quarta-feira, 23 de julho de 2014

No trabalho, tecnologia vestível quer dizer "taylorismo digital"

Google e Apple recentemente endossaram a visão futurista de uma casa automatizada, na qual tanto as paredes quanto os moradores portariam sensores miniaturizados mas poderosos.
E o que alguém poderia ter a reprovar em um futuro no qual tecnologias vestíveis –óculos e lentes inteligentes de vários tipos mas também relógios e roupas inteligentes que acompanhariam nossas atividades físicas– transformariam nossas formas de diversão e relaxamento?
Essa transformação da casa, no entanto, é apenas parte da história. As tecnologias vestíveis também transformarão os escritórios - assunto sobre o qual tanto Apple quanto Google mantiveram silêncio.
Naturalmente, o tema se presta mais a visões distópicas do que utópicas: tecnologias vestíveis podem ser perfeitas para aumentar a produtividade e reduzir os custos, mas não há como negar que elas dependem de sensores minúsculos e sempre ativos que estabelecem monitoração contínua e abrangente dos funcionários.
E elas também podem motivar! Considerem apenas duas das mais recentes inovações, que chegarão ao mercado dentro de alguns meses. Uma delas é um relógio inteligente chamado Spark. Em sua página no Kickstarter, ele é promovido como "o relógio que garante que você nunca caia no sono durante as coisas importantes de sua vida".
Usando sensores que monitoram a velocidade e frequência de movimentos do usuário, o Spark é capaz de determinar se a pessoa está acordada. E começa a vibrar caso a apanhe cochilando.
Outra é a pulseira inteligente Pavlov. Depois que o usuário a informa sobre seus mais importantes objetivos na vida –ir à academia! Acordar às 7h! Ler 10 páginas de Heidegger ao dia!–, a pulseira o punirá com um choque elétrico caso ele não cumpra seus deveres.
Considerando que todas essas atividades - exercício, dormir, ler - podem ser facilmente acompanhadas por smartphones, seria trivialmente fácil impor punições como essas, já que a maioria de nossas ações cotidianas, traduzidas em forma de código digital, pode agora ser catalogada e analisada individualmente.
Embora a maioria desses aparelhos seja promovida como instrumentos para melhora pessoal e dirigidos aos cidadãos interessados em aperfeiçoamento, eles seriam muito bem vindos nos lugares de trabalho, onde existe uma crescente conscientização de que tecnologias vestíveis oferecem uma nova maneira de analisar e otimizar o fluxograma de trabalho. Que patrão não estaria interessado em manter seus funcionários despertos e produtivos?
Em novembro de 2013, a "Harvard Business Review" publicou um artigo curioso sobre a ascensão da "fisiolítica", um termo horroroso que denota a integração continuada de aparelhos vestíveis e diversos produtos de software para conduzir análise de dados sobre desempenho de funcionários.
O autor, para seu crédito, não tentou ocultar o fato de que a fisiolítica é apenas uma visão atualizada do taylorismo, com seu velho fascínio pelos estudos de tempo e movimento, mas dessa vez confiando em sensores sofisticados e produtos de software para recolher e analisar dados.
Não admira que tantas empresas iniciantes estejam lutando por espaço no mercado de tecnologia vestível; as grandes companhias têm muito mais dinheiro para gastar com essas engenhocas do que os consumidores individuais.
Um exemplo é a XOEye Technologies –uma start-up que produz óculos inteligentes para operários de fábricas, e não para a elite digital. Os óculos da XOEye têm poucos dos excessos do Google Glass –usam botões físicos em lugar de comandos de voz, porque fábricas são lugares barulhentos– mas oferecem recursos sofisticados e voltados ao controle.
Os óculos contam com sensores de movimento que podem detectar quando o operário se curva, registrando o movimento como "evento biométrico", e salvando-o em um banco de dados para análise pelos gestores.
Como disse o fundador da companhia à revista "PCWorld", a ideia é a de que "se um operário está se curvando 60 vezes por dia, ele pode ter problemas de coluna no futuro. Assim, a companhia pode desejar mudar a maneira pela qual utiliza esse trabalhador, ou talvez transferi-lo a um departamento diferente".
Mas mesmo que sua empresa não tenha como bancar óculos como esses –eles custam US$ 500 e mais uma assinatura mensal de US$ 99–, ela talvez possa adquirir um Lumo Back, um sensor extremamente fino que fica preso à cintura do usuário e avalia sua postura durante as longas horas que ele passa sentado na cadeira do escritório.
Sempre que o sensor percebe que o trabalhador não está sentado na postura correta, ele vibra gentilmente, para lembrar o usuário de que suas costas são um importante ativo para a empresa da qual ele é funcionário.
É compreensível que empregadores amem essas engenhocas; melhor gastar dinheiro em alguns óculos inteligentes e sensores de postura do que pagar planos de saúde e despesas médicas –e correr o risco de perder alguns dos melhores funcionários da companhia.
Essas economias podem resultar em cortes consideráveis de despesas, o que faz dos locais de trabalho –e não das residências– o ambiente crucial para a introdução, teste e aperfeiçoamento desse tipo de tecnologia.
A Appirio, uma companhia de tecnologia com mil funcionários, com escritórios na Índia e nos Estados Unidos, serve como exemplo. No ano passado, ela convenceu 400 de seus funcionários a usar sensores de atividade que monitoravam sua atividade física.
A companhia depois empregou os dados obtidos para convencer sua operadora de planos de saúde a reduzir em US$ 280 mil o custo desses planos para a Appirio, porque pôde provar que seus trabalhadores caminhavam e se exercitavam mais do que a operadora de planos de saúde pressupunha.
E se é possível extrair tamanhos benefícios simplesmente registrando quanto nos movimentamos –e não só dentro mas fora do escritório–, há muito mais entusiasmo quanto a usar sensores para monitorar outras atividades.
A Robin, uma start-up de Boston, equipa salas de edifícios de escritórios com sensores sem fio que se comunicam com os smartphones dos trabalhadores, alertando os gestores e outros funcionários sobre a chegada de um colega à sala (e o anúncio pode não se limitar ao nome, mas também conter links para a página de LinkedIn e Facebook do funcionário).
É exatamente assim, aliás, que boa parte da mídia social, com suas conexões automáticas e perpétuas notificações, opera hoje: essa lógica está simplesmente se estendendo aos locais de trabalho.
Até mesmo a criatividade pode ser mensurada e rastreada em tempo real –com o uso de uma faixa elástica inteligente que o usuário coloca na cabeça para monitorar suas ondas cerebrais. A Melon, outra start-up, vai colocar o primeiro lote desses aparelhos no mercado nas próximas semanas.
Como aponta o artigo da "Harvard Business Review" sobre o aparelho, ele ajuda os usuários a compreender seus padrões cognitivos ao medir "os picos de raios gama que ocorrem milésimos de segundo antes de um momento de descoberta - e esses dados, com o tempo, oferecem ao usuário uma boa percepção sobre os momentos em que é mais provável que sejam criativos".
A negatividade –e não só a criatividade– serve como excelente alvo analítico. Algumas companhias estão usando todos esses dados - e é nesse ponto que o Big Data e os sensores e algoritmos convergem –para determinar se um trabalhador pode estar pensando em trocar de emprego ou simplesmente se demitir.
Assim, o bem-estar emocional dos trabalhadores pode ser traduzido em um indicador de risco, determinando os problemas que uma pessoa poderia causar à empresa se os gestores não agirem imediatamente.
Apesar de todo o entusiasmo quanto a tirar fotos de férias com os seus "smart glasses", o uso da tecnologia vestível pelo consumidor comum parece trivial e banal comparado ao seu uso nos locais de trabalho. E o fervor com que esses aparelhos são apresentados, como se fossem revolucionários, oculta sua continuidade com relação a formas prévias de controle corporativo.
Podemos definir esses métodos como "fisiolítica", "Big Data" ou "tecnologia vestível", mas "taylorismo digital" parece ser a descrição mais precisa. Quanto a um aspecto, porém, eles vão muito além do que o taylorismo foi capaz: porque podem usar dados e rastrear atividades realizadas também fora do escritório, garantem que a lógica do trabalho prevaleça até naqueles domínios da vida que antes eram protegidos contra ela.


Texto de Evgeny Morozov, na Folha de São Paulo. Tradução de Paulo Migliacci. 

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