sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Lá longe, onde tem guerra


Eis que acordo hoje, dia 24 de fevereiro, e sou informada pelo jornal que existe uma nova guerra no mundo. Minha amiga conta que o marido, ucraniano, passou a madrugada ao telefone com primos, numa conversa sobre os melhores momentos da infância, em tom de despedida. O que eu sinto? Uma tristeza distante, um pesar controlado e comedido, uma dor que não se compara à que eu senti semana passada, em uma das minhas crises de enxaqueca.

A primeira coisa que penso, antes de o meu superego agir, é que "isso não tem nada a ver comigo". Tenho vontade de escrever no Twitter: "Até quando vamos aguentar a iminência do fim da humanidade, no sentido amplo da expressão?". A verdade? Eu estava tomando um suco verde enquanto escrevia essas palavras. Preciso dizer que me importo quando, de fato, se não houver ameaça de bomba nuclear, eu não me importo taaaaanto assim. Então apago, morta de vergonha.

Na minha ignorância sobre política e no meu individualismo de branca da zona oeste paulistana que sofre pelos acontecimentos enquanto lê o jornal deitada no sofá e embaixo do ar-condicionado, confesso que tentei me acalmar com artigos de especialistas garantindo que não há a menor chance de uma terceira guerra mundial. O que você mais quer saber é se sua família corre algum perigo. Até aí normal. Será que é mesmo normal?

Para piorar, não agimos assim só quando é no Afeganistão, na Ucrânia ou em algum país africano.

Eu não canso de pensar que o quiosque em que espancaram, amarraram e assassinaram Moïse seguiu funcionando normalmente enquanto o corpo dele estava no chão. Ontem pensei isso fazendo esteira. Esteira? Meu pensamento tem algum valor então?

Acabei de entrevistar Anielle Franco para o meu podcast, e ela me contou que no dia em que mataram sua irmã, a vereadora Marielle Franco, ela recebeu, no grupo de WhatsApp do bairro onde mora, a foto do rosto de Marielle desfigurado por cinco tiros. Foi demitida, logo após essa ameaça, das três escolas em que dava aula de inglês para adolescentes. Os pais dos seus alunos cuspiam no chão quando ela passava. Foram anos tentando contar a verdadeira história da irmã, porque a fake news de que Marielle era "mulher de traficante" já estava prontinha para ganhar as redes antes mesmo de encomendarem a morte dela. Anielle é ofendida diariamente, tratada como "preta vagabunda atrevida", porque não ficou quieta na favela, tem três mestrados e luta por sua família e por outras mulheres pretas. Em suas redes sociais, atura semanalmente haters chamando a sua irmã de "peneira".

Eu achava que a história de Anielle e de Marielle estava longe de mim. Claro que sofri na época, fiquei indignada, fiz meus posts, assisti ao documentário, escrevi sobre isso. Mas perdi alguma noite inteira de sono? Não.

Acontece que agora conheci pessoalmente Anielle, a entrevistei, me apaixonei e senti uma vontade profunda de, quem sabe um dia, ter a sorte de estar próxima dela. Ser amiga. Conhecer sua mãe. Conhecer Luyara, sua sobrinha. E poder, finalmente, virar um ser humano, e não uma replicadora de tuítes progressistas.

Quantos de nós, mesmo sem admitir, acham "saudável" pensar –para não pirar ou apenas para seguir tranquilo eu seu lugar de privilégio– nos casos de Moïse, Marielle e Anielle como "algo distante", da favela, algo que acontece bem longe, em outro país, em outra língua. Até quando vamos pensar na dor de um país gigante, de maioria preta e pobre, como se eles estivessem lá na Ucrânia? E olha que já seríamos bem cruéis e boçais se pensássemos que a própria Ucrânia fica láááá na Ucrânia.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Palavras de nossos professores passam a fazer parte de quem tentamos nos tornar


Na sexta-feira (18), durante o vendaval provocado pela tempestade Eunice, defendi a minha tese de doutorado e —embora o clima fosse digno de maus presságios, com um amigo a mencionar que as bruxas de "Macbeth" estavam chegando para testemunhar a minha defesa—, tive a sorte de contar com uma banca de avaliadores de ânimo solar, composta por professoras cujo trabalho acadêmico e postura profissional sempre me serviram de exemplo.

Assim, a coisa que sempre temi, por imaginar ser algo semelhante à cena de tortura em "Cassino Royale", de Ian Fleming, em que James Bond quase perde os seus mais preciosos órgãos, mostrou-se bastante acolhedora, e o debate entre os participantes fluiu de modo a apontar maneiras de levar o meu trabalho adiante. Saí da experiência enriquecida, com a sensação de que os meus esforços dos últimos cinco anos foram justificados e que, agora, eu estaria livre para seguir o meu caminho.

Horas antes, no entanto, tive um acesso de choro e liguei para a minha mãe, pois as últimas semanas haviam sido marcadas por eventos que sinalizavam a importância do momento por vir.

Desde janeiro, trabalhando incessantemente em candidaturas de bolsas de pesquisa, tive várias conversas com a minha antiga orientadora de mestrado, escrevi cartas de apresentação, atualizei o currículo e, nesse processo, de tanto revirar os meus papéis, encontrei o meu primeiro boletim escolar assinado por Ariane de Lima Tavares Silva, minha professora de alfabetização no colégio Equipe, em Recife.

Não sei se ela continua viva ou se ainda dá aulas na mesma escola. Desconheço, inclusive, se Ariane é assinante da Folha. Mas gostaria de deixar registrado em algum lugar que ainda tenho lembrança de muitas das nossas aulas e que "O Rabanete Gigante", livro que ela nos deu de presente ao concluirmos os estudos daquele ano, foi a primeira obra sobre a qual me debrucei com afinco.

Ariane ensinou-me a ler e a entender o mundo através das palavras. No ano seguinte, uma nova professora, Sonja, apresentou-me a música de Milton Nascimento e disse que eu precisava melhorar o meu ritmo de trabalho, pois eu insistia em fazer tudo ao meu próprio tempo, sendo, muitas vezes, uma das últimas crianças a deixar a sala.

Depois veio Márcia, professora da segunda série, com quem a nossa classe ou, pelo menos, os meus amigos mais próximos —a turma que passava o recreio na biblioteca lendo o "Guia do Escoteiro Mirim"— nunca se deu muito bem porque ela sempre acabava perdendo a paciência na hora de nos ensinar matemática.

Márcia faleceu de repente no final daquele ano letivo, deixando-nos aflitos. Pois, além de ainda não conhecermos palavras para explicar a arbitrariedade com a qual a morte muitas vezes se apresenta, tínhamos colocado na cabeça que aquilo só poderia mesmo ser culpa nossa. E foi esse primeiro contato com a morte que me aproximou da filosofia.

Muitos outros professores passaram pela minha vida escolar. Alguns foram quase que totalmente esquecidos, outros deixaram forte impressão. Lúcia Costa, professora de história, talvez não saiba disso, mas, antes mesmo de nos conhecermos, eu fingia ter vontade de ir ao banheiro só para passar algum tempo no corredor a escutar as suas aulas.

Depois, já mais velha, quando finalmente tornei-me sua aluna, ela levou a nossa turma para conhecer o Rio de Janeiro. Aquilo para mim foi a realização de um sonho e, ainda hoje, aquelas primeiras lembranças que eu tenho do Rio informam todas as minhas leituras de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Rubem Fonseca e Machado de Assis.

Beth Cardoso, minha professora de inglês da quinta à oitava série, foi uma das primeiras pessoas para quem eu tive coragem de mostrar algo escrito por mim: uma poesia. A partir de então, passamos a discutir literatura, música e cinema. Permanecemos amigas e, hoje, os netos de Beth regulam a idade que eu tinha quando nos conhecemos.

Contudo, tem uma professora, Iara Arteiro, a quem muito devo. Pois foi ela quem, com infinita paciência, mesmo sabendo que biologia, química e física jamais seriam as minhas disciplinas prediletas, despertou o meu gosto pela vida acadêmica.

Além de estar conosco em sala de aula, Iara costumava coordenar as nossas feiras de ciências e foi ela quem me ensinou a montar um projeto de pesquisa e incentivou-me a questionar os autores que, para mim, pareciam ter dito verdades absolutas.

O dia em que vi Iara criticar alguns aspectos do pensamento de Aristóteles com argumentos bem-formulados, pautados em suas leituras de anos, talvez décadas, foi o dia em que finalmente compreendi que o conhecimento é vivo e que ele se estabelece a partir de uma incessante troca, sem que isso signifique, necessariamente, que a antiguidade de uns tenha primazia ante a novidade dos demais.

Pois, no plano das ideias, estamos irremediavelmente ligados uns aos outros e, por isso mesmo, permanecemos, até certo ponto, contemporâneos.

Há uma narrativa talmúdica que ilustra essa dinâmica. Antes de entregar a Torá, Deus teria passado algum tempo desenhando, com muito esmero, coroas no topo das letras. Moisés, apressado, porém não menos curioso, perguntou o porquê de tanta firula. Deus então explicou que no futuro surgiria um homem, Rabi Akiva, que conheceria aquele texto de cabo a rabo e dele seria capaz de extrair uma porção de leis; aquelas coroas, portanto, seriam para ele.

Enciumado, Moisés teria pedido a Deus para ver Akiva. O seu pedido é atendido. Ele é transportado no tempo e, por alguns instantes, testemunha o debate entre o sábio e os seus discípulos. Logo alguém pergunta: "Akiva, de onde você tirou isso?" e ele responde: "Esta é uma lei dada a Moisés no Monte Sinai e transmitida para sucessivas gerações." Então Moisés, que tudo observava, reconforta-se, pois o seu nome e os seus esforços seriam devidamente lembrados.

Ao nos preparar para a vida, os nossos professores esforçam-se para que, durante a transmissão do conhecimento, cada pequeno detalhe mostre-se capaz de despertar a nossa curiosidade intelectual. Ao fim e ao cabo dessa tarefa, permanecemos parceiros.

As suas palavras, somadas a tudo aquilo que vivemos e descobrimos juntos, passam a fazer parte do que um dia, quem sabe, conseguiremos nos tornar.


Texto de Juliana de Albuquerque, na Folha de São Paulo

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Ser enviada ao espaço não abala o senso prático de mulheres racionais


O espaço começa onde a atmosfera da Terra termina: a cem quilômetros do nível do mar. Imagine, então, o que é estar lá em cima, completamente só, e perceber que sua cápsula espacial tá sem freio. Subindo e subindo, rumo ao infinito.

"Eu também não tinha uma escova de dentes a bordo", disse Valentina Tereshkova, primeira mulher enviada ao cosmo. "Mas tudo bem, esse nem era o maior dos meus problemas."

Com ou sem gravidade, na rua, na chuva, na fazenda ou no Cinturão de Órion, poucas coisas abalam o senso prático de uma mulher racional. E talvez seja para lembrar disso que mantenho, numa parede da minha casa, o retrato dessa heroína russa que completará 85 anos daqui a alguns dias.

Valentina começou pé no chão. Bateu ponto em fábrica de pneus e foi tecelã, até que ingressou no paraquedismo e saltou para a glória no programa espacial soviético.

Em 1963, Nikita Khruschov apostava corrida com John F. Kennedy e a URSS decidiu botar uma mulher em órbita. Os pré-requisitos: ser jovem e ter menos de 1,70 m, pois a Vostok 6 era do tamanho de um Fusca. Dentre 5.000 candidatas, as finalistas contavam com uma engenheira, uma matemática, uma professora e uma datilógrafa, mas Tereshkova ganhou a vaga na base do carisma e da experiência com saltos. Tudo parecia ideal para que se fizesse história, tal como Iuri Gagárin dois anos antes. Chato é que quase deu ruim.

Zunir um ser vivo para fora do planeta jamais será moleza. Moscas de fruta tornaram-se as primeiras cobaias, em 1947. Teve também Laika, a cadelinha que em 1957 encontrou seu trágico destino nas estrelas. Quando Tereshkova foi ali rapidinho, "ver uma coisa no universo e já volto", havia um know-how sobre idas e vindas cósmicas, mas ainda assim ficou puxado para ela.uxado.

Usando o codinome Chaika —gaivota, em russo—, a cosmonauta viajou agarrada a um manual com mais de cem páginas. A fim de driblar a espionagem dos EUA, sua comunicação era tão secreta que se dava por códigos que relacionavam perrengues (como inchaços e vontade de fazer xixi no espaço) a nomes de frutas e plantas.

Se ela ficasse nauseada, a palavra-chave era "cana-de-açúcar". Menstruada, "framboesa". E em caso de aterrissagem na água, a saída era gritar "samambaia" —muito a calhar, inclusive, quando o algoritmo de pouso deu pane, Tereshkova se ejetou e quase caiu num lago.

Aos 26 anos, depois de 71 horas e 48 voltas ao redor da Terra, chegou sã e salva, mas irritando a chefia. Tudo porque em vez de se submeter a testes e aferições pós-reentrada, a gaivota soviética foi filar uma janta oferecida por aldeões que vibravam pelo seu feito.

Hoje, Valentina possui não só um legado de feminismo e pioneirismo, mas também uma cratera lunar e um asteroide batizados em sua homenagem, além do humilde retratinho aqui em casa. E em vez da aposentadoria, disse que prefere visitar Marte. Tá certíssima. Apenas o sonho define a última fronteira, mesmo quando se é racional. Queria até ser uma mosquinha para ir junto.


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Imagem de Valentina Tereshkova, disponibilizada pela AFP, publicada junto com a coluna de Bia Braune. 

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Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Se você acha que está mal, leia a história do homem atingido por sete raios


Quando a vida corre mal e eu sinto que tudo está contra mim, não faço nenhuma das coisas que os livros recomendam. Não respiro fundo, não procuro concentrar-me nos aspectos positivos, não busco refúgio junto de quem me ama. Vou ler a história de Roy Sullivan.

Roy Sullivan era guarda-florestal no parque nacional de Shenandoah, na Virgínia, Estados Unidos, e ao longo da vida foi atingido por relâmpagos sete vezes. Segundo a Wikipédia, quando Sullivan foi atingido pelo quarto relâmpago "começou a acreditar que uma força qualquer estava a tentar destruí-lo".

Não sei se estão a ver aonde quero chegar. Sullivan foi atingido uma primeira vez por um relâmpago em 1942. A probabilidade de uma pessoa ser atingida uma vez na vida por um raio é de 0,0001%. Por isso, é possível que, nessa altura, Sullivan tenha pensado apenas: "Que azar." Mas em 1969 ele foi atingido pela segunda vez. E em 1970 foi atingido pela terceira vez. Quando, em 1972, um relâmpago o atingiu pela quarta vez, aí ele começou a ficar desconfiado.

Os três primeiros relâmpagos não o inquietaram muito, apesar de o primeiro lhe ter deixado um buraco no sapato, o segundo lhe ter posto as sobrancelhas, as pestanas e o cabelo a arder, e o terceiro lhe ter queimado um ombro. Mas ao quarto relâmpago ele ficou a pensar.

No entanto, não se mudou para um lugar onde não houvesse trovoada. Aguentou firme. Um ano depois, quando o quinto relâmpago veio fulminá-lo, ele estava preparado. Assim que o raio o atingiu, ele se dirigiu ao seu carro, onde tinha um balde de água para apagar o fogo do cabelo, e depois continuou a patrulhar o parque.

Três anos mais tarde, viu uma nuvem a se formar no céu e achou melhor se afastar. Mas o sexto relâmpago, como um perdigueiro, mesmo assim conseguiu encontrá-lo. E, um ano depois disso, quando ele estava a pescar calmamente, o sétimo relâmpago queimou-lhe o peito e o estômago, além de ter voltado a lhe incendiar o cabelo.

Quando estava a caminho do carro, para ir buscar o balde, reparou que um urso tentava roubar a truta que ele tinha pescado. E então voltou, para bater no urso com um ramo de árvore.

Sullivan estimava que aquela era a 22ª ocasião na sua vida em que tinha sido forçado a bater num urso com um ramo de árvore. Parece um tormento. Mas, quando o universo conspira contra nós desta maneira, alguma importância teremos. É o universo contra nós. E nós, apesar de tudo, temos um balde.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, o RAP, na Folha de São Paulo

Depois do vendaval


E assim tivemos, como um vendaval, o 100º aniversário do evento que, quando aconteceu, foi só uma suave brisa: a Semana de Arte Moderna. Como de hábito, as reações a essa frase seguirão ignorando a sugestão de que se aproveitasse a efeméride para contar a história da Semana pelos documentos da época, não como ela passou a ser reescrita décadas depois. Em vão. No Brasil, de 50 anos para cá, pode-se discutir até se a Terra é oval, menos questionar a Semana.

Depois do oba-oba que rendeu muito dinheiro —os 100 anos da Semana garantiram o semestre de várias empresas—, seria razoável supor que o resto do ano servisse para discuti-la de forma objetiva e madura. Mas isso não acontecerá. O sistema que sustenta a Semana só admite o mais do mesmo, e incansavelmente repetido.

O centenário tentou consolidar a ideia de que, até 1922, o Brasil era um gigante adormecido, que Oswald e Mario de Andrade vieram despertar. Mas essa ideia não cola. Quem dormia e roncava em 1922 eram Oswald e Mario. Eles nunca tinham lido "Um Estadista do Império" (1897-99), de Joaquim Nabuco, "Os Sertões" (1902), de Euclydes da Cunha, "A América Latina, males de origem" (1903), de Manuel Bonfim, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" (1909), de Lima Barreto, "Vida Vertiginosa" (1911), de João do Rio, "Eu" (1912), de Augusto dos Anjos, "Rondônia" (1916), de Roquette-Pinto, e outros livros que já estavam revelando o Brasil aos brasileiros.

O Brasil já tinha também um naipe de engenheiros, astrônomos, biólogos, botânicos, matemáticos, epidemiologistas e radiologistas de que podia se orgulhar. Mas a Semana, só interessada em estética, passou longe da ciência e de outras disciplinas.

Não fez falta. A Exposição Internacional do Centenário, aberta no Rio sete meses depois —um ano em cartaz, 14 países expositores, três milhões de visitantes e o encontro concreto com a modernidade—, se encarregaria disso.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Frequentar uma praça


Indo do Parc Güell pro bairro gótico, no meio do Passeio de Gràcia, sugeri um desvio. Queria mostrar à Julia a Plaza del Sol, meu velho quintal em Barcelona.

Tomei cerveja ali quase todos os fins de semana de 2002. Assisti ali a um teatro de fantoches patafísico e a um curdo tocando alaúde. Fiquei amigo do curdo –os fantoches não me deram bola.

Ali a Phydia ia trabalhar de skate, como garçonete, enquanto juntava um dinheiro para se mudar da nossa sala– a república "lliure" da Carrer Aribau 139 4A, que chegou a hospedar até sete brasileiros simultaneamente, para desespero do gentil vizinho de baixo, que nas noites mais barulhentas esmurrava a porta e insistia em me ensinar, de graça, todos os palavrões da língua catalã.

Na Plaza del Sol, principalmente, ficávamos de papo pro ar, singrando as tardes infinitas dos 20 e poucos anos e ouvindo Manu Chao sob o doce aroma da carburação de especiarias florais oriundas das arábias.

Saindo do Passeio de Gràcia eu disse pra mim mesmo –como um seguro-decepção, acho –que provavelmente a Plaza del Sol tinha mudado muito, não devia ter mais nada a ver com o que era antes. Viramos à direita, um quarteirão, outro, comecei a ouvir uma música, a sentir aquele cheiro e –¡óstia! (obrigado, vizinho)– lá estava ela, cheia de jovens, com show.

Vinte anos tinham se passado e a praça seguia tendo exatamente o mesmo significado na cidade, o mesmo casting, a mesma dramaturgia –só umas pequenas mudanças no figurino, concessões naturais à passagem do tempo.

Que diálogo misterioso é esse entre as pedras e as pessoas? Como se cada pedaço de chão tivesse sido imantado com a intenção dos que o pisaram antes. Aqui, trabalho. Aqui, boêmia. Aqui, jovens. Aqui... (Coisas que a gente faz aqui e não admite ali). Por décadas. Por séculos.

O conforto ao pensar nessa transcendência urbana me veio com um travo: moro em São Paulo, cidade em que tudo parece tão construção e já é tão ruína que o cara põe na frente da quitanda "Desde 2011" como se fosse um triunfo –e é.

A urbanização de São Paulo e do Rio nos últimos 150 anos foi: "tira os pobres daí, joga os pobres pra lá, abre um cercadinho VIP onde estavam os pobres. Depois, quando der problema lá com os pobres, a gente culpa os pobres e vê como faz".

Da grande reforma do Pereira Passos, no Rio, em 1903, à nova Faria Lima do Maluf, 90 anos depois, a lógica foi a mesma.

Nosso atraso mal travestido de avanço entortou o "liberalismo" até (quase) encobrir seus privilégios. Agora tem torturado o termo "conservadorismo" para que assuma crimes que não cometeu. O que o "conservador" brasileiro conserva além da babá de branco e do medo de ser gay?

São os ditos "conservadores" que desmontam órgãos de regulamentação urbana e preservação histórica como o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), desmantelam o Ibama, fazem lobby pra subir prédio em qualquer canto e constroem condomínio em Área de Proteção Ambiental. Seria lindo se a direita brasileira lutasse pelo capitalismo e os conservadores pelo conservadorismo.

O rico brasileiro é um miserável e não sabe. Preso entre colunas jônicas e concertinas, acha que é "de primeiro mundo" se entupir de Prada & wagyu; jamais vai entender a alegria civil de frequentar uma praça.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Qual o limite da desgraça?


Faz uns 12 anos, eu acho, alguém teve a ideia de perguntar a um comediante quais eram os limites do humor. Quando deixou de ser possível sacanear gordo, preto, pobre, mulher, loira, puta, pessoa com deficiência, sogra, empregada doméstica, o que restou? Foi aí que parte da humanidade, em um uníssono cheio de brilho, decência, evolução e caráter, resolveu que havia chegado o grande momento. Sim! A hora de tirar sarro dele: o homem branco, magro, hétero, rico e que faz crossfit. Mas o homem branco, magro, hétero, rico e que faz crossfit não parece chateado. Livros, stand-ups, quadrinhos, filmes, seriados, quase todo o Instagram progressista e até novelas batem diariamente nesses tipos. E nós rimos muito. E eles riem também, mas é porque acabaram de clarear ainda mais os dentes e gostam de imaginar, inabaláveis, que de suas bocas saem raios que cegam o restante do planeta.

Como tomaram a decisão consciente de jamais escolher parceiras que perpetuem a chacota merecida para dentro do lar, seguem blindados no ouro indelével do amor materno. As progenitoras, e aqui vai uma crítica a algumas mulheres da época de minha mãe, tratavam melhor seus filhos homens. Vão ser necessários cem anos de massacre jocoso para que a autoestima do homem branco hétero sofra um tantinho. Mas não vamos desistir.

O problema é que, desde quando o primeiro repórter perguntou a um comediante quais eram os limites de humor, milhares de repórteres repetiram a mesma pergunta a milhares de comediantes. E ninguém aguenta mais. A pergunta sobre a baliza de uma piada ultrapassou todas as barreiras e virou a coisa mais sem graça que existe. Então é preciso reformular. É preciso arriscar uma novíssima forma de indagar as fronteiras da comicidade. E eu sugiro, urgentemente, irmos para o extremo oposto: qual o limite da desgraça?

O fulano pode subir num palquinho imaginário, no seu trabalho, e falar que os quatro ovos da dieta o deixam sarado, mas também provocam nele uma imensa quantidade de gases? Poder, ele pode. Mas qual o limite? Porque se ele falar que o cheiro do seu pum fede menos do que "a roubalheira da esquerda" daí não dá mais. É preciso parar essas pessoas.

Porque uma coisa é tirar a Dilma (sempre deixando claro que foi golpe, sim). A outra é tirar a vida de mais de 640 mil brasileiros. Uma coisa era ser um hippie negacionista que dava a vacina tríplice e passava a vida achando que cada espirro do filho era um sinal de autismo. Outra é negar a transfusão de um sangue "vacinado contra a Covid" para um filho morrendo. Uma coisa é defender pluralidade e contratar pensadores da direita, outra é dar espaço para textos que incitam o racismo e, francamente, são mal escritos pra cacete. Uma coisa é defender liberdade de expressão, outra é achar que nazismo pode ser considerado "uma opinião". Se há 15 anos existiam "piadas de anão" e isso se provou um absurdo que hoje nos faz querer morrer de tanta culpa e vergonha, como vai ser quando, no futuro, a gente perceber que em 2022 o racismo e o nazismo foram confundidos –até mesmo em manchetes de jornais respeitados– com pautas ou assuntos ou debates? É o retrocesso do retrocesso do retrocesso. É o fundo do poço.

É preciso discutir os limites da desgraça. Talvez seja ok matar uns bichinhos e umas árvores, mas quando foi que destruímos tanto o meio ambiente a ponto de os desastres climáticos se tornarem rotina? Como encarar o fato de que no futuro nossos filhos talvez não tenham nem água para beber? Um jovem preto foi espancado e morto em seu local de trabalho, que continuou funcionando normalmente enquanto o corpo do rapaz estava ali no chão. Quem viu essa foto? Ah, é notícia antiga! Não é, não. Aconteceu de novo ontem e deve ter acontecido agorinha mesmo. Preocupados com os limites do humor, não notamos o quanto já ultrapassamos todos os limites da tristeza.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nídia Caldas Mafra (1960-2022): Missionária, hippie e comunista, viveu para amar ao próximo


Tão logo nasceu, Nidia Caldas Mafra foi apresentada ao bisavô materno, que era índio guarani, como a "bugrinha linda" que Deus tinha enviado para a família. E desde então, para alguns familiares e muitos amigos era apenas a Bugra.

Bugra era muitas vezes comparada a uma jaguatirica, lembra a filha Tamara Chaves Caldas Mafra Ramos, 38. "Ela era muito brava e peitava mesmo", recorda.

A braveza, porém, era só uma aliada de seu desejo de querer mudar o mundo. E, para isso, desafiou alguns padrões estéticos e de cultura. Foi comunista e hippie, mas foi como missionária que viveu plenamente.

Era início da década de 1970, quando tinha apenas 13 anos, que Bugra se juntou ao Partido Comunista de Florianópolis, onde vivia com a família.

"Ela queria mudar as coisas, fez amizades com pessoas do partido e se apaixonou pelas ideias", lembra Tamara.

A vida revolucionária caminhava com as orações da irmã mais velha, Sônia, para que ela conhecesse a Jesus.

Por insistência de Sônia, concordou em ir a um acampamento de adolescentes da igreja, mas com uma condição: se fosse e ficasse até o fim, nunca mais a irmã iria falar de Jesus para ela nem deixar bilhetes com versículos da Bíblia pela casa, como fazia com frequência.

Condições aceitas e orações atendidas. Bugra não só conheceu a Jesus como também o grande amor de sua vida, o João, que viria a ser o seu marido e pai de seus dois filhos.

E foi a partir deste acampamento que a vida de Bugra começou a ter um novo sentido: amar os amados de Jesus, em especial os mais necessitados.

Seu primeiro chamado foi quando passava pela praça 15 de Novembro, no centro de Florianópolis, e ouviu Deus dizer para que ela voltasse à praça, pois ali estava parte do povo dele. Na época, a praça 15 era tomada por hippies.

Em meio a dúvidas sobre como abordá-los, Bugra pediu confirmação e orientação a Deus, que respondeu prontamente, segundo a filha.

"Ela foi e simplesmente viveu no meio dos hippies sem dizer que era crente. Viveu com eles durante um ano. Não usou drogas e só namorava o meu pai, de quem era noiva na época. Foi durante esse tempo que ela exercitou o que acreditava: amor não é só palavra. Amor é atitude", conta Tamara.

A filha lembra que da praça 15 de Novembro saíram ao menos 30 missionários, hippies que se converteram ao Evangelho e foram para o mundo pregar o amor de Jesus. Bugra só deixou de ser missionária entre os hippies para se dedicar aos filhos.

Em 1991, após uma pregação na igreja Batista de Florianópolis, fundou o Projeto Siloé, ONG que acolhe dependentes químicos e seus familiares, além de atuar em hospitais e presídios.

Em 2006, quando ficou viúva, Bugra decidiu intensificar sua vocação missionária e se dedicava integralmente à pregação do Evangelho e à Capelania Hospitalar.

"Ela amou muita gente que muitos não conseguem amar. Ela sempre dizia: ‘se a gente não for [ajudar os necessitados], quem é que vai? Não podem nos impedir de amar’", conta a filha.

Bugra teve um AVC em 2018, mas se recuperou completamente. Em 31 de janeiro deste ano, teve uma série de convulsões em casa e foi levada ao hospital já em coma. No dia 7 de fevereiro, não resistiu às complicações das convulsões. Morreu no mesmo dia em que completaria 41 anos de casada.

Viúva, Bugra deixa dois filhos, Tamara e Josué, três netos e muitos irmãos e irmãs de fé, que conheceram o amor de Jesus por meio de sua missão.


Texto escrito por Regiane Soares, publicado na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O 'making off' do 'pout-pourri'


Quem hoje sofre ao ver a língua do dia a dia poluída por bijuterias anglófilas como "enderecei o problema", "é sobre isso" e "call" talvez não saiba que, não faz tanto tempo, era da França que importávamos nossos brilharecos verbais.

Até ali pela altura dos anos 1970, era comum abrir uma revista ou jornal brasileiro e ler uma frase como esta: "O frisson causado pelo derrière charmant daquela cocotinha faux maigre entrevista na plage de Ipanema levou o austero pai de família a cometer um típico faux pas –e pá!".

Exagero um pouco? Ça va sans dire, ou melhor, é claro que sim! C’est la vie dos cronistas, ué. Mas me lembro bem: quando eu estava aprendendo a ler as palavras e o mundo, sem alguma bagagem de francofonia de orelhada não se ia longe.

Uma francofonia muitas vezes détraqué, escangalhada. Nosso jornalismo musical, por exemplo, não conseguia sustentar três compassos sem se estabacar na expressão "pout-pourri" –que em francês nunca existiu, uma vez que "pout" não chegou a se constituir como palavra na língua de Saussure.

Tem sido cada vez mais raro, mas ainda acontece de toparmos com o fantasma dessa bobagem por aí. Com o sentido de mistura de diversos temas musicais num único número –"medley" em inglês–, a expressão correta é "pot-pourri". Trata-se de uma tradução do espanhol "olla podrida", literalmente panela podre, quer dizer, mistureba de carnes e legumes, cozidão.

Por que o putrefato "pout-pourri" se consagrou na língua brasileira é um mistério que demandaria investigação específica. A duplicação do contorno vocálico de "pourri" parece uma boa hipótese inicial.

Óbvio que a ignorância sobre a língua que assim se demonstra admirar é inseparável de leituras criativas como essa. Tanto no mecanismo do erro quanto em sua consagração, algo semelhante ocorreria décadas mais tarde com a expressão inglesa "making of".

A crença na superioridade intrínseca das consoantes dobradas parece estar por trás da exuberante versão brasileira "making off", praticamente a única que se encontra em nossos textos.

Como "pout-pourri" em francês, "making off" não existe em inglês –ou até existe, mas com o sentido inteiramente diverso de fuga, escapada. Boa senha para fugir dele. Em todo caso, o critério da correção acaba dizendo pouco sobre o fenômeno dos atavios estrangeiristas.

Uma conclusão a que chegamos ao examinar mais de perto a francofilia recente de nossa imprensa é que ela representava uma tentativa meio desajeitada de democratizar o acesso a um conhecimento que, poucas décadas antes, fazia questão de excluir na cara dura a massa dos leitores.

Com todo o seu pedantismo e toda a sua jequice, salpicar francesices no texto como quem tempera generosamente um cassoulet já era, na minha infância, um avanço inclusivo.

A geração anterior de intelectuais brasileiros –inclusive os mais progressistas– gostava mesmo era de citar estrofes inteiras de Baudelaire sem tradução. Traduzir para quê? Falar francês, privilégio de poucos, era o pedágio mínimo para entrar no papo. Classismo sempre foi coisa nossa.

Como se sabe, aquela onda francófila foi perdendo o élan até se quebrar, antes mesmo do fin de siècle, contra o imenso rochedo anglófilo que hoje é dominante na paisagem.

Agora o dernier cri –o último grito, aquilo que há de mais quente– é endereçar um problema no fim do dia. Hélas, vai passar também.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Bolsonaro reforça garimpo na Amazônia, mas com peneiras de crochê


O presidente Jair Bolsonaro editou um decreto para incentivar a "mineração artesanal" na Amazônia. O objetivo da ação, segundo o decreto, é estimular o "desenvolvimento da região".

Organizações de defesa do meio ambiente criticaram a medida. Para as entidades, o decreto é uma forma de driblar as leis ambientais e incentivar o garimpo ilegal na região Amazônica.

Assim como batizam abacate de "avocado na casqueta" e jaca de "jackfruit pulled meat", chamaram o garimpo predatório, clandestino e ilegal de "mineração artesanal". Foi uma forma gourmetizada de dizer: "Vamos acelerar a destruição do país, agora acabando com a fauna e a flora de rios e igarapés".

Para ficar coerente com o nome da atividade, garimpeiros passarão a usar barba, coque samurai, sandálias de couro e usarão peneiras de crochê. Mineradoras clandestinas vão ter nomes como "Garimparia da Villa Gourmet" e "Envenenazione di Fauna Artesanelle".

Já é uma prática do governo dar nomes pomposos para maquiar falcatruas e desastres administrativos.

Assim como chamam salada de "caminha de goma de mandioca rústica", corrupção, agora, é "orçamento secreto" e "golpe de 1964" é "movimento".

A pandemia foi rebatizada como "gripezinha" e mensalão como "rachadinha". Saudação nazista virou "mal-entendido", "fui mal interpretado" e "a declaração foi tirada do contexto".

Agrotóxico agora se chama "defensivo agrícola", nome que até faz sentido, pensando que os produtos "defendem" a morte de animais e seres humanos por envenenamento.

Seguindo a tradição de trocar nomes para disfarçar ações criminosas, o governo já planeja rebatizar outras ações.

Desmatamento se chamará "poda rústica de mata nativa para marcenaria". As queimadas de florestas serão rebatizadas como "arvoredos na brasa grill gourmet". Grilagem se chamará "reescritura artesanal de documentos para apropriação selvagem de terras".

A milícia se chamará "Serviço Militar Artesanal Não Voluntário" ou "Assassinaria Rústica de Humanos Selecionados".

Já a atual gestão do governo se chamará "desgovernaria familiar de destruição artesanal de um país gourmet".


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Brasil inventou a fuzarca e precisa exportar a tecnologia do furdunço


Duvido que tenha alguma língua no mundo com tanta palavra pra bagunça quanto a nossa. E o léxico não vem do grego ou do latim: nossos termos pra desordem nasceram por aqui, às vezes sem pai nem mãe.

Bagunça, por exemplo: tem pais desconhecidos, assim como furdunço e fuzuê. O Brasil inventou a fuzarca —ou talvez o contrário.

Auê, fuzuê, frege, bafafá, rebuliço. Qualquer falante do português saberá do que trata essas palavras, mesmo que nunca as tenha ouvido. Escarcéu e banzeiro vieram do mar. O primeiro é a onda gigante, o segundo é o mar agitado, e ambos passaram a designar agitação de gente que se comporta como o mar.

Minha vó chamava de murundum um baú cheio de cartas e fotos —corruptela de murundu, sinônimo de barafunda, aquele amontoado de qualquer coisa. Tenho pena das bagunças obsoletas, que morreram com o tempo. Ninguém nunca me chamou pra uma patuscada, um salsifré, um bailarico. Gandaia ainda se usa, mas só pra cair nela. Já ninguém se levanta pra uma gandaia.

Baderna veio da Marietta —a bailarina italiana que fez um sucesso estrondoso no Rio ao misturar danças africanas e balé clássico— isso em 1850. Proibida de dançar lundu nos palcos, passou a dançar ao ar livre, no largo da Carioca, junto com africanos escravizados.

Baderna virou, primeiro, sinônimo de beleza, depois de tumulto: seus fãs, os badernistas, protestaram contra a proibição fazendo o que melhor sabiam fazer: fuzuê. (Chamei minha filha de Marieta por causa dela, e os nomes têm força: quando não está no balé, está na bagunça —geralmente nos dois.)

Arruaça quem faz são os outros —e geralmente quem acusa é a imprensa. Quando a polícia chega, o que podia ser um tumulto vira quebra-pau. Perceba que, quando a confusão vira porradaria, ela ganha um hífen: se transforma num quebra-quebra, um pega-pra-capar, um deus-nos-acuda, um salve-se-quem-puder, uma casa-da-mãe-joana, vulgo casa-da-sogra (pobre da sogra chamada Joana).

Alvoroço vem do árabe, onde servia pra designar um tipo muito específico de confusão: os gritos de alegria que a gente dá ao receber alguém querido. Algazarra também vem dos mouros, mas designa um tipo de tumulto mais específico: o banzeiro que o Exército mouro promovia antes de atacar, pra assustar o inimigo. Os árabes, assim como nós, tinham pós-graduação em gritaria.

Gosto das palavras que servem pra designar ao mesmo tempo uma forma de confusão e uma forma de comida —sururu, sarapatel, angu de caroço. Grande parte da nossa culinária tem origem na bagunça. Não é só o prato que parece um murundum, mas também a ocasião em que se come: não se degusta um sururu sem promover um sarapatel, e vice-versa. Galhofa já significou banquete, até virar sinônimo de bagunça, e hoje virou humor fácil —no teatro, quando o comediante perde a mão, alerta-se, na coxia: "Cuidado com a galhofa".

Tem ritmo que leva a confusão no nome: pagode, forró e frevo já significaram balbúrdia, antes de ela se organizar em notas musicais. Até hoje carregam a confusão em que nasceram, e, assim que as notas soam, logo se promove um furdunço. Um pagode, quando tocado sozinho, não é um pagode, mas outra coisa. Pra virar pagode precisa de alguém atrapalhando quem toca. Forró precisa de pelo menos três pessoas, uma tocando e duas dançando. Frevo precisa de uma cidade inteira.

Dominamos, como ninguém, a tecnologia do furdunço. Tudo o que funciona, no Brasil, do forró ao sarapatel, conseguimos através de algazarra. Toda tentativa de moralizar o galinheiro saiu pela culatra: a ordem só levou ao regresso. O progresso só alcançamos na fuzarca —sem cair na galhofa jamais. Não existe contradição entre o balé e a bagunça.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

Arnaldo Jabor morreu justo quando Lula e Alckmin se entendem


Ele abriu as ventas, respirou fundo, olhou o nada desesperançado, com aqueles olhões azuis, e me disse, do alto dos seus quase dois metros, "nós íamos fazer um país incrível".

Arnaldo Jabor tentava me falar de como era promissor o Brasil que existiu antes do golpe militar. O Brasil do cinema novo, de Lina Bo Bardi, da bossa nova, de Tom, João, Nelson Pereira e de Glauber.

Os anos de chumbo se abateram sobre uma geração que chegou a sentir o gosto de viver num país sensível, com algo de próprio para apresentar ao mundo. E, mesmo debaixo de pancada, esses jovens cineastas, músicos, dramaturgos, escritores, atores e artistas foram capazes de produzir, na periferia do planeta, obras referenciais, enfrentando, com irreverência e coragem, um governo autoritário, truculento e assassino.

A ditadura deixaria de herança uma nação isolada e uma crise econômica que se arrastaria por quase duas décadas. Mas a elite militar da época, ao contrário da de agora, possuía um projeto nacionalista de governo. A Embrapa e a Embraer são fruto dessa estratégia, e também a Embrafilme.

Protegida da concorrência estrangeira, a TV prosperou alinhada com o Brasil "Ame-o ou Deixe-o". O cinema, ao contrário, ocupou a Embrafilme, fez dela a trincheira oposta e Jabor fez parte da infantaria.

Ao contrário de seus pares, Jabor não nasceu para a alegoria e considerava "Pindorama" um desastre cinematográfico. O moço era todo classe média de Copacabana. E, por raiva do apoio da mediocracia ao golpe, se enfurnou nos apartamentos da Princesinha do Mar para entender o que tinha na cabeça a classe à qual pertencia. Jabor se descobriu Jabor no maravilhoso "A Opinião Pública".

Na sequência, mirou a tragicomédia patética de Nelson Rodrigues para falar dessa mesma burguesia. "Toda Nudez Será Castigada" e "O Casamento" são as melhores transposições feitas para a tela do nosso maior dramaturgo.

Enquanto os colegas falavam do povo e dos revolucionários, Jabor explorava as idiossincrasias de sua própria classe, caso raro, no Brasil. Em 1978, depois de cinco anos dedicados ao Nelson, pariu o extraordinário "Tudo Bem", com Paulo Gracindo, minha mãe e meu pai, entre outros incríveis. Foi quando o conheci.

Elvira, a dona de casa, deseja pintar o apartamento de amarelo xixi e tenta convencer os operários do quanto é maravilhosa a vida deles. Juarez, o marido, discute com seus fantasmas a grandeza de um país que não existe. E as empregadas, uma santa e uma puta... E a romaria da escada de serviço. "Tudo Bem" é demais.

Fui à estreia de "Tudo Bem" no cinema Pax, hoje extinto. O filme seria um estrondo, não fosse a qualidade nauseabunda do som, que nem com legenda dava para se entender. Fazer cinema era uma atividade precária, custosa e bissexta.

Depois, vieram "Eu Te Amo" e "Eu Sei Que Vou Te Amar", sobre a dor da separação real de Maria Eleonora, mãe de suas duas filhas, Carolina e Juliana. Eu não vou nem tentar explicar o significado que o convite para fazer "Eu Sei Que Vou Te Amar" teve na minha vida —mais do que a Palma de atriz em Cannes, a grande conquista, para mim, foi ter tido a chance de trabalhar com um gênio que eu admirava.

A crise já estava braba em "Eu Sei Que Vou Te Amar", tanto que Jabor partiu para um filme pequeno, em uma locação, com apenas dois atores. Não demoraria, a Embrafilme, que viabilizou o cinema durante um período nefasto, seria extinta com uma penada, pelo governo Collor, num ato de vingança semelhante ao que está em curso agora.

Os heróis do cinema novo e os cineastas que os sucederam foram sufocados. Os jovenzíssimos foram viver de clipe, de comercial, e Jabor, bendito fruto de Copacabana, num desespero de dar dó, foi se reinventar, na crônica e no jornalismo.

Jabor renasceu em São Paulo, junto com o real e FHC. Aquele país que ele sonhou viver, talvez voltasse a ser possível. Livre do peso do cinema, arte cara e coletiva, ele descobriu a liberdade da caneta e voltou a ser experimental, até no Jornal Nacional.

Sua ressurreição pessoal se confundiu com a do país. O Brasil é para profissionais. Quando Lula se tornou presidente e a centro-esquerda se dividiu, com PT e PSDB rachados, numa disputa figadal, Jabor escolheu um dos lados.

Nesse antagonismo, que terminaria mal, com Bolsonaro no poder, Jabor virou elite branca. Numa sessão do Festival do Rio, ele foi vaiado por uma parte aguerrida da plateia. Incrível vê-lo partir agora, logo agora, quando Lula e Alckmin, por fim, resolveram conversar.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Mário e Oswald de Andrade são contaminados pela antipatia à 'paulistice'


Sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, José Miguel Wisnik escreveu para a Ilustrada Ilustríssima deste domingo um artigo que, mais uma vez, é um prodígio de clareza, inteligência e, não sei, capacidade de ligar os pontos.

A "polêmica" (ô palavrinha chata) se estabeleceu em torno do caráter "elitista" e "paulistocêntrico" do modernismo; Wisnik lembra que Villa-Lobos não era nenhum "paulista", que ninguém foi mais "nacional" do que Mário de Andrade e que, com todas as suas contradições, Oswald de Andrade tem tudo a ver com os movimentos que, hoje, contestam o autoritarismo, a burrice e o racismo predominantes no Brasil.

Isso é só o básico da argumentação, que vai muito mais longe; recomendo muitíssimo.

Fico pensando, contudo, nas razões que movem tantas críticas à "paulistice" da coisa. Talvez a Semana de Arte Moderna tenha virado uma espécie de bode expiatório.

Em primeiro lugar, está em causa um fator que, como paulista, acho inegável: a arrogância de muitos dos meus conterrâneos. O preconceito contra nordestinos é total —mas não só: o carioca é visto com feroz desconfiança e boa dose de inveja, enquanto o gaúcho é fonte de piada (e, de minha parte, algum medo também).

Claro que, até aí, os paulistas recebem o troco. Foi Nelson Rodrigues, acho, quem disse não existir pior forma de solidão do que a companhia de um paulista. No geral, concordo com ele —e mais de uma vez me senti o alvo justificado dessa crítica.

Eu tinha menos de 30 anos, e como jornalista da Folha fui convidado a uma viagem de turismo em companhia de velhos craques da imprensa carioca.

Ainda sou, na maior parte das vezes, um sujeito certinho, tímido, bem-comportado. Era mais ainda em 1987. Ganhei o apelido de "diácono", e bastava eu me aproximar da roda dos bambambãs para que o ambiente gelasse.

Além disso, a Folha fazia parte do mesmo pacote que incluía a hegemonia tucana nos anos Fernando Henrique e o peso acadêmico da USP.

Brizolismo, nacionalismo, desenvolvimentismo, populismo —esse conjunto era contraposto ao mantra da modernidade neoliberal, do "cosmopolitismo" importador de vinhos e patês, do encanto pseudoweberiano pelo culto da prosperidade das igrejas evangélicas.

Isso tudo vinha com sotaque paulista e ares de "dono da verdade"; o fisiologismo e a corrupção eram vistos como atraso "nordestino" nas terras de Quércia e de Maluf.

Existe também, nos debates sobre 1922, o tédio das comemorações —de que participo integralmente. Nada mais chato que cultuar a iconoclastia, e ritualizar os gestos da vanguarda.

E aqui a discussão entra no campo da literatura propriamente dita. Talvez o que esteja por trás de muita antipatia face à Semana de Arte Moderna tenha a ver com os caminhos, muito diferentes, que a poesia e a prosa seguiram no Brasil.

Os poetas de 1910 —Olavo Bilac e companhia— ficaram antiquíssimos. Os pintores também. A Semana de 22 virou aquela página. Só que na prosa de ficção a ruptura não foi geral. Claro que Guimarães Rosa e Clarice Lispector foram moderníssimos. Mas o romance regionalista e a prosa urbana, carioca a valer, têm uma linha de continuidade mais forte com o que se chamou de "pré-modernismo", essa coisa sem semana.

Lima Barreto, João do Rio, Simões Lopes Neto, Franklin Távora, Euclides da Cunha: natural que, especialmente para quem não é paulista, a "descoberta" de um Brasil mais profundo não tenha precisado dos modernistas.

E o "pré-modernismo" talvez não tenha morrido em 1922. O realismo de João Antonio (paulistíssimo, aliás), não seria "pré-modernista" de certa forma? A melhor prosa de Carlos Heitor Cony guarda um perfume do "fin-de-siècle" vivido pelo seu pai. Nos seus primeiros contos, Rubem Fonseca era um flaubertiano de porta de cadeia.

O encantamento com a cultura americana (pop, cult, pulp, beat, o que seja) atualizou esse nosso "pré-modernismo", do mesmo modo que a vanguarda francesa foi determinante para a linguagem dos modernistas —"elitistas", portanto; "ça va sans dire".

Embora a questão tenha muito a ver com o inegável "paulistocentrismo" do Brasil cotidiano, e com a irritação que provoca, no fim talvez o debate esteja determinado, como tudo, pelo que acontece fora de nossas fronteiras: é Paris contra Nova York e Los Angeles, a alta cultura contra o "middle-brow", James Joyce contra Tom Wolfe. Mário e Oswald de Andrade entraram nisso sem saber.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo