quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Em livro sobre seu câncer, Dimenstein vira tema de sua última reportagem

Foi por meio de um sonho premonitório que Gilberto Dimenstein intuiu que tinha câncer. A experiência foi tão impactante que ele passou por cima do ceticismo que sempre pautou a carreira jornalística e, mesmo se sentindo saudável e sem nenhum sintoma, resolveu investigar.

Após uma série de exames, descobriu um tumor no pâncreas. Três semanas depois, foi informado de que havia metástase no fígado.

Começava ali a jornada que se encerrou com a sua morte no dia 29 de maio último, aos 63 anos. Toda a trajetória do jornalista criador do site Catraca Livre está relatada no livro “Os últimos melhores dias da minha vida”, escrito em parceria com a mulher, a jornalista Anna Penido.

Lançada em novembro, a obra relata as dores do tratamento, mas fala, principalmente, de amor, de beleza, de gratidão e de aceitação diante da morte.

“Eu não sabia o que era o amor de verdade, nem que seria possível amar outra pessoa com tamanha profundidade. Nunca, nem remotamente, imaginei que experimentaria o nível de cumplicidade que passei a ter com a Anna”, diz ele em um trecho.

Jornalista premiado e que escreveu na Folha por 28 anos, Dimenstein virou o tema da sua última reportagem, sobre como foi receber o diagnóstico de um câncer agressivo, as perspectivas e as reflexões a partir de então e como viveu até o fim da vida.

Embora o seu tratamento oncológico tenha se baseado na ciência do começo ao fim, ele transitou também pelo mundo espiritual: foi da limpeza energética da casa e rituais do candomblé à cirurgia espiritual.

"De repente, todo o meu racionalismo iluminista começou a se misturar com especulações sobre o insondável. Compreendi que, por trás de muitas dessas experiências místicas, prevalecia a ideia de que precisamos nos conectar a uma força maior para acreditar no futuro."

Ao mesmo tempo, contou com o apoio de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, espalhados por todos os continentes, que se uniram em orações de todos os credos.

Não foram dias fáceis. Mas mesmo com as desilusões pelos insucessos dos tratamentos e os desconfortos da quimioterapia, Dimenstein não se desconectou com o melhor que a vida podia lhe oferecer.

"Quanto mais o câncer me subtraía, mais eu conseguia agregar novas dimensões à minha existência. A diferença estava na maneira criativa com que olhava para a realidade à minha volta."

Nas brechas entre um ciclo de infusão e outro, em que o cansaço, a febre e a falta de apetite davam uma trégua, ele se entregava ao mundo encantado das compensações.

“Além de comer com prazer, brigava com a inércia. Dizia que eu também precisava dar uma canseira no câncer, já que ele me dava tanto cansaço. Então, pegava minha bicicleta e pedalava até a sorveteria. Pensava comigo mesmo: 'Como é bom estar vivo'”.

Na fase final da doença, amigos como o pianista e maestro João Carlos Martins tiveram efeito mais poderoso que antibióticos, segundo relata o jornalista. O neto Zeca, 3, também era antídoto para muitos dos seus desconfortos com a doença.

No livro, Dimenstein discorre sobre os efeitos da pandemia de coronavírus na sua vida, como a apreensão diante do confinamento, quando começou a pensar que nunca mais iria a cinemas, teatros e concertos, e a tristeza de não ter mais o neto e os filhos por perto, embora aplicativos como o Zoom os mantivessem sempre conectados.

Houve também tempo para se emocionar com as manifestações de solidariedade que a crise sanitária proporcionou, como jovens que deixavam comida na porta dos idosos ou o trabalho colaborativo entre os cientistas para acelerar a produção de uma vacina capaz de conter o vírus.

E sobraram decepções com os “doentes patológicos e patologistas presumidos” que se posicionavam contra o isolamento social.

“O presidente Jair Bolsonaro insistia em contrariar princípios básicos da ciência, descumprindo todas as recomendações das organizações e profissionais de saúde. Ou seja, o próprio líder da nação estimulava a disseminação do vírus, sandice que não encontrava paralelo em nenhum país civilizado”, escreveu.

Quando recebeu o veredito de que não havia mais saídas terapêuticas para o seu caso, Dimenstein relata que não se desesperou.

“Ganhei uma sensação de bem-estar, contentamento, falta de compromisso. Na ausência de um futuro possível, me sentia totalmente entregue ao destino. Não havia mais nada que precisasse fazer.”

Com o estado físico cada vez mais debilitado, a sua maior preocupação era a de não sentir dor. Decidiu, então, procurar uma médica especializada em cuidados paliativos, Ana Cláudia Arantes, autora do livro "A morte é um dia que vale a pena viver" (Sextante).

No ritual de despedida, Dimenstein pediu desculpas a pessoas com as quais achava que não havia sido correto. “A reconciliação com os meus remorsos me apaziguou e meus dias transcorriam cheios de contentamento no nível dos afetos.”

Tinha pavor de se imaginar preso a uma cama. Não queria morrer daquela maneira. Quando passou a sofrer alucinações e já não conseguia mais comer ou dormir, decidiu que era a hora de ser sedado. Antes, despediu-se da mãe, dos irmãos e ouviu deles o quanto o amavam.

Morreu em casa dormindo, cercado da mulher e dos filhos, embalado com sua música tema: “Clube da Esquina 2”. “Porque se chamava homem, também se chamavam sonhos, e sonhos não envelhecem”.

Os últimos melhores dias da minha vida
Gilberto Dimenstein e Anna Penido (Record, 2020); R$ 34,90


Por Claudia Collucci, na Folha de São Paulo

Com o brexit, não se sabe quem perderá mais na distância que vai se criar

 Chegamos ao fim do ano.

E, por mais que 2020 nos oferecesse uma nova “diversão” a cada dia ou quase, ou seja, por mais que o ano fosse cheio de distrações, eu não esquecia que o dia chegaria em que o Reino Unido de Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales se separaria da Comunidade Europeia.

Escolho essa nomenclatura completa e um pouco pernóstica como se faz nos lutos grandes e oficiais, quando parece oportuno dizer todos os nomes do ente querido que se separa de nós.

Não sei quem, da Europa ou da Inglaterra, vai perder mais na distância que vai se instaurar. Tampouco sei se a perda deveria ser calculada em moeda sonante, em influência geopolítica ou em capital cultural.

Perdas e ganhos, na história, sempre se calculam numa mistura dos três registros, e ainda estamos longe de ter aquela versão dominante, se não conclusiva, do brexit, que será estabelecida tanto
por historiadores quanto por ficcionistas e documentaristas, de ambos os lados (“Brexit” é um bom título, e aposto que haverá mais de uma série sobre o tópico, no futuro).

Deixando em aberto as apostas no tribunal da história, já posso antecipar que, para mim, concretamente, brexit é e restará o nome de uma grande derrota.

Quando cheguei a Londres, no começo dos anos 1960, já havia no ar um certo espírito europeu: o Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Econômica Europeia, tinha sido assinado em 1957.
Mas, cuidado, somente nos anos 1980 viria o acordo de Schengen, com a ideia da livre circulação das pessoas entre os países da comunidade.

Ser italiano em Londres em 1963 ou 1964 ainda era um exercício de paciência e de humildade. Se você precisasse alugar um apartamento, mesmo num bairro bem popular, Camden Town ou Earl’s Court, por exemplo, um dia ou outro, lendo os classificados, você esbarraria na frase final de um anúncio horrorosamente discriminatório: “no Italians”, ou, então, “Italians don’t need to apply” (italianos nem precisam se aplicar).

O que era? O barulho desnecessário? A fala alta? O excesso de cebola na fritura com a qual de fato deve começar qualquer molho que se respeite? Ou o fim de noite com acompanhamento de violões e
mandolins nostálgicos?

As hipóteses eram todas humilhantes. Tanto mais que, em alguma medida, eu mesmo subscreveria —ou seja, talvez eu mesmo me excluísse do condomínio que admitisse livremente todos os italianos que pedissem…

Aliás, os sentimentos de revolta e de indignação diante da exclusão do próprio grupo da gente sempre são efeitos de uma descoberta simples e dolorosa: nosso próprio grupo nos envergonha.

Enfim, o brexit aconteceu por razões que talvez tivessem pouco ou nada a ver com a aceitação dos italianos “mal criados” —até porque, naquela altura, o objeto de exclusão não eram mais os europeus comunitários mais barulhentos, mas os extracomunitários (ilegais e bem mais barulhentos do que os italianos).

Também as razões da exclusão já não eram tanto a distância cultural quanto os receios de decadência econômica, bem enraizados numa classe C que se sentia ameaçada pela modernização e pela chegada de novos imigrantes de fora da Europa (o filme “Eu, Daniel Blake”, dirigido por Ken Loach e lançado em 2016, retrata adequadamente essa época e esses medos).

Enfim, para mim, o mais doloroso não era e não foi o peso da exclusão, mas a consciência de um fracasso maior, mais amplo: o fracasso de um sonho que estava além da Europa unificada, esse
mundo no qual chegamos a sonhar que se falasse uma língua só (de fato, numa época, falou-se uma língua só, o latim).

Melhor dito, o fracasso de uma cultura que, mesmo no esplendor de sua complexidade, mesmo na melhor prática de sua razão, não conseguiu construir os pressupostos para que houvesse um
dia paz e convivência decente entre seus membros.

É como se fôssemos condenados a descobrir sempre e repetidamente, numa repetição do esforço de Sísifo, que ganhamos, sim, a cada dia (sempre conseguimos empurrar a pedra até lá em cima, nossa cultura não é para menos), mas isso não basta: ainda é preciso saber e talvez merecer viver lá em cima.

A Europa talvez seja isso: uma cultura que nunca consegue estar à altura de si mesma.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Lamento, mas 2020 não acaba hoje

 Senhores, lamento decepcioná-los mas, diante das circunstâncias, sou obrigado a informá-los que, a despeito da expectativa geral, 2020 não se encerra hoje. Nem acabará tão cedo.

Há indícios no calendário de que certo ciclo astronômico findaria hoje, mas é mera convenção para orientar balanços de empresas, planos plurianuais de governos e cobradores ávidos por nos encurralar.

Em outro universo, o mesmo ciclo poderia iniciar-se, com mais propriedade, em algum dos solstícios, e não em um ponto qualquer do inverno ou do verão.

Sabemos também que a ilusão do fim do ano é igualmente produto da angústia humana em crer que os fracassos foram temporários, e daqui pra frente tudo vai ser diferente: a dieta de dois meses para perder dez quilos nos fará perder dez quilos, e não, como suspeitamos, apenas dois meses de vida; o trabalho massacrante vai nos absorver menos e nos dar mais tempo para as pessoas queridas, as quais, porém, estarão soterradas demais no próprio trabalho massacrante para nos dar atenção; a ressaca do Réveillon alguma hora vai passar, dando finalmente lugar à nova bebedeira e outra ressaca que alguma hora vai passar; aquela garota do escritório que passou o ano nos evitando vai finalmente dar mole —e a gente também, na hora agá.

Mas algo não depende de convenções nem de boas intenções: é a realidade nua e crua, que ignora desejos e impõe a crueza dos fatos. E 2020 não conseguiu concluir praticamente nenhuma das mazelas terríveis que protagonizou.

Conversando com um amigo inglês, ele me dizia que o pesadelo estava de volta a Londres: confinamento, restaurantes fechados, nova cepa de vírus no ar. Contei-lhe que também aqui caminhávamos para algo semelhante.

Constatamos que os mais importantes recordistas de mortes eram nossos países, junto com Estados Unidos. Todos com uma causa clara, a imbecilidade criminosa do governante. (O britânico, depois de uma temporadinha básica na UTI, tentou redimir-se, mas tarde demais.)

Ninguém avisou ao vírus que hoje é dia 31? Que amanhã é o novo dia de uma nova era? Que basta?
Mais realista que as vãs esperanças de bilhões, a Covid-19 não parece se importar com o calendário. E tudo indica que vai escorrendo como uma serpente sorrateira, atravessando impávida a passagem da década e inaugurando o pretenso novo ano com seu rastro de terror, liderando o cortejo de cúmplices.

O mundo enfrenta um colapso humano inédito nos últimos cem anos. E, se alguém espera que tudo mude num piscar da folhinha, melhor saber que as estranhas convenções de 2020 —distanciamento​ dos semelhantes, confinamentos, máscaras, álcool em gel, desemprego— ficarão por aí por um bom tempo, mesmo com as prometidas vacinas.

O ano de 2020 seguirá, impávido, pelo menos por um bom número de meses. Mas não é só nisso que o ano terrível buscará se eternizar enquanto dure de fato.

É verdade que o mundo escanteou um monstro chamado Donald Trump —mas a máquina de guerra americana, tão cara ao Partido Democrata, continua azeitada.

Verdade que vimos no Chile um progresso importante do movimento popular a favor dos direitos civis; mas, em outras partes em que a população foi à rua, a pandemia jogou contra a democracia, como em Hong Kong e na França.

Enquanto isso, no Brasil, o interminável 2020 parece fadado a durar pelo menos mais dois anos.

É verdade que o neofascista Bolsonaro e seus esbirros que concorreram às prefeituras brasileiras foram humilhados nas urnas. Mas não há sinais (antes pelo contrário) de que se tenha arrefecido a destruição e desmonte da ciência, da educação, das artes, da natureza, dos direitos trabalhistas e dos direitos humanos promovido por Bolsonaro e sua coorte de milicianos, ignorantes, fanáticos e filhos (vários se enquadram em todas as categorias).

Pelo contrário, este governo nefasto continua corroendo por dentro as instituições —o que nos países neoditatoriais mundo afora tem funcionado para manter autocratas no poder.

Não quero ser tão pessimista. Quem sabe restem solidariedade, higiene, aversão à tirania. E, sim, 2020 alguma hora vai acabar. Nem que demore anos.


Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Lamento morar num país que não está preparado para receber você, vacina

 Mais uma manhã em que acordo pensando em você, esperando o dia em que nos encontraremos, mesmo sem a menor ideia de quando esse dia vai chegar.

Dizer que sonho contigo todas as noites seria mentira, pois nem todas as noites consigo dormir. Sem você por perto me sinto amedrontada, vulnerável, desprotegida. Os efeitos colaterais da tua ausência são devastadores.

Preciso de você. Logo eu, que nunca me considerei uma pessoa romântica, e hoje me vejo confinada em uma canção do Roberto Carlos da década de 1980: “Meu amor, não dá para suportar/ me ajude a sufocar/ a solidão que há em mim...”.

Só você pode trazer de volta minha paz, minhas noites de sono, minha vontade de sair de casa, minha esperança no futuro e até minha fé na humanidade. Você faz parte de absolutamente todos os meus planos.

Quero que você se sinta acolhida no seio da minha família, no meu círculo de amigos, entre meus colegas de trabalho, vizinhos e seus respectivos familiares e amigos, e os familiares dos amigos dos amigos dos vizinhos dos colegas de trabalho dos familiares de amigos e assim por diante.

Não consigo ser egoísta a ponto de querer sua companhia só para mim.

Mesmo sem lhe conhecer pessoalmente, acompanho a distância você ganhar o mundo e lamento morar em um país que ainda não está preparado para lhe receber.

Nós duas sabemos muito bem quem está por trás de todo esse atraso. Ele ama a morte e você ama a vida, é por isso que ele quer lhe desqualificar a qualquer custo, inventando absurdos a seu respeito, questionando suas intenções, insistindo que você é perigosa.

Por aqui, sigo fantasiando com o dia em que vou vestir minha melhor roupa e usar a minha melhor máscara só para te encontrar.

O dia em que enfim serei tomada pelo braço e levada ao limite do prazer e da dor enquanto você percorre o meu corpo me transformando de dentro para fora, e transformando o meu mundo, de fora para dentro.

Meu único desejo para o ano novo é você, vacina.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo


Preso há 35 anos e condenado à morte, Jarvis Masters ensina sobre liberdade

 Jarvis Jay Masters, um homem negro e hoje quase sexagenário, teve uma infância muito pobre e cercada de abusos, abandono e violência. Aos quatro anos, era largado sozinho em casa e obrigado a "cuidar" de um recém-nascido (que acabou morrendo). Com essa mesma idade, escondido embaixo de uma cama com seus irmãos, viu sua mãe ser espancada por um traficante até não emitir mais nenhum som.

Como acontece com muitas das crianças que sofrem negligência e maus-tratos, aos 12 anos foi parar em uma instituição para menores infratores; aos 19, acabou preso em San Quentin por assalto a mão armada; aos 23, foi condenado à morte por um crime pelo qual ainda tem esperança em provar sua inocência (participar de uma conspiração para assassinar um guarda).

Apesar de estar trancafiado em um presídio há mais tempo do que lhe foi possível conhecer a vida lá fora (e de ter passado mais de 20 anos em confinamento absoluto), Jarvis se tornou um grande expoente quando o assunto é liberdade.

Ele conheceu o budismo através de livros, passou a meditar diariamente e a se corresponder com o mestre Chagbud Tulku Rinpoche, que anos depois o visitou no presídio para uma cerimônia de empoderamento.

Hoje Jay Masters é também um mestre budista e ensina, através de livros e cartas que troca com centenas de jovens, tudo o que sabe sobre compaixão, paz e mente equilibrada. Como ele consegue isso em um ambiente permeado por tanta violência, dor e descaso é o que torna sua figura e essa obra tão interessantes.

Para começar, ele diz que estar preso talvez tenha, de certa forma, lhe salvado. Do jeito que caminhava a sua vida, ele, assim como aconteceu com seus irmãos e sua mãe, já estaria morto há algum tempo. Lendo o livro, percebemos também que pela maneira como ele diz "decorar", limpar e arrumar sua pequena, escura e úmida cela, ali o mestre budista tem, pela primeira vez, a possibilidade de um lar. Seus amigos na prisão são uma espécie de família possível.

Pensar no copo sempre meio cheio pode ser um clichê, mas para não enlouquecer ele precisou se agarrar a esses lugares-comuns. Aos leitores brasileiros, o segundo parágrafo da nota do autor começa assim: "Quando acordamos de manhã, nenhum de nós, independentemente de cor, raça, gênero e posição social, tem certeza de que vai voltar para casa à noite". Quem, afinal, controla a própria vida? Jarvis aprendeu com seu mestre e hoje ensina a todos: lar é onde o nosso coração está.

Para mais informações sobre a campanha pela libertação Jarvis Jay Masters, visite o site www.freejarvis.org.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo


ENCONTRANDO A LIBERDADE

  • Preço R$ 39
  • Autor Jarvis Jay Masters
  • Editora Ed. Leya

domingo, 27 de dezembro de 2020

Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade que o racismo sustenta

Durante muito tempo achei que o Brasil fosse a cópia escarrada do Sul dos Estados Unidos, sem a Guerra de Secessão ou antes dela. Aqui se defende o indefensável. Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade e abrir mão de privilégios que o racismo sustenta. Com o estranho agravante de que aqui os negros são maioria.

Durante muito tempo identifiquei o Brasil com o anacronismo dos estados sulistas confederados. Somos capazes de eleger um presidente e um governo que trabalham abertamente contra os direitos civis, a diversidade e as ações afirmativas, para dizer as coisas em termos eufemísticos e publicáveis. Os confederados daqui estão no poder.

Gente que sabe que, na prática, matar negros é crime inimputável, se não direito garantido por “excludentes de ilicitude”. Ou já saberíamos quem mandou matar Marielle Franco.

Os anos Trump deixaram claro, para quem ainda não tinha entendido, que a Guerra de Secessão não acabou. E que não há anacronismo nenhum. Os confederados lutaram para manter a escravidão. E o motivo da guerra continua a assombrar e dividir o país.

É a tese de Michael Gorra em “The Saddest Words” (as palavras mais tristes, ed. Liveright, 2020), sobre William Faulkner e a Guerra Civil americana. Não faltariam motivos para quem hoje quisesse cancelar o maior romancista americano do século 20 com base em suas declarações infames, incoerentes e nem sempre sóbrias.

Além de alguns dos romances mais geniais da história da literatura de todos os tempos, Faulkner também foi autor de cartas e frases que atestam posições contraditórias e muitas vezes indefensáveis sobre negros e a escravidão, a exemplo de quando equiparou supremacistas brancos à Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, como duas formas igualmente condenáveis de extremismo (vimos algo semelhante por aqui, recentemente, e conhecemos as consequências).

Quando, nos anos 1950, Faulkner pediu calma (“go slow”) aos advogados do processo de dessegregação do Sul dos Estados Unidos, o destemido James Baldwin não hesitou em denunciar a desonestidade da proposta depois de mais de 200 anos de escravidão e 90 de semiliberdade para os negros. “Eles nunca admitiram seriamente a insanidade de sua estrutura social”, Baldwin retrucou, definindo por tabela a tragédia dos personagens de Faulkner.

A “palavra mais triste” é o verbo reiteradamente conjugado no passado. É a fantasia acintosa de “E o Vento Levou”. O que Faulkner dramatiza, ao contrário, é a consciência inexorável dessa impostura e dessa violência, a fantasmagoria de um mundo obsceno, convertido em negação repetida, idealização de um paraíso perdido, ruína e mito.

O passado com o qual toda uma sociedade se recusa a acertar as contas volta como maldição, trauma de um fracasso reincidente, o indefensável enterrado em cova rasa.

Não é preciso nenhuma pirueta intelectual para entender que, no Brasil, é à negação perpetrada pelos que já não tinham caráter nem coragem para assumir suas responsabilidades no passado, e aos quais agora faltam dignidade e competência para assumir suas responsabilidades no presente, que melhor corresponde a farsa de homogeneidade à qual os espectros de Faulkner tentam se agarrar, em vão, contra a força da modernidade e as evidências históricas.

Temos no Brasil uma legião de confederados escarrados, insepultos, lutando por uma fantasia de atraso, agarrados ao poder pela mentira. Faulkner é uma força da modernidade irrompendo das entranhas do racismo. Seus livros são uma enorme pedra de contradição no caminho dessa gente.


Texto de Bernardo Carvalho, na Folha de São Paulo

Períneo do calendário

 Dia 27 de dezembro é uma espécie de períneo do calendário festivo. Períneo, para quem não sabe —todo mundo sabe, só não sabe que se chama assim— é a pequena gleba no extremo sul do tronco e que lembra um estreito zíper, ou melhor, um zip-lock, ligando os órgãos sexuais a outro orifício originalmente não sexual, mas que também sido utilizado por boa parte da humanidade, desde sempre, para fins recreativos.

Dia 27 de dezembro: já passou o Natal, ainda não chegou o Réveillon. Sente-se cheiro do churrasco do vizinho. Nas ruas vazias um corredor solitário passa trotando. Com alguma sorte ainda se encontra um pescoço de peru embaixo de uma ameixa, no fundo do tupperware natalino. Eu gosto deste interregno.

Segundo o dicionário, “interregno” é, numa monarquia, o intervalo entre dois reis, “durante o qual o trono se conserva vago”. Dia 27, ninguém manda na gente, nem as atribuições familiares do Natal —ainda que remotas, em 2020— nem as reflexões do ano novo. “Tlec”: abre-se uma cerveja.

Sinto-me dentro daquela frase do John Lennon: “vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”. Li na internet. Será mesmo do Lennon? Do Guimarães Rosa é que não é, ou seria: “Vida é enbrecha de aporteira: no vai que num vai da rangência é que afrondeia a indância”. Se fosse da Clarice Lispector, seria: “A vida é como uma espinha que espremo em busca dessa substância etérea e telúrica, ao mesmo tempo seiva e pus: eu dedo-espinha, nasço-morro, espremo-exprimo”.

Não se ofendam os amantes do Rosa e os devotos da Clarice —há tempos deixou de ser uma escritora e tornou-se uma seita. Tipo um Raul Seixas da literatura. Imagino um dos fiéis levantando numa aula de Letras e gritando, como o fã num show pedindo “Toca Rauuuuul!”: “Cita Clariiiiiiiice!”. Nada contra Raul, nem contra Clarice. Dois gênios, sem dúvidas. Os seguidores é que costumam ser meio malas. O mesmo vale pro camarada festejado três dias atrás.

Por que falo de Raul, Clarice, Jesus? Porque é dia 27 de dezembro. Períneo. Interregno. Lombra do calendário. Se a polícia literária me desse um enquadro agora e o guarda perguntasse “vindo de onde e indo pra onde?!” eu teria que dizer: não sei. Então mostraria meu documento de cronista e ele me liberaria com um muxoxo.

Muitos anos atrás, o editor e compadre Paulo Werneck e seu primo, Bernardo Esteves, hoje repórter de ciência, na Piauí, encartaram na revista literária Ácaro um “Alvará Poético”. Era a concretização da licença poética, para ser recortada e levada na carteira, como um brevê, um CRM a desculpar voos semânticos e diagnósticos nem sempre cirúrgicos da realidade.

Fico pensando agora se o “Alvará Poético” poderia ser apresentado pelo tio do pavê, nesta época em que ele ofusca as luzes natalinas e os fogos do ano novo com seu (troca)brilho. Poderia o trocadilho ser enquadrado como um subgênero da poesia? Antonio Candido, no maravilhoso “O direito à literatura”, coloca os provérbios como uma forma de poesia. Por que não o seria o “é pavê ou pacomê?”, que traz em si, aliás, essas duas coloquializações da norma culta, tão ao gosto de um Mario de Andrade? (Ou, pelo menos, de um tio dele).

Deixo aí a importante indagação literária, filosófica, até, para os Bakhtins de botequim. Uma reflexão digna de um domingo como hoje, 27 de dezembro. Nos vemos do outro lado do períneo: 2021. Que saibamos fazer uso recreativo do buraco que nos espera.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

sábado, 26 de dezembro de 2020

Moro, voto, cinema: gentes e coisas que acabaram junto com o ano infame

 Odebrecht. A empreiteira campeã em corrupção mudou o nome para Novonor. Alguém imaginaria um nome mais horrível? Ou uma artimanha tão primária para disfarçar a ladroagem da empresa? Emilio e Marcelo Novonor, dois gatunos, continuam tratar os brasileiros como idiotas.

Oposição. Os partidos contra Bolsonaro se uniram para eleger um presidente da Câmara que apoie Bolsonaro incondicionalmente, impedindo a tramitação do seu impeachment. A casta política disputa a tapa com o Planalto e o Supremo a primazia em esculhambar a República.

Alcolumbre. Foi do anonimato ao ridículo num estalar de dedos. Apoiou Bolsonaro para se reeleger presidente do Senado e eleger o irmão prefeito de Macapá —e ambos se estatelaram justamente porque Bolsonaro os apoiou. Como consolo, ganhou o tão cobiçado troféu de paspalho do ano.

Silvio Santos. Completou 90 anos e se consolidou como caricatura do empresariado pátrio. Está grudado no Estado como craca; incensa os governantes irrestritamente; difunde o baixo nível mais abjeto; topa tudo por dinheiro; chegou ao requinte de pôr o genro para endeusar o presidente dia e noite; tem-se em alta conta, é claro: “Dou empregos!”.

Voto. Ao somar as abstenções com nulos e brancos, constata-se que 38% dos aptos a votar não o fizeram nas eleições municipais. É um recorde. Repetiu-se até cansar que os eleitores minguaram devido à peste. É meia verdade: a participação nas eleições vem caindo no Brasil desde 2008.

O fenômeno é mundial. Para que votar, se os partidos traem os eleitores e não resolvem problemas? Mas o número de votantes aumentou em duas eleições recentes, concomitantes do populacho: a chilena, no ápice de meses de agitação pela Constituinte; e a americana, simultânea ao levante contra o racismo, a polícia e Trump.

Doria e Covas. Arrocharam os alquebrados de 60 a 64 anos. Também eles terão que pagar pelo trem, o ônibus e o metrô. Com grande coragem, a dupla tucana deixou passar as eleições e esperou o Natal para apunhalá-los pelas costas. Covas aumentou o próprio salário em 46%. De fato, votar pra quê?

Revolta. Coisa de povos atrasados. Aqui, estamos satisfeitos com nossa ordem desordenada e progresso a passo de cágado: o voto nos basta. Mas como a crise é grave, é preciso, com urgência, não fazer absolutamente nada —a não ser falar, falar sem parar até que as palavras percam todo sentido.

Radicalismo. O presidente do PSOL, Juliano Medeiros, disse que o partido “está ressignificando a radicalidade”. Huummm... Está bem cotado para o prêmio Embuste Vernáculo, concedido por Madame Natasha a iniciantes na arte de aderir.

Sergio Moro. Descolou uma boca numa empresa americana que lhe deposita na conta um salário mensal estimado em R$ 110 mil. A hipocrisia é do jogo; já a insistência em dizer que combate a corrupção é má consciência de quem trabalha pelo dinheiro, mas se acha herói. Vide Millôr: desconfie de quem lucra com seu ideal.

Testes. Os países que melhor protegeram seus povos da peste aplicaram em massa testes para detectar o coronavírus. Não só isso: os contaminados eram isolados e monitorados.

No Brasil, os kits de testes foram comprados, enriqueceram os espertalhões de sempre, são aplicados só a quem paga e apodrecem sem que o povo tenha acesso a eles.

A responsabilidade é do presidente, do capadócio à frente do Ministério da Saúde e dos governadores. Mas ninguém deu um pio contra o descalabro.

Cinema. Sair de casa para ver um filme não tem nada a ver com vê-lo na televisão. Menos pela nitidez das imagens e do som, e mais pelo ritual. Pauline Kael resumiu-o assim: quando as luzes se apagam e todas as nossas esperanças se concentram na tela. No mais das vezes, a esperança se frustra, mas entretê-la é uma liberação. Oxalá se possa um dia ir ao cinema de novo.

Livraria Francesa. Fundada há 73 anos, no começo não destoava do entorno. Mas com o tempo virou um oásis no centro de uma São Paulo miserável, de crueldade e feiura estridentes. Com suas luzes de neon, era clara e ordenada: aqui os livros da Pléiade, ali os de bolso, lá os lançamentos.

A livraria da rua Barão de Itapetininga foi fechada pela indigência paulista e pela perda de prestígio da cultura francesa para a várzea globalizada. Urbana e histórica, a perda também é pessoal porque, como diz Proust, a recordação de certa imagem é a saudade de certo instante, e as casas, as ruas, as livrarias, são fugidias, hélas, como os anos.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Ela chamou a polícia por uma ameaça neonazista. Os neonazistas estavam dentro da polícia

 Seda Basay-Yildiz estava longe de casa, viajando a trabalho, quando recebeu um fax assustador no hotel: “Sua porca turca imunda, vamos matar sua filha”, dizia a mensagem.

Advogada alemã de origem turca, especializada em casos envolvendo terrorismo islâmico, Basay-Yildiz estava acostumada a receber ameaças da extrema direita. Mas essa, que chegou numa noite de agosto de 2018, era diferente.

Assinada com as iniciais de um antigo grupo terrorista neonazista, a mensagem continha o endereço de Basay-Yildiz, uma informação que não era pública devido às ameaças anteriores dirigidas contra ela. O remetente tivera acesso a um banco de informações protegidas pelo Estado.

“Entendi que eu precisava levar a ameaça a sério. Eles tinham nosso endereço, sabiam onde minha filha vivia”, Basay-Yildiz recordou em entrevista. “Por isso, pela primeira vez, chamei a polícia.”

A iniciativa não a tranquilizaria muito: uma investigação não tardou a mostrar que a informação havia sido obtida de um computador da própria polícia.

extremismo de direita vem ressurgindo na Alemanha de maneiras novas e também muito antigas, assustando um país que se orgulha de enfrentar seu passado assassino honestamente.

Um inquérito parlamentar conduzido ao longo de dois anos concluiu neste mês que redes da extrema direita penetraram extensamente os serviços de segurança alemães, incluindo as forças especiais de elite.

Cada vez mais, porém, a atenção se volta à polícia alemã, uma força muito mais espalhada, descentralizada e com supervisão menos rigorosa que os militares —e, avisam analistas, que tem impacto muito mais imediato sobre a segurança dos cidadãos no dia a dia.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a maior preocupação dos Estados Unidos, seus aliados e dos próprios alemães foi que a força policial do país nunca voltasse a ser militarizada, politizada ou instrumentalizada por um regime autoritário como a Gestapo.

O policiamento passou por uma revisão fundamental na Alemanha Ocidental após a guerra, e hoje os recrutas da polícia em todo o país são ensinados com detalhes minuciosos sobre o legado vergonhoso da polícia sob o regime nazista —e como isso informa a missão da polícia hoje.

Mesmo assim, a Alemanha vem sendo assolada por revelações sobre policiais em diferentes pontos do país que formaram grupos baseados numa ideologia comum de extrema direita.

“Sempre torci para que fossem apenas casos individuais, mas agora eles estão em número grande demais para isso”, comentou Herbert Reul, ministro do Interior da Renânia do Norte-Vestfália, o estado mais populoso do país, onde 203 policiais estão sob investigação por ligação com incidentes de extrema direita.

Para Reul, o alarme soou em setembro, quando foi descoberto que 31 policiais de seu estado compartilharam propaganda neonazista violenta. “Foi quase uma unidade policial inteira, e descobrimos por puro acaso”, disse Reul. “Fiquei chocado. Isso não é algo trivial.”

“Temos um problema com o extremismo de direita”, afirmou. “Não sei até onde vai seu alcance no interior das instituições. Mas, se não o combatermos, vai crescer.”

O extremismo de direita vem crescendo a cada mês.

Os 31 policiais em questão foram suspensos em setembro por compartilharem imagens de Hitler, memes de um refugiado em uma câmara de gás e um negro sendo abatido a tiros. O chefe da unidade havia participado do chat.

Em outubro um grupo de chat racista com 25 participantes foi descoberto na polícia de Berlim depois que um policial soou o alerta, frustrado porque seus superiores não estavam tomando uma atitude. Em separado, seis cadetes foram expulsos da academia de polícia de Berlim por terem minimizado o Holocausto e compartilhado imagens de suásticas em um grupo de chat que tinha 26 outros membros.

Uma delegacia de polícia na cidade de Essen, no oeste do país, foi invadida em novembro depois que imagens de munição e bancos dispostos para formar suásticas foram encontradas em um bate-papo no WhatsApp.

Na semana passada foi descoberto um chat violento de extrema direita com quatro policiais nas cidades de Kiel e Neumunster, no norte da Alemanha. Munições e memorabília nazista foram descobertas em operações de busca e apreensão na casa de dois policiais.

Muita atenção tem sido voltada ao estado de Hesse, onde vivem Basay-Yildiz, residente em Frankfurt, e vários outros alvos de alto perfil de ameaças neonazistas.

Seda Basay-Yildiz está intimamente familiarizada com a discriminação na Alemanha.

Quando ela tinha 10 anos, seus pais, trabalhadores turcos com estadia temporária na Alemanha, levaram Seda com eles para servir de intérprete quando quiseram contratar seguro para seu carro. O vendedor se negou a atendê-los. “Não queremos estrangeiros”, disse a eles.

“Depois daquilo, decidi que queria saber que direitos eu tenho na Alemanha”, contou Basay-Yildiz. Ela foi à biblioteca, identificou um órgão junto ao qual registrar queixa e conseguiu para seus pais o seguro que eles procuraram.

Assim descobriu o que queria fazer na vida.

Basay-Yildiz ganhou destaque como advogada quando representou os familiares de um vendedor de flores turco abatido a tiros ao lado de sua barraca de flores. Ele foi a primeira vítima do National Socialist Underground, conhecido como o NSU, grupo terrorista neonazista que matou dez pessoas, nove das quais imigrantes, entre 2000 e 2007.

Forças policiais em toda a Alemanha atribuíram os crimes a imigrantes, deixando de reconhecer que os responsáveis eram neonazistas procurados pela polícia, enquanto informantes pagos pelo serviço de inteligência ajudaram a ocultar os líderes do NSU. Os arquivos sobre os informantes foram destruídos pelo serviço de inteligência dias depois de a história vir a público com grande impacto em 2011.

Após um julgamento que se prolongou por cinco anos e só terminou em julho de 2018, Basay-Yildiz conquistou uma indenização modesta para seus clientes, mas não aquilo que eles mais queriam: respostas.

“Qual era o tamanho dessa rede e quais instituições do Estado tinham conhecimento dela?”, perguntou Basay-Yildiz. “Depois de 438 dias no tribunal, ainda não sabemos.”

Três semanas após o término do julgamento, ela recebeu a primeira ameaça por fax. As ameaças não pararam de chegar desde então. Basay-Yildiz representa precisamente o tipo de mudança na Alemanha que a extrema direita rejeita profundamente.

Mas ela não é a única. Computadores policiais em Hesse já foram usados para buscar dados sobre a humorista turco-alemã Idil Baydar e sobre uma política de esquerda, Janine Wissler —ambas receberam ameaças. O presidente da polícia no Estado deixou de divulgar o fato durante meses. Em julho, foi forçado a renunciar a seu cargo.

A maioria das ameaças, incluindo as dirigidas a Basay-Yildiz, vêm na forma de emails assinados “NSU 2.0”.

Desde 2015 o governo estadual de Hesse vem investigando 77 casos de extremismo de direita em sua força policial. No verão deste ano (que acontece no meio do ano no hemisfério norte) foi nomeado um investigador especial cuja equipe estuda unicamente as ameaças enviadas por email.

Quando os investigadores descobriram que os dados de Basay-Yildiz tinham sido buscados em um computador da primeira delegacia de Frankfurt uma hora e meia antes de ela receber a ameaça, o policial logado nesse momento foi suspenso. A delegacia inteira foi revistada, e computadores e celulares foram analisados, levando à suspensão de outros cinco policiais. Mais tarde, esse número chegou a 38.

Basay-Yildiz não se sente mais tranquila por isso.

“Quando você tem 38 pessoas, você tem um problema estrutural”, ela explicou. “E se você não entende isso, nada vai mudar.”

Outros também receiam que a infiltração das fileiras policiais leve a perigos especiais para a Alemanha, incluindo a subversão sorrateira de instituições de Estado cuja finalidade declarada é servir e proteger a população.

“Esses chamados à resistência feitos a servidores públicos constituem uma tentativa de subverter o Estado por dentro”, disse Stephan Kramer, diretor da agência de inteligência do estado da Turíngia, no leste. “O risco de infiltração é real e precisa ser levado a sério.”

Como as Forças Armadas, a polícia também vem sendo agressivamente cortejada pelo partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD) desde sua fundação em 2013. Quatro dos legisladores do AfD no Parlamento federal são ex-policiais –quase 5%, contra menos de 2% no caso de todos os outros partidos políticos.

A penetração das instituições do Estado, especialmente as que portam armas, tem sido parte da estratégia do AfD desde o começo. Especialmente no leste do país, uma vertente mais radical do AfD já fez incursões profundas na força policial.

Björn Höcke, professor de história que se tornou político incendiário e lidera o AfD na Turíngia, já apelou várias vezes a policiais e agentes de inteligência para resistirem às ordens do governo, que ele descreve como “o verdadeiro inimigo da democracia e liberdade”.

Há a questão de se a polícia é capaz de policiar-se adequadamente. Basay-Yildiz destaca que, apesar da existência de provas fortes no caso dela, os responsáveis não foram identificados.

O policial que estava conectado à estação de trabalho usada para acessar o endereço residencial de Basay-Yildiz e os nomes e aniversários de sua filha, seu marido e seus pais fazia parte de um grupo de WhatsApp que incluía meia dúzia de policiais que compartilhavam conteúdos racistas e neonazistas.

Uma imagem mostrava Hitler sobre um arco-íris com a legenda “boa noite, judeus”. Havia imagens de prisioneiros em campos de concentração e imagens zombando de refugiados afogados e pessoas com síndrome de Down.

Os policiais foram suspensos e interrogados. Eles apresentaram vários álibis —disseram que os pedidos de informação são tão numerosos que não conseguiam se recordar de terem acessado as informações. Ou que muitos policiais podem usar o mesmo computador.

A investigação ficou paralisada.

“Foi um absurdo”, disse Basay-Yildiz. “Só posso supor que não deram a esses suspeitos o mesmo tratamento que dariam a outros, pelo fato de serem colegas de trabalho.”

Para Basay-Yildiz, mais assustador que as ameaças é sua impressão crescente de que a polícia vem protegendo extremistas de direita em suas fileiras.

Nunca sequer lhe mostraram fotos dos policiais em questão, que permanecem suspensos com remuneração reduzida, ela disse.

As ameaças continuaram a chegar, às vezes a cada poucos meses, às vezes semanalmente. Basay-Yildiz se mudou com sua família para outro bairro. Seu novo endereço foi ainda mais fortemente protegido que o antigo. Computadores policiais comuns não podiam mais acessá-lo. Por 18 meses ela se sentiu em segurança.

Mas isso mudou no início deste ano: aqueles que a estavam ameaçando identificaram seu novo endereço e fizeram questão de comunicar isso a ela.

Desta vez a polícia voltou e disse que o endereço dela não havia sido acessado internamente.

“O círculo de pessoas nos serviços de segurança que têm acesso a minhas informações de contato é muito restrito”, ela destacou. Seria de se imaginar que isso facilitaria a identificação do responsável. Mas Basay-Yildiz não está otimista.

“Moro em Hesse”, ela explicou. “Todos vimos o que aconteceu aqui.”

Em fevereiro passado um atirador de extrema direita matou nove pessoas de origem imigrante em dois bares de imigrantes na cidade de Hanau, perto de Frankfurt.

Em junho de 2018, Walter Lubcke, político regional que defendera a política da chanceler Angela Merkel para refugiados, foi baleado fatalmente em frente à sua casa, duas horas a nordeste de Frankfurt, depois de receber ameaças de morte havia anos.

Basay-Yildiz recebeu a ameaça mais recente em 11 de novembro. A mensagem começou com “Heil Hitler” e terminou com “Diga oi à sua filha por mim”.

Quando ela denunciou a ameaça à polícia, o parecer desta foi que ela e sua filha não correm perigo concreto.

“Mas não posso mais confiar nisso”, disse Basay-Yildiz. “É um fator enorme de insegurança: em quem posso confiar? E a quem posso recorrer se não posso confiar na polícia?”


Reportagem de Katrin Bennhold, para o The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo. Tradução de Clara Allain. 

'Canções de Natal para Aglomerar na Pandemia' tem hits para este ano

 Mesmo com a alta dos casos de Covid-19, a maioria dos brasileiros planeja burlar as recomendações de ficar em casa e encontrar familiares para trocar presentes e perdigotos contaminados.

Embora mal saibam o real motivo da data, muitos não conseguem passar um ano sequer sem se aglomerar com parentes dos quais não gostam. Tudo para reclamar do arroz com passas e das meias que ganhou de amigo secreto.

Já que a tragédia é inevitável e sempre pode piorar (afinal, ainda estamos em 2020) as gravadoras resolveram pegar carona nos encontros de fim de ano para relançar sucessos natalinos.

É o álbum “Canções de Natal para Aglomerar na Pandemia”, com os hits que todos já conhecem, mas com as letras adaptadas especialmente para quem quer festejar em tempos de Covid-19.

Confira alguns deles:

“Noite Infeliz”
Noite infeliz! Noite infeliz!
Aglomerou, contaminou
Cloroquina não vai funcionar
E o vovô vai ter que internar
Só rezando, ó Jesus
Não tem mais vaga no SUS

“Bate o Sino”
Bate o sino, que medinho
Será que é alguém?
É o seu tio bolsominion
Cidadão de bem
Terra Plana, cloroquina,
Não quer vacinar
Não usa máscara, não fica em casa
E quer te abraçar

“Pica, Pica Agulhinha”
Pica, pica, agulhinha
Vem aqui me imunizar
Já vou pra fila, vou de ré
Nem que eu vire um jacaré

"Então é Natal"
Então é Natal
o que você fez?
Pediu pelo Rappi
um frango xadrez.
Então é Natal
não pode encontrar
Só tem Netflix
pra maratonar
Então é Natal
Celebrar pelo Zoom
Que seja melhor
2021

Aviso:
Devido à pandemia, a colunista teve que suspender as aulas de música. Por isso, as canções apresentam erros crassos de rimas e métricas. Abram o coração para o espírito de Natal e perdoem-na. Feliz Natal a todos. Fiquem em casa.


Texto de Flávio Boggio, na Folha de São Paulo

sábado, 19 de dezembro de 2020

O Natal é a besta negra dos colunistas, é um martírio, um calvário, uma cruz

 Mais vale ser honesto e admitir que o Natal anda a transtornar colunistas há milênios.

Não admira que a maior parte deles tenha pouco apreço pela quadra. Talvez o leitor não saiba disto, mas a legislação impede que os colunistas ignorem o Natal. Há que escrever uma coluna sobre o Natal todos os anos. E 2020 anos disso acabam por cansar, evidentemente. O Natal é a besta negra dos colunistas, é um martírio, um calvário, uma cruz.

No fundo, o Natal é a Páscoa dos colunistas. Enquanto o resto do mundo celebra um nascimento, eles agonizam. Por um ângulo novo, um ponto de vista inesperado, uma opinião surpreendente e inédita sobre a data. E o mais incrível é que ainda nenhum deles se tinha lembrado de falar da figura que os outros fazem quando escrevem, anualmente, sobre o Natal. É aqui que eu entro.

Basicamente, há dois tipos de coluna natalícia: a moralista e a moralista que tenta moralizar os moralistas para que deixem de moralizar. Na primeira categoria estão todas as colunas alguma vez escritas sobre o Natal; na segunda encontra-se esta.

A coluna natalícia moralista costuma apresentar duas ou três críticas recorrentes. Uma diz respeito ao consumismo acéfalo das pessoas. Tanta gente nos shoppings, mas que maçada, uma multidão carregada de sacos, e tal. Trata-se de uma crítica pertinente. O consumismo acéfalo dos outros é repugnante, sobretudo na medida em que me impede de praticar o meu. Milhares de pessoas embrenhadas no seu consumismo acéfalo dificultam-me a tarefa de consumir acefalamente, que é extremamente retemperadora da alma (o que raras vezes se admite).

consumismo acéfalo não merece a má imprensa que tem.

Outra crítica: a vontade artificial de sermos bondosos, que é tão hipócrita porque dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano.

A verdade é que a preocupação dos colunistas com a hipocrisia é igualmente hipócrita, porque também dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano. As pessoas são hipócritas durante todo o ano (eu, pelo menos, sou), mas os colunistas, por incompetência ou má vontade, só assinalam a hipocrisia natalícia.

Pois eu digo: que se danem os moralistas. Ou, usando de hipocrisia natalícia: bem-aventurados sejam os moralistas. Mas que fique claro que, hipocrisias à parte, eu quero mesmo que eles se danem.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo.