segunda-feira, 30 de julho de 2018

Espiritualidade contemporânea

A espiritualidade está na moda. Muita gente diz que tem espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é legal, não é materialista, mas nada tem a  ver com as barbaridades cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista light. Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$ 100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do trabalho físico.
Poderia lavar de graça o banheiro da própria casa, mas esse banheiro não teria o mesmo valor do banheiro do mosteiro chique. Trata-se de um day temple e não day spa.

Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação entre espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas do cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.
O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina que nos fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições religiosas à mão.

Mas um fato é necessário reconhecer, antes de tudo: as formas mais consistentes de busca espiritual estão associadas a temas concretos da vida e não a ET, Jedis, Thor ou bruxinhas de fim de semana.
A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da condição humana e da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não apenas do deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de “errado” em sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e por aí vai).
Em termos contemporâneos, acho que três tópicos, entre outros possíveis, se prestam a uma inquietação espiritual. Um diretamente ligado ao mundo corporativo, mas que o transcende, outro ao avanço da longevidade, e outro mais derivado do impacto do avanço da inteligência artificial.

As grandes tradições espirituais sempre falaram de sofrimentos reais e não de modas culturais, como no caso que descrevi acima (day temple, Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais avassaladores é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto, repousar é justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço. 
A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um recurso a ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas variadas de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana “ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente” punida com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma nova forma de doença mental.
Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem como um discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia (24/7, como dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em direção ao sucesso eterno.
Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar de forma desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma melhor gestão do karma.
Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma desconfiança profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma empreitada para a prosperidade.
Talvez uma das maiores formas de prosperidade seja a longevidade. Produto de alto valor no mercado das utopias. Palestras de todos os tipos vendem a longevidade como algo que será, um dia, vendido nas prateleiras do free shop. A ideia é de que a morte será eliminada ou adiada 500 anos. 
Do ponto de vista espiritual, sendo a morte um dos temas que mais despertam indagações, a (quase) eliminação dela, ou a transformação dela em “opção”, traria elementos muito significativos para as inquietações humanas. Por que optar por virar pó (morrer) quando você poderia viver pra sempre? É bom mesmo estar consciente de si para a eternidade ou por 500 anos? Temo que não. A primeira reação minha seria uma profunda melancolia e tédio.
Outro tópico avassalador é a entrada da inteligência artificial no universo humano. Aqui a experiência mais assustadora será a da humilhação cognitiva que vamos experimentar. A humilhação sempre foi um alimento espiritual poderoso.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

terça-feira, 24 de julho de 2018

Cova Rasa - O Brasil e o assassinato de militantes de direitos humanos

COVA... 

O Brasil é o país que contabilizou o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e socioambientais em 2017. Os dados são do relatório anual da Global Witness, organização internacional fundada em 1993, que será lançado nesta terça (24). Segundo o levantamento, 207 ativistas foram mortos em cerca de 22 países.

...RASA 

No Brasil foram contabilizados 57 assassinatos. Nas Filipinas, segunda colocada, foram registradas as mortes de 48 pessoas, o maior número já documentado em um país asiático. O México e o Peru tiveram um aumento nos assassinatos com relação a 2017: de três para 15 e de dois para oito, respectivamente.

Reprodução de parte da coluna de Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo

Eu me sinto anão da filantropia perto de Bill Gates, diz Elie Horn

Prestes a completar 74 anos neste mês, o bilionário Elie Horn quer fazer os ricos doarem mais e melhor.
"Quero chacoalhar a sociedade", diz o dono da Cyrela, que assumiu o compromisso público de destinar para filantropia 60% de sua fortuna, estimada em US$ 1 bilhão (cerca de R$ 3,9 bilhões).
Movido por espírito religioso de fazer o bem e de não se deixar escravizar pelo dinheiro, ele admite que se sentiu mal quando entrou para o clube dos bilionários com a abertura de capital da Cyrela em 2005. As ações da empresa passaram a valer 30 vezes mais em um ano. "Não foi por mérito meu."

Que razões levaram o senhor a aderir ao The Giving Pledge?
Faz 20 anos que me decidi. O The Giving Pledge faz três. Por quê? Faz muito bem à alma, a terceiros e também a você, neste mundo e no outro. Quero ser rico na eternidade. São valores familiares, judaicos, de não trabalhar só para si, de devolver à sociedade.
O que move o senhor?
O espírito do bem, da justiça e do significado do dinheiro. Ou você escraviza o dinheiro, ou é escravizado. Se ajudar alguém, você escravizou o dinheiro. Se deixa para usufruir o luxo, é escravo.
Como foi em família a decisão de doar parte da herança que seria dos seus filhos?
Pensei em doar 100%, como meu pai. Mas um guru cabalista me aconselhou a doar 60%. Meus filhos falaram: "Papai, faz isso em vida". Não é igual depois da morte. Tirar do bolso e dar é difícil. Na hora que você promete doar, o dinheiro não é mais seu. Se não fizer, é ladrão.
Seu pai é seu maior exemplo?
Ele fazia o bem por convicção e cultura. Faleceu faz 38 anos e senti o dever de fazer o bem para elevar a alma dele. Espero que a tradição se mantenha com filhos, netos, tataranetos.
Que legado quer deixar?
Espero cutucar a sociedade para fazer o bem. Se todos os ricos do mundo ajudarem os pobres, vai ter justiça, equilíbrio e um mundo melhor.
É mais difícil cutucar ricos em um Brasil tão desigual?
É óbvio que o Brasil precisa mais do que os Estados Unidos, onde existe cultura de doação.
Como é fazer esse movimento aqui?
Temos um grupo de pessoas inteligentes e competentes que decidiram fazer um guarda-chuva do bem. Uma plataforma que vai abarcar dez causas: combater exploração sexual de crianças e adolescentes, primeira infância, saúde, deficiência, combate à pobreza, educação, meio ambiente, idosos, ética na política, civismo.
Tem também cultura de doação para ensinar a não deixar dinheiro na gaveta.
Como se formou este grupo para investir na plataforma?
Eles me chamaram e eu aderi na hora. A ideia é unir forças para destinar centenas de milhões de reais para causas. A fundo perdido. O modelo está sob análise. Não posso citar nomes ainda. São grandes representantes do PIB dispostos a atuar para poder chacoalhar o país.
Como homem de negócios, o que agrega à filantropia?
É importante não só doar, mas doar bem. A plataforma tem que ser eficiente, ter visão estratégica, acompanhar a aplicação dos recursos e ser ponte entre doador e gestor.
Queremos ajudar as pessoas a doarem mais e melhor. Basta gostar de fazer o bem para ser do clube. Muitos fazem filantropia, mas em um modelo em que o impacto é limitado, quando pode ser maior.
Quando o senhor se tornou um filantropo?
Comecei no colégio arrecadando cruzeiros para ajudar o moço da esquina.
Quando fazia negócios, eu vendia um apartamento por 100 e o cara queria pagar 90. Fazia um acordo: paga 90 e a diferença vai para caridade, que o comprador escolhia. Todo mundo aceitou, menos um. Um bandido.
Qual foi sua primeira causa?
É botar Deus na terra, mas não vai estar entre as dez da plataforma. Convencer os jovens de que Deus existe é uma causa importante, mas não é "cool". Falar em religião hoje não é bom por causa dos extremistas. Sem extremismo faz muito bem.
Quais são as causas mais importantes na sua vida?
Tenho duas: o trabalho e a filantropia. Detesto passar tempo sem fazer nada, me frustra. Tem também a mensagem de dar valor ao meu tempo. Sentir-se inútil é uma desgraça.
Não pretende se aposentar?
"Never" [nunca]. O importante é produzir, dar significado ao dinheiro, ao tempo. Se eu me aposentar, vou ficar gagá e encher minha esposa. Eu não me perdoaria se ficasse inativo e ineficiente.
Por que criou o Instituto Liberta para atuar no combate à exploração sexual infantil?
A ideia é mexer com a sociedade brasileira para conscientizar as jovens, os velhos. É tabu, um campo minado.
Ninguém quer associar sua marca a abuso sexual infantil?
Foi a razão que fez a gente assumir a causa. Não é "cool". No Brasil, temos muitas meninas abusadas, exploradas. Nossa ideia é ajudá-las a sobreviver, para que o mal não se repita. Temos feito visitas às escolas do estado de São Paulo, falando com professores para que sejam vigilantes e contatando 2,5 milhões de crianças.
O instituto faz campanhas de conscientização, seminários. Temos vários parceiros, trabalhos no Amazonas e no Pará.
Como seleciona o que vai apoiar?
Tenho vergonha de falar não. Alguém me ensinou que se não falar, estou morto. Então, hoje falo. Não quero ver coisas novas. As causas que tenho já são bastante grandes.
Que experiências o senhor teve ao visitar projetos?
Fui para a ilha de Marajó e perseguimos uns bandidos que estavam com umas meninas em outro barco. Quase demos um flagrante. Já era convicto sem ver, agora que vi sou escravo da causa. Sinto aqui [aponta o coração]. Deu um significado mais forte para minha luta.
Esteve também no Nordeste?
Sim. Adorei. Visitei a ONG Amigos do Bem. A Alcione [Albanesi, fundadora] vai fazer parte da plataforma. Essa mulher faz milagres. É pai, mamãe, vovó, diretora e presidente para 60 mil pessoas. Dá educação, cultura, comida.
Ela me apresentou para mil crianças, que me deram 2.000 beijos. Passei dois dias lá e nunca senti tanto amor na vida. Vamos ajudá-la a ter mais doadores, se Deus quiser.
Pesquisas mostram que o brasileiro pobre, proporcionalmente a sua renda, doa três vezes mais do que o rico. Por quê?
No meu entender, falta comunicação, convencimento. A minha tese é: Deus existe, estamos aqui para ser testados. Eu quero passar no teste.
Como é o seu contato com grandes filantropos como Bill Gates?
Lá fora, Bill Gates e Warren Buffett vão doar 99% de suas fortunas para caridade. São exemplos.
Nos EUA, eu me sinto um anão. Sou o menorzinho deles. A gente acha que faz muito e quando chega lá vê que não faz nada. Isso ajuda a nos convencer a fazer muito mais.
O senhor convenceu outro brasileiro a aderir ao The Giving Pledge?
Estou tentando. Falei com alguns. Um ia aceitar, mas não aceitou. Um outro, a mulher não deixou.
Mas não desisto. Acho que neste ano vou ter a chance de convencer um ou dois. Quero criar o The Giving Pledge Brasil em outras condições: em vez de doar ao menos 50%, aqui o percentual seria de 20%.
Faltam incentivos fiscais ou maior taxação sobre herança, como nos EUA?
Alguns dizem que sim, outros não. O problema é ter vontade. No Brasil, os dividendos são isentos de imposto de renda. É um dinheiro que você pode doar, já pagou o imposto. Todo meu dinheiro [para filantropia] provém de ações.
Foi com a abertura de capital da Cyrela em 2005 que o senhor entrou de vez para o clube dos bilionários?
No começo, eu me senti mal. Depois, me acostumei. Como a Cyrela ficou em primeiro lugar no setor por 15 anos, aconteceu. Sabe por quê? É um teste de Deus. Se você ganhar 10 ou 100, vai doar na proporção.
Minhas ações subiram 30 vezes naquele ano. Isso não é normal. Não é meu mérito, com certeza. Foi um teste para ver se eu correspondia.
O senhor passou no teste?
A gente nunca passa, sempre se pode fazer mais.
No Brasil, quem lhe inspira?
Amador Aguiar [fundador do Bradesco] fez uma coisa maravilhosa, a Cidade de Deus, uma escola por onde já passaram mais de 500 mil alunos. É um orçamento gigante. O trabalho dele é excepcional. E a Fundação Bradesco é sócia do banco. Uma coisa importante.
Como começou seu império na construção civil?
Havia um corretor que vinha na minha casa oferecer apartamento para meu pai e meu irmão. Comprava-se para pagar em seis meses, sem correção monetária. Como havia inflação alta, se vendia no outro dia com lucro grande. Sem dinheiro. Assim comecei a conhecer o ramo. Tudo que comprava, eu vendia.
Sou persistente, não sou bandido. As pessoas confiam. Para ser um bom corretor, não pode mentir. E sou workaholic.
Qual é o seu maior orgulho como self-made man?
Sou um investidor a longo prazo. Lá em cima, não vão me perguntar se eu fui bom ou mau empresário, mas se fiz o bem.
Meu sonho é que lembrem de mim como um homem que tentou fazer o bem. Quero um mundo sem pobreza, injustiça, violência, maldade.
O mundo melhorou ou piorou em relação ao que o senhor nasceu?
Não sei. Nasci na Síria e saí de lá quando tinha seis meses. Cheguei [ao Brasil] com zero tutu, no barco na quarta classe, passagem paga por parentes, que deram US$ 10 mil dólares para meu pai começar a trabalhar. E ele se fez.
O senhor acompanha a situação na Síria. Apoia refugiados?
Todas as causas são boas. Toda criança tem que ser ajudada. Já ajudei refugiados, mas não é uma causa da plataforma. Não dá para fazer tudo.
O que o Brasil significa para o senhor?
É o país que me acolheu, é tudo para mim. O ser humano no Brasil é muito bom. Tem alma nobre, gentil.
Por que o Brasil não é ainda o país que poderia ser?
Eu tenho algumas ideias radicais. Faria uma anistia geral. Partiria da estaca zero, para começar tudo de novo. Não gosto de falar de política. Não apito nada e ninguém vai me ouvir.
Para ser político tem que falar bonito, saber convencer. Sou a favor da liberdade, do capitalismo, do trabalho. Sem o setor privado o país não anda.
O senhor fala publicamente sobre o diagnóstico de Mal de Parkinson?
Não tenho vergonha. Estou doente. Deus mandou por alguma razão. Aceito. Fiquei revoltado quando descobri em 2012, mas a doença está controlada por remédios.
Todo dia, faço na marra cerca de duas horas de ginástica, natação, fisioterapia e karatê. Perco todas as lutas (risos). É gostoso. Você não para de lutar e de se defender. Uma sensação boa de estar vivo.
Vai ganhar a luta pela filantropia?
Com certeza. Eu não desisto. E tem o seguinte: na hora que você faz o bem, Deus é obrigado a ajudar.

Elie Horn, 73
Formado em direito, o empresário nascido na Síria chegou ainda bebê ao Brasil. É fundador da incorporadora e construtora Cyrela e criou o Instituto Liberta, que combate a exploração sexual de crianças e adolescentes. Tem 3 filhos e 3 netos

O que é The Giving Pledge
O Compromisso de Doação é um esforço capitaneado por Bill Gates e Warren Buffet para que indivíduos e famílias mais ricas do mundo comprometam a destinar mais da metade de sua riqueza a causas filantrópicas. Conta hoje com 183 adesões de bilionários de 22 países e apenas um representante do Brasil

Entrevista a Eliane Trindade, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Fernanda Porto: Vilarejo Íintimo

Uma personalidade distorcida

"A ré tem uma personalidade distorcida, voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, o que pode ser constatado, no tocante ao Judiciário, por ter descumprido uma das medidas cautelares impostas pela 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (proibição de frequentar manifestações e protestos), o que acarretou a decretação de sua prisão preventiva (vide fls. 4.522/4.523) ["¦]. Já o desrespeito ao Poder Executivo pode ser evidenciado, por exemplo, pelo enfrentamento aos policiais militares nas passeatas e ao 'Ocupa Cabral' (é inacreditável o então governador deste estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido). O desrespeito ao Poder Legislativo, por sua vez, pode ser verificado, por exemplo, pelo 'Ocupa Câmara'."
Este é um trecho da sentença do juiz Flavio Itabaiana contra 23 manifestantes que participaram das manifestações de 2013 e 2014, condenando-os a penas de cinco e sete anos de prisão em regime fechado por formação de quadrilha, corrupção de menores, dano qualificado e lesão corporal.
Nenhum policial foi condenado por incitação à violência, por infiltração em grupos de manifestantes com o intuito claro de iniciar confrontos, por lesão corporal contra manifestantes que ficaram cegos ou tiveram ferimentos graves.
Mas há uma condenação de manifestantes que lutavam contra aumentos abusivos de tarifas de transportes, contra o esvaziamento da democracia parlamentar, contra os gastos com a Copa do Mundo e a corrupção.
De toda forma, a pérola escrita pelo referido juiz expõe, de forma didática, a matriz do pensamento autoritário nacional, assim como o caráter meramente formal da "democracia" que impera em nossas terras.
Ao que se vê, na sociedade que o senhor Itabaiana defende, alguém que desrespeita "poderes constituídos", que se manifesta em frente à casa de um governador corrupto, que não admite ser limitado em seu direito de se manifestar e protestar só pode ter uma "personalidade distorcida".
Nesse caso, podemos nos perguntar o que seria uma personalidade não distorcida. Alguém para quem os ditos Poderes nunca devem ser criticados de forma aberta e através de manifestações populares? Alguém que faz deferência quando um governador passa na rua?
No entanto, a "personalidade distorcida" em questão é exatamente aquela que a democracia produz, ou deveria produzir. Como dizia Condorcet na aurora da Revolução Francesa: "A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar".
Um povo indócil faz barricada, impede o direito de ir e vir dos governantes, quebra vidraças de banco quando precisa se fazer ouvir, pois sabe que para um poder surdo essa é a única linguagem compreensível.
Esse poder só ouve àquilo que não o coloca em questão, a quem, no fundo, procura reforçá-lo. Ou seja, a capacidade de se colocar contra o poder, de não se submeter à violência estatal e ao seu braço armado, é algo que só existe naqueles que entenderam o que afinal está em jogo quando se fala em emancipação e liberdade social.
A democracia nunca viu problemas em aceitar essa indocilidade do povo, pois ela sabe que o poder deve temer o povo que ele julga representar, e não o inverso.
Mas, no Brasil, uma das funções principais do Poder Judiciário é procurar, de todas as formas, criminalizar a revolta, nem que seja utilizando um vocabulário digno do psicologismo mais rasteiro à serviço da servidão.
Esses 23 manifestantes que correm o risco de prisão a partir de agora são claramente presos políticos.
À parte, na morte acidental de um cinegrafista por um rojão disparado por manifestantes —fato que merece uma análise isolada—, o único "crime" em questão é a existência política insubmissa.
Algo que em nossas terras parece ser cada vez mais imperdoável. Mas faz parte de um poder cada vez mais ilegítimo ser cada vez mais brutal contra todos aqueles que efetivamente o questionam.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A língua que nos separa

Dia desses, no Facebook, o linguista português Fernando Venâncio desabafou: “Poucas coisas me irritam tanto como o antibrasileirismo primário e militante que encontro por estas paragens”. Referia-se ao antibrasileirismo linguístico, marca bandeirosa da cultura lusitana. 
Qualquer escritor brasileiro que tenha lançado livros em Portugal nas últimas décadas (sou um desses) sabe o que Venâncio quer dizer. As portas que Jorge Amado escancarou de par em par no século passado se fecharam em algum momento sobre corredores cada vez mais estreitos e labirínticos.
Sim, é claro que muitos editores, críticos, jornalistas e outros portugueses esclarecidos insistem em furar com brio essas defesas. Infiltrando-se nas brechas, porém, os brasileiros que se expressam por escrito logo se veem escalados pelos leitores comuns d’além-mar como representantes de uma versão menor, tosca e corrompida da língua “deles”. Se soubessem cantar, dançar, contar piadas, temperando o verbo com aquele jeito de corpo que é sua maior —ou quem sabe a única— vocação, talvez pudessem ser levados a sério. Mas isso de escrever, francamente...
Nas palavras de Venâncio, há em Portugal uma “desavergonhada altanaria perante os pretensos ‘erros’ de que o português brasileiro estaria inçado”. O linguista vê esse sentimento integrado ao senso comum, cultivado por “gente visivelmente de poucas letras, e poucas luzes”. Refere-se a ele como “assustador”.
Eu prefiro o adjetivo “triste”. Assustador é constatar que um antibrasileirismo tão pimpão e ignorante quanto o luso viceja aqui também. Como reclamar do insulto de nos negarem em terra estrangeira o direito de gozar livremente de algo tão pessoal e profundo quanto a língua materna, sem ouvir sermões abestalhados sobre algum ideal platônico de gramática? Negamos a mesma coisa por conta própria, o que é bem pior.
Parte dessa dissonância é comum às línguas imperiais. A relação de amor e ódio entre o inglês britânico e o americano é tema do recém-lançado “The Prodigal Tongue” (A língua pródiga), de Lynne Murphy, linguista americana que mora e leciona na Inglaterra. Ela identifica em seus compatriotas um “complexo de inferioridade verbal” e, nos britânicos, o que chama de “amerilexofobia”, aversão esnobe a americanismos.
Nada tão diferente assim do que se vê no universo da língua portuguesa ou da espanhola. Ex-colônias crescidinhas e ex-impérios em queda vão sempre se emaranhar em teias complicadas de amor e ódio, admiração e desprezo. Contudo, vale atentar para a diferença que Venâncio, repetindo no post-desabafo o que já defendeu em livros, aponta entre os projetos linguístico-coloniais de Lisboa e de Madri.
“No Brasil, Portugal abandonou a língua portuguesa à sua sorte. E ainda bem! Pense-se na uniformidade lexical, gramatical e ortográfica que a Espanha impõe como ideal à América de fala espanhola”, escreve o linguista, concluindo que “o Português Brasileiro pôde desenvolver em invejável liberdade a sua norma, e vive bem nela”.
O texto termina exigindo, ainda que de forma jocosa, gratidão: “E venha daí um ‘obrigadinho’ a este Portugal que, oh felicidade, nunca teve um projecto linguístico, nem cultural, para o seu Império”. 
Muito bem, mas não estou tão certo de que o deus-dará cultural seja algo que devemos agradecer. Seria necessário investigar primeiro até que ponto se funda nele a ridícula autoestima linguística que leva o brasileiro médio a situar nosso português três degraus abaixo do português europeu, e este, pelo menos sete palmos abaixo do inglês.

Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

O que há de bom e de ruim em manter uma vida metódica e pontual

Escrevendo esta coluna em cima da hora pela enésima vez, ocorre-me que, para o brasileiro médio (ou ao menos aqueles com quem me relaciono), é preciso ter tido, pelo menos uma vez, um compromisso com hora marcada na Suíça, na Inglaterra ou no Japão para entender diferentes noções de pontualidade. Que, acredito eu, revelam diferentes jeitos de vida.
Na Suíça, especialmente no lado alemão, as coisas funcionam maravilhosamente bem. É de impressionar. Em minha primeira visita ao país, séculos atrás, eu, brasileiro, fiquei embasbacado ao ver na rua “bancas” de jornal sem jornaleiro.
Cada um pegava seu jornal (que só existia em papel, na época), colocava ali alguma nota de dinheiro (usava-se amiúde, então) e recolhia as moedas (o que são, mesmo?) de troco.
Tamanha precisão de comportamento se repete no respeito aos horários. Os compromissos são respeitados à risca, tudo funciona como, bem, um relógio suíço. Dos trens aos encontros pessoais.
Por falar em trens, lembrei-me do procedimento do metrô japonês de distribuir atestados aos usuários quando o trem perde a hora, como prova de que o atraso não foi culpa do cidadão, mas sim de algum incidente na linha (em geral, o suicídio de algum passageiro, que opta por dar um passo adiante pouco antes da chegada da composição).
Assim é no Japão: atrasos são insuportáveis e intoleráveis. Certa vez marquei encontro com uma amiga no hotel Imperial de Tóquio, onde me hospedava. Como estivesse pronto meia hora antes, decidi descer para um drinque no lobby —e a encontrei já ali, sentada, impassível como um anão de jardim. 
Japoneses chegam antes do horário, e esperam a hora marcada para dar o bote. Melhor perder meia hora como estátua do que a humilhação de porventura chegar alguns minutos depois.
Em Londres, para citar outro local de extrema pontualidade (“britânica”, se diz), aprendi a lição também muito tempo atrás. Na cidade para um compromisso com um grupo que sairia do hotel num transporte às 18h, meti-me pontualmente às 18h no elevador. Chegando ao lobby não encontrei mais ninguém. 
Se o marcado é sair às 18h, isso significa que às 18h o transporte engata a primeira e sai. E não que àquela hora as pessoas se encontrarão no lobby, muito menos no elevador.
Não consigo ter, espontaneamente, esta pontualidade vital (como pessoas que conheço, brasileiros de ansiedade nipônica). Mas bem que tento: não acho agradável chegar quando todos estão te esperando, abusando dos dez minutos de suposta tolerância divina. 
Chego a irritar-me quando, violentando minha calma natureza, estou ali até antes da hora marcada e tenho que esperar por outros enquanto fico remoendo, arrependido, o que eu poderia estar fazendo naquele tempo de espera.
E então reflito sobre o que há de bom e de ruim em conseguir manter pleonasticamente uma rotina regrada, hábitos arraigados, vida metódica e pontual. 
Persigo a pontualidade como um objetivo justo (mas sei lá se é uma maratona que quero mesmo completar na ponta). Vejo até motivos para invejar a retidão que observei, por exemplo, nos países que mencionei.
Mas, ao mesmo tempo, sei que suíços, com sua felicidade cronometrada, são campeões mundiais de suicídio. Japoneses seguem sádica hierarquia militar, até em família (quando não se distraem suicidando-se no metrô). Ingleses, tão abertos nos costumes (desde que exercidos pontualmente), são estranhamente enigmáticos.
Talvez por isso eu tenha conhecido tanta gente que foi para o “primeiro mundo” a estudo ou trabalho e, terminado o período obrigatório, voltou imediatamente ao Brasil. 
Assim como gringos de países impecáveis que, vindo de passagem ao Brasil, terminaram ficando para sempre. 
Talvez estivessem seguindo o vaticínio genial de Tom Jobim que, morando em Nova York, sentenciou algo como: “Nova York é do cacete, mas é uma merda; o Brasil é uma merda, mas é do cacete!”.
Imagino que os brasileiros que retornam correndo de países certinhos e pontuais, ou os estrangeiros de lá que aqui se fixam nesta nossa esbórnia, assim fizeram por optar por morrer de cachaça, mas não de tédio.

Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Velhas de hoje, velhas de amanhã

Nas minhas pesquisas, são inúmeros os relatos dos preconceitos que mulheres mais velhas sofrem, como o de uma professora de 72 anos.

“Minhas filhas querem controlar tudo, desde minha forma de vestir até o meu dinheiro. Elas me xingam de velha maluca, ameaçam pedir a minha interdição por acharem que estou dilapidando o patrimônio da família. Dinheiro que eu ganhei trabalhando a vida inteira. Não aceitam que eu esteja feliz e namorando um homem mais jovem. Querem que eu fique trancada em casa cuidando dos netos.”
O que mais me surpreende é perceber que as próprias mulheres demonstram preconceito e intolerância com as mais velhas, como mostra uma dona de casa, de 74 anos.
“Minha neta diz que eu sou uma velha ridícula e que não tenho mais idade para usar legging, camiseta e tênis o tempo todo. Ela tem vergonha de sair comigo, quer que eu me comporte como uma senhorinha. Mas o que deve vestir uma mulher da minha idade para fazer ginástica? Ela me critica tanto que estou acreditando que sou uma velha ridícula.”
Em inúmeras entrevistas, encontrei o mesmo tom cruel e desrespeitoso com o envelhecimento feminino.
“Tenho 61 anos e fui comprar um jeans de uma grife famosa e a vendedora me tratou com total desprezo. Seu olhar de nojo gritava: ‘Você não se enxerga sua velha baranga? Não quero a etiqueta da minha loja desfilando na bunda de uma velha decrépita’. Fiquei chocada, já que as jovens falam tanto de sororidade, feminismo, empoderamento. Como ela não percebe que está sendo cúmplice da violência contra as mulheres e que está alimentando o preconceito contra si mesma no futuro?.”
Cada mulher brasileira, principalmente as mais jovens, deveria lutar contra os preconceitos sociais associados ao envelhecimento feminino e se reconhecer na velha que é hoje ou na velha que será amanhã.
Afinal, velha não é a outra, velha sou eu!

Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

domingo, 8 de julho de 2018

Ao interromper as férias para impedir soltura de Lula, Moro revelou um lado sádico


A decisão do desembargador Thompson Flores, presidente do TRF-4, evidencia o movimento em curso por setores do Poder Judiciário: hoje, só valem decisões contrárias ao presidente Lula.
Vamos recapitular:
Na manhã de hoje, a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba recebeu o alvará de soltura do ex-presidente Lula, assinado pelo desembargador Rogério Favreto, que atendeu ao habeas corpus apresentado pelos deputados Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous.
Desde as 6 horas da manhã, Paulo Pimenta e Wadih Damous, um advogado experiente e respeitado, ex-presidente da OAB do Rio de Janeiro, permaneceram na Superintendência, à espera que a decisão fosse cumprida.
A PF não cumpriu a decisão e, no início da tarde, foi divulgado despacho do juiz Sergio Moro, que está de férias, no sentido de que a decisão não fosse cumprida.
Moro entendeu que Favreto não tem competência para decidir sobre a soltura de Lula, pois este pedido já tinha sido negado pela 8a. Turma do TRF-4.
Talvez tenha sido primeiro caso na história da magistratura em que um juiz de primeira instância revisou decisão de um desembargador.
No Brasil, se ainda vigora a Constituição, são os desembargadores que revisam decisões de magistrados de primeira instância e as corrigem, se necessário.
No Brasil, se ainda vigora a Constituição, são os desembargadores que revisam decisões de magistrados de primeira instância e as corrigem, se necessário.
Moro avançou o sinal e o fez no período de férias, e sem que tenha sido formalmente provocado. Havia um alvará de soltura, que tinha de ser cumprido, e Moro interveio para que a decisão não fosse cumprida.
Moro não é juiz da vara de execução penal, responsável pelo acompanhamento do cumprimento da pena.
Quem o avisou de que havia o alvará de soltura? Com que autoridade tomou a decisão que inviabilizou o cumprimento do alvará?
Quem é o policial que se recusou a cumprir a ordem do desembargador Favreto?
São questões que precisam ser respondidas, com a punição dos responsáveis, para que o Brasil saia da escuridão institucional em que a Lava Jato colocou o país.
Não é preciso ser um especialista para verificar a autoridade do desembargador Favreto para conceder habeas corpus a Lula.
Diz o artigo 92 do regimento interno do Tribunal Regional Federal da 4a. Região:
“Nos sábados, domingos e feriados, nos dias em que não houver expediente normal, e fora do horário de expediente, haverá plantão no Tribunal, mediante rodízio de Desembargadores, em escala aprovada pelo Plenário.”
Este era o fim de semana do desembargador Favreto.
Entre as atribuições do desembargador plantonista, está a de tomar decisões sobre habeas corpus, exatamente o caso de Lula.
Favreto tinha, portanto, poder constitucional para emitir o alvará de soltura, decorrência natural do habeas corpus deferido.
Essa ordem, no entanto, deixou de ser cumprida por uma cadeia de insubordinados, que não agiram de acordo com a lei.
A Policia Federal ignorou a ordem, Moro se manifestou e, em consequência, o desembargador João Pedro Gebran Neto, amigo do juiz, cassou a decisão de outro desembargador.
Favreto, com a autoridade que lhe confere o regimento interno do TRF-4, mandou buscar o processo que envolve Lula e, de novo, mandou soltá-lo, e deu prazo para isso.
Mais uma vez, a insubordinação em cadeia se fez presente.
A PF se recusou a cumprir o alvará de soltura e informou que aguardaria a decisão do presidente do TRF-4, Thompson Flores.
Flores é o mesmo que, em agosto de 2017, antes que o tribunal recebesse o processo em que Moro condenou Lula, considerou a sentença dele “tecnicamente irrepreensível”, uma “exame minucioso e irretocável da prova dos autos”.
O processo do triplex tem cerca de 250 mil páginas, e como Thompson chegou à conclusão de que a sentença de Moro era “um exame minucioso e irretocável da prova dos autos” é um feito que desafia as leis da natureza.
Ele não tinha o processo em mãos e, mesmo que tivesse, como poderia lê-lo em tão pouco tempo e fazer um elogio tão definitivo ao juiz que condenou Lula?
Esta é a autoridade que a Polícia Federal do Brasil escolheu atender. Para os policiais, a decisão de Favreto não tinha valor. Mas a de Thompson Flores sim.
Claro, a PF no Paraná sabia qual seria a decisão do presidente do TRF-4. Todos sabiam.
Que escândalo!
E ainda tem gente que acredita na falácia de que as instituições funcionam no país.
O vaivém do HC de Lula hoje é mais uma demonstração gritante da parcialidade de setores do Judiciário contra Lula.
Como duvidar daqueles que dizem que o ex-presidente já estava condenado antes mesmo que o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, apresentasse a célebre denúncia em power point?
A Justiça já o tinha condenado, o processo se transformou em uma mera formalidade.
Para aqueles que ainda tinham alguma dúvida sobre a condição de perseguido político de Lula, ela não existe mais.
Mas ainda há muitas perguntas a serem respondidas:
Por que temem tanto o ex-presidente?
Por que setores do Judiciário agem com tanta parcialidade?
A quem interessa esse movimento golpista, que não prejudica apenas Lula, mas todos os brasileiros que amam a justiça e não desistiram de lutar por uma terra democrática e soberana?
Quem está por trás dessa cadeia de insubordinados?
Moro, que hoje se transformou numa espécie de líder de facção, já não escondia a parcialidade, e duas atitudes recentes dele são muito eloquentes, entre tantas outras.
Há pouco tempo, o juiz abriu mão do inquérito que envolve o tucano Beto Richa, ex-governador do Paraná, sob alegação de que tem excesso de trabalho.
Hoje, ele interrompeu as férias para, de maneira que o Código de Processo Penal não prevê, impedir a soltura de Lula.
Ou seja, se o caso envolve Lula, ele não mede esforços para agir. Se o político é de outro grupo, alega excesso de trabalho.
Moro, com seu empenha hoje, lembrou carcereiros e torturadores dos porões da ditadura que faziam de determinados presos propriedade deles.
Sobre esses presos, tinham poder de vida e morte, de decidir sobre dor e sofrimento. Sem dúvida, eram casos patológicos.
O fato novo que fica desse dia vergonhoso para a Justiça é que Moro não está sozinho, nessa tarefa que também não deixa de ser sádica. Há um grupo organizado que atua com ele.

Reprodução de texto de Joaquim de Carvalho no Diário do Centro do Mundo

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Os fins não justificam os meios

O Rio de Janeiro está em guerra? Para muitos a resposta é sim. Uma guerra não convencional que teve mais um capítulo quando o helicóptero da Polícia Civil —o caveirão voador— foi usado no Complexo da Maré, em operação que deixou sete mortos, suspeitos e inocentes. A área do confronto incluía uma escola, que ficou com pelo menos cem buracos de balas.

Entre os mortos da operação em horário escolar, havia um estudante de 14 anos, a caminho da sala de aula. Suas últimas palavras ainda ressoam: "Mãe, tomei um tiro. Eu sei quem atirou em mim, eu vi. Foi o blindado.
Desde o início da intervenção federal, em fevereiro deste ano, estima-se que 444 civis foram mortos pela polícia —34% a mais que no mesmo período no ano anterior. É urgente falar sobre isso e frear o aumento.
O Direito Internacional Humanitário (DIH) é a área do direito que rege os conflitos armados internacionais e guerras civis e define as regras sobre o comportamento aceitável, ou não, nessas situações.
Seus princípios foram desenhados para evitar sofrimento desnecessário e, ao mesmo tempo, não impedir a guerra. No âmbito do DIH, um conflito armado não internacional se refere a situações onde um Estado combate um ou mais grupos armados ilegais, ou onde tais grupos travam combate entre si. 
Alguns especialistas defendem que os princípios do DIH se aplicam a situações como a do Rio de Janeiro. Apesar das diferenças conceituais e legais, o DIH oferece ideias práticas sobre como minimizar os custos humanos da violência organizada no Rio de Janeiro e em outras cidades com situação similar.
A proteção de civis é aplicada em todas as circunstâncias, mesmo que a guerra não tenha sido formalmente declarada. 
Assassinatos e execuções sumárias são proibidos, assim como a tortura e qualquer outro tratamento humilhante e degradante. A população civil —ferida, cercada ou detida— deve ser tratada com humanidade em todos os momentos.
Instalações de saúde e educação devem ser mantidas estritamente fora dos limites dos confrontos —uma garantia relativa a crianças, feridos e doentes que tem sido flagrantemente desconsiderada no Rio.
A aplicação formal do DIH a situações como a do Rio traria consequências políticas, tanto estratégicas como táticas.
Isso porque a adoção de tais regras pode influenciar a forma como os governos decidem "combater" as facções armadas, precipitar respostas militarizadas, incluindo o desdobramento de tropas ou até mesmo aintervenção por atores externos.
Pode levar à decretação de emergências e à suspensão de liberdades civis, e excluir iniciativas mais apropriadas para esse tipo de cenário complexo. 
Violações do DIH também têm potenciais implicações judiciais. O assassinato de inocentes, tortura e tratamento desumano —incluindo confinamento ilegal e destruição e apropriação injustificada de propriedade— podem ser considerados crimes de guerra ou contra a humanidade. E, em casos extremos, essas ações podem ser encaminhadas para o Tribunal Penal Internacional. 
Apesar do sofrimento dos habitantes de áreas conflagradas no Rio de Janeiro, é difícil aplicar o conceito oficial de guerra ou conflito armado.
A situação de violência crônica demanda ações no âmbito da segurança pública e Justiça criminal, que incluem prevenção e repressão inteligentes e respeito ao devido processo legal.
Mesmo assim, as normas de DIH podem inspirar ações concretas e reforçar as garantias constitucionais e regras de direitos humanos vigentes no que tange a proteção de civis.
Todos queremos a redução da criminalidade no Rio e no Brasil, mas a proteção de vidas humanas, em especial de crianças e adolescentes é prioridade. Os fins não justificam os meios.


Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo

Nem sempre a tatuagem é para sempre

As duas novas amigas nunca tinham ido à praia juntas. Foi aí que uma delas notou as tatuagens. "Você fez essa em homenagem ao Neymar?", perguntou. A outra explicou que tinha sido uma homenagem a um namorado, que era homônimo do jogador, mas que infelizmente o relacionamento acabou. "Sabe como é, tirar uma tatuagem não é fácil", ela disse, "dói muito, e eu ia ter que gastar uma grana...Tentar cobrir com outro desenho não fica legal. Preferi deixar como está. Agora a tatuagem é uma homenagem ao Neymar da seleção".
"E esse Jesus?", quis saber a amiga, "É o Gabriel Jesus?". A outra explicou que não. Aquela tatuagem tinha sido uma homenagem a Jesus mesmo, aquele que foi crucificado de verdade, não pelos comentaristas esportivos. Mas que, há algum tempo, ela tinha abandonado a religião e não queria mais saber disso. "Felizmente, agora arranjei um namorado com o nome de Jesus, um venezuelano que veio pro Brasil há pouco tempo. Resolvi deixar a tatuagem aí, em homenagem a ele."
Mas pintou uma dúvida na mente da amiga curiosa. "E se o Brasil perder a Copa, o que você vai fazer?", perguntou. "Eu já pensei nisso", a outra respondeu, "se o Brasil perder, vou comprar um cachorrinho bem fofo e dar o nome de Neymar. Aí a tatuagem fica sendo em homenagem ao bichinho". Ela fez uma pausa e ficou pensativa, com o olhar perdido no horizonte. "O pior é que, na verdade, o meu namoro com o Jesus não tá legal, não sei se vai rolar..." A amiga prontamente deu uma sugestão: "Não tem problema, você compra um gatinho e bota o nome de Jesus. E a tatuagem continua valendo". A outra gostou da solução e ficou mais tranquila.
Nesse momento, a amiga notou uma tatuagem menor, que ainda não tinha visto. "E essa aí, na panturrilha: Paulão do Delivery?". A outra explicou: "Ah, isso é só uma tatuagem temporária, feita com henna. Daqui a três semanas já sumiu".

Crônica de Reinaldo Figueiredo,na Folha de São Paulo

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Santidade como invasão de Deus

Santos não são santinhos. A série de Paolo Sorrentino "The Young Pope" com Jude Law no papel do hipotético papa Pio 13 é uma aula sobre santidade. O tema é meio fora de moda. Ou confundido com gente que parece muito bacana, com ideias bacanas. Do tipo que funda startups pra combater a desigualdade. Ou vota no PSOL.
A série vale a pena ser vista se você está a fim de ver um tratamento da santidade para além do marketing brega do bem que assola até mesmo a Igreja algumas vezes --além, é claro, do tratamento estético maravilhoso, típico de Sorrentino, autor da obra-prima "A Grande Beleza". Mas não vou dar spoiler.
Nos meus anos de dedicação à filosofia da religião na PUC-SP, a santidade foi um dois temas que mais me encantou —o outro foi a mística. Ainda me encantam, nos meus melhores momentos. Santos não são santinhos. A santidade numa pessoa não está enraizada no bem que a habita, mas nas suas mais profundas misérias.
Quem não se reconhece miserável não é capaz de perceber a misericórdia quando ela passa, com a suavidade da graça, pela sua vida. E, por consequência, jamais conhecerá Deus.
Sem pecado, não se enxerga Deus. Só os pecadores (e os neuróticos) verão Deus. Que Deus tenha misericórdia dos sem pecado. Dois escritores que entenderam muito bem a psicologia da santidade foram Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Georges Bernanos (1888-1948).
A santidade está enraizada na mais profunda miséria que constitui a natureza humana. Não há santidade (humana, não divina) sem pecado. O santo é um especialista no mal. A sua maior proximidade de Deus é, na verdade, assentada na sua absoluta consciência da enorme distância que existe entre ele e Deus. Quem se julga perto de Deus é porque está muito longe Dele.
Entre algumas das obras teológicas de mais peso sobre a santidade, uma, em especial, sempre me pareceu bastante consistente e, ao mesmo tempo, acessível. Infelizmente, devo confessar, sem tradução em português.
Publicada na Alemanha em 1970, "Schwestern im Geist: Therese von Lisieux und Elisabeth von Dijon", da editora Joahnnes Verlag, escrita pelo teólogo católico suíço-alemão Hans Urs Von Balthasar. Seguramente há tradução para o inglês, e talvez para o espanhol, francês ou italiano. Numa tradução livre, "Irmãs no Espírito: Thereza de Lisieux e Elisabeth de Dijon". Trata-se de um estudo acerca da santidade de duas santas francesas.
Segundo Von Balthasar, existem dois tipos básicos de santidade. Dito de forma breve, seriam os santos que brotam do chão do mundo e os santos que Deus lança sobre o mundo.
Os que brotam do solo do mundo surgem a partir do esforço pessoal da mulher ou do homem que anseia pela santidade. Através de um doloroso esforço (estamos longe aqui da ideia de que uma pessoa não possa tentar enfrentar o pecado com suas próprias forças), eles acabam por conseguir iluminar o mundo, em alguma medida, com as virtudes de Deus.
Eles acabarão por ser reconhecidos pela comunidade à sua volta, e Deus, diz Von Balthasar, os aceita como reconhecimento do esforço humano para se aproximar Dele e da Sua santidade. Esse "solo do mundo" é a comunidade humana na qual ele vive.
Nas palavras do teólogo, Deus se dobra diante de tal caminhada árdua em direção às virtudes divinas. Deus se comove com o embate que a pessoa leva a cabo em sua vida. O processo mesmo de "instalação" da santidade é conscientemente percebido pela pessoa em questão.
O segundo tipo de santidade, segundo Von Balthasar, é mais radical, mais dramático, mais sofrido e mais violento, de certa forma, porque se trata de uma invasão da vida da pessoa por Deus. Dito de forma direta: nada tem a ver com a escolha da pessoa em questão de buscar a santidade, não há um processo de tomada de consciência da "instalação" da santidade em paralelo ao esforço dela, como no primeiro caso, criando uma experiência mais gradual.
Neste caso, Deus escolhe a pessoa e pronto, não a avisa "previamente". Como consequência, sua vida, sua consciência, seus atos, seu corpo, tudo que lhe pertence, é tomado de assalto por Deus. Aos poucos, às custas de enorme resistência e dor, esse santo será levado a aceitar o fato que sua vida não mais lhe pertence. Esse é o tipo que sente o peso da mão de Deus sobre sua cabeça.
A intimidade com Deus é, muitas vezes, uma experiência devastadora e intrigante, mas sempre fascinante. Esse é o tipo de santidade descrito na série "The Young Pope".

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo
E eu nem vi o tal filme do "Jovem Papa".