quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mortes: Atacante do Inter, conhecido por frase que nunca disse

Um dos maiores atacantes da história do Internacional, Claudiomiro entrou para o folclore do futebol por uma frase que não disse.

"É uma alegria jogar em Belém, a cidade em que nasceu Jesus", teria afirmado antes de partida na capital do Pará.
É imagem injusta para o atacante seis vezes campeão gaúcho (entre 1969 e 1974) e o terceiro maior artilheiro da história do Inter, com 210 gols.
Destacou-se apesar de passar a carreira brigando contra os zagueiros e a balança. Foi por causa do excesso de peso que deixou o time do Rio Grande do Sul em 1974. Os 90 kg espalhados em 1,76 m eram demais para fazê-lo levar vantagem sobre os rivais. Acabou dispensado pelo Botafogo. 
Sua condição física atarracada o fez ser apelidado de "bigorna". Enquanto conseguiu se manter longe dos churrascos e das cervejas, duas de suas paixões, conseguiu se destacar. Chegou à seleção.
Em tentativa desesperada de perder peso, entrou em dieta rigorosa e ficou magro como nunca na carreira.
Mas reclamava que não tinha força no chute, sua principal característica. Voltou aos velhos hábitos e ganhou peso.
Aos 16 anos, Claudiomiro Estrais Ferreira estreou como profissional no Inter. Aos 18 fez o primeiro gol da história do estádio Beira-Rio, em um amistoso contra o Benfica.
Abandonou o futebol em 1979, aos 29, cansado de ser bigorna, ter que emagrecer, e frustrado por lesões no joelho.
Claudiomiro morreu na sexta (24), após sofrer um mal súbito em sua casa, em Canoas (RS), aos 68. Recebeu homenagens do Inter, onde ainda é ídolo.
"Na minha casa não tem azulejo. Só vermelhejo", disse, citando a cor do arquirrival do Inter, o Grêmio. Esta frase, pelo menos, ele falou.

Alex Sabino realiza o necrológio de Claudiomiro na Folha de São Paulo

O Rapa

Passei a noite de quarta-feira da semana retrasada no cruzamento da rua Major Diogo com o viaduto Júlio de Mesquita Filho, em São Paulo.
O viaduto, nessa altura, oferece centenas de metros quadrados de teto, embaixo dos quais vive uma comunidade de moradores de rua, ao abrigo das chuvas e do pior frio.
Digo que é uma comunidade porque, de fato, os moradores compartilham um fogão comunitário, e há um campinho de futebol administrado, com horários de jogo para jovens, veteranos etc. Só não verifiquei se há ou não jogos de futebol feminino.
Fora as áreas comuns (como o campo de futebol e a cozinha), o espaço embaixo do viaduto é dividido em lotes que configuram pequenas casas: cada morador ou núcleo (familiar ou de amigos) decora sua parcela com restos do desperdício urbano (camas, sofás, tapetes, armários que contêm a roupa e outros bens garimpados na rua).
Em suma, os moradores sob o viaduto não são propriamente sem teto: não só porque o viaduto os ampara, mas porque, de fato, eles vivem em pequenos lares.
O lixo, que se acumula às margens dessa vila urbana, contrasta com a limpeza dos espaços habitados. Você encontra um sofá sobre um tapete varrido (ou seja, a sala de uma casa, em que só faltam as paredes e a TV) e, a poucos metros de distância, ao longo da mureta que separa a rua dessa área habitada, você esbarra em uma acumulação de papéis, plásticos, dejetos e restos de comida apodrecendo, com o inevitável rato morto.
Chegando ao cruzamento, perguntei-me, aliás, por que o lixo não estava sendo coletado naquelas áreas...
Eu logo encontraria uma resposta. Mas, antes disso, é preciso explicar: naquela noite, toda a equipe da quarta temporada de "PSI" (HBO) estava gravando uma cena em que uma ex-moradora de rua reencontra amigos do passado.
A gente, como é normal, tinha conseguido a autorização da Subprefeitura da Sé, e nossa equipe de arte tinha preparado o cenário (nada extravagante, só uma daquelas áreas de vida mobiliadas por restos urbanos que descrevi antes —mais uma, parecida com as outras).
As gravações terminaram lá pelas 6h. Desmontamos o set e deixamos nossa "mobília" com um segurança (um morador do viaduto), pois voltaríamos no dia seguinte para completar as gravações da cena.
Depois de nossa saída, pelas 8h, aconteceu algo banal e, ao mesmo tempo, extraordinário por sua violência: um rapa. Ou seja, chegou um caminhão de lixo da prefeitura acompanhado por um carro da PM; os moradores do viaduto foram alinhados contra um muro e só lhes foi permitido levar consigo uma mochila e um pertence.
O resto (os móveis, os ornamentos, os utensílios de cozinha, a roupa, os objetos, o fogão comunitário, os botijões de gás etc.) foi triturado pelo caminhão do lixo na frente dos próprios moradores de rua.
Nosso mobiliário cenográfico não foi poupado: de nada adiantou o segurança mostrar o atestado de que estávamos filmando. Mas isso, diante da destruição dos móveis reais dos moradores de rua, é o que menos importa.
Para eles, era como se a sociedade destruísse com afinco (periódica e sistematicamente) os pequenos passos que conseguem dar na direção de uma morada, de um lar.
Entendi então por que a coleta do lixo não acontece regularmente nos lugares onde vivem os sem-teto. É como se, ao redor deles, a cidade deixasse o lixo se acumular propositalmente, para afogá-los, eles e seus poucos bens, na sarjeta, ou melhor, para poder confundi-los com o lixo e, quem sabe um dia, coletá-los do mesmo jeito.
Rapar significa tirar tudo, limpar as excrescências com uma lâmina rente ao chão; o rapa termina com um caminhão-pipa que passa um jato poderoso de água, para desinfestar. Na área de moradias quase urbanas, tratadas como lixo, não sobra nada.
Enfim, sobram os sem-teto, desarraigados e condenados ao nomadismo.
Cuidado, não acho que os viadutos sejam a solução à falta de moradias praticáveis. E não penso apenas nos moradores de rua: também sou solidário com os vizinhos que contemplam com um misto de medo e nojo a concentração de uma vila de sem-teto perto de sua casa.
Mas há uma malvadez perversa no ato de destruir aqueles semblantes de casas.
Na manhã de quinta, eu só conseguia pensar nos cretinos que, quando eu era criança, passeavam pela praia e, de propósito, demoliam os castelos de areia que a gente construía.

Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Mãe trans é impedida de registrar filho biológico em cartório no RS

No dia 3 de agosto, quando a professora Ágata Vieira Mostardeiro, 25, pegou o filho Bento no colo, pela primeira vez, ela enfrentou a tremedeira nos braços pelo medo de deixá-lo cair, e o segurou forte. “Não queria mais largar. Tão pequeno e tão lindo. Fiquei boba, sabe?”. 

Ter um filho com a designer de moda, Chaiane Cunha, 26, que tivesse o DNA das duas, era um sonho. Ágata, que se identifica como mulher trans há um ano e um mês, esperou a gravidez da namorada ser confirmada para começar o tratamento hormonal de transição de gênero.

Assim que viu o resultado positivo, correu para retificar seus documentos a tempo de ter seu nome na certidão do filho. No dia seguinte ao nascimento, ela seguiu para fazer o registro de Bento.

 A animação com o que era para ser um dos momentos mais felizes da vida, porém, murchou na mesa da atendente. O cartório não aceitou seu nome como genitora biológica da criança. 

“Me orientaram fazer a certidão só em nome da outra mãe e eu ser registrada como mãe socioafetiva. É o que costumam fazer. Mas, eu sou mãe biológica. Bento é meu único filho e acho que será o único filho biológico possível de nós duas”, afirma.

“É angustiante, estar num momento feliz e não poder registrá-lo, além de me mencionarem como pai, volta e meia, de uma forma não legítima”.

O parto, realizado em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre (RS), não foi fácil. Primeiro, o bebê teve de enfrentar cinco dias de UTI para regular a glicose, um reflexo do diabetes gestacional da mãe, que não foi diagnosticado no pré-natal. 

Poucos dias depois de ter alta, o bebê voltou a ser internado no hospital para tratar uma infecção urinária. Diagnosticado com infecção sanguínea, ele segue em tratamento médico.  

Na terça-feira (21), após semanas à espera de uma resposta da Justiça, Ágata cedeu. Na Declaração de Nascido Vivo, assinada pelo médico que fez o parto, seu nome estava como “companheira” da mãe da criança. Ela aceitou registrar o filho como mãe socioafetiva, para conseguir incluí-lo em seu plano de saúde e trocar de hospital, enquanto Chaiane assinou um documento dizendo que desistia de procurar “pelo pai biológico” da criança.

Um dia antes, respondendo ao parecer do Ministério Público sobre o caso, o Fórum de Canoas condicionou o registro da criança à apresentação de atestado médico afirmando que Ágata não havia alterado seu sexo biológico na época da concepção  —ou seja, que teria condições físicas de ser “pai”— e à uma declaração de Chaiane certificando o vínculo biológico do filho com a namorada. 

“Vendo do ponto de vista de filha sem o nome do pai no registro, sabendo que essa é uma realidade recorrente, fico indignada. O Bento é de nós duas, é geneticamente das duas. Não faz sentido que só o meu nome conste”, diz Chaiane. 

No final de junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a regulamentação para retificações de nome e sexo em cartórios de todo o país. Sobre filhos, o documento se refere apenas à mudança de documentos já existentes: em caso de retificação do nome de um dos pais, a alteração deve ter concordância do próprio filho e de outro pai. O caso de Ágata é diferente.

“Se o nome já está retificado, a partir do momento da retificação, todos os atos jurídicos que essa pessoa praticar ela vai praticar com esse [novo] nome. Inclusive, o ato de registrar o filho”, explica o defensor público Mário Rheingantz.

Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) alega que o cartório “não se recusou a realizar o registro de nascimento”. A entidade diz que o cartório questionou a Justiça sobre qual o procedimento adequado no caso e que no dia 20 afirmou à família que o registro poderia ser feito caso se comprovasse vínculo biológico do pai com a criança e a mãe comparecesse no local. “A precaução do cartório foi no intuito de evitar prejuízos à família em razão de eventual procedimento incorreto”, diz o texto.

Para a advogada Gabriela Souza, que representa Ágata, o caso mostra o despreparo do Judiciário para lidar com novas famílias e o preconceito da sociedade contra pessoas trans. 

“O ato de registro civil é um ato unilateral. Se vai um homem cisgênero [que se identifica com o sexo biológico] e hétero registrar a criança, ninguém pede DNA, ninguém pede que a mãe que está no hospital mande declaração por escrito dizendo que transou com esse homem. Acredito que esse caso seja o primeiro do Brasil”, afirma. 

O próximo passo, diz ela, é entrar com uma ação para constar na certidão de Bento que ele tem duas mães biológicas e reconhecer Ágata como tal. A advogada também planeja entrar com uma representação na OAB, por quebra de direitos, e outra contra o próprio Judiciário.


Reprodução de reportagem de Fernanda Canofre, para a Folha de São Paulo

O Pavê

Em festas onde não tenho intimidade com os convidados, procuro sempre estar em grupos de no mínimo quatro pessoas, contando comigo.
Grupos de três devem ser evitados sempre, porque se uma pessoa sai, você e que sobrou se veem num grupo de dois, ou seja, aprisionados numa conversa desconfortável onde abandoná-la seria indelicado e ficar seria afundar numa areia movediça de amenidades.
Em qualquer grupo de três, os que têm sensibilidade conseguem notar a tensão nos olhos dos envolvidos. Quem conseguirá sair antes do grupo de três se transformar num grupo de dois? Evito sempre grupos de três.
Numa dessas aventuras sociais, uma festa dançante onde eu não conhecia nenhuma música, nenhuma dança e nenhuma pessoa, de repente ouço algo familiar em meio ao conglomerado de dançarinos de fim de semana: é meu nome, sendo chamado por três jovens desconhecidos. Fiz as contas e tudo bem, me aproximei formando um grupo de quatro.
Em meio à música alta, consegui entendê-los perguntando se eu queria pavê. Mas que pergunta sem cabimento, é lógico que eu queria pavê, isso não é coisa que se recuse. Eles sinalizaram para que eu os seguisse, e à medida em que fomos adentrando os corredores, percebi que provavelmente estávamos nos encaminhando para o banheiro. Até aí tudo bem, quer dizer, não tudo bem, tudo bem —mas tudo bem. 
O problema realmente começou quando chegamos no banheiro e para minha surpresa, não havia pavê nenhum. Aí já era demais.
Ainda disposto a comer um pavê num banheiro imundo com desconhecidos, perguntei onde estaria o tal pavê, e me foi explicado que “padê” na realidade é uma gíria jovem para cocaína. A música estava realmente muito alta.
Agradeci e me retirei, e confesso que, apesar de me sentindo enganado pelo universo jovem, fiquei aliviado porque teria muita dificuldade em digerir o pavê, se realmente houvesse um.
E aliviado também por pavê, mousse, sorvete ou mesmo jujuba não serem drogas inaláveis, porque com certeza à essa altura eu já teria tido uma overdose com estranhos num banheiro público.
No caminho de volta, me lembrei de quando a Polícia Federal apreendeu os bens da casa de Eike Batista, que incluía um belíssimo piano de cauda. Quem tocava aquele piano? Thor? Olin? Luma? O próprio Eike? Jamais saberemos.

Texto de Daniel Furlan, na Folha de São Paulo

domingo, 26 de agosto de 2018

Ensaios de risco

Otavio topou escrever a orelha do meu livro sobre medos e crises de ansiedade, e eu, muito agradecida e emocionada, o convidei para almoçar. Finda a sobremesa, eu já angustiada querendo prolongar o papo, fiz o seguinte trato comigo: vou ler "Queda Livre - Ensaios de Risco" ainda esta semana e mandar um email bem caprichado para que, talvez, se eu tiver muita sorte, iniciemos uma amizade. Não li o livro (até esta manhã; e a leitura está sendo muito intensa porque o conteúdo trata sobre o temor da morte e, não obstante, a coragem, apurada e honesta, com a qual o autor se lança a pulsões que o aproximam dela). Nunca escrevi o email.
Na faculdade, a Priscila fez uma festa e chamou praticamente a classe inteira —menos eu. Encasquetei com aquela menina tímida e magrela e não descansei enquanto não consegui ser a sua melhor amiga. Várias vezes na semana, caminhávamos até o antigo Espaço Unibanco para ver filmes, comer pães de queijo e coçar as canelas. Estávamos aprendendo a dirigir, a suportar o estágio que não nos agradava e a lidar com rapazes que nunca mais telefonavam —tudo isso (mais a moda de usar meia-calça) nos dava a mesma alergia naquela parte das pernas. Vivemos grudadas por mais de uma década, até que ela se casou e mudou para Paris. Durante anos, ela me convidou insistentemente para visitá-la. Nunca dava tempo, nunca cabiam na minha vida fóbica esses dias incríveis que alargariam meus limites. Então ela morreu.
Li o brilhante livro de contos "Jeito de Matar Lagartas" e adicionei o escritor Antonio Carlos Viana no Facebook. Ele topou a aproximação virtual e me surpreendeu com uma mensagem na qual dizia que andava me lendo e gostando. Convidou-me então para um pequeno evento que organizava em Aracaju, chamado Autor do Mês. Achei longe demais, quente demais, em cima da hora demais. Vi as fotos, uma turminha ótima, animada, encantadora. Pouco tempo depois, Antonio parou de responder a minhas mensagens, e em seguida eu soube da sua morte.
Quando me perguntam para quem eu escrevo, sempre respondo que para ninguém ou para a parte de mim que não pode surtar. Mas a verdade é que escrevo para tocar interlocutores possíveis, perspectivas de uma vida menos chata, menos óbvia, menos superficialmente sufocante. Escrevo para que alguém possa entender e me explicar meus escritos. Escrevo para autores melhores e maiores como Antonio Carlos Viana, na tentativa de ser catapultada da minha medida. Escrevo porque não fui a Paris, não fui a Sergipe, não irei a mais almoços com Otavio.
Escrevo para dar conta da saudade que sinto de fazer gargalhar minha amiga Priscila, ela me pedindo: "Para, que vergonha!", mas se divertindo com minhas palhaçadas. Escrevo para organizar, na minha caixa de "tudo o que tem no mundo", um troço chamado câncer e seu efeito nefasto que abrevia a existência de melhores amigos e de amigos sonhados. Escrevo para imaginar o abraço que eu teria dado no grupo de leitura do evento Autor do Mês e o que Otavio teria respondido à minha tentativa desesperada de ser sua amiga. Escrevo porque sou desesperada para ser amiga das pessoas. 
Diferente de Otavio, não pulei de paraquedas, não tomei Santo Daime, não atuei numa peça de teatro, não mudei a história do jornalismo no Brasil. Mas escreverei para sempre (e sobretudo, enquanto puder, para este jornal) pensando na honra deste espaço, daquele almoço e de ter sido lida por ele.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Dólar dispara e venceria no 1º turno

Supervalorizado após a divulgação da última pesquisa Datafolha, o dólar venceria em primeiro turno se as eleições fossem hoje.
"O Mercado, essa entidade, tem mais influência no processo eleitoral que o Comitê de Direitos Humanos da ONU", lamentou Lula.
Analistas, no entanto, consideram improvável que a moeda americana consiga transferir popularidade para Geraldo Alckmin, o candidato do Mercado.
"Encomendamos uma pesquisa num cenário sem Lula, sem Bolsonaro, Marina, Ciro, Haddad, Boulos e sem Amoêdo. Nem assim o Geraldo ganhava", explicou, pausadamente, Túlio Pessegueira, o economista-chefe do Fundo Novo de Investimentos.
Nomes fortes do Mercado (essa entidade) se reuniram para traçar um cenário em que a moeda americana governe diretamente o Brasil.
"Chegamos ao máximo do Estado Mínimo: um sistema político sem presidente em que o Dólar governe sem intermediários. Esse negócio de democracia acaba atrapalhando os negócios. O melhor caminho para modernizar o Brasil e trazer a tão sonhada eficiência na administração pública é acabar com a administração pública", discursou Pessegueira, do Fundo Novo, num palanque. Em seguida, prometeu um IPO para fundar a Nova República.
Comovidos, milhares de brasileiros tomaram a avenida Paulista vestidos de verde para pedir intervenção constitucional do Mercado.
Em frente à Fiesp, foi inflado um imenso George Washington. "Estamos estarrecidos com a possibilidade de um segundo turno com Fernando Haddad. Precisamos comprar dólares visando uma estadia de quatro anos em Miami, mas está custando muito caro. Esse país é uma vergonha, vamos virar uma Venezuela", disse Laurinda Mourão Pinto, líder do Movimento Vem pra Disney.
Para acalmar novamente o Mercado, essa entidade, Lula estuda redigir uma nova Carta ao Povo Brasileiro.
Ao saber dos planos do ex-presidente, Sergio Moro determinou um bloqueio na carceragem para não deixar passar sequer uma caneta até o final das eleições.

CONTADOR

Estamos trabalhando há 161 dias sem saber quem matou —e quem mandou matar— Marielle Franco.

Reprodução de coluna de Renato Terra, na Folha de São Paulo

Refugiados e cidadãos

Há de se retornar mais uma vez a Pacaraima, pois é nessa cidade no extremo norte do país que se define atualmente o Brasil.
Pode parecer que essa é apenas uma frase de efeito para dramatizar um pouco textos jornalísticos do final de semana. Mas a verdade é que a vila de pouco mais de 12 mil habitantes é o ponto privilegiado de contato do Brasil com as dinâmicas de reconfiguração da política mundial e da função do que podemos entender por Estado-nação.
A imagem aterradora de uma turba queimando pertences de refugiados, suas tendas, e expulsando-os enquanto entoavam o hino nacional com o orgulho dos criminosos que se julgam moralistas, dos bandidos que têm olhos duros contra o crime, não é um incidente isolado. Esse é um caso premeditado.
O descaso do governo federal com a sorte dos refugiados e sua incapacidade de organizar uma política mínima de acolhimento e distribuição no território nacional desses que procuram fugir de instabilidades econômicas e políticas não são apenas uma falta moral repugnante. São uma bomba-relógio política já montada em várias partes do mundo.
Melhor gerir um povo em luta contra refugiados e delirando sobre símbolos nacionais do que alguém que não cai nesse tipo de armadilha primária. Poderíamos lembrar da aberração de ver cenas dessa natureza em um país como o Brasil, construído pela escravização dos negros, pelo extermínio de indígenas e pelo acolhimento de levas de refugiados armênios, sírios, libaneses, judeus, assim como de tantos outros imigrantes fugindo da miséria desde o século 19.
Essa aberração pode até ser loucura, já que ela expõe a mobilização de medos atávicos em um país que se beneficiou há mais de um século do que os refugiados trouxeram. Mas essa loucura tem método.
Em um momento no qual o Estado-nação já não existe mais, no qual as fronteiras econômicas são ficções, no qual a desestabilização da lira turca provoca efeitos imediatos na economia brasileira, cantar o hino nacional como expressão de um "este é meu lugar, forasteiro" só pode ser visto como um atestado de impotência travestido de força.
Ele é a prova maior de como o nacionalismo é o último refúgio da estupidez humana. Dele, as únicas coisas a derivar são paralisia e destruição.
Não tendo mais função econômica alguma, a nação se resume atualmente a seu núcleo originário. "Natio", em latim, está ligado a "nascimento", "origem". Ou seja, trata-se da simples afirmação fantasmática do nascimento que pretensamente nos daria algo de comum e intrasferível.
Mas nada nos une como "brasileiros"; nem sequer temos uma história em comum, nossos pactos entraram em colapso. Para se esquecer disso sempre haverá aqueles que procurarão criar unidades fictícias, construindo inimigos externos, mesmo que tais inimigos sejam refugiados lutando pela simples sobrevivência.
Mas é fato que nem sequer nisso o Brasil inova. A política mundial tem em um dos seus pilares a produção contínua de refugiados. Não há país minimamente desenvolvido que não se beneficie da pressão de desestabilização produzida pelo fato de existirem massas de não cidadãos migrando pelo mundo. Não cidadãos que estarão dispostos a suportar as piores privações para não retornarem à sua insegurança inicial.
Normalmente, o refugiado é contraposto ao cidadão, aquele que tem direitos e territorialidade garantidos pelo Estado. No entanto o cidadão sempre precisou do refugiado para se esquecer de sua contínua precarização e fragilidade.
Ele precisa disso para esquecer que será o próximo refugiado, o próximo a se encontrar em condição de vulnerabilidade extrema, o próximo a vagar sem rumo à procura de condições elementares de sobrevivência. Pois os vínculos elementares de solidariedade foram destruídos na última festa macabra de caça a estrangeiros.
Aí será tarde para descobrir que a solidariedade ou é irrestrita e incondicional ou é simplesmente inexistente. Será tarde para descobrir que nos tornaremos refugiados paradoxalmente cantando o hino nacional contra refugiados.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Porte de armas, correlações e ideologias

O debate sobre porte de armas ressurge a cada eleição. Raramente se presta atenção a um termo muito apreciado por sociólogos e estatísticos: correlação. Por que uma palavra tão bonita não é mais usada? A Dinamarca proíbe a aquisição e o porte de armas de fogo. A Noruega permite que cada cidadão se arme à vontade. A taxa de homicídios por cem mil habitantes/ano na Dinamarca é menos de um. Na Noruega também. O que se conclui? Que nos casos citados não há correlação entre possuir ou não armas e violência. Em 2007, os noruegueses assassinaram duas pessoas com armas de fogo. Foi tudo. Em 2011, porém, um norueguês maluco executou 69 pessoas com um fuzil.
Existem países com muitas armas nas mãos das pessoas e baixa violência. A Suécia é um exemplo disso. Existem países com poucas armas nas mãos das pessoas e baixa violência. O Japão proíbe armas e tem 0,3 homicídios por cem mil habitantes/ano. Conclusão: armas não produzem necessariamente violência. Nem necessariamente a inibem. O que produz? Basta dar uma olhada nos países mais violentos do mundo para se ter uma ideia. O que eles possuem em comum além da violência? Alto nível de desigualdade. Honduras costuma figurar como o país mais violento do mundo: 92,7 homicídios por cem mil habitantes/ano. A miséria atinge 70% das pessoas. Belize também é do pelotão da frente.
Nesse pequeno país da América Central a taxa de assassinatos por cem mil habitantes/ano não baixa de 40. Sem ser o país mais pobre, Belize tem uma das mais altas taxas de pobreza extrema da sua região. O porte de armas é legal em Honduras. Uma correlação surge: violência e desigualdade. Velha conhecida. Quanto mais desigual for uma sociedade e mais armas estiverem disponíveis, mais violência haverá. A lista dos campeões de violência anda, como quase sempre, assim: Honduras, El Salvador, Venezuela, Colômbia, Belize, Guatemala, Jamaica e Trinidad e Tobago… O que eles compartilham? Desigualdade. Não é a pobreza que pega antes de tudo. É a distribuição desigual da riqueza.
Quantos países têm alto grau de desigualdade e baixo índice de violência? A ideia de que armar todo mundo produzirá um efeito dissuasivo nos criminosos talvez esconda uma utopia conservadora radical: diminuir a violência sem precisar diminuir a desigualdade. Ficar com anéis sem perder os dedos. O resultado mais imediato desse projeto existencial e político é a vida em fortalezas urbanas como shoppings e condomínios fechados. A baixa violência em países armados não é o fruto da cultura e da educação como se diz. Essa ideia sugere que uma boa doutrinação gera cidadãos corretos e dispostos a aceitar a sua condição social dentro da legalidade mesmo sem vislumbrar perspectivas de melhora. A educação, a cultura e a baixa violência são o produto de políticas públicas de redução da desigualdade. É isso.
Correlações. O Brasil precisa melhorar as suas polícias, aperfeiçoar o sistema prisional, asfixiar a corrupção. Nada derrubará a violência se continuarmos campeões de desigualdade. É tão claro que parece falso. Pronto, falei.

Do blog do Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Me deixem ser mulher



Você escreve como uma mulher? Essa é a pergunta da moda. Respondo sempre que sim, escrevo como uma mulher porque, ora pois, sou uma. Para mim é simples assim. Insistem: então você é uma mulher escrevendo? Olha, sou, viu? Sento aqui na minha cadeira, amassando minha vagina com calças que depois da gravidez ficaram apertadas, e escrevo.

Às vezes, com minha voz de mulher, peço ao meu marido que me traga uma água da cozinha. Ele não gosta muito porque homem não gosta de ficar fazendo coisas desse tipo para mulheres. Daí eu faço uma cara que, pude agora verificar no espelho, é de mulher, e digo "por favor, vai", e ele acaba trazendo.
As mãos que digitam, estou confirmando isso neste exato momento, não se parecem com a de um rapaz. Se forço a cervical um pouco mais para baixo (e isso costuma me dar enxaqueca depois) vejo seios. Se eu enfiar agora a mão dentro da calcinha, meus dedos ficarão sujos de sangue. 
Quando nasci, no Hospital Matarazzo, falaram pra minha mãe "é menina". Minha mãe falou pra minha avó "uma menininha" e minha avó falou pro meu pai "você é meio lerdo, vai logo no cartório antes que feche... ah, sim é mulher". Meu pai então foi ao cartório e me registrou como tal. Nunca os chamaram de loucos.
Aos 19 anos eu ficava um pouco entumecida com uma amiga da faculdade que tinha mania de desembaraçar meus cabelos. Aos 30, na festa que ficou mundialmente conhecida em Pinheiros como "open house do ofurô", apalpei peitinhos de amigas e beijei de língua uma gringa. Nunca quis ter pinto, a não ser para pô-lo na mesa quando produtor rico vem com papo de "faz de graça pelo amor à arte". Todo meu respeito a quem tem outras histórias relacionadas a gênero, sexo e amor a arte, mas a minha é essa.
E se meu narrador for masculino? E se meu personagem principal for masculino? E se o narrador-personagem for uma mulher que se identifica com o gênero masculino? E se o narrador onisciente for um homem que, ao longo do tempo que eu demoro pra escrever um livro, se descobrir mulher, mas uma mulher lésbica que, ao longo do tempo que demoro pra editar um livro, mantém o nome de origem para uso exclusivo do Tinder? E se a escritora se sentir mais fálica do que fada? E se Elena Ferrante for um macho branco opressor? E se Philip Roth não tivesse escrito "O Complexo de Portnoy"?
Eu não faço a menor ideia, eu nem entendi nada do que eu acabei de escrever. Em nome de Deus me deixem apenas ser mulher. Durante um dia, enquanto sento aqui nessa cadeira, sou velha, criança, machona, rinoceronte, um poodle deprimido, um assassino, mas, comandando o circo, sou mulher. 
"Sou, sobretudo, uma pessoa". Se você concluir isso, em qualquer mesa, em qualquer debate, em qualquer feira literária, em qualquer lugar com jovens, feministas, jornalistas e pessoas que gostam de livros, você será aplaudida. "Sou, sobretudo, eu mesma, um ser humano". Aplausos! Mas a verdade é que, tirando os "lugares-comuns da Vila Madalena", que falo para não ser apedrejada, eu sou mulher. Desculpa desagradá-los, sei que neste 2018 se espera mais de uma mulher, mas é o que tem pra hoje.
Quem se ofende está entendendo que, implícita na pergunta, pode ter a frase "não tão incrível quanto um homem" ou que ser algo limita o poder da criatividade. O que eu falo tem tantas idades e gêneros e maldades quanto eu quiser inventar, mas, apesar disso e também por isso, sou mulher. E quem me encher o saco, que pegue no meu pau.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Eleitor, mobilize esse traseiro gordo!

O eleitor chegou em casa muito tarde, depois de meia-noite. Entrou sem fazer barulho, para não acordar a mulher, que já devia estar dormindo. E ela estava mesmo dormindo, mas numa poltrona da sala, em frente à televisão ligada.
O eleitor foi até o banheiro, deu uma mijada, lavou as mãos e depois foi para a cozinha. Pegou um prato de comida, que já estava pronto, esquentou no micro-ondas, abriu a geladeira, pegou uma lata de cerveja e foi para a sala.
Quando ia sentar no sofá se lembrou de que não tinha trazido um copo. "Beber cerveja direto da lata não dá, ninguém merece", ele pensou.
Essa era uma de suas poucas convicções na vida. Reunindo a energia que ainda lhe restava, voltou à cozinha para pegar um copo limpo. De volta à sala, sentou-se no sofá e começou a jantar.
Aí é que ele se deu conta de que na televisão estava rolando um debate entre os candidatos a presidente da República. Enquanto jantava, acompanhou um pouco do debate e, de repente, o eleitor percebeu que precisava se posicionar. Estava com uma insuportável dor na coluna, e aquele sofá velho só piorava a situação.
Ele tinha que se posicionar. Tentou sentar mais um pouco para a direita, mas não adiantou. A dor na coluna aumentou muito. Depois, jogou o peso do corpo para o outro lado e inclinou um pouco para a esquerda. Por alguns momentos sentiu um certo alívio, mas logo depois a dor voltou.
Ficou, mais uma vez, na dúvida sobre seu posicionamento. Pensou que talvez a culpa não fosse dele, a culpa era daquele maldito sofá velho e deformado.
Depois de ver mais um pouco do debate, o eleitor pensou que deveria não apenas se posicionar, mas também se mobilizar. Ele então criou coragem e se mobilizou: levantou do sofá, procurou o controle remoto e desligou a televisão.
Já estava tarde pra caralho e ele tinha que acordar cedo. Mas foi dormir pensando que tinha que se mobilizar mais. No dia seguinte ele iria numa loja de móveis para comprar um sofá novo. Ele sabia que mandar reformar aquele sofá velho não ia adiantar nada.

Texto de Reinaldo Figueiredo, na Folha de São Paulo.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O mistério da meia tigela

Há tempos, no rádio, um jogador de futebol foi classificado como “de meia tigela”. Um jovem ouvinte, desconhecendo a expressão, veio me perguntar o significado. Expliquei: “Um jogador de meia tigela é o que não é lá essas coisas”. Ele não se contentou: “Tudo bem, mas por que ‘de meia tigela’?”. E, aí, quem embatucou fui eu. Um craque, por exemplo, será de tigela inteira? E tigela de quê?
Eu próprio às vezes classifico alguém como tendo uma “voz de taquara rachada”. Acontece que não me lembro de jamais ter visto uma taquara, inteira ou rachada, e não sei como se pode falar por ela. E o que será uma coisa que “não vale dez mil réis de mel coado”? Posso entender que dez mil réis nunca tenham valido grande coisa, mas por que de mel e, ainda por cima, coado? E o que significará “responder na lata” a alguém que nos ofende? De onde sairá a lata com a qual responderemos?  
Há muitos casos. Uma “piada de salão” é, naturalmente, uma piada inocente, que se pode contar na presença de senhoras. Mas ainda haverá salões onde tais piadas possam ser contadas ou senhoras a quem contar e, em havendo, valerá a pena contá-las? Alguém achará graça? E “orador de sobremesa”? Eu mesmo, há décadas, não participo de banquetes em que, servida a sobremesa, um comensal se levanta, pigarreia e faz um discurso chatíssimo. E “passar a pão e laranja”? Antigamente, isso era passar fome. Hoje, pão e laranja devem compor um lauto café da manhã para bacanas de dieta. 
Até há pouco, quando se dizia a uma mulher que ela era “de fechar o comércio”, a frase era entendida, e com razão, como um grande elogio. Hoje não é mais. Aliás, nem é mais entendida. Nem pela mulher, nem pelo comércio.
O que prova que certas expressões podem atravessar os séculos e continuar em uso, mas seu significado original irá se perdendo até para seus usuários mais antigos. Mesmo que, como eu, linguistas de meia tigela.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Evaristo de Macedo

Uma vez eu vi o Evaristo de Macedo sentado num banco na rua. Sim, o ex-jogador dos anos 1950 e 60, do Flamengo, do Barcelona e do Real Madrid. Mas, naturalmente, o reconheci de sua fase mais senhoril, como ex-técnico do Flamengo e de outros times menores como a seleção brasileira dos anos 1980. Ele parecia já ter já quase 80 anos.
Me emocionei. E ele não estava fazendo nada, só sentado. Sem conversar, sem fazer carinho em pombo, sem compartilhar notícia falsa em rede social. E olha que é difícil realmente não fazer nada. Elegantemente, num primeiro momento, virei a cara.
Mas não resisti e olhei de novo. Ele provavelmente percebeu que eu estava olhando. Merda. Que situação chata. Disfarcei, olhei em outra direção, mas uma força me puxava de volta. Queria resistir, queria não ficar olhando. Que vergonha. Tentei olhar de novo só rapidinho, ele já devia até ter ido embora.
Não. Não só não tinha ido embora como agora estava olhando fixamente na minha direção. Ele havia percebido. E agora estávamos nos olhando nos olhos, sem disfarces. Esse olhar… Esse doce olhar… Foi aí que bateu: o Evaristo de Macedo em pessoa sentadinho num banco de praça!
“Gente, olha lá o Evaristo de Macedo sentadinho!”, deixei escapar para um qualquer do meu lado, que me ignorou e voltou a fingir que não estava fazendo nada, quando na verdade estava fazendo alguma coisa. Não importa. Agora, para mim, só existiam Evaristo e eu. Definitivamente ele percebeu. 
Que vergonha. Por que será que quando vemos alguma pessoa famosa na rua ficamos olhando? Já me disseram que é como ver um monumento, como a torre Eiffel. Você pode até não admirar a arquitetura, mas não tem como não ficar olhando. Uma vez eu vi o Marcelo Serrado e não fiquei olhando. Não que eu esteja comparando o Marcelo Serrado com a torre Eiffel. São propostas diferentes.
Agora não havia mais escolha. Eu tinha que atravessar a rua e ir até lá. Ele poderia até achar bom, não é todo mundo que consegue reconhecer o Evaristo de Macedo hoje em dia. Estamos trocando olhares não sensuais já há algum tempo. Chega. Tomei coragem. Fui falar com ele. Atravessei, cheguei perto, me agachei ao seu lado e olhei dentro de seus olhos, ele me olhou de volta.
Não era o Evaristo de Macedo. Era só um velho.

Texto de Daniel Furlan, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A vida acaba no Ráscal

Minha vida não acabou de forma trágica, triste ou cinematográfica. Foi mais simples, rápido e tolo do que eu imaginava: eram dez da manhã quando pensei "acho que hoje vou almoçar no Ráscal" e percebi minha boca esboçar um sorriso. 
Na adolescência, eu queria tantas coisas que causei um prolapso benigno no meu coração. Eu falava: "Tá me dando aquele atropelamento no peito". E minha mãe mandava: "Respira pelo nariz, solta pela boca, bem devagar". Nenhuma técnica de relaxamento jamais funcionou —o desejo desenfreado de abraçar, conquistar e controlar esse mundão era uma espécie de necessidade fisiológica. 
Aos 20 e poucos, eu me via em almoços na casa do Caetano Veloso, tendo que implorar às pessoas, obviamente muito interessantes e cultas, que parassem de me pedir mais uma de minhas histórias. "Ai, gente, espera, minha garganta tá seca." E, enquanto Caetano me mostrasse uma letra que fez pra mim, eu, um tanto cansada "de tudo e de todos", balançaria a cabeça: "Ai, Caê, sei não"¦".
Quando ganhei um disputado prêmio "novos talentos" que me bancou uma viagem para Paris (e, deslumbrada, raspei meu cabelo apenas de um lado), tive a certeza de que jamais voltaria. A Europa era só o começo; conquistar a Ásia, uma obrigação; toda a América me celebraria. Eu queria ser lésbica e bissexual e pansexual e rica e famosa e de esquerda e militante e misteriosa e ao mesmo tempo e na mesma festa.
Ser jovem é ter acesso VIP a uma ala do cérebro chamada "estou empolgadíssima com meu futuro", uma sensação maravilhosa de que nos próximos mil anos poderemos ser um milhão de possibilidades. Mas daí um dia você compra uma bota em promoção na Arezzo e, quando dá por si, está combinando o cachecol com ela. Então você mete um carrinho de bebê no meio da sala, cagando por completo qualquer ideal de decoração e, quando menos espera, está falando frases como: "Estou atrasada para render a babá". Eu me encontro encostada, neste exato minuto, em uma almofada da marca Dr. Coluna. 
Ser igual a trezentas mulheres da minha idade, ter o mesmo cabelo que elas, trocar informações a respeito de marceneiros e fisioterapeutas, tudo isso foi me preparando para o fim da vida. No entanto, a porrada final aconteceu naquela manhã, quando pensei "acho que hoje vou almoçar no Ráscal" e observei minha face se iluminar.
Horas de espera, tias escolhendo vagarosamente as endívias, ovos de codorna revisitados, casais tão excitados para transar quanto você está animado para fazer o canal no dentista.
Às vezes passamos em frente ao Ráscal e conjecturamos "nossa, Deus me livre, olha quantas pessoas parecidas, meio sem estilo, mas achando que estão elegantes, meio agindo como se fossem especiais, mas numa fila de restaurante de shopping, odiando suas vidas a ponto de se autoflagelarem em meio a desconhecidos igualmente desesperados" e, quando se dá conta, está com uma senha na mão, ávido, beliscando aperitivos de cortesia, com vontade de desejar feliz Natal às pessoas em pleno agosto, ansiando abocanhar aquele atunzinho semicru ou o ravióli verde de búfala como se fosse seu último pedido antes de ser metralhado. 
É caro, é típico de paulistano que se rendeu ao fim dos sonhos, mas é o único lugar onde não pega mal misturar salmão cru, pizza de alho, polpettone, guacamole e antidepressivo. Já quis muito da vida; agora só quero que sobre espaço na minha barriga para as massas. O Ráscal é como envelhecer: somos contra, mas a outra opção seria pior.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

A coruja de Ipanema

Há um mês que a vemos, todas as manhãs, empoleirada num toco fincado na areia, em Ipanema. Quando passamos por ela no calçadão, a menos de três metros, gira o pescoço a 200 graus e arregala os olhos. Podem ser olhos de sono, porque estão sempre circulados por duas ou três voltas de olheiras. É uma pequena coruja marrom. O que está fazendo ali, não sabemos. Sua presença naquele cenário é tão improvável quanto seria a de uma gaivota num galinheiro.  
Não entendo de corujas, mas sempre pensei nelas como bichos reclusos, avessos ao sol, vivendo entre folhas de árvores altas e dando expediente noturno. Pois, de repente, sai-me um exemplar a poucos palmos do chão, exposto ao céu mais azul que o inverno carioca pode produzir. E, pelo visto, gostando —ou não estaria ali, dia após dia, mesmo toco, mesma praia, mesmo céu. 
Isso não lhe tornava o cenário menos inóspito e comecei a me perguntar. De onde teria vindo e como voltaria para casa? Como conseguia dormir, com o barulho do trânsito dia e noite aos seus ouvidos? De que se alimentava? E, indefesa como parecia, estaria a salvo de predadores, inclusive do mais cruel, o homem? Para me instruir sobre corujas, recorri à enciclopédia móvel com a qual convivo diariamente: os taxistas do Rio. Com eles já aprendi sobre marés, ventos, fases da Lua e até as intimidades de Arubinha, personagem de uma famosa crônica de Mario Filho. 
No terceiro taxista inquirido, fiquei sabendo que nossa coruja não era assim tão indefesa. Com a envergadura de suas asas, poderia voltar quando quisesse para o vizinho Cantagalo, morro de onde devia ter saído. Que, se ainda estava por ali, é porque talvez fosse onde botaria seus... ovos. E, finalmente, que as corujas se alimentam de roedores, morcegos e insetos, bichinhos abundantes à noite na praia.
Pronto. Fiquei tranquilo. É só mais uma para o folclore —a coruja de Ipanema.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Como nasce a escola dos sabichões

É possível que, com Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, os debates entre candidatos à Presidência voltem a ser mais emocionantes. Das últimas vezes, mal consegui prestar atenção.
Os nostálgicos podem conferir alguns momentos bizarros de políticos antigos no YouTube. Faz sucesso entre os mais jovens, pelo que sei, a figura do famoso Enéas, do Prona.
Um episódio dele, num debate pela Prefeitura de São Paulo, merece ser lembrado.
Com seus óculos enormes, careca alongada e diploma de médico, Enéas tentava mostrar-se mais inteligente e culto do que os rivais. O palavrório, alimentado de arrogância nanica, contribuía para a inesquecível esquisitice do conjunto.
É assim que Enéas foi sorteado, num debate, para fazer perguntas a Marta Suplicy, então candidata do PT à prefeitura. No YouTube, a cena é apresentada como um "show" de Enéas, em que ele "detona" a petista.
Não era nada disso. Com a magnanimidade dos autoiludidos, Enéas concedeu a Marta o direito de escolher uma só questão das três que iria apresentar.
Rapidamente, enuncia as "bombas" que, na sua opinião, mostrariam plenamente a incompetência da petista para administrar São Paulo.
"Sobre a potamografia de São Paulo, e os problemas dela decorrentes para o município, qual a sua solução?" "Qual a composição do ar que se respira aqui em São Paulo?" E "sobre o distrito de Marsilac, qual seu maior problema de índice de bem-estar social, e como resolvê-lo?"
Com certa ingenuidade irritante, Enéas esperava impressionar a plateia, e deixar Marta sem resposta, na expectativa de que ninguém soubesse o significado da palavra potamografia (diz respeito ao traçado dos rios da cidade).
Confiava também embatucar a candidata no tema da poluição atmosférica —como se um prefeito devesse conhecer de cor as porcentagens de fuligem e monóxido de carbono.
Lembro desse tipo de perguntas "eruditas", no estilo de Enéas, quando vejo alguns grupos e lideranças de extrema direita aumentando sua presença no debate público.
Na audiência sobre o aborto, promovida há alguns dias no Supremo Tribunal Federal, alguém veio com pergunta parecida. Tentava-se embaraçar a representante da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), que tinha opinião favorável à descriminalização do aborto.
Vinha a suposta "bomba". "Qual sua opinião sobre a obra de Karl Ernst von Baer, publicada em 1826, e que evidencia o início da vida na fecundação?"
Caso a professora vacilasse, pronto! Estaria "provado" que ela não entende nada do assunto, e que em vez de cientista era apenas uma defensora da "ideologia de gênero"...
Ela não se abalou, até porque esse Von Baer do século 19 foi o fundador da embriologia. Mas seria necessário ler seu livro, 160 anos depois, para ter opinião sobre o aborto?
O truque, na verdade, tem versões mais grosseiras, e é recorrente.
Seguindo o bom senso, que acompanha por sua vez opiniões cristalizadas na comunidade científica, você diz, por exemplo, que o criacionismo está errado, ou que a Terra gira em torno do Sol, ou que Marx tem tal e tal visão sobre o capitalismo.
Surge então o maluquete de direita, e com um ar superior pergunta se você leu de fato toda a obra de Darwin, se já estudou os textos de Copérnico e Galileu, e quantas páginas você abriu de "O Capital".
Poderá perguntar, em seguida, se você conhece a obra de algum obscuríssimo teórico criacionista do Alabama ou de um economista desconhecido da Universidade de Navarra.
Você dirá que não, obviamente, e seu adversário sairá satisfeito. Considera-se vitorioso, porque provou que você é um ignorante, manipulado pela mídia de esquerda; esta esconde os "verdadeiros" livros...
O fato de ele pertencer a uma franja delirante, dotada de referências bibliográficas próprias, não o incomoda. Como ele tem uma teoria conspiratória da realidade, quanto mais minoritário ele for, mais cheio de razão ele irá se sentir.
Com a voga do "politicamente correto", esse tipo de doido termina se beneficiando de algum respeito geral, a que se soma a velha preguiça da esquerda, a qual nunca se preocupou em debater com extremistas que ninguém levava a sério.
E assim vão, de vento em popa, os patetas da "potamografia", do "eu li Darwin e você não", do "você não pode falar mal dos conservadores se não conhece a obra de John Calhoun", e do "está provado que Hitler era de esquerda". É a escola dos sabichões. Os netos de Enéas fazem a festa.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Refém dos móveis e utensílios



Se você pensa que, pelo fato de ser possuidor de uma alma imortal e saber quem foi Aristóteles, isto o faz dono do seu nariz, engana-se. No futuro, todos viveremos em casas “inteligentes”, que nos obrigarão a levar uma vida intoleravelmente saudável, mesmo que à custa da nossa felicidade. Neste momento, por exemplo, entre as paredes do seu próprio lar, pode haver máquinas “lendo” os móveis e utensílios à sua volta e tomando decisões por você.  
Uma reportagem a respeito numa revista de compras me deixou assustado. Já existe um sofá que controla o tempo que você passa diante da TV, corrige a sua postura e não o deixa cochilar além do tempo regulamentar para cochilos, sabia? Nunca mais você chegará da rua, chutará para longe os sapatos e se aboletará no sofá com a TV ligada, pouco ligando para o que estiver passando. É como ter de novo 13 anos e uma mãe de chinelo na mão. 
Já há também móveis que executam funções obedecendo ao comando de voz. Um deles é outro sofá —a tecnologia adora sofás—, que abre ou fecha à sua ordem verbal. Enquanto o sofá o obedecer, acho que estará tudo bem. Só temo que, um dia, ele adquira vontade própria e, ao ouvi-lo ordenar “Abra!”, responda malcriado, “Abra, você!”. 
Mas nada supera o sistema armado para descobrir se você está de acordo com seu peso, idade e exigências médicas. O vaso sanitário, baseado no que você despeja nele, analisa a qualidade da sua alimentação. Faz isto confrontando o peso registrado na sua balança com os dados sobre seu desempenho cardíaco e grau de sedentarismo fornecidos pela sua roupa “inteligente”. Cruzando esses números com os de sua ficha médica, o vaso remete as informações para sua geladeira. Esta confere o estoque de alimentos saudáveis e, se não ficar satisfeita, dispara uma lista de compras para o supermercado. 
Pronto. Você viverá para sempre. Só que refém da sua privada. 

Crônica de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Política como ela é

A literatura especializada tem apontado sintomas de crise da democracia: recessão democrática, “crise de meia idade”, ruptura entre o povo e a classe política, populismo, e por aí vai.
Gostaria de apontar um pequeno e importante detalhe dentro desse universo: a incapacidade de grande parte da classe profissional especializada em política (o que chamarei de inteligência pública a seguir) de conseguir entender a política como ela é. E mais, de entender o cidadão comum, com quem muitos desses especialistas dizem se preocupar. Uma coisa é um “projeto de democracia”, outra coisa é o que “o povo de fato quer”.
Tivemos recentemente o espetáculo da entrevista do Bolsonaro no Roda Viva. Aqui não me interessa o aspecto ideológico do candidato nem dos jornalistas (também profundamente enviesados). Nem o destino do candidato nas eleições, nem os erros históricos cometidos por ele no programa nem as declarações infelizes que deu nos últimos tempos. 
Com isso não quero dizer que muitos desses erros não toquem temas importantes e delicados da história brasileira. Quero apenas discutir o fato de que muitos jornalistas e intelectuais parecem saber falar apenas para “seus conversos”.
Talvez, se tivéssemos um populista, como o líder do partido trabalhista inglês Jeremy Corbyn, crescendo nas pesquisas aqui no Brasil, prometendo comida para todo mundo de graça e paga pelo Estado, escola e saúde de qualidade para todo mundo e pagas pelo Estado, direitos civis e humanos para todos os refugiados do mundo de graça e pagos pelo Estado, essa inteligência pública poderia entender o que significa ouvir o que as pessoas querem “no final do dia”.
A falha no entendimento do fenômeno Bolsonaro está no fato de que a inteligência pública, em grande medida, não olha para a realidade. 
Ela olha para seus projetos sociais e políticos, para suas concepções de sociedade e justiça. Enfim, para o mundo como ela acha que deve ser (não entro no mérito se esse “mundo como deve ser” está errado). 
Há um impasse cognitivo aqui. Como ela fica presa nos seus “temas”, ela ajuda pouco a população a entender por que discursos populistas estão crescendo no mundo (Jeremy Corbyn de esquerda, Trump de direita) e no Brasil.
Escravidão, ditadura, anistia, frases racistas, sexistas e similares, a população não se importa. Você pode ficar irritado, irritada, a inteligência pode espumar de raiva, gente bacana pode dizer “que absurdo”, mas de nada adiantará.
Se algumas pessoas podem entrar em um papo de comida, escola, saúde, direitos civis e humanos de graça, outras —a maioria— podem abraçar as seguintes causas: bandido deve ser preso ou morto, filhas devem poder ir à faculdade sem serem assaltadas; vamos deixar o passado para trás, porque ele já foi e as escolas não devem mandar seus filhos meninos brincar de boneca.
Vejamos. A ideia de consciência histórica que sustenta noções como a de responsabilidade moral pela escravidão é quase que totalmente opaca para quem junta trocados como salários durante a semana e tem na igreja evangélica no fim de semana o único “programa e lazer”. 
Portanto, alguém dizer “eu não tive escravo, logo, não sou responsável pela escravidão” está mais próximo do dia a dia da imensa maioria da população do que a ideia de que existe uma consciência histórica que justifique essa pessoa se sentir culpada pela escravidão. 
Ela não se sente racista (não estou dizendo que seja nem que não seja) nem obrigada a pagar nada para os descendentes dos escravos. 
E, se ela mesma for descendente de escravos, ela assimilará essa consciência histórica da culpa como ganho imediato objetivo: cotas nas universidades ou concursos públicos.
Vejamos de novo. A ideia de que a sociedade deve ser responsabilizada pelo crime soa estranha para quem nunca cometeu o crime, vive sua “vidinha honesta” —e sua para sobreviver. Ela entende que, sendo pobre ou quase pobre e resistindo à opção de roubar, ela própria comprova que aqueles que o fazem não prestam.
E, de novo, ditadura. Ninguém está nem aí para a ditadura ou para quem morreu ou deixou de morrer. As pessoas estão preocupadas se os filhos vão morrer na rua. Por isso querem bandido preso (não assumo que “prender bandidos” seja “a” solução).
Não adianta ficar batendo nessas teclas. São teclas que não decidem eleições. 
À medida que os cidadãos comuns vão falando, a inteligência pública vai odiando a democracia.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo