segunda-feira, 21 de julho de 2014

É impossível eliminar a desigualdade com argumentos

Graças à atenção sem precedentes que o livro "O Capital no século 21", de Thomas Piketty, recebeu entre intelectuais, colunistas de jornal e pesquisadores de economia, a desigualdade está em voga.

É incontestável que a pobreza extrema, definida como a porcentagem da população que vive com menos de US$ 1,25 por dia, esteve em declínio no mundo inteiro durante as últimas décadas. De mais de 40% da população mundial em 1980, ela caiu para cerca de 15%. Este feito notável,contudo, ocorreu ao mesmo tempo que um aumento constante e alarmante da desigualdade. Embora tenhamos celebrado o declínio da pobreza, o aumento da desigualdade foi praticamente ignorado até recentemente.

O fato de que precisarmos deste cutucão da desigualdade global para conseguir a atenção do público é uma surpresa. Os fatos ocasionais que apareciam de vez em quando já eram alarmantes o suficiente. As dez pessoas mais ricas do mundo tinham mais ou menos a mesma renda que a população da Etiópia; a riqueza total dos 85 indivíduos mais ricos equivale à riqueza da metade mais pobre da população mundial total.

Deve-se reconhecer o trabalho duro por parte dos pensadores fundamentalistas do mercado em fazer tudo isso parecer natural e inevitável. A desigualdade de salários, diziam, representava uma divisão justa dos cargos entre as pessoas trabalhadoras e as preguiçosas. Em outras palavras, o que os pobres perdiam em termos de dinheiro, estavam ganhando em termos de lazer e sono. O que o mercado livre, sem obstáculos do Estado, oferecia era eficiente e justo.

Esses mitos agora estão caindo por terra. Atribuir a grande desigualdade de hoje à escolha das pessoas entre o trabalho duro e o lazer é evidentemente falso, porque uma parte substancial da desigualdade se manifesta no nascimento. Há crianças nas favelas que nascem fadadas à escassez. Há outras crianças nascidas em meio a tanta riqueza que é praticamente impossível que se tornem pobres.
O economista Miles Corak demonstrou recentemente com big data que, para os super-ricos, há uma barreira invisível que os impede de empobrecer. Uma vez que é um exagero atribuir a pobreza de um recém-nascido ao seu gosto pelo lazer, a maior parte da desigualdade é evidentemente injusta.

A questão que surge naturalmente a partir disso é: quais são as políticas necessárias para combater a desigualdade extrema e promover o bem-estar dos pobres?

Uma saída fácil é, normalmente, citar alguns estudos que mostram que três quartos de todas as variações no crescimento recente dos salários dos pobres ocorreram por causa de variações no crescimento geral da renda. Os ideólogos se apropriaram deste fato para argumentar que a melhor forma de ajudar os pobres é simplesmente permitir que o crescimento aconteça.
Há dois equívocos neste argumento. Primeiro, o fato de que o crescimento seja o principal motor do bem-estar dos pobres no passado não significa que seja o motor mais eficiente. Pode ser simplesmente que pouca coisa diferente tenha sido experimentada no passado. O equívoco é análogo a um economista analisar dados de trabalho na União Soviética nos anos 70 e 80, observando a presença forte do Estado e concluir: "precisamos do governo para criar todos os empregos no futuro porque meu estudo mostra que todos os empregos do passado foram criados pelo governo."

Em segundo lugar, novas pesquisas (feitas por Roy van der Weide e Branko Milanovic no Banco Mundial) mostram que o relacionamento entre o crescimento e a desigualdade é mais complexo do que se supôs a princípio. Analisando dados do censo dos estados norte-americanos de 1960 a 2010, eles descobriram que existe uma associação entre desigualdade e crescimento, mas é diferente para diferentes segmentos da população.
Uma desigualdade inicial mais alta em uma sociedade está associada a um crescimento menor para os 25% mais pobres da população e um crescimento maior para os 10% mais ricos. Não sabemos a causa fundamental disso, mas certamente derruba as análises que querem estabelecer uma relação uniforme entre desigualdade e crescimento.

Outra estratégia usada para impedir a ação política, dentro de uma nação ou globalmente, é apontar para a ideia da mão invisível de Adam Smith e argumentar que o mercado, sem qualquer interferência, eventualmente levará a sociedade a condições ótimas.

Este argumento se equivoca ao tratar dois conjuntos de coletividades de indivíduos de forma contraditória. Quando uma corporação busca o lucro acima de qualquer coisa, ela se justifica dizendo: "é este o objetivo das corporações". Mas as ações dos governos são tratadas como aberrações. O erro é não perceber que o governo não é nada além de um conjunto de indivíduos.
Um governo cleptocrático e inteligente pode superar esta objeção simplesmente assumindo outro nome. Anastasio Somoza, da Nicarágua, poderia ter mudado o nome do seu governo para Somoza e Filhos Inc. Dada a ganância obsessiva de Somoza por dinheiro, não seria muito difícil pensar em seu governo como uma corporação que visa o lucro. E com esta manobra simples ele teria driblado o argumento ideológico, revelando portanto que este argumento era falso desde o início.

Da mesma forma que tivemos algum sucesso em reduzir a pobreza extrema, precisamos agora de intervenções políticas em nível nacional e mundial para combater o flagelo da desigualdade extrema.

Texto de Kaushik Basu para a Prospect, reproduzido no UOLTradutor: Eloise De Vylder
(Kaushik Basu é economista-chefe e vice-presidente sênior do Banco Mundial.)

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