sexta-feira, 29 de março de 2019

Como cedro

Passo a mão no meu cabelo branco
E relembro num suave tranco
Que eu já fui guri lá em Palomas

Passava noites ouvindo as bromas
De velhos e esquecidos tropeiros
Manhãs nos mais verdes potreiros
Soltando lindas pandorgas vermelhas
Sentindo a ranhura do vento nas orelhas

Passo a mão no meu cabelo branco
E relembro num suave tranco,
Como se a vida fosse uma poesia,
Que eu já fui guri lá em Palomas

Lembro das tardes passando pêssego
Do doce de figo borbulhando no tacho
Depois o mate correndo de mão em mão
A velha socando a canjica no pilão
A vida fluindo como um límpido riacho

Levo essas lembranças na mala de garupa
Basta a cada dia um estalo, um simples upa
Para eu me ver de novo, os pés descalços,
Galopando no meu petiço naqueles vastos espaços
Até abraçar o vento nas cordilheiras

Então tudo se ilumina no meu pensamento
Sou guri, pandorga, aragem no firmamento,
Um velho tropeiro sonhando ao relento

Passo a mão no meu cabelo branco
E relembro num suave tranco,
Entre um mate, um causo e um sonho,
Que eu já fui guri lá em Palomas.
Para onde voltarei como cedro.

Domingos Oliveira, para mim, é e sempre será o antônimo da morte

Sonhei que estava no banco do meio da antiga Kombi do meu pai, cercada por ruidosos atores do Teatro Oficina. Ao dobrar uma esquina, o carro parava, alguém abria a porta e Jair Bolsonaro pedia carona, ao lado de Michelle e o filho caçula do presidente —o que passou o rodo nas meninas do condomínio Vivendas da Barra.
Nem em sonho a mistura do Oficina com o Messias parecia lógica. Espremida entre a primeira-dama e uma atriz de vanguarda vestida de preto fatal, eu arriscava a pergunta: “Jair, o que é que você está fazendo nessa kombi?!”. 
Recém-chegado da viagem aos Estados Unidos, o presidente precisava chegar o quanto antes ao Congresso, onde a votação de uma pauta importante o aguardava. Seguíamos aboletados, como se o convívio e o destino comum fossem possíveis.
Apesar do desejo onírico, não há como conciliar minha infância nas coxias de teatro com as novas diretrizes éticas e morais que, hoje, controlam o Brasil. 
Caso tivesse ocorrido naquele dia, tenho certeza, o choque com a morte de Domingos Oliveira o teria colocado ao volante da minha Kombi sem direção.
Toda memória se assemelha a um sonho.
Conheci Domingos criança, na casa dos meus pais. Me lembro do estranhamento de vê-lo na sala, com as pernas finas metidas numa bota de cano alto até o joelho, o tronco curto coberto por uma 
camisa bufante e a cabeça adornada por uma cabeleira farta. Era uma mistura de poeta do século 19, pirata e hippie de butique.
Domingos disparava máximas com a sofreguidão de um romântico. Apesar da paixão incondicional pelas mulheres, pelos amigos, pela arte e pela vida, era um homem racional. Na sua escala de valores, nunca houve revolução, causa ou luta de classe que se comparasse, em importância, aos sentimentos, ao amor e à amizade. 
Numa era brutal como a que atravessamos, na qual a radicalidade dos anos de chumbo retorna tosca e rastaquera, perigosa e oportunista, o legado de Domingos pode ser lido, mais uma vez, como frivolidade burguesa. Mas não.
Para os que amaram “Todas as Mulheres do Mundo” e “Edu Coração de Ouro”; para os que, como eu, estrearam com ele na adolescência e estiveram diante de Domingos numa sala de ensaio; para os que admiraram o profundo conhecimento que esse artista inatual tinha da dramaturgia e a maneira suicida com que transformava seu cotidiano em drama; para os que, como Caio Blat e Pedro Cardoso, o encarnaram na ficção; para os que assistiram ao velho Domingos revisitar sua juventude no maravilhoso “Barata Ribeiro 716”; para todos os que o amaram e festejaram, resta a certeza de que, em momentos tristes como os de agora, só nos resta ser gauches.
“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Domingos! ser gauche na vida./ As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres./ A tarde talvez fosse azul,/ não houvesse tantos desejos./ O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.”
Há um ano, ele me disse que os remédios do Parkinson provocavam alucinações tétricas nele. Era comum que acordasse cercado de estranhos no quarto, sentados na cama, ou o observando do armário. E lhe vinha um medo que em nada correspondia àquilo que era. 
Nas últimas semanas, no entanto, o pânico arrefeceu. Estava jogando dados com a neta, quando a pressão caiu e, sem agonia, ele partiu. Uma cortesia dada pela natureza, diz o próprio, num vídeo premonitório que corre à solta na internet, aos homens lúcidos que optaram pela vida. 

Domingos é e sempre será, para mim, o antônimo da morte.

O texto é de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 27 de março de 2019

Um profeta americano centenário

Aí por 1955 ou um pouco mais tarde, tudo indicava que o mundo estava próximo do fim. O perigo de uma guerra nuclear preocupava as pessoas com uma intensidade que o aquecimento global, hoje em dia, nem de longe possui.
A proximidade do apocalipse estimula, claro, o aparecimento de profetas. Para que eles surjam, entretanto, outras condições são necessárias. Eles têm de circular sem rumo pelas cidades e pelos povoados, sem vínculos com a família, com as igrejas e as instituições.
Num mundo burguês, industrial e secularizado, essa gente sem eira nem beira passou a responder pelo nome de "bohème", os "boêmios", os artistas como Baudelaire, Verlaine e Rimbaud.
Os profetas viraram poetas, músicos e pintores "malditos", até que o mercado de arte, o mundo editorial e as universidades passassem a apostar neles.
O quadro mudou. Hoje, o que se tem é um "precariado" intelectual, no qual o jovem ou o velho de talento se marcam menos por rejeitar a cultura estabelecida (que tolera praticamente tudo) e mais pela falta de emprego fixo.
O problema do "precariado", em oposição à antiga "boêmia artística", é excesso de oferta, não falta de demanda.
Os "malditos" de hoje correm mais o risco de ter o nome no Serasa do que de serem presos ou de terem suas obras proibidas, como acontecia no passado.
Nesta semana, o poeta americano Lawrence Ferlinghetti alcançou a idade bíblica de cem anos. É o último sobrevivente do movimento "beatnik", que, na Califórnia e na Nova York dos anos 1950, inaugurou a sensibilidade pacifista, ecológica, libertária e contracultural até hoje presente no pensamento progressista.
Ferlinghetti comemorou seu centenário publicando um livro autobiográfico, "Little Boy", que mais uma vez afirma seu imenso amor pela vida e pelo mundo.
Ele passou os primeiros anos de vida na França, criado por uma tia (a mãe não tinha dinheiro para criá-lo).
Ferlinghetti foi parar num orfanato, foi adotado por um casal de ricaços americanos, fez serviço militar no final da Segunda Guerra, estudou na Sorbonne, e finalmente abriu uma livraria e editora em San Francisco, a City Lights, que seria o foco da literatura alternativa americana na década de 1950.
Os "beats" a que Ferlinghetti se associou (Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs) adotaram esse nome não porque estivessem pensando em alguma "batida" de rock, mas porque buscavam um novo tipo de "beatitude" na existência material, com a ajuda de drogas, álcool e sexo.
Contavam também, e sobretudo, com a contemplação maravilhada das coisas. No seu livro mais importante, "Um Parque de Diversões na Cabeça" (muito bem traduzido por Eduardo Bueno e Leonardo Fróes para a L&PM), Ferlinghetti transmite essa experiência de um modo adorável, despretensioso e coloquial.
Veja-se o poema número 20. "Na confeitaria barata para além do El [o elevado do metrô]/ foi onde pela primeira vez/ me apaixonei/ pela irrealidade/ Os drops reluziam na semi-obscuridade/ daquele entardecer de setembro/ Um gato deslizava sobre o balcão entre pirulitos/ e pães de forma/ e Oh chicletes de bola (...)"
As cores falsas da sociedade de consumo se fundem, em outros poemas, ao "amarelo varrido" pelo "último sol", enquanto "gaivotas quase caem na terra firme". Ou aos "campos da infância", onde "o arco-íris se mistura na memória com a palha" e "cada coisa viva/ lança na eternidade a sua sombra."
Com versos quebrados, espalhados pela página, Ferlinghetti expressa uma vivência de vagabundagem, de boêmia, em que a certeza do fim do mundo algumas vezes leva ao puro prazer pela vida presente, e outras vezes às esperanças de transformação.
O problema dos poetas que se recusam a seguir os limites do formalismo, buscando uma lírica mais espontânea e calorosa, é que terminam frequentemente presos na armadilha da retórica. O impulso poético se expande para fora do sentimento pessoal, tornando-se invocação, discurso, profecia.
A saída de Ferlinghetti é temperar isso com ironia, como se desfizesse criticamente o êxtase verbal a que se entrega. "Estou esperando", diz ele num longo poema, "que a vida comece (...) e estou esperando/ soltar velas e zarpar para felicidade/ e estou esperando/ um Mayflower reconstruído/ que chegue à América/ com os direitos de sua epopeia para quadrinhos e para TV/ já vendidos antecipadamente/ para os nativos"...
Aos cem anos de idade, a vida de Ferlinghetti está apenas começando.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 26 de março de 2019

Mister Antologia

Parece resposta decorada, mas não é. Muitos escritores dizem que, se pudessem, passariam suas vidas lendo, e não escrevendo. Flávio Moreira da Costa, morto no sábado (23) aos 77 anos, deu um jeito de resolver essa equação.
Sem abandonar a veia da ficção —criou um alter ego, personagem chamado João do Silêncio, com o qual assinou os livros “O País dos Ponteiros Desencontrados” e “Alma-de-Gato”, desconcertantes, nada comportados, centrados na linguagem e influenciados pelo cinema de Jean-Luc Godard—, Flávio investiu na produção de antologias, fazendo tanto pelo gênero que se tornou sinônimo dele no Brasil. 
Pelas grandes tiragens e vendagens e pelo amplo panorama literário que apresentam, os livros que organizou fizeram mais pela criação de novos leitores do que muitos programas governamentais. Ele mesmo perdeu as contas (ou os contos). Publicou mais de 30 coletâneas, para cuja elaboração frequentou bibliotecas, reuniu coleções de outros países e gastava, no mínimo, quatro horas de leituras diárias. 
Os amigos brincavam dizendo que um dia alguém teria de fazer o livro “As 100 Melhores Antologias de Flávio Moreira da Costa”. Nele, não poderiam faltar “Os Melhores Contos de Cães e Gatos”, “Os Melhores Contos de Loucura”, “Aquarelas do Brasil (Contos da Nossa Música Popular)” e a série “100 Melhores”, com histórias de humor e terror, crime e mistério, fantásticas e eróticas.
Em suas seleções, não havia receita. Só a forte marca autoral, e uma ou outra surpresa. Ao armar “O Melhor do Humor Brasileiro”, em 2016, apostou que a graça podia estar na desgraça e escalou Noel Rosa ao lado de Ruy Barbosa.
Enfrentando um câncer de rim há seis anos, Flávio levou a mágoa de não ter publicado uma obra a que se dedicou com especial carinho: “Intimidades Célebres: O Livro dos Diários”, que permanece inédita devido a um imbróglio editorial. 

Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 22 de março de 2019

Colocando a vagina na mesa

Cansada deste mundo machista, no qual, desde os tempos da exploração da vagina-brasil pelos portugueses, mulheres nunca são protagonistas nem das próprias histórias, um dia Vagina chutou a vagina da barraca e colocou a vagina na mesa.
Para começar, exigiu um homem que fosse vagina para toda obra. Um que quisesse uma mulher de verdade, e não uma santinha da vagina oca. Um que fosse mesmo macho e, quando matasse a cobra, mostrasse a vagina.
Decidiu que, a partir de agora, de forma alguma, nem à vagina, se contentaria com pouco.
Seu penúltimo namorado, um professor de crossfit que botava whey protein até na feijoada, tinha fetiche em mulher bem magrinha, tipo vagina de virar tripa, e queria proibi-la de comer pizza e sorvete.
Seu último namorado, pior ainda, era obcecado por carros e gostava de acelerar, feito um desses playboys babacas que atropelam e fogem. Um dia, quando ele descia uma ladeira de Perdizes na maior vagina e dava cavalinhos de vagina para impressionar, Vagina ficou muito assustada e indagou se ele estava se achando um tremendo vaginudo só por ter trocado de carro. O idiota, que já tinha levado vagina duas vezes no exame pra tirar carta de motorista, apenas sorriu, na maior cara de vagina, e a mandou parar de mi-mi-mi. Quebraram a vagina, e ela aproveitou para falar tudo o que estava engasgado em meses de relacionamento abusivo. Meteu a vagina nele. Caiu de vagina nele.
Quem ouve as histórias pode achar que Vagina quer um desses namorados subservientes, sem muita personalidade, um tipo "vagina-mandada". Nada disso. Simplesmente, para a mulher que se valoriza, nunca será demais pedir amor, respeito e muita generosidade. Vagina nasceu teimosa e, você sabe como é, vagina que nasce torta nunca se endireita.
No trabalho, não vai mais aceitar ganhar nem uma vagina a menos que seus colegas do sexo masculino. Vagina sabe muito bem que está vagina a vagina com eles --isso quando não é ainda mais esforçada e talentosa. Um dia foi até o RH brigar por seus direitos e a vagina comeu. Deixou bem claro que se não tivesse um aumento, colocaria a empresa na vagina.
Na infância, Vagina adorava aquele desenho, o "Pica-Vagina". Aprendeu com ele que vale a pena insistir até abocanhar tudo o que deseja e merece. Sua música preferida, desde sempre, é aquela do verso: "É vagina, é pedra, é o fim do caminho". Ela sabe que a jornada será longa e complexa. Todavia, empoderada, Vagina vai mostrar com quantas vaginas se faz uma canoa! Agora é assim: escreveu, não leu, a vagina comeu.
Sua mãe sempre foi uma mulher do lar, mas, como em casa de ferreiro, o espeto é de vagina, Vagina sonha em conquistar o mundo. Trabalha mais de 15 horas por dia e, quando chega em casa, ainda grava vídeos para o Instagram metendo a vagina em tudo o que acredita estar errado à sua volta. Admirável que só, é impossível lhe observar sem pagar vagina.
Suas redes sociais têm tantos seguidores que a internet de vez em quando dá vagina. Comprou uma vagina de selfie para poder se filmar com mais independência. Em sua cabeça, fervilham ideias a dar com vagina.
No tarô, Vagina tirou um ás de vaginas, que significa intensidade, criatividade, prazer e alegria.
Desde pequena, Vagina tem é a vagina roxa. Por isso, o que eu diria a qualquer pessoa que tente cruzar o seu caminho sem estar preparada? Nem à vagina, Juvenilda!

O texto é de Tati Bernardi, publicado na Folha de São Paulo

quinta-feira, 21 de março de 2019

O corvo eterno

A "corvologia" acaba de ganhar um livro delicioso, mas para que se aprecie o impacto da notícia será preciso explicar o que vem a ser essa palavra que os dicionários não registram.
"Corvologia" é o pequeno mas animado campo dos estudos sobre "O Corvo", o poema mais famoso do americano Edgar Allan Poe (1809-1849) e um dos mais populares da história. Inclui, em posição de destaque, suas traduções.
Para quem ainda não ligou o nome ao bicho, uma pista: "Nevermore". Sim, estamos falando daquele poema lúgubre, de clima gótico como o de um clipe de The Cure, no qual uma ave preta repete a um sujeito de luto pela morte da amada seu bordão cruel: "Nunca mais!". Não é preciso tê-lo lido para conhecer seu impacto pop.
A boa notícia é o lançamento de "O Corvo" (Companhia das Letras), volume de capa dura que traz, além do poema em inglês e duas de suas traduções mais famosas para o português, três ensaios de Poe sobre sua oficina poética —a começar pelo divertido "A filosofia da composição", em que ele apresenta como resultado de pura racionalidade a criação de uma peça literária desvairadamente romântica.
Se fosse só isso, o livro careceria de novidade. Esta é fornecida pelos dois ensaios que, amarrando tudo, desenham para o leitor os princípios da corvologia e a fazem avançar com finas contribuições originais. Assina-os o poeta Paulo Henriques Britto, tradutor do primeiríssimo time.
Não é livro para todos os paladares. Os pormenores técnicos de versificação que Britto invoca em seus ensaios se justificam no contexto, mas podem assustar o leigo. De todo modo, bastam alguma familiaridade com a leitura de poesia e um ouvido afinado para pegar o espírito da coisa.
Como corvólogo diletante de longa data, fiquei feliz ao descobrir a preferência de Britto pela tradução de Fernando Pessoa, da qual também sou fã. Para ele, trata-se de "um poema em que são recriados de modo preciso os efeitos do texto inglês em todos os planos --do sentido, do metro, da rima".
Professor de tradução da PUC-Rio, Britto vai além, sustentando que a versão do portuga aperfeiçoa o original ao omitir o nome da amada morta, Lenore, resolvendo uma contradição introduzida por Poe: "Se neste mundo a amada não tem nome [é o que o poema diz], como pode seu nome aparecer num poema?".
Acredito que, apesar de engenhosa, a ideia de aperfeiçoamento seja um arroubo de crítico apaixonado, por não levar em conta uma provável intencionalidade na contradição original e por desconsiderar que, ganhando um nome, e ainda por cima um nome que rima com "nevermore", a morta adquire um peso e uma reverberação que Pessoa lhe subtrai.
Se não traz aperfeiçoamento, "O Corvo" de Pessoa é uma maravilha que, por contraste, ganha mais brilho ao lado da versão esquisita de outro monstro das letras, Machado de Assis, cuja tradução ritmicamente traidora --o que, no caso desse poema hipnótico, caracteriza pecado mortal— é demolida com tato, mas sem dó.
Não é, contudo, ao atacar a pouco prestigiosa tradução de Machado que Britto deixa uma contribuição fundamental. Seus ensaios crescem ao serem lidos no contexto dos debates corvológicos como refutação à defesa enfática --e curiosamente influente— que, no livro "O Corvo e Suas Traduções" (Lacerda), Ivo Barroso fez de uma tradução interessante, mas menos rigorosa que a de Pessoa no metro e na rima: a do jornalista mineiro Milton Amado.

Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 20 de março de 2019

O método maluco de Kurt Vonnegut Jr.

Considerada uma das cidades mais bonitas do mundo, a cidade de Dresden (a Florença do norte) foi reduzida a cinzas depois de três dias de bombardeio, em fevereiro de 1945.
O uso de bombas incendiárias pelos aviões britânicos e americanos foi agravado pelo desencadeamento de uma "tempestade de fogo". O fenômeno surge quando o calor de um incêndio termina sugando o ar em volta do seu foco inicial, o que naturalmente alimenta novas chamas.
Existiam fábricas e entroncamentos ferroviários em volta daquela cidade alemã, mas nada que justificasse a extensão do morticínio. Os cálculos das autoridades municipais, feitos e refeitos, convergem em cerca de 25 mil mortos, mas como Dresden naquela época estava cheia de refugiados, muitas vítimas não foram registradas.
Simpatizantes do nazismo falam em 200 mil ou mais. Quando escreveu "Matadouro Cinco", em 1968, o americano Kurt Vonnegut Jr. fixou-se em 130 mil, o que ultrapassaria a marca de Hiroshima, com 80 mil mortos diretamente pela bomba atômica e pelos incêndios que se seguiram.
O romance de Vonnegut está sendo relançado no Brasil pela editora Intrínseca, em comemoração dos 50 anos de sua publicação original.
Descendente de alemães, Vonnegut era soldado do exército americano quando foi capturado pelos nazistas já no fim da Segunda Guerra.
Foi levado como prisioneiro para Dresden, onde o confinaram num antigo matadouro; já não se matavam mais bois e vacas naquele tempo de guerra.
A óbvia ironia da situação deu o título para seu romance, que conta as experiências de Billy Pilgrim, rapaz despreparado para o combate, que só se salva de ser morto pelos próprios companheiros porque os alemães o prendem antes.
"As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras", diz o próprio Vonnegut no início do romance --que já seguia o hábito pós-moderno de incluir no texto a pessoa do autor e as peripécias da sua publicação.
É também "pós-moderna" a estratégia do autor em misturar os procedimentos de romance sério com os da ficção científica barata. Com prazer e desconforto, o leitor se descobre diante de um livro muito engraçado (e olhe que, em geral, eu detesto o humor negro).
Quanto de mau gosto cabe numa literatura de bom nível? "Matadouro Cinco" expandiu, sem dúvida, os limites permitidos.
Não porque existam descrições horrorosas de cadáveres queimados ou da deformação das vítimas. Os efeitos do bombardeio ocupam poucos parágrafos desse livro rápido de ler. De resto, Billy Pilgrim estava abrigado no matadouro, de modo que, quando sai para o ar livre, não vê mais do que uma paisagem lunar, um deserto de pó e cinzas.
O mau gosto de "Matadouro Cinco" está em outra parte. O romance é montado em torno das memórias disparatadas de Billy Pilgrim, que foi abduzido num disco voador pelos habitantes de um planeta distante. Os tralfamadorianos ignoram a distinção entre presente, passado e futuro.
Pilgrim —e seu sobrenome, "peregrino", é outra ironia fácil— pula de um lado para outro no tempo. Conhece não apenas o momento de sua morte como também os prazeres do convívio com uma terráquea belíssima, tipo loira burra, levada como ele à jaula de vidro de um zoológico no planeta Tralfamadore.
É trash, naturalmente, assim como os personagens —um americano nazista ou um fracassado escritor de ficção científica— que Billy Pilgrim encontra no caminho.
Consolidou-se a tese de que grandes massacres —em especial o genocídio dos judeus— desafiam qualquer representação. Expor o inominável num filme ou relato ficcional sempre haverá de diminuir o horror que aconteceu na realidade.
A solução seria o puro e sóbrio testemunho, em primeira pessoa, do que se viveu —como fez de forma inesquecível Primo Levi em "É Isto um Homem?".
O método maluco de Kurt Vonnegut não deixa de ser uma alternativa. O contraste se dá entre a imaginação desvairada da narrativa e a objetividade muda, morta e imutável dos fatos reais.
É também o contraste que se dá entre a demência frívola da cultura americana do entretenimento e, de outro, a barbárie de outros bombardeios incendiários: aqueles que os Estados Unidos promoviam no Vietnã, quando o livro foi publicado.
Isso foi em 1968; mas, como no planeta de Vonnegut, o passado está sempre a ponto de reaparecer.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 18 de março de 2019

O mundo no bolso

Um sujeito chamado Jerry Merryman morreu no dia 27 último em Dallas, Texas. Tinha 86 anos. Estava hospitalizado por complicações de uma cirurgia. Não houve comoção pela notícia. As Bolsas também não oscilaram. E mesmo os jornais americanos deram o seu obituário com atraso. Pelo visto, ele não era muito importante.
Mas, como diria o dicionarista Antonio Houaiss, discrepo. Jerry Merryman, até sem querer, pode ter dividido a história em antes e depois. Ele inventou a calculadora de bolso. Em 1965, uma empresa do Texas consultou-o sobre a possibilidade de uma calculadora que se levasse no bolso, como um maço de cigarros. As que existiam eram de mesa, pesadas, compostas de um motor, um rolo de papel e uma manivela, tudo isso para somar 2 + 2. Atiradas na cabeça de alguém, podiam matar.
​Merryman pensou e, em três noites, desenhou os circuitos fundamentais. Dali a cinco anos, a empresa soltou no mercado a calculadora de bolso. Era um aparelho pequeno, mas esperto. Somava, diminuía, multiplicava, dividia e ainda imprimia o resultado num papelucho. Foi um sucesso e, um dia, todo mundo, até eu, possuiu aquele treco. Mas havia um limite para a sua função —exceto o dono do armazém, ninguém passava o dia fazendo contas. Apesar de sua utilidade, a calculadora de bolso, na prática, só aposentou o lápis atrás da orelha.
Então, nos anos 70, alguém chamado Martin Cooper adaptou a ideia para um telefone que também se pudesse levar no bolso. Nasceu o celular. Mas mesmo este era limitado —quem queria passar o dia todo telefonando? Foi daí que este celular aprendeu a servir de câmera, relógio, rádio, TV, banca de jornal, arquivo, biblioteca, termômetro, periscópio, bússola, radar, antena e até de calculadora. Tornou-se o iPhone —um computador de bolso.
Sem Jerry Merryman, ele não existiria. Merryman foi o primeiro a pôr o mundo no bolso.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sábado, 16 de março de 2019

Louca, frígida e neurótica

Essa semana dei uma entrevista sobre meu livro "Depois a louca sou eu" (que é de 2017, mas o programa de rádio resolveu colocar na lista das novidades), e o apresentador me pediu que contasse três casos em que fiquei, sem merecer os "louros", como a maluca da história.
Primeiro me lembrei de uma agência de publicidade onde trabalhei por uns dois anos. Lá eu tinha um colega que deveria dividir as criações comigo, mas insistia em ignorar todas as minhas ideias e entrava constantemente na sala do nosso chefe pedindo para, pelo amor de Deus, ter como par um "homem mais velho e premiado".
Um dia passei mal com uma febre altíssima, quase desmaiei no banheiro, e decidi ir embora para casa. Quando eu estava de saída, o infeliz lançou um: "Vai, corre, você não dá conta mesmo".
Ele nunca me ofendeu com palavrões vociferados ou cravou uma caneta Bic no meu olho, então, para quem nos assistia, ele era gente boa. Mas sorrateiramente, através de sutis ironias que me desmereciam, de olhares arrogantes de desaprovação e de tentativas muito maquiavélicas e refinadas de exterminar minha existência, ele era um tremendo babaca.
Um dia me falou bem baixinho, para que apenas eu ouvisse: "Já terminou aí essa bostinha que você tá fazendo? Manda esse lixinho pra mim, manda". E eu estourei. Explodi. Gritei muito alto exigindo respeito. E ele apenas dizia, comedido: "Nossa, que louca, aff, doida". Fiquei por mais de um mês sem nada para fazer, uma forma bem escrota do meu chefe, outro assediador moral de primeira, me dizer que depois daquele escândalo ele não me considerava mais digna de participar de sua magnífica bolha de gente que vivia de aparências e antidepressivos. Me demiti, como era esperado por todos eles. 
A segunda história é sobre um namorado das antigas que era bem pouco afeito a beijos e intimidades. Ele dava umas três estocadas de língua mole no meu céu da boca e achava que estava ótimo e que já podíamos transar. Eu dizia: "Eita, calma, peraí", e ele respondia coisas como: "Poxa, meu pau duro já não basta pra você?".
Óbvio que não. Aliás, era pior do que não ser suficiente, era como se, ao presenciarem aquela absoluta falta de conexão e empatia com minha pessoa desnuda, minha libido, meu clitóris, minha vagina e toda a possível umidade do meu corpo resolvessem ir para a China sem me avisar e sem data de retorno.
Ele tentava me convencer de que eu era frígida, mas os romances que tive antes dele (e muitos ainda não sabidos que eu teria depois) sempre surgiam em minha memória nessa hora e faziam o maravilhoso coro: "Ah, mas não meeeesmo, viu!".
A terceira história aconteceu há pouco tempo, com uma prima do meu pai. Ela passou uma tarde na minha casa, falando sem parar sobre si mesma e jamais perguntando qualquer coisa sobre qualquer outra pessoa, e depois mandou um áudio para ele me detonando, dizendo que estava preocupadíssima com a maneira doentia como eu estava criando a minha filha.
Então ela listou a minha escandalosa e revoltante neurose: dar banho quente, dar de mamar, colocar casaco quando esfria, pedir silêncio para o bebê dormir, dar colo, manter a casa limpa, preferir alimentos saudáveis, proteger o bebê de mosquitos, amar, ser mãe.
Não é preciso ter lido nem um parágrafo do Freud para saber a diferença que faria na vida dessa senhora se ela tivesse recebido ao menos alguns desses cuidados em sua infância. Mas, claro, a neurótica sempre sou eu.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

A revolução dos cordeiros


A revolução dos cordeiros

Fábula de Jorginho Orwell será lançada mais cedo do que se imagina



Era uma vez uma fazenda chamada Vivenda das Papoulas. Nela moravam apenas carneiros, ovelhas e cordeiros. A convivência era harmoniosa, todos comiam e cantavam juntos.
Até que um dia um cordeiro sumiu. Ventilou-se a suspeita de que uma raposa tivesse entrado naquele ambiente seguro usando a Lei Rouanet. "Antigamente é que era bom. A gente podia andar em segurança", baliu a sexagenária ovelha Regina. Desse dia em diante, a iminência de um novo ataque era sempre alardeada.
O patriarca da família Winston propôs uma ideia radical: contratar lobos para cercar a fazenda e garantir a segurança. O pagamento seria em lã, couro, laticínios, bujões de gás e TV a cabo. Foi ovacionado. "Ou as raposas se adequam, ou serão comidas", discursou.
No entanto os cordeiros continuavam a sumir. Agora em maior número. "O problema é que alguns carneiros mamam nas tetas das ovelhas o dia todo, ganham sete arrobas e não fazem nada", baliu o patriarca da família Winston. Depois dessa frase, os ovinos passaram a se hostilizar. Em nome da ordem, o patriarca da família Winston contratou mais lobos.
Um dia a sexagenária Regina entrou na propriedade de um dos cordeiros do patriarca Winston. Ficou assustada quando viu parentes de lobos trabalhando ali. Ela já sabia que outro cordeiro do patriarca Winston namorava a filha de uma loba que era sua vizinha. E que a família Winston tinha o hábito de homenagear os lobos. Mas achou que tudo não passava de coincidência.
Não havia tempo. Os apoiadores do patriarca Winston estavam concentrados em acabar com a mamata e exterminar as raposas.
Meses depois, intrigada, a sexagenária Regina foi a uma biblioteca. Em suas pesquisas, descobriu que a Vivenda das Papoulas ficava em Atibaia e que não havia raposas naquela região.
Quando retornava para informar seus companheiros, a sexagenária Regina levou uma forte mordida. Olhou para o lado e ficou horrorizada: um cordeiro, antes inofensivo, agora espumava e mostrava os dentes. Depois de comer a sexagenária Regina, o cordeiro lambeu os beiços. E uivou.

Texto de Renato Terra, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 13 de março de 2019

Quase memória

São as primeiras linhas do romance: "O dia: 28 de novembro de 1995. A hora: aproximadamente vinte, talvez quinze para a uma da tarde. O local: a recepção do Hotel Novo Mundo, aqui ao lado, no Flamengo".
Você deve ter reconhecido: é a abertura de "Quase Memória", livro que marcou a volta de Carlos Heitor Cony à literatura de ficção. Na obra, um porteiro entrega um embrulho ao narrador. Este não é descrito, mas o leitor adivinha nele o próprio Cony, com seu bigode, camisa polo e tênis regata. O pacote deixado no hotel estava impecavelmente amarrado com a mesma técnica usada pelo pai do escritor, morto dez anos antes, e a memória começa a jorrar.
Em breve o Novo Mundo será, também, memória. Mais uma vítima da crise no Rio, que parece só ter poupado as farmácias. Inaugurado em 1950 para a Copa do Mundo, o hotel fechará as portas e deixará 120 funcionários na rua.
Construído em estilo eclético na esquina da rua Silveira Martins com a praia do Flamengo, enorme letreiro verde, na entrada dois leões de bronze (esculpidos por Henri Alfred Jacquemart) e vista para a baía de Guanabara e os jardins do Palácio do Catete, recebeu em suas suítes os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Lula. Mas placa comemorativa no saguão quem tem é Pelé, com coroa de rei e tudo. Foi lá que o Santos ficou em 1969, antes de Pelé marcar contra o Vasco o gol mil no Maracanã.
O Novo Mundo aparece em dois outros livros: "O Homem que Matou Getúlio Vargas", de Jô Soares, e "O Silêncio da Chuva", de Luiz AlfredoGarcia-Roza. No "Quase Memória", Cony o eternizou: "Passo pelo Hotel Novo Mundo, é a única fachada acesa, revela algum movimento, o resto da rua, do bairro e da cidade está em silêncio, na portaria do hotel talvez esteja chegando um hóspede, vindo do interior de São Paulo, trazendo um embrulho para alguém...".

Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 6 de março de 2019

Atos suspeitos de pessoas de bem

Como tantos outros médicos nazistas, o doutor Nehle encontrava prazer ao torturar suas vítimas. Mas havia uma diferença. Ele queria que os prisioneiros do campo se entregassem voluntariamente aos seus 
experimentos sem anestesia. Prometia-lhes, em troca, a “liberdade”. Bom, nem tanto. Apenas a transferência para um campo onde a morte fosse menos certa.
A personagem foi criada pelo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), em sua novela de horror policial “A Suspeita”, publicada há anos, que a Estação Liberdade planeja relançar.
Já publicou, por enquanto, uma nova tradução de “A Pane” e de “A Promessa”, num único volume. São também histórias policiais, embora a classificação tenda a reduzir sua profundidade.
“A Pane” é um clássico do século 20, próximo de “O Estrangeiro”, de Camus, na sua objetividade sobressaltada e breve. Dürrenmatt, que aliás era péssimo e perigoso motorista, faz um cidadão de bem procurar ajuda numa mansão isolada, depois de um enguiço sem gravidade no seu Studebaker.
A marca do carro não tem importância nenhuma, mas Dürrenmatt gosta de se referir a produtos e anúncios reais: sapatos Bally, chocolate Lindt, revista Life. É a normalidade próspera do 
pós-Guerra europeu.
A culpa dos “cidadãos de bem” é explorada em “A Pane” numa espécie de sessão embriagada de justiça.
Já “A Promessa” traz uma pequena novidade no gênero policial. Interessa mais esclarecer o comportamento do detetive do que as razões do criminoso. Aparentemente, o caso estava resolvido: o suspeito de ser um assassino de crianças confessa seu crime e se mata.
O investigador Matthäi abandona uma carreira promissora e se torna dono de um posto de gasolina, afogando-se na ruína alcoólica. Não, não é o verdadeiro criminoso.
Mas é como se os caminhos da justiça e da verdade —não digo propriamente do Bem— fossem mais tortuosos do que os do Mal. Ao contrário das narrativas policiais clássicas, em que algum erro de detalhe leva à descoberta do assassino, no mundo de Dürrenmatt os crimes tendem a ser perfeitos, e os detetives sofrem de um excesso de confiança e de bastante falta de imaginação.
É algo que se pode, sem dúvida, atribuir aos cidadãos suíços. Mas Dürrenmatt não pretende confundir-se com seus compatriotas. O esforço de “normalizar” a Alemanha e a França depois de 1945 levou, como se sabe, a décadas de relativo silêncio sobre as responsabilidades coletivas no extermínio dos judeus. Mais do que isso, cuidou-se de absolver e anistiar, em etapas, muitos dos que se envolveram no genocídio.
Em mais de 650 páginas, a pesquisadora Mary Fulbrook dá conta desse processo de “lavagem de culpa” em “Reckonings” (que poderíamos traduzir por ajuste de contas), editado neste ano pela Oxford University Press.
Lorota alguém dizer que “não sabia de nada” durante os horrores do nazismo. Muitos julgamentos do pós-Guerra na Alemanha tiveram a presidi-los os mesmos juízes ativos no regime de Hitler.
“Testemunhos de sobreviventes eram descartados”, diz a resenha de “Reckonings” no Times Literary Supplement, se eles não soubessem precisar a data e a hora das barbaridades cometidas —algo evidentemente impossível de ser lembrado para quem vivesse a rotina de um campo de concentração.
Havia também um argumento jurídico interessante: ao matar suas vítimas, os oficiais nazistas não estavam contrariando nenhuma lei. E não há crime sem lei anterior que a defina!
Sobra anestesia para os criminosos, e fazer justiça —como tentam os personagens de “A Promessa” e “A Suspeita”— torna-se uma tarefa equívoca. Talvez por se insurgir contra a “normalidade” vigente, os livros de Dürrenmatt quase rompem os limites da credibilidade, do bom gosto e da simplicidade de estilo. Grandes tiradas retóricas, falas algo teatrais se destacam, não sem prazer para o leitor, do cenário limpo e realista.
“Nunca tive os romances policiais em alta conta”, diz um personagem. “Como os políticos fracassam de 
maneira tão criminosa, as pessoas esperam que ao menos a polícia possa botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior do que essa.”
Policiais contra políticos? Só? Que tal milicianos? Os “cidadãos de bem” parecem concordar.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

sábado, 2 de março de 2019

Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto 
Silencioso e branco como a bruma 
E das bocas unidas fez-se a espuma 
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. 

De repente da calma fez-se o vento 
Que dos olhos desfez a última chama 
E da paixão fez-se o pressentimento 
E do momento imóvel fez-se o drama. 

De repente, não mais que de repente 
Fez-se de triste o que se fez amante 
E de sozinho o que se fez contente. 

Fez-se do amigo próximo o distante 
Fez-se da vida uma aventura errante 
De repente, não mais que de repente.

De Vinicius de Moraes.


28/02/2019.

À maneira de Stanley Donen

Stanley Donen, morto na quinta (21) em Nova York, foi mais do que codiretor (com Gene Kelly) de “Cantando na Chuva” (1952). Está entre os cineastas que tornaram o mundo melhor pelo tempo de duração de muitos de seus filmes. Foi também, dos diretores de musicais, o que melhor usou recursos exclusivos do cinema para apresentar números de dança —e olhe que, tendo Gene Kelly ou Fred Astaire à frente da câmera, ninguém precisaria desses recursos. Mas Donen era um diretor de Hollywood, não da Broadway.
Em “Modelos”, de 1944, ele tornou Gene Kelly parceiro de si mesmo —um Gene imaginário salta de repente diante do verdadeiro e os dois dançam pelas calçadas de Nova York. Em “Marujos do Amor” (1945), botou Kelly para dançar com Jerry, o rato da dupla Tom e Jerry. E, em “Um Dia em Nova York” (1950), o primeiro musical filmado nas ruas, Donen transgrediu a cláusula da dança contínua, sem cortes, tornada pétrea por Astaire em 1935, e mostrou que, em certos casos, os cortes podem emprestar grande dinamismo à cena. 
Mas, se fosse para filmar em sequência, sem cortar, isso também podia ser feito à maneira do cinema, como o número de Fred Astaire em “Núpcias Reais”, de 1951, em que Astaire parece dançar nas paredes e no teto da sala —a “sala” era uma caixa presa a um eixo, que Fred fazia girar com seu próprio peso ao mudar de posição. E, no surpreendente “Procura-se uma Estrela” (1953), há o incrível número dos balões, em que Debbie Reynolds e Bob Fosse dançam de trás para a frente. 
Donen usou também truques de cinema em “Cinderela em Paris” (1956), com Astaire e Audrey Hepburn, “Um Pijama para Dois” (1957), com Doris Day, e “O Parceiro de Satanás” (1958), com Gwen Verdon, todos ótimos. 
Mas nada supera “Cantando na Chuva”, não? Por causa da famosa sequência, faltou água e ninguém pôde tomar banho em Hollywood naquele dia. Culpa dele.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Arrume uma mulher

Depois de uma reunião longa para tentar aprovar sem sucesso um comercial de bebida alcoólica, meu chefe da época me disse, na carona de volta para a agência, que achava que eu deveria usar sapatos mais abertos. Ele falou algo como: “Você é bonita, Tati, mas precisa de outros sapatos. Dê preferência para algum que faça parecer que o seu pé é maior. Pés muito pequenos são bem estranhos”.
Eu não tinha nem 30 anos e resolvi encarar o dito como um conselho. Pelo menos ele não estava dando em cima de mim ou me demitindo, o que fazia semanalmente com outras mulheres.
Logo depois que saí da propaganda e comecei a trabalhar com roteiros para cinema e televisão, um produtor me pediu que parasse de fazer caretas enquanto pensava. Ele disse que ficava me observando de sua sala e precisava comentar isso. “Você é bonita, Tati, mas mexe demais a boca, os olhos, as mãos.” Pensei em responder que é o que costuma acontecer com seres vivos, mas, na época, eu ainda nem tinha 30 anos e resolvi absorver aquela crítica como algo construtivo.
Esses dias me perguntaram por onde andava fulano, que por anos tinha sido um dos meus melhores amigos. Eu dei um longo suspiro de preguiça e respondi: “Ai, sei lá, peguei bode”. “Mas por quê?”, a pessoa insistiu. “Vocês estavam sempre tão juntos, tão animados.” É verdade, a gente vivia rindo. E a piada variava bem pouco: ou era sobre o meu cabelo ou sobre a minha roupa. 
Na hora me voltou esta cena: eu entro no carro dele, cheia de saudade, e ele aponta minha calça: “Nós vamos jantar ou você vai pedir esmola na porta do restaurante?”. Morri de rir, como sempre. Mas por dentro morri mais um pouco, como sempre. Tentei argumentar que era necessário ser muito chique e madura pra usar moletom e que, como ele não era um pretendente, me dei ao luxo de estar ainda mais à vontade. Porém aí é que estava o problema. Alguns homens não suportam estar ao lado de uma mulher não montada. Isso os ultraja como machos inseguros que são. Uma mulher não pode ser apenas uma pessoa normal, cansada, tranquila, profissional, amiga, amamentando, jantando, dormindo. Ela tem que ser um objeto o tempo todo. 
Quando eu tinha sete anos, tive uma alergia que cobriu meu corpo inteiro com pintas vermelhas. Era verão e eu tinha, é importante frisar aqui, sete anos. Minha mãe me botava vestidinhos de alcinha, mas meu pai e alguns tios comentavam: “Aff, esconde essas manchas dela”. Minha mãe respondia palavrões, 
e eu a amo demais por isso.
Antes de conhecer meu marido, tive um breve e estranhíssimo affair com um rapaz que vivia me pedindo que escurecesse as sobrancelhas (oi?). O cara era professor da USP e nem assim tive sossego: “Você é bonita, Tati, mas...”.
A maioria dos homens que cruzou meu caminho, fossem namorados, amigos, conhecidos, colegas de trabalho, chefes, parentes, desconhecidos completos na fila da padaria, queria me arrumar. Eles pediam que eu falasse mais baixo ou menos, ou que andasse mais rápido ou devagar. Pediam que eu fosse mais feminina ou menos mulherzinha. Pediam que eu fosse mais dependente ou menos disponível. Pediam que eu consertasse, endireitasse, alinhasse… dentes, colunas, posturas. Pediam que eu não escrevesse sobre eles ou não escrevesse sobre nada além deles. No fundo, o que eles queriam, penso agora, era ver enormes falos tão perfeitos quanto improváveis através dos olhos de uma impossível feminilidade sem furos.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

A morte de um ator

Pode-se dizer que foi o momento mais maduro de uma carreira que trazia atrás de si uma sequência de filmes marcantes. Desde o início dos anos 1970, Wim Wenders parecia imbuído da tentativa de se servir da linguagem de gênero, em especial do road movie e dos filmes noir, para falar de pessoas deslocadas de seus lugares naturais, tocadas por encontros improváveis e aparentemente impossíveis.
No que ele recuperava o antipsicologismo, ou seja, a compreensão de que uma vida não era o desdobramento de uma personalidade psicológica em desenvolvimento e progressão, de uma de suas maiores influências: Michelangelo Antonioni.
Sua capacidade de reviver como alemão (o que, neste caso, só podia significar como um estrangeiro) os fundamentos da linguagem cinematográfica americana parecia caminhar em um crescendo.
Então veio "Paris, Texas", com seu deserto, suas vidas desertificadas, seu blues traumatizado na guitarra de Ry Cooder. O filme e sua história, sobre um marido e pai que enlouquecera de ciúme, incendiando a própria casa e desaparecendo no deserto, para depois retornar, a fim de procurar aproximar o que ainda poderia ser aproximado e novamente desaparecer.
Depois disso, veio "Asas do Desejo" como a figuração de um encontro que o filme anterior não permitira. Encontro em uma Berlim dividida sobrevoada por dois anjos passivos, que apenas observavam o correr das vidas humanas, mas sem poder fazer muita coisa, com um olhar que misturava complacência e indiferença.
Um desses anjos era Bruno Ganz, o ator que morreu na semana passada. Desde "O Amigo Americano", todos sabiam que se tratava de um grande ator, mas agora havia algo de deslumbrante.
A história de um anjo que se apaixona por uma trapezista, que se humaniza e larga a imortalidade para poder sentir o calor de uma xícara de café, o frio do vento e trabalhar em um circo estava no limite do melodrama e facilmente poderia redundar em fracasso.
Mas todos que viram o filme sabem da força de seu magnetismo e muito disso se deve a Bruno Ganz. Seu olhar surpreso e infantil, seus gestos lentos, como quem descobre uma terra completamente desconhecida e testa a sua segurança, com sua fala de quem está a recitar um poema mesmo quando descreve as cenas banais a que assistira no dia, tudo isso foi marcante para toda uma geração que cresceu nos anos 1990.
O teatro e o cinema guardaram um sentido de "expressão" que se modificou no interior de outras artes após o romantismo. Se, para a música ou para a literatura, expressão significará exteriorização da singularidade de quem serve de suporte à produção das obras, o teatro e o cinema admitirão "expressão" como conformação a um papel, como o desaparecer no interior de um outro.
Uma das maiores ironias do cinema contemporâneo é ver aquele que mais bem soube expressar um anjo aparecer uma década depois como a mais crível representação de Hitler que se tem notícia.
Quando "A Queda" apareceu, não foram poucos os que criticaram Ganz por ter criado um Hitler "demasiado humano". Sua mistura de explosões impotentes de raiva, de certa empatia por algumas figuras, seu ar cansado e rígido: tudo isso retirava Hitler das caricaturas psicológicas e lhe colocava ao alcance da mão, como se ele pudesse ter aparecido em qualquer lugar.
Sua loucura advinha próxima, e o que os críticos de Ganz não entenderam era como essa era a mais aterradora representação da catástrofe. Descobrir que alguém como Hitler, o responsável pela destruição enfurecida de tudo à sua volta, pelo assassinato industrial de milhões, não estava assim tão longe de nós. A força da reflexão sobre a catástrofe é mais presente quando lembramos como o que é monstruoso pode ter nossos traços.
Assim, caminhando do céu ao inferno, Bruno Ganz mostrou o que pode um ator. Quanta vida é capaz de criar aquele que empresta o seu corpo a uma ideia.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo