sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Dinâmica da desigualdade

"O Capital no Século 21", cuja tradução para o português finalmente chega às livrarias, é o grande lançamento deste e, talvez, de muitos anos. O francês Thomas Piketty elege um problema urgente, a desigualdade, e o esmiúça cientificamente. Ilumina a treva ideológica que o encobre, situa-o na história e o expõe em todo o seu horror.
A sua investigação, que percorre 20 países e dois séculos, preserva situações e ritmos. Mas adquire energia ao captar movimentos de longo prazo e a sua abstração. E a generalização a que Piketty chega é contraintuitiva: apesar do progresso, vivem-se tempos de regressão, de restauração da desigualdade dos anos 1920. Andamos para trás.
O livro chega laboriosamente a uma lei geral, à alma do capitalismo. A saber: desde o final do século 18, a taxa de lucro do capital (de cerca de 5%), é superior à do crescimento (de 1%).
Assim, quem herda um apartamento acumulará mais do que quem paga aluguel ou prestações. Já quem recebe de herança uma grande empresa tenderá a investir em rendimentos financeiros, mais lucrativos que a produção. O capital se perpetua e se expande por meio da herança e da financeirização.
A lei de ferro põe por terra mitos repetidos à náusea na campanha eleitoral. O acesso à educação, por exemplo, serve para disseminar saberes que facilitam a ascensão social. O próprio Piketty é fruto dessa dinâmica: cursou a escola pública na França, foi professor universitário nos Estados Unidos, é um quadro do partido no poder, o PS, Partido Socialista.
Por si só, porém, a educação não garante que o grosso do povo tenha uma vida estável. Ele está condenado à precariedade, a disputar poucos empregos e salários minguados, já que a mecânica econômica se apoia na desigualdade.
Piketty sustenta que não só a burguesia usufrui da concentração. Criou-se nas últimas décadas uma casta de superexecutivos, à qual o empresariado destina rendimentos do capital, na forma de bônus e ações, e que aufere ganhos centenas de vezes superiores à remuneração média. É o tal 1% de privilegiados, propagado pelo Occupy Wall Street (classificação que Piketty, aliás, disputa, pois que ela prescinde da noção de classe social).
"O Capital no Século 21" não esposa o determinismo econômico, evidenciando que a desigualdade não cresceu de maneira constante. As guerras e revoluções, a descolonização e a organização dos trabalhadores foram decisivas para que se chegasse à atual configuração.
Ou seja, a desigualdade só diminuiu com crises e destruição massiva. Contra elas, Piketty advoga a taxação progressiva do capital e a limitação do direito de herança. Há aí um buraco negro filosófico, um déficit de imaginação.
Piketty projeta que a taxa de crescimento dos Brics, os grandes países em desenvolvimento, voltará em breve à média de crescimento, de 1%. Mesmo assim, não vê nada além da reforma fiscal mundial --para a qual não há nem instituições nem força política capaz de levá-la a cabo.
Ele reconhece que a taxação planetária não será estabelecida em comitês multinacionais, nem por meio de pacatos processos eleitorais. A revolução bolchevique, ele diz, ficou para trás. A vitória do capital, consubstanciada dois séculos depois da Revolução Francesa, teve dimensão histórica.
Mas haverá novas revoluções, com formas que é impossível vislumbrar hoje. O seu livro é uma contribuição para o entendimento social. Permite saber em que pé o capital está, e o que pode ser feito.
Muito que bem. Mas por que, em vez do imposto universal, não imaginar uma economia e uma sociedade sem o capital, sem a desigualdade que ele enseja? Isso poderia ser feito a partir dos próprios dados de "O Capital no Século 21". A esquerda que está no poder, mas não sabe aonde ir, agradeceria.


Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo

Orgulho e preconceito

Tratado como pornográfico e pervertido, Nelson Rodrigues alegava que era preciso mostrar no palco nossos "pântanos íntimos". Exorcizando-os no teatro, conseguiríamos a civilidade fora dele.
As reações ao resultado da disputa presidencial mostram que estas eleições cumpriram um objetivo rodriguiano: trouxeram à luz os pensamentos mais sombrios.
É pedagógico ver os abastados vociferando contra os "pobres", os "ignorantes", os "vagabundos". Quem já tinha perdido qualquer esperança no PT pôde constatar que as mudanças dos últimos 12 anos foram significativas.
Quando pessoas tiram suas imbecilidades do recato recomendável e gritam que estamos numa "ditadura", que o PT é "terrorista" e que os iluministas paulistas --que já elegeram Maluf, Pitta, Quércia, Fleury e sofrem com a seca-- devem ser separados dos "atrasados" nordestinos, cujo PIB cresce mais do que os das outras regiões (2,55% no segundo trimestre ante queda nacional de 0,6%), algo se revela.
Domésticas têm carteira assinada; jovens negros entram na universidade e disputam os empregos; aeroportos estão cheios. O país do quartinho de empregada está enfraquecido. Há quem não se conforme.
O "país dividido", mais um clichê no rol da imprensa, não surgiu agora, mas há uns cinco séculos. Está é ficando mais nítido. Ainda bem. Galvão Bueno e o coração brasileiro batendo ao som do Olodum não existem. A Família Scolari tomou de 7.
É pena que alguns colunistas disseminem o preconceito. Insinuaram até que eleitores de Marina e Dilma poderiam não saber usar a urna eletrônica. Entrevistam poucos bípedes, mas conversam muito com o "mercado". As Marias Antonietas estão perdendo a cabeça, e o povo já anda comendo brioches. Que assim continue, apesar da crise econômica no Sudeste.

Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo.

Nova direita surgiu após junho, diz filósofo

Nova direita surgiu após junho, diz filósofo

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

'Rock Around the Clock'

As redes de TV britânicas hoje em dia dedicam as tardes a velhos filmes em branco e preto. Percebi um dia que um dos canais iria exibir "Rock Around the Clock", que eu desejava ver há anos.
Estudei em um colégio interno nos anos 50 e era do comitê de cinema dos alunos, que selecionava os filmes que a escola exibiria. Escolhemos "Rock Around the Clock" ["Ao Balanço das Horas"], considerado subversivo demais pelos dirigentes da escola. Sem nos informar, o vetaram. Achei uma injustiça --os colegas nos culparam por uma temporada de cinema truncada.
Os dirigentes confundiram "Rock Around the Clock" e "Blackboard Jungle" ["Sementes da Violência"], que usou a canção "Rock Around the Clock", de Bill Haley e seus Cometas, como tema. "Blackboard Jungle" era um filme de "comentário social", uma sombria história de distúrbios numa escola dos EUA dominada por "delinquentes juvenis".
Estrelado por Glenn Ford e Sidney Poitier, foi proscrito pelo governo dos EUA. Quando foi lançado no Reino Unido, o Conselho de Censura britânico insistiu em muitos cortes. Durante exibição no sul de Londres, os Teddy Boys (aspirantes britânicos à condição de "delinquentes juvenis") iniciaram um tumulto, arrancando poltronas do cinema, e dançaram pelos corredores. Não imagino os meninos de minha escola fazendo coisa parecida se tivéssemos visto "Rock Around the Clock".
A música continua maravilhosa. Mas o protagonista da história fictícia sobre a descoberta do rock'n'roll em um salão de baile de uma pequena cidade que organizava festas para adolescentes e o subsequente sucesso de Bill Haley e seus Cometas parecem coisa de outra época. Especialmente Bill Haley, com seu paletó xadrez, cachinho sobre a testa e cara gorducha. Nenhum dos personagens tinha qualquer coisa de "delinquente". Em outubro de 1955, Nora Ney, pioneira do rock brasileiro, gravou a canção no lado B de um disco de 78 rotações (disponível no YouTube). Casada com Jorge Goulart, ela se exilou após o golpe de 1964.
Bill Haley foi o primeiro astro internacional de rock. "Rock Around the Clock" foi o primeiro hino internacional do rock e ficou no primeiro lugar da "Billboard" e da parada britânica por muitas semanas.
O disco vendeu mais de 25 milhões de cópias. No filme, Haley tem a companhia dos Platters, o mais bem sucedido dos grupos vocais negros dos anos 50, cantando "Only You", de Tony Martinez e sua banda e de Freddie Bell and his Bellboys. Infelizmente, Haley não esteve entre os primeiros 16 músicos levados ao Hall da Fama do Rock. Morreu de ataque cardíaco em 1981, quase esquecido, no Texas, sepultado em túmulo sem seu nome.

Texto de Kenneth Maxwell, na Folha de São Paulo
Tradução de Paulo Migliacci.

Eleições acirraram a luta de classes no país, diz filósofo

Eleições acirraram a luta de classes no país, diz filósofo

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O mito da invasão bolivariana

Converso com um advogado, de um grande escritório, liberal e de cabeça aberta. E me surpreendo com seus receios: o de que a vitória de Dilma Rousseff possa ser o início de uma república bolivariana no país.
Por e-mail, um ex-executivo de banco me escreve manifestando o mesmo receio.
São pessoas supostamente bem informadas pelos meios convencionais de informação: os velhos jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo.
Esclareço que os problemas do PT são os mesmos dos partidos convencionais: acomodamento trazido pelo poder, apego aos cargos públicos, burocratização, fechamento às manifestações da opinião pública.
Nada que o PSDB e mais partidos também não pratiquem em estados onde são poder.
***
Digo a ambos que o papel dos partidos é o de civilizar a disputa política, abrigando os diversos segmentos sociais dentro do esquadro partidário. Onde não acontece esse trabalho, a disputa política torna-se selvagem. Hoje em dia, a maioria dos movimentos sociais ganhou uma institucionalização, porque representados na esfera partidária. E o PT teve papel relevante nessa ação civilizatória.
Seu defeito de hoje foi ter fechado as portas aos novos movimentos e burocratizado sua estrutura. Mas esses movimentos buscaram o Rede, de Marina - infelizmente servindo de escada para as ambições menores de Marina, que abriu mão de criar um partido pelo canto de sereia de um cargo em um futuro governo Aécio.
Do lado do governo Dilma, houve o mesmo fenômeno do PT, do abandono dos conselhos de participação e outras formas de interação com a sociedade civil - incluindo os conselhos empresariais, que se manifestavam no Conselhão (o Conselho de Desenvolvimento Social) e nos conselhos reunidos em torno da ABDI (Agência Brasileira para o Desenvolvimento Industrial).
***
Então o que assusta meus interlocutores? O advogado explica que foi a reação de Dilma às ofensas do Itaquerão, quando generalizou e atribuiu as grosserias à elite branca. E também as manifestações populares, durante sua campanha.
Seria o mesmo que considerar que a adesão a Aécio do submundo dos preconceitos e da intolerância transformaria sua vitória em uma Noite de São Bartolomeu,
Na verdade, já era hora de ambos os partidos se desvencilharem desse radicalismo que só se manifesta na retórica dos palanques.
***
Por trás desses medos recíprocos, há um enorme déficit informacional, devido ao proselitismo cada vez maior do jornalismo atual e à incompetência cada vez maior dos partidos. A insistência em se falar de venezuelização do país mostra que o único ponto de convergência com a Venezuela é o nível de ambas as mídias.
Os tropeços da política econômica de Dilma não podem ser comparados ao populismo desbragado do chavismo. A busca de relações comerciais com a América do Sul, ou com os BRICs, se prende a uma estratégia geopolítica - que pode e deve ser criticada enquanto estratégia, não como uma tendência bolivariana.
O país cheio de comunistas escondidos no telhado das casas, prontos a atacar de noite, articulados pelo Foro São Paulo é uma criação midiática, pirações da sociedade do espetáculo, roteiros novelizados, assim como foi o fantasma da guerra fria que gerou o macartismo nos anos 50 nos Estados Unidos ou a Guerra dos Mundos, de Orson Wells.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

Espanha terá mais mortes que nascimentos em 2015, aponta estudo

A tendência demográfica negativa iniciada em 2012 se confirmou nos últimos tempos na Espanha, segundo se depreende dos dados da Projeção de População para o período 2014-2064, que foi divulgada nesta terça-feira (28) pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
Segundo as previsões do relatório, que adverte que em 2015 haverá mais mortes que nascimentos pela primeira vez, o país perderá 1 milhão de habitantes nos próximos 15 anos e 5,6 milhões nos próximos 50. Com isso, a população se reduziria a 45,8 milhões em 2024 e, se não houver um freio para o envelhecimento, a 40,9 milhões em 2064.
Fruto desse fenômeno, a porcentagem de população maior de 65 anos, que atualmente se situa em 18,2%, aumentaria para 24,9% em 2029 e se situaria em 38,7% em 2064. Com essa tendência, a partir de 2015 o número de mortes superaria pela primeira vez o de nascimentos em território espanhol.
Segundo o INE, a redução da população residente se deve principalmente ao aumento progressivo das mortes e à diminuição dos nascimentos, fenômeno que se veria especialmente aguçado a partir de 2040. Dessa forma, ocorreria um saldo vegetativo negativo a partir do segundo ano da projeção (2015), que representaria um total de 8 milhões de pessoas nos 50 anos projetados.
Por outro lado, o INE também projeta que entre 2014 e 2029 a expectativa de vida das mulheres aumentará três anos, para 88,7. Para os homens, ela crescerá quatro anos, para 84. A taxa de dependência, que é a relação entre o número de maiores de 64 anos e os menores de 16 sobre a população que se situa entre essas idades, aumentará dos atuais 52,1% para 59,2% em 2029 e alcançará 95,6% em 2064.
As únicas comunidades autônomas que ganhariam população nos próximos 15 anos são Canárias, Andaluzia, Baleares, Madri e Murcia. Nessas três últimas, o número acumulado de nascimentos superaria de fato o de óbitos nos próximos 15 anos.

Reportagem do El País, reproduzida no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Câmara derruba decreto de conselhos populares e impõe 1ª derrota a Dilma após reeleição

Câmara derruba decreto de conselhos populares e impõe 1ª derrota a Dilma após reeleição

60º Feira do Livro deve receber mais de um milhão de visitantes

60º Feira do Livro deve receber mais de um milhão de visitantes

Esta edição ganhou novidades, como a praça de alimentação com ar rústico
Cerca de 1,4 milhão de visitantes devem passar pela Praça da Alfândega e arredores, em Porto Alegre, a partir desta sexta-feira, quando inicia a 60º Feira do Livro. A expectativa é da organização do evento, que apresentou na manhã desta terça-feira a programação oficial. Em coletiva no Memorial do Rio Grande do Sul, Jussara Rodrigues, responsável pela área adulta, destacou a variedade de atrações e o Canadá, país homenageado este ano. “A programação está muito bonita e certamente atenderá a todos os públicos”, declarou. 

Uma das novidades anunciadas foi a praça de alimentação, localizada na rua Cassiano Nascimento, ao lado do Santander Cultural. O espaço este ano vai oferecer produtos mais variados e conta com um ar rústico na composição das mesas e decoração. A mania dos food trucks, que tomou conta das ruas de Porto Alegre, também vai invadir o evento aos finais de semana, com opções de temakeria, trattoria e cafeteria.

Com um total 127 expositores, a feira estará aberta para visitação a partir das 12h30min desta sexta-feira. Até o dia 16 de novembro, acontecem 30 oficinas, 130 palestras e debates, cerca de 700 sessões de autógrafos e 70 apresentações culturais, além das mais de 500 atrações da área Infantil e Juvenil.
Reprodução do Correio do Povo

Viajando como um árabe

INTELIGÊNCIA/ALAA AL ASWANY

Viajando como um árabe


Cairo

Alguns anos atrás fui convidado para um festival literário em Londres cujo slogan era "mudar o mundo". Quando passei pelo processo normal de entrada no aeroporto de Heathrow, eu carregava alguns folhetos do festival. Mas, antes de chegar à saída, me surpreendi ao ser barrado por um policial. Ele examinou meu passaporte e os folhetos. Perguntou: "De que modo você quer mudar o mundo?"
A expressão dele era apreensiva, então levei a pergunta a sério e comecei a explicar, em palavras simples, que eu era escritor convidado ao festival, que eu não tinha escolhido o lema pessoalmente, mas que a frase deixava subentendido que tratava-se de usar a escrita para mudar o modo como as pessoas pensam. O policial pareceu convencido, mas, mesmo assim, pegou meu passaporte, e eu tive que esperar meia hora para que fosse devolvido.
Eu poderia contar dezenas de casos semelhantes. Minhas obras literárias foram traduzidas para 35 línguas; por essa razão, já viajei a muitos países para fazer seminários e sessões de autógrafos. Sou tratado amigavelmente por pessoas do mundo dos livros, mas em aeroportos eu sou apenas mais um árabe, um terrorista potencial.
Não me queixo das medidas de segurança, porque obviamente foram instituídas para minha proteção, como passageiro. A maioria dos funcionários de segurança cumpre seu papel de modo cortês e exemplar, mas alguns deles aproveitam os procedimentos para tratar você com escárnio ou fazê-lo entender que você é inferior ou não é bem-vindo.
A função dos funcionários das alfândegas em aeroportos é captar contrabandistas. Mas, se você tem aparência de árabe, se você é negro ou se é mulher e usa véu na cabeça, eles imediatamente voltam a atenção para você e lhe fazem uma série de perguntas provocantes que eu duvido que tenham qualquer coisa a ver com contrabando.
"Quantos pacotes de cigarros o senhor tem na mala?" perguntou uma agente antes de abrir minha mala. Respondi que tinha um. "Tem certeza?", ela insistiu.
Às vezes é um pouco demais para mim. Uma vez, no JFK, me detiveram por duas horas porque fiz objeções à atitude do policial. Em outra ocasião, em Nice, na França, um policial me chamou fazendo um gesto de "vem cá" com o dedo indicador, algo que achei uma falta de respeito. Ele examinou meu passaporte e então perguntou: "O que você está fazendo aqui?"
"Vim comprar algumas vacas", eu lhe disse em tom sério. O policial pareceu confuso. "Vacas? Mas em seu passaporte diz 'profissão: dentista'!"
"Existem alguns dentistas", expliquei (de fato, sou dentista por profissão) "cujo hobby é colecionar vacas. É o meu caso."
Ficamos ali, trocando olhares de soslaio, até que ele finalmente me devolveu o passaporte e me deixou seguir adiante.
Uma policial francesa de origem tunisiana, chamada Sihem Souid e que trabalhava no aeroporto de Orly, em Paris, fez objeção ao tratamento racista dado a passageiros árabes e africanos. Ela e sete de seus colegas prestaram queixa do comportamento de outros policiais, mas nada foi feito. Sihem então lançou um livro, "Omerta dans la police", que expôs as práticas racistas vigentes em Orly, incluindo o caso de uma africana que um policial descreveu como "negra suja" e que foi obrigada a tirar a roupa, revistada e fotografada, enquanto o policial assistia a tudo, rindo.
Por que alguns policiais dão esse tipo de tratamento racista a passageiros em aeroportos?
Clay Routledge, professor de psicologia na universidade North Dakota State, argumenta que algumas pessoas têm sede de controle e praticam a discriminação contra outras para saciar esse desejo e reforçar sua autoestima. Para outros, o racismo pode reforçar uma visão de mundo em preto e branco em que os brancos e cristãos "bons" enfrentam os negros e muçulmanos "maus". Em seu livro de 1981 "Covering Islam", o intelectual Edward W. Said disse que a mídia ocidental geralmente retrata os árabes e muçulmanos ou como xeques petrolíferos ou como prováveis terroristas, enquanto o próprio islã é representado como uma abstração incompreendida e indefinida.
É evidente que crimes bárbaros e apavorantes cometidos por terroristas em nome do islã lançaram uma sombra sobre a imagem de todos os muçulmanos. Mas a regra mais básica da justiça é que a responsabilidade criminal cabe ao indivíduo, e não "por associação" com um grupo que, por acaso, compartilha uma identidade religiosa ou étnica. Será que todos os americanos deveriam ser responsabilizados pela tortura de detentos iraquianos na prisão de Abu Ghraib?
Na realidade, o número de vítimas árabes e muçulmanas do terrorismo extremista islâmico supera de longe o de vítimas ocidentais. Apenas nos últimos dois anos, terroristas no Egito mataram mais de 400 policiais e soldados egípcios.
O cristianismo já teve suas fases de perseguição dos chamados hereges, seitas, judeus e muçulmanos, além de suas guerras religiosas, suas inquisições e cruzadas. Ao longo dos séculos, esses crimes foram cometidos em nome de uma religião que prega o amor e a tolerância. Nenhuma religião é mais sanguinária que outra ou exerce o monopólio do extremismo violento. Assim como o islã pode ser vivenciado como uma religião bondosa e que pede tolerância, ele pode ser distorcido para justificar o terrorismo.
Se queremos fazer deste mundo um lugar melhor para nossos filhos, precisamos ensinar a eles que, por mais diferentes sejamos em termos de cor, sexo, cultura ou religião, somos seres humanos que sentem, pensam e sofrem da mesma maneira. Precisamos deixar os preconceitos de lado e tratar uns aos outros com base na igualdade. Apenas assim um passageiro negro ou árabe em um aeroporto ocidental será tratado como qualquer outra pessoa.

Texto publicado no The New York Times, e reproduzido na Folha de São Paulo

Alaa Al Aswany é autor do romance "O Edifício Yacoubian"e outros livros.

A constelação vermelha

MAURICIO PULS

A constelação vermelha

Multiplicação de siglas com dissidentes petistas sinaliza o vigor e as limitações de seu projeto para a sociedade
O PETISMO disputou as eleições presidenciais com sete candidatos. Cada um deles resume um momento da evolução do partido.
Rui Costa Pimenta (PCO), José Maria (PSTU) e Mauro Iasi (PCB) são fundadores do PT. Personificam a "primeira geração" vermelha. Defendem uma Revolução Socialista --propõem a estatização dos bancos, a desapropriação dos latifúndios, a moratória da dívida externa. Todas essas bandeiras constavam dos primeiros programas do PT, nos anos 80. Foram abandonadas a partir de 1989, quando a sigla vislumbrou, pela primeira vez, uma possibilidade real de chegar ao poder. Os grupos radicais foram expurgados.
Luciana Genro (PSOL) representa a "segunda geração", a da Revolução Democrática. Em vez de estatizar a economia, a legenda passou a priorizar nos anos 90 a redução da jornada de trabalho, o imposto sobre grandes fortunas, a renegociação da dívida pública. Mas essas metas só poderiam ser acolhidas pelo governo se o PT tivesse sólida maioria no Congresso. Luciana e seus companheiros bateram de frente com Lula e foram expulsos em 2003.
Dilma Rousseff aderiu ao PT só em 2001, vinda do brizolismo. Integra a "terceira geração", aquela que implementou um extenso conjunto de medidas para reduzir a pobreza --o que garantiu ao partido a admiração do eleitorado mais carente.
O petismo suavizou assim a sua doutrina até chegar a uma diretriz aceitável à maioria: o fim das desigualdades sociais deu lugar à diminuição das desigualdades, e esta foi substituída pelo combate à miséria. Essa longa marcha rumo ao centro rendeu ao PT quatro vitórias consecutivas à Presidência --um feito inédito--, mas lhe custou a multiplicação de dissidências à esquerda.
E também não impediu cisões à direita. Eduardo Jorge (PV) e Marina Silva (PSB) expressavam reivindicações não econômicas da legenda (universalização da saúde, preservação ambiental) e saíram em 2003 e 2009, respectivamente. Representam eleitores de classe média que, tendo vivenciado certa ascensão social, já não se identificam com o discurso em prol dos pobres.
Hoje o PT chegou a uma encruzilhada: o êxito de seus programas sociais tem reduzido, a cada eleição, a massa de excluídos que o apoia. A votação da sigla no primeiro turno caiu de 48,6%, em 2006, para 46,9%, em 2010, e agora para 41,6%.
Restam ao partido duas opções. A primeira é retomar a sua agenda antes da chegada ao poder --a que pregava a redução das desigualdades sociais. Essa guinada para a esquerda teria forte apoio na legenda, mas seria rejeitada no Congresso. Teria mais chances de êxito se o PT tivesse ido para a oposição.
A segunda opção é manter a linha centrista, mas reforçar o papel do Estado como indutor do crescimento. O nacional-desenvolvimentismo nascido da Revolução de 1930 ainda é capaz de soldar uma grande coalizão. O ideário de Dilma é o mesmo que impulsionou Getúlio, Juscelino e Geisel. O intervencionismo estatal não é uma escolha fortuita: responde a uma necessidade estrutural. Resultados eleitorais talvez sejam fruto do acaso. Mas a história do país está inscrita nas estrelas.


Reprodução da Folha de São Paulo

O povo brasileiro não existe

Fechadas as urnas e proclamado o resultado das últimas eleições, as primeiras palavras foram em direção à reconstrução da união nacional. Afinal, esta eleição teria levado o país a um ponto perigoso no qual parecem aflorar inimizades, preconceitos e outras coisas que gostaríamos de acreditar ultrapassadas. Vamos então esquecer um pouco tudo isso, voltar à vida normal, reintegrar os expulsos do Facebook. Mas, e se isso não for mais possível?
Desde as manifestações de 2013 o discurso da união nacional havia entrado em colapso. Quando massas foram às ruas, descobrimos que alguns gritavam pelo fim da PM enquanto outros queriam a expulsão de médicos cubanos do país. Daí as leituras díspares sobre o sentido ideológico daquela explosão de descontentamento: de classe média golpista nas ruas à situação pré-revolucionária. No entanto, talvez lá havíamos simplesmente descoberto que não haveria mais união, nem mesmo o silêncio complacente de sempre. Placas tectônicas se moveram.
O Brasil que conhecemos até agora acabou. Os amigos perdidos talvez não voltem mais. Por isso, arriscaria dizer que o maior saldo dessas eleições foi mostrar que não somos algo parecido a um povo dotado de identidade coletiva. Não há nada, absolutamente nada que me una a pessoas que tomam a avenida Faria Lima para gritar: "Viva a PM". Apenas ocupamos o mesmo espaço e tentamos politizar nosso desencontro absoluto, mas não fazemos parte de identidade coletiva alguma. Por isso, nosso encontro político sempre será violento.
Esta divisão não é apenas expressão de um conflito de classe. Desde que Lula ganhou sua primeira eleição, o PSDB tem, em média, 40% dos votos, chegando agora a 48%. Não há 40% de classe média no Brasil. A classe média e a classe pobre sempre estiveram ideologicamente divididas, com algo como um terço de seus eleitores oscilando entre dois polos.
Creio que é importante dizer isso porque as reconciliações nacionais na história brasileira foram sempre reconciliações extorquidas, na qual os mais vulneráveis são obrigados a engolir discursos conciliatórios enquanto as desigualdades e os comportamentos medievais de certas parcelas da população continuam a circular sem culpa. Não há razão alguma para continuar esta compulsão de repetição.
Seria bom para o país que os atores políticos estivessem à altura deste novo cenário.
PS: Pedi à Redação do jornal um mês de férias para dedicar-me às pesquisas para um novo livro que me é muito caro. Nos encontraremos novamente no início de dezembro.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Produção é antídoto para omissão dos EUA em relação aos cartéis de drogas

Produção é antídoto para omissão dos EUA em relação aos cartéis de drogas

RAUL JUSTE LORESDE WASHINGTON

Uma série de reportagens do jornal "San Jose Mercury News" revelou que para financiar os Contras, guerrilha anticomunista na Nicarágua, a CIA permitia que os guerrilheiros vendessem cocaína nos Estados Unidos.
A revelação dessa aliança causou escândalo em 1996, derrubou um diretor da agência americana e mostrou a hipocrisia da chamada "guerra às drogas" dos anos Reagan (entre 1981 e 1989).
Mas o filme "Kill the Messenger" ("mate o mensageiro"), em cartaz nos EUA e sem data para estrear no Brasil, engrena mesmo ao mostrar como a imprensa americana preferiu tomar o lado da CIA e destruir a reputação do jornalista Gary Webb (1955-2004), que investigou a história.
Premiado com o Pulitzer, a maior distinção do jornalismo americano, Webb (Jeremy Renner) conheceu traficantes que eram pagos pela CIA como informantes, esteve na Nicarágua e conversou com ex-agentes da CIA que se bandearam ao narcotráfico.
Mas outros jornais muito maiores começaram a apontar inconsistências em Webb e até a falar de sua vida pessoal, preferindo focar no "mensageiro" do que na CIA.
Traído por seus superiores, Webb foi transferido para uma desimportante sucursal na Califórnia, onde não voltaria a brilhar como repórter.
Apesar dos cacoetes dos dramas "baseados em fatos reais" (a humanização melodramática do herói, a obrigação de se acelerar em dezenas de detalhes, entre outros), "Kill the Messenger" lembra o cinema político dos anos 1970, cada vez mais ausente em Hollywood.
Dirigido por Michael Cuesta (das séries de TV "A Sete Palmos" e "Homeland"), o filme fala indiretamente sobre o efeito da "guerra às drogas" no corredor da morte que vai da Colômbia ao México.
Sem ser um documentário, ele é antídoto para o discurso "não temos nada a ver com isso", bastante invocado contra as crianças que imigram para os EUA fugindo dos cartéis da droga, e da recente criminalização de jornalistas que desafiam as agências de inteligência por seus próprios colegas no establishment.

Congresso reúne adversários da teoria da evolução

Congresso reúne adversários da teoria da evolução

Químico integrante da Academia Brasileira de Ciências é um dos organizadores de evento realizado em Campinas
Grupo com maioria religiosa quer criar sociedade e lançar manifesto por mudança no ensino da biologia
REINALDO JOSÉ LOPESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O químico Marcos Eberlin, 55, tem um currículo muito parecido com o de outros pesquisadores de alto nível do país. Com centenas de artigos publicados em revistas especializadas, ele é membro da Academia Brasileira de Ciências e professor titular da Unicamp, chefiando um laboratório especializado em espectrometria de massa (grosso modo, uma técnica que permite "pesar" moléculas).
Para consternação de vários de seus colegas, porém, Eberlin também é um dos organizadores do 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente, que começa em 14 de novembro, em Campinas, reunindo os principais adversários da teoria da evolução entre cientistas do Brasil.
Os defensores da TDI (Teoria do Design Inteligente) apresentam uma versão atual de argumentos que chegaram a seduzir o próprio Charles Darwin (1809-1882) antes que o naturalista formulasse a ideia de seleção natural e se tornasse fundador da biologia evolutiva. Eles defendem que seres vivos são complexos demais para terem surgido a partir de matéria não viva, pela ação de leis naturais.
Essa complexidade seria, na verdade, sinal de um design, ou "projeto", embutido nos seres vivos por algum tipo de inteligência avançada.
"Cientificamente, eu sei quais são os meus limites, sei que nunca será possível demonstrar que inteligência seria essa", diz Eberlin. "Tem gente que vai dizer que é o Deus bíblico, tem gente que vai dizer que são os ETs, ou que é uma força que permeia o Universo. Mas mostrar que houve essa ação inteligente é uma proposta científica válida", afirma o pesquisador.
A grande maioria da comunidade científica discorda, porém --em especial os biólogos, principais responsáveis por estudar a trajetória da vida na Terra. Nos EUA, onde surgiu, a TDI é vista como uma tentativa de misturar ciência com convicções religiosas. Por lá, de fato, os defensores mais importantes da tese costumam ser cristãos conservadores.
"No nosso caso, não vejo esse viés. Tem agnóstico, tem espírita, tem católico e, lógico, tem evangélico também", afirma Eberlin, que é batista.

QUESTÃO DE QUÍMICA

Entre as dezenas de membros do comitê científico do congresso, há desde biólogos até historiadores, mas os químicos, tal como o professor da Unicamp, predominam. Dois dos membros mais destacados do comitê, Kelson de Oliveira, da Universidade Federal do Amazonas, e Brenno da Silveira Neto, da Universidade de Brasília, também cursaram teologia (ambos são presbiterianos).
Segundo Oliveira, a forte presença de químicos entre adeptos da TDI é motivada, em parte, pelos modelos sobre a origem da vida na Terra, que "podem ser facilmente entendidos por um químico". "Isso nos permite ver falhas que muitas vezes escapam a integrantes de outras áreas", diz o pesquisador.
Mais especificamente, eles dizem que a probabilidade de reações químicas naturais levarem à formação de células primitivas seria praticamente nula. Para Eberlim, a complexidade bioquímica das células atuais, com mecanismos de correção de DNA, é indício de design inteligente.
Para Brenno da Silveira Neto, o congresso será um foro de debate científico sobre o tema. "Acho errado que grupos religiosos se tornem adeptos da TDI só porque ela valida sua visão de fé."
O congresso deve ser palco da criação da Sociedade Brasileira do Design Inteligente e da divulgação de um manifesto sobre o ensino da evolução e da TDI nas escolas públicas. Eberlin, porém, diz que a ideia não é pressionar o Ministério da Educação.
"O que a gente quer é que a teoria da evolução seja ensinada de maneira certa e na idade certa. É um absurdo usar nas escolas revistinha da Turma da Mônica mostrando o macaquinho virando homem para crianças pequenas", diz o químico. "Queremos que o professor não esqueça de informar aos alunos que há outra teoria que quer entrar na briga. E que não se ensine nada sobre TDI, pois ainda não se sabe bem o que falar. Deixe apenas os alunos cientes de sua existência."


Reprodução da Folha de São Paulo


Para biólogos, 'design inteligente' não faz sentido

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A tentativa de dar verniz científico e educacional à Teoria do Design Inteligente costuma esbarrar na semelhança entre a tese e o tradicional criacionismo --a crença numa divindade que teria criado diretamente os seres vivos como são hoje, em geral idêntica ao Deus da Bíblia.
Foi essa a conclusão do juiz americano John Jones ao decidir contra a secretaria de educação de Dover, na Pensilvânia, que defendia que a TDI fosse ensinada ao lado teoria da evolução nas escolas públicas. Jones concluiu que um currículo escolar assim violaria a separação entre religião e Estado estabelecida na Constituição dos EUA.
No Brasil, em 2004, o Estado do Rio de Janeiro, governado por Rosinha Matheus, chegou a propor a inclusão do criacionismo no ensino público, embora não tenha havido alteração nas aulas.
A maioria dos biólogos, porém, diz não ver sentido na TDI, mesmo quando se analisam os dados do DNA com técnicas modernas.
"Quem quiser defender que o genoma reflete um design inteligente, que não perderia tempo ao entulhá-lo com lixo, vai precisar resolver o paradoxo da cebola", diz o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago. "Se o nosso genoma de 3 bilhões de letras' de DNA reflete a complexidade do nosso organismo, como justificar o genoma da cebola, com 15 bilhões de letras? Ou o da ameba Polychaos dubium, com 670 bilhões? Uma ameba é 200 vezes mais complexa do que um criacionista?", brinca ele.
Para o teólogo Eduardo Rodrigues da Cruz, da PUC-SP, que estuda a relação entre ciência e religião, a penetração da TDI na academia brasileira tem crescido. "Nota-se uma mudança, além da capacidade de liderança de Marcos Eberlin, a pessoa que faltava para o movimento explodir aqui no Brasil", afirma.
Para o especialista, é um erro limitar-se a confrontar ou ironizar defensores da TDI, sem dialogar com lideranças religiosas que não são contrárias à evolução.
"Não acho produtivo discutir com eles", diz Maria Cátira Bortolini, geneticista da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). "Acho muito mais interessante discutir por que há essas mentes predispostas geneticamente a seguirem pensando de maneira mágica, mesmo quando adultos."

sábado, 25 de outubro de 2014

O cerco à imprensa livre na Grécia

Durante meses em 2012, todos na Grécia sabiam a respeito da “lista Lagarde”, mas poucos a tinham visto de fato.
A lista continha os nomes dos mais de 2 mil gregos possivelmente envolvidos em sonegação de impostos que mantinham contas em bancos suíços. Ela tinha sido entregue pela ex-ministra francesa das Finanças Christine Lagarde aos gregos em outubro de 2010, durante o auge da crise econômica grega.
Mas funcionários do governo disseram ter perdido a lista – primeiro, ao perder o CD que a continha e, depois, ao perder o pen drive para o qual o material foi copiado – e não fizeram esforços para recuperá-la durante meses.
Então, no segundo semestre de 2012, o jornalista investigativo grego Kostas Vaxevanis obteve uma cópia da lista e a publicou em sua revista, Hot Doc. Ele dava o nome de políticos, parentes relevantes deles e magnatas dos negócios. Subitamente, o governo resolveu agir. Em menos de 24 horas, um mandado foi emitido e 50 policiais foram mobilizados para deter Vaxevanis e não os sonegadores.
“Estão entrando na casa com um promotor nesse instante. Estão me prendendo. Espalhem a notícia”, disse ele no Twitter.
Vaxevanis acabou absolvido das acusações de “invasão de privacidade” em razão da publicação da lista Lagarde. Mas os aparentes esforços do governo para impedi-lo de investigar a fundo casos de corrupção já são conhecidos na comunidade jornalística grega.
Desde o início da crise econômica, há seis anos, os jornalistas na Grécia têm sido cada vez mais atacados por funcionários do governo e pelos grandes empresários ligados a eles. Sem leis domésticas para proteger a liberdade de imprensa e de expressão, os jornalistas se veem vulneráveis e desprotegidos diante da intimidação. Como resultado, o país caiu muito no índice de liberdade da imprensa compilado pelo grupo Repórteres Sem Fronteiras, da 31.ª posição em 2008 para a 70.ª em 2010 e a 99.ª este ano.
“O problema é como criar um meio que seja ao mesmo tempo independente e financeiramente sustentável num país mergulhado na crise econômica”, diz Nikolas Leontopoulos, jornalista investigativo que foi demitido depois de se recusar a abafar um escândalo que envolveu a maior rede de fast-food da Grécia. “Esse problema continua sem solução.”
Histórico de corrupção
A corrupção que há muito afeta a Grécia e precipitou a crise econômica continua no país, incluindo o setor da mídia. Os analistas dizem que é difícil manter uma imprensa verdadeiramente livre quando a elite empresarial controla boa parte da cobertura.
“Praticamente todas as principais emissoras de rádio e TV, os jornais e as revistas, bem como os principais portais da internet, pertencem a um punhado de magnatas extremamente ricos e bem relacionados”, diz Michalis Nevradakis, doutorando da Universidade do Texas, em Austin, e especialista em mídia grega. “(Eles) usam seus veículos de mídia para pressionar o governo do momento e apresentar uma versão que contenha apenas um lado da história: o seu próprio ponto de vista político.” “Os mesmos proprietários que controlam os maiores veículos de mídia também são donos e operadores da maioria dos grandes bancos e instituições financeiras do país, as maiores empresas de gás e petróleo e os principais interesses de transportes marítimos, bem como as construtoras, que recebem contratos imensos do Estado para projetos de obras públicas”, acrescentou Nevradakis.
Mesmo assim, essas não são questões novas. A novidade está no crescimento da influência da comunidade empresarial em meio à crise que afeta a zona do euro.
As empresas privadas de mídia são relativamente novas na Grécia e a primeira emissora de rádio não estatal foi criada em 1987, dois anos antes da primeira concessão para um canal de TV. Mas até os veículos particulares continuaram sob influência do governo: as concessões eram distribuídas como favores políticos.
Pressão econômica
Mas, com a circulação e a renda com anúncios prejudicadas pela crise econômica, jornais e emissoras de TV viram uma queda na renda que significa que eles são obrigados a depender dos empréstimos concedidos por bancos. Ainda assim, os empréstimos vêm com condições que, para alguns, afetam a cobertura desses veículos para os políticos e o governo.
“Nosso jornal tinha ativos para usar como garantias e obter um empréstimo e tinha também a menor dívida da mídia (grega)”, diz Thanasis Tsitsas, correspondente do jornal Eleftherotipia em Nova York, ilustrando como deveria ter sido fácil obter um empréstimo. Mas “o Eleftherotipia esteve entre os poucos veículos que criticaram o programa de recuperação econômica, alertando que a Grécia estava sendo sacrificada para salvar os bancos europeus”.
As negociações entre jornal e banco prosseguiram por meses. “Pouco antes de fechar, a diretoria do jornal estava negociando com os bancos e uma série de escândalos envolvendo funcionários do alto escalão do governo começou a ser investigada pelo jornal e publicada”, diz Tsitsas. “E esse foi o fim do jornal.” O Eleftherotipia fechou depois de deixar seus 850 funcionários sem emprego e ainda reivindicando compensações e salários atrasados.
Ao mesmo tempo, a emissora particular de TV, Mega Channel, recebeu um empréstimo de € 100 milhões embora tivesse de pagar € 20 milhões em indenizações e devesse € 200 milhões. Diferentemente do Eleftherotipia, o Mega Channel fazia o papel de mídia chapa-branca, defendendo as medidas de austeridade impostas pelo trio União Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu.
A mensagem era clara: elogiem o governo ou vão embora, dizem os jornalistas.
Sem medo da verdade. De sua parte, desde a publicação da lista Lagarde, Vaxevanis tem sido um visitante frequente nos tribunais de Atenas. “Temos cerca de 30 processos (por ano)”, diz ele. “Isso nos custou € 50 mil e, é claro, muito tempo de preparação.”
Enquanto isso, apenas um quarto das pessoas na lista – incluindo dois conselheiros próximos do primeiro-ministro Antonis Samaras e quatro primos do ex-ministro das finanças Giorgios Papaconstantinou – estão sob investigação. O procedimento é complicado e são necessários muitos meses para reunir os dados de cada caso.
Mas o Hot Doc continua a ser publicado, e Vaxevanis não se arrepende de nada. “Sou jornalista e fiz o meu trabalho.” “Quero ser jornalista num país sem medo da verdade”, diz ele. “Não quero que nenhum jornalista fique em perigo em razão daquilo que revelamos.” 

Reprodução do Observatório da Imprensa