serra, há indícios veementes de enriquecimento pessoal. Se abrir as contas dos fundos de Verônica Serra, se levantará o principal mecanismo de lavagem de dinheiro de Serra para atividades pessoais.
No caso de Lula, a intimidade brasileira –descrita nas obras de Sérgio Buarque de Holanda – foi utilizada para pequenos favores solicitados à Odebrecht: a ajuda ao irmão, o apoio ao filho, a reforma do sítio que seria usado por ele.
É evidente que a constatação de favores não engrandece a biografia de Lula. Servirá para um estudo acurado sobre os contrastes entre o maior estadista contemporâneo e os pequenos vícios do cidadão Lula. Mesmo assim, estão a léguas de distância do que se entende por corrupção.
As quantias destinadas ao Instituto Lula tinham objetivo claro. Fora da presidência, Lula mantinha largo prestígio no mundo todo, e em especial na América Latina e África. Qualquer empresa do mundo gostaria de tê-lo como embaixador para esses mercados.
Ora, havia um jogo de interesse comercial nítido e legítimo para quem não dispunha mais de cargos públicos: a Odebrecht apoiava Lula e se beneficiava de seu capital político internacional.
Obviamente, essa narrativa não atendia aos interesses da Lava Jato. Os procuradores trataram, então, de induzir as delações, para estabelecer nexos causais entre decisões de políticas públicas com as contribuições recebidas.
Nas transcrições, fica nítido o prego sobre vinil, a identificação dos cacos incluídos nas delações: Emilio Odebrecht teria concordado em apoiar o filho de Lula, se este ajudasse a quebrar as resistências de Dilma em relação ao próprio filho de Emílio. Ou então, a suposta compra do terreno, que não houve, seria em troca do Refis para o setor petroquímico.
A disparidade de valores é tão grande que soa ridículo. Mas como estabelecer o nexo causal é pré-condição para a delação ser aceita, mesmo sem provas, a maior corrupção do planeta fica reduzida, assim, a miçangas e paetês.
Por exemplo, uma das delações acusa Guido Mantega de ter intercedido junto à Previ, para a capitalização de uma das empresas da Odebrecht, mediante o pagamento de determinado valor ao PT. Na sequência, o mesmo delator diz que não houve, da parte de Guido Mantega, “um pedido de contrapartida especifica em razão do esforço que nos deu junto à Previ, mas a demanda financeira dele já estava atendida pelos valores até então pactuados e controlados por mim na planilha Pós-Itália". Tudo isso na mesma delação.
Mas, durante dias, deixou a direita indignada e a esquerda perplexa, trocando tiros entre si, com total falta de foco.

Peça 4 – sobre Dilma

Em relação a Dilma, é pior ainda. À medida em que vão se juntando as peças, fica claro que o PMDB começou a armar sua conspiração quando Dilma incumbiu Graça Foster de limpar a Petrobras e quando impediu qualquer acordo com Eduardo Cunha.
As delações comprovam que, sob a presidência de Marcelo, a Odebrecht  jogava contra Dilma.
Uma das delações confirma pagamento de R$ 6 milhões ao pastor Everaldo, para investir contra Dilma nos embates do primeiro turno. Outra, confirma o pagamento adicional a Aécio, visando derrotar Dilma. Outra, o pagamento a Eduardo Cunha, visando dobrar Dilma. Agora, a confissão de Michel Temer, de que Eduardo Cunha só aceitou o pedido de abertura do processo do impeachment por ter seus interesses contrariados.
No entanto, as manchetes são de que Dilma tinha sido avisado sobre a corrupção da Petrobras. Apenas isso, dando a entender que nada fez.
Dilma caiu paradoxalmente por simbolizar tudo o que a Lava Jato pretende como legítimo: o símbolo máximo do político apolítico que não negocia favores com políticos, com o Congresso, com empresas e com o Judiciário, que não disputa poder no Ministério Público Federal nem no Tribunal Superior Eleitoral, e não levanta uma pena em defesa de seu governo.
Quando ajudou na sua derrubada – divulgando os áudios de conversas dela com Lula – a Lava Jato tinha plena consciência da sua inocência e do envolvimento de seus adversários. Mas foi ela quem foi para a guilhotina se transformando, a posteriori, em uma heroína popular, a anti-Joana D´Arc que, para proteger sua virgindade política, lança todo um projeto nacional à fogueira.
Como entender essa hipocrisia da Lava Jato?

Peça 5 – a Lava Jato e o exercício da hipocrisia

Em dezembro de 2010 (https://goo.gl/WSPglZ) e julho de 2013 (https://goo.gl/LJqSNl) abordei os problemas que haveria para a política com o fim da hipocrisia, decorrente do advento das redes sociais.
Hoje em dia, há uma cartelização e massificação ampla do noticiário produzido pela dobradinha PGR-Lava Jato – mídia. O impacto das denúncias nubla temporariamente outros aspectos do jogo. Com o tempo – e a atuação anti-cartelização das redes sociais – a poeira assenta e os fatos vão se tornando progressivamente mais nítidos.
O desenho que emerge dos políticos mencionados pela Odebrecht é de uma organização criminosa, na qual os principais cabeças – Eduardo Cunha e Michel Temer – atuavam na linha de frente, participando pessoalmente das reuniões em que eram negociadas as propinas.
De outro lado, um segundo grupo que chantageia os chantagistas: se quiserem permanecer no comando do país, terão que entregar as reformas. No caso, as reformas mais antissociais da história, que praticamente acabarão com todo o sistema de seguridade social, condenando idosos pobres à morte antecipada, eliminando a saúde e a educação para os mais vulneráveis, sendo implementada por uma organização política tendo atrás de si o trabuco dos cidadãos de bem.
Há duas armas nas costas dos chantagistas: a imprensa e o Ministério Público Federal.
No impeachment da Dilma Rousseff a hipocrisia tinha um alvo: uma suposta organização criminosa sendo derrotada pelo clamor das ruas e pela aliança de brasileiros íntegros: Aécio, Serra, Aloysio, Alckmin. Para tanto, bastou a Lava Jato e a PGR esconder as evidências contra os “íntegros”.
Agora entra-se em outro terreno. O revólver da mídia e as balas do MPF estão apontados para que os chantagistas entreguem o combinado: antecipar a sobrevivência de idosos pobres, jogar ao mar os vulneráveis, tirando acesso a condições mínimas de sobrevivência, restringir a saúde e a educação para os brasileiros de baixa renda. E, por consequência, expor toda uma nova geração ao crime organizado que, sem investimentos em segurança, conseguirá seu intento de transformar o país em um imenso México.
Até quando o álibi dos justiceiros resistirá a esse segundo tempo?

Peça 6 – o pacto hipócrita

Há uma regra política infalível: excesso de poder leva à corrupção. Ou à antessala, que é a promiscuidade com outros poderes.
Dia desses, a Folha noticiou um suposto acordo entre o PGR Janot e Michel Temer. Segundo as notícias, Janot teria se apresentado para o terceiro mandato - ou para o fim da lista tríplice, desde que fosse indicado alguém do seu grupo para sucedê-lo - valendo-se do álibi Lava Jato. Ele seria a garantia de continuidade da operação. Como não é um argumento que sensibilize particularmente Temer, a grande indagação é o que teria sido oferecido por ele, em troca.
Não se sabe o grau de veracidade da notícia. O que causa estranheza é que imediatamente se pronunciou a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República). Apesar de ser uma entidade de classe, bancada pelas contribuições dos associados, a ANPR foi incapaz de arrancar um desmentido sequer de Janot. Soltou uma nota que é muito mais uma cobrança prévia do que uma defesa (https://goo.gl/xGjJAQ):
“Rodrigo Janot - que outrora presidiu a ANPR - não encerraria sua indelével trajetória no Ministério Público Federal construindo um sucessor em conchavos palacianos. Estes criariam uma crise institucional e uma desconexão entre o PGR e os procuradores - qual ele conheceu na sua juventude ao ingressar no MPF antes da redemocratização do Brasil e a definitiva autonomia do Ministério Público”.
Por outro lado, assim que Temer assumiu a presidência, a ANPR foi a primeira organização a ir ao beija-mão. E, quando da nomeação escandalosa de Alexandre de Moraes para o STF (Supremo Tribunal Federal), a ANPR emitiu uma nota de apoio igualmente escandalosa (https://goo.gl/m5n8nP).
“Jurista de notável saber jurídico, com passagem de mais de uma década pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, Alexandre de Moraes intermediou discussões importantes para o país à frente do Ministério da Justiça”.
O Ministério Público Federal é composto por um grupo heterogêneo de procuradores, dentre aqueles de inegável vocação pública e profissionalismo, aos que se encantam com o exercício leviano do poder. Ouso dizer que a maioria é firmemente comprometida com o trabalho e o profissionalismo.
Na cúpula, no entanto, há o mesmo movimento que se observa nos partidos políticos, no Judiciário, um jogo de poder hipócrita, disfarçado nas bandeiras da anticorrupção.
Seria interessante saber como esse fenômeno é analisado pelas lentes do nosso brasilianista de boutique, Ministro Luís Roberto Barroso.

Peça 7 – 2018

Assim que refluir a ofensiva atual, a disputa política se voltará para os fatos concretos da política: a disputa de projetos nacionais em 2018.
Portanto, é hora de arregaçar as mangas e trazer para o centro do jogo os intelectuais, os gestores públicos, as associações empresariais e os movimentos sociais, sindicatos e academia. É hora de começar a discutir o novo Brasil, depois do vendaval.

Reprodução do Jornal GGN. Destaque do blogueiro.