quinta-feira, 24 de julho de 2014

'Caetana' leva o escritor Ariano Suassuna aos 87

'Caetana' leva o escritor Ariano Suassuna aos 87

Defensor fervoroso da cultura brasileira, o criador de 'Auto da Compadecida' deixa uma obra reconhecida por aproximar o erudito e o popular; governo de Pernambuco decreta luto de três dias
FABIO VICTOREDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"

Morreu nesta quarta-feira (23) no Recife, aos 87 anos, o escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, em decorrência de uma parada cardíaca provocada por hipertensão intracraniana.
Ele estava internado no Real Hospital Português desde a segunda-feira (21), quando teve um AVC hemorrágico e foi submetido a uma cirurgia neurológica de emergência. Em coma desde terça (22), respirava por aparelhos.
O corpo do autor de "Auto da Compadecida" e "Romance d'A Pedra do Reino", imortal da ABL (Academia Brasileira de Letras), será enterrado no cemitério Morada da Paz, em Paulista, na região metropolitana do Recife.
O sepultamento está marcado para as 16h desta quinta. Até as 15h, o corpo será velado no Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco. O governador, João Lyra Neto (PSB), decretou luto de três dias.
Nascido em 16 de junho de 1927 em João Pessoa, quando a capital da Paraíba tinha o mesmo nome do Estado, vivia no Recife desde 1942.
Um dos autores mais populares do país, tornou-se ainda mais conhecido a partir dos anos 1990, quando passou a rodar o país com suas "aulas-espetáculos", misto de palestra, concerto e balé em que exibia com graça picaresca a erudição e o fervor pela cultura brasileira.
Sempre se revelou um palhaço frustrado e dizia que gostaria de morrer no palco.
Nas aulas, usava terno preto e camisa vermelha, cores do Sport Club do Recife, time do coração. Brincava que o traje era "sport fino".
A aproximação entre erudito e popular está na essência da obra de Suassuna --ou Ariano, como era chamado em Pernambuco.
Escreveu teatro, romance, poesia e ensaio, com 14 livros publicados e traduções para diversas línguas.
Trabalhava havia 33 anos num projeto que seria sua obra total: vários volumes reunindo romance, teatro, poesia e gravura.
Em dezembro, em entrevista à Folha, afirmou ter feito "um pacto com Deus" para, apesar dos problemas de saúde, conseguir concluir o primeiro volume deste romance monumental, que deveria ter ao todo sete volumes.
Era também artista plástico e foi por quase 40 anos professor de estética da Universidade Federal de Pernambuco.
A reelaboração estética das matrizes da arte popular nordestina (folhetos de cordel, violeiros, xilogravuras etc.), com influência da cultura medieval ibérica e de escolas clássicas como o barroco está na base do Movimento Armorial criado por Suassuna nos anos 1970, com manifestações no teatro, na literatura, na música nas artes visuais e na dança.

SAGRADO E PROFANO

As sementes armoriais estão nos primeiros trabalhos do autor no teatro. Estreou com a peça "Uma Mulher Vestida de Sol", de 1947.
Mas foi a veia picaresca de "O Auto da Compadecida", de 1955, que o revelou ao país.
O teatro de Suassuna é marcado pela confusão entre o sagrado e o profano, pela farsa e por palhaços e pícaros inesquecíveis, como João Grilo e Chicó, de "Auto da Compadecida" --adaptada para o cinema e para a TV.
Ambientada numa cidade sertaneja, narra as aventuras de dois amigos cujas falcatruas se mesclam às de padres e cangaceiros. Os dilemas morais e religiosos são levados a julgamento divino.
"O Santo e a Porca", "A Farsa da Boa Preguiça" e "A Pena e a Lei" são outras de suas peças de destaque.
Na literatura, seu grande feito foi "O Romance d'A Pedra do Reino", de 1971. Recria, num sertão mítico e épico, o episódio da Pedra Bonita, quando, no século 19, fiéis sebastianistas cometeram suicídio coletivo no sertão de Pernambuco.
Ariano dizia que, se fossem queimar todos os seus livros e tivesse de escolher um para ser salvo, seria "A Pedra do Reino". O juízo sobre o valor do romance não era só dele.
O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu: "Não é qualquer vida que gera obra desse calibre". O livro foi comparado a "Dom Quixote", de Cervantes, pelo político Carlos Lacerda (1914-1977), e à "Divina Comédia", de Dante, pelo crítico literário Hermilo Borba Filho (1917-1976).
Já Millôr Fernandes (1923-2012) afirmou que incluía a obra de Ariano "entre os dez maiores romances brasileiros" de todos os tempos.
Oitavo dos nove filhos do advogado e político João Suassuna com Rita de Cássia Dantas Vilar, Ariano nasceu no Palácio da Redenção, sede do governo da Paraíba, pois o Estado era, naquele 1927, governado pelo seu pai.
A figura paterna paira sobre sua vida e sua obra. É impossível interpretar seu trabalho sem conhecer a tragédia familiar ocorrida quando o autor tinha três anos.
João Suassuna foi assassinado em 1930 por um pistoleiro, no calor da revolução que explodiu no país naquele ano e culminou num golpe, como vingança pela morte de João Pessoa, estopim do levante. O assassino de João Pessoa, João Dantas, era aliado político do pai de Ariano.
"Como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930 passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo", disse Ariano, em seu discurso de posse na ABL, em 1990.
Só em entrevistas recentes, a primeira em 2011, 81 anos após o crime, Ariano mencionou que começava a cogitar perdoar o assassino do pai.

BRASIL REAL

O engajamento na cultura e nas causas populares o alinharam sempre à esquerda na política. Fez campanha para os petistas Lula e Dilma.
Costumava mencionar o embate desigual entre o Brasil real dos pobres e oprimidos e o Brasil oficial e citar a experiência socialista-religiosa do arraial de Canudos, no fim do século 19, como o episódio mais significativo da história do Brasil.
Virou secretário de Cultura de Pernambuco nos anos 1990 a pedido de Miguel Arraes (1916-2005), na terceira vez em que o líder esquerdista foi governador do Estado. Exerceria o cargo uma segunda vez, no primeiro mandato de Eduardo Campos (PSB), neto de Arraes de cujo governo o escritor seria assessor especial. Apoiava Campos na atual corrida à Presidência.
A defesa intransigente da cultura nacional atraiu críticas dos que o viam como um nacionalista quixotesco. Teve rusgas com tropicalistas e com integrantes do mangue beat --mas acabaria indo ao velório de Chico Science (1966-1997) e chorando à beira do caixão do compositor que foi um dos principais nomes do movimento.

CAETANA

Na mitologia do sertão nordestino, a morte é chamada de Caetana. Como moça ou onça, a figura sedutora está presente na obra de Ariano.
Mas o fascínio ficava na ficção. Ao fazer 80 anos, disse numa entrevista, logo após mencionar a Caetana: "Não gosto dela não. Eu me recuso a morrer. Toda morte tem um componente de suicídio, e eu não me rendo".
O escritor deixa a mulher, Zélia, companheira de 66 anos (56 de casamento) e que ele dizia ser "a grande figura" de sua vida, cinco dos seis filhos (o primogênito morreu em 2010) e 15 netos.

Reprodução da Folha de São Paulo

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