terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sobre a renúncia de Jânio Quadros


A renúncia de Jânio, um enigma decifrável

JÂNIO QUADROS NETO

Há quem argumente que o mês de agosto é maldito na história política do Brasil: foi o mês que presenciou dois dos eventos mais traumáticos da história brasileira, o suicídio do presidente Getulio Vargas, no dia 24 de agosto de 1954, e a renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961.
Agosto de 2011 indiscutivelmente tem sido turbulento e difícil para a atual titular do Palácio do Planalto.
Hoje é o quinquagésimo aniversário da renúncia do meu avô ao cargo de presidente do Brasil. Em vida, sempre fez mistério sobre os reais motivos da renúncia que tanto chocou e marcou a nação.
Jânio tinha por natureza uma personalidade misteriosa, histriônica, surpreendente. Usou o episódio da renúncia entre aquele dia fatídico e sua morte para gerar mistério, especulação e polêmica. Quando questionado sobre as razões da renúncia, reagia com ironia ou agressividade intelectual.
Lembro-me de um almoço no Guarujá, no início da década de 80, em que, ao ser questionado sobre o que o levara a renunciar, meu avô respondeu: "Porque a comida no Palácio da Alvorada era uma porcaria, como é na sua casa". Depois disso, fiquei com receio, e só conversei com Jânio sobre isso no trigésimo aniversário da renúncia, no dia 25 de agosto de 1991.
Nesse dia, ele estava internado no Hospital Albert Einstein, já no final de sua vida (morreria menos de seis meses depois, no dia 16 de fevereiro de 1992). Mesmo muito enfermo, estava lúcido. No apartamento, a TV estava ligada, e o jornalista Carlos Chagas comentava a renúncia, analisando várias teorias.
Ao ouvi-lo, Jânio ficou bastante irritado e até xingou em reação ao que ouviu. Naquele momento, criei coragem e perguntei: "Então por que você renunciou?".
Jânio respondeu: "Aqueles que os deuses querem destruir, eles primeiro os fazem presidentes do Brasil. Quando assumi a Presidência, não sabia a verdadeira situação político-financeira do país. A renúncia era para ter sido uma articulação, nunca imaginei que ela seria de fato executada. Imaginei que voltaria ou permaneceria fortalecido. Foi o maior fracasso da história republicana do Brasil, o maior erro que cometi. Esperava um levantamento popular e que os militares e a elite não permitissem a posse do Jango, que era politicamente inaceitável para os setores mais influentes da nação na época".
Lembro-me de outra afirmação marcante: "A coisa mais difícil de se fazer quando você está no poder é manter a noção da realidade. Ser presidente é a suprema ironia, por ser um todo-poderoso e um escravo ao mesmo tempo".
Embora vá ser sempre lembrado pela renúncia e pelas consequências disso, a história não pode ignorar ou esquecer seus atributos.
Jânio foi um professor e advogado da classe média que passou a vereador, deputado estadual, prefeito de São Paulo, governador de São Paulo, deputado federal, chegando à Presidência em apenas 12 anos.
Vale lembrar que, 24 anos depois da renúncia, Jânio elegeu-se prefeito de São Paulo pela segunda vez, derrotando um futuro presidente.
Sou suspeito, mas as administrações de Jânio foram marcadas por resultados positivos muito claros.
Dizem que a história se repete. O mês de agosto tem sido difícil para a atual presidenta, e a classe política tem sido terrível com ela. Conheço Dilma e atrevo-me a afirmar que ela é uma criatura rara na selva que é Brasília. Desejo o sucesso da presidenta e do Brasil. Creio que isso é um dever de todo cidadão.
Churchill disse uma vez que a política é bem mais perigosa do que a guerra. Isso porque na guerra você só pode morrer uma vez. Creio que o genial estadista tinha razão.

JÂNIO QUADROS NETO, economista e mestre em economia, é neto de Jânio Quadros (1917-1992), que renunciou à Presidência em 25 de agosto de 1961, e coautor do livro "Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil"




Outra arte


Outra arte

Chaves, celulares, óculos; não importa. Perca uma coisa por dia, recomenda Elizabeth Bishop (1911-1979) num poema famoso. Existe, diz ela, a "arte de perder", cujo aprendizado não é difícil.
Estamos sempre perdendo. Já perdi uns três celulares, sem contar o carregadorzinho que acompanha cada um, e que é sempre diferente. Nem falo das máquinas fotográficas digitais, dos seus carregadores e dos fios que servem para ligá-las ao computador. Se não as perco, logo se quebram. Como não adianta mandar para o conserto, estão perdidas de qualquer jeito.
As próprias fotos, transferidas para o computador, nem por isso estão guardadas. Perderam-se em alguma pasta de arquivos; se não tenho paciência para procurá-las, perdidas ficarão.
Isso no que se refere à arte de perder. Existe outra arte, todavia, um pouco mais difícil, e outro poeta, um pouco menos direto, se ocupou dela.
É a arte de agradecer. Acho que William Wordsworth (1770-1850) se referia a isso quando escreveu, depois de um passeio campestre: "Tudo o que contemplamos está cheio de bendições".
Claro, quando se tem 28 anos (a idade de Wordsworth quando escreveu "Tintern Abbey") e se está diante de uma paisagem verdejante, não é injustificado reconhecer, com a calma intensidade do poeta, que "all which we behold is full of blessings".
Mas ele sabia do que estava falando. Não ignora, no mesmo poema, "o peso moroso e duro de todo este inexplicável mundo", nem tudo o que já tinha perdido desde sua infância, livre e selvagem, naqueles mesmos campos da Inglaterra.
Ainda assim, ele quer agradecer -e esse aprendizado tem um bocado de religioso. A coisa toda está acima das minhas forças, mas não custa treinar de vez em quando.
No trânsito, na fumaça e na chateação de São Paulo, tenho topado com não sei que tipo de árvore, floridíssima, numa cor clara de rosa quase branca. Não basta, acho, pensar: "Olha aí, bonita essa árvore".
Ajuda imaginar que é um presente. Se não de Deus, que seja da prefeitura, não importa. É bom levar as coisas para o lado pessoal, como fazemos tão facilmente diante de infelicidades diversas. "Essa árvore está aí para mim." Agradeço.
Convém não exagerar. Li outro dia que um cidadão paulistano, acordando feliz para ver a bela figueira centenária que tinha diante da janela do apartamento, teve a ingrata surpresa de vê-la derrubada.
Era cupim; era o vento; até aí, nada de mais, mas o chato é que seu carro tinha ficado embaixo. Por esse tipo de coisa, conheço um colega carioca que, todos os dias, quando acorda, dá graças ao destino por não ter nascido paulista.
Eu estava dizendo que já perdi três celulares, mas (para entrar enfim no tema deste artigo) eis aí uma perda que não lamento. Na verdade, o que desejo agradecer aqui é o fato de não precisar de celular.
Entendo que um médico, um advogado criminal ou um corretor de imóveis não possam viver sem celular. Já pensei em abandonar até o telefone fixo, que me sobressalta a cada chamada (por que não mandaram um e-mail?). Enquanto isso não acontece, o celular fica bem desligadinho, lá onde não sei onde ficou.
Não nego as vantagens do aparelho. Você pode usá-lo em todo lugar. Você também se torna onipresente. É, assim, um multiplicador de espaço.
O telefone móvel, como o automóvel e qualquer outra coisa que termine em "móvel" serve para isso mesmo. Livra-nos da casa, dos fios, das tomadas, do lugar, do terreno, até do computador.
E o próprio computador, observo de passagem, já se livra de si mesmo graças à computação "em nuvem" -seus arquivos e programas vão literalmente para o espaço, ou melhor, para a ausência de lugar, para um espaço invisível, abstrato, nenhum.
Chego então ao paradoxo. Com a onipresença conquistada, com a multiplicação de um lugar em todos os lugares possíveis, com a mobilidade geral de tudo, é o tempo que se reduz.
Cada celular é um roedor de tempo, e o cidadão, para estar acessível e ser acessado em todos os lugares, paga o preço de viver espremido, sem ar, numa cela minúscula de poucos minutos por vez.
Seria o caso, então, de aprender com as árvores, que têm muito tempo para crescer e florir, por estarem fixas no espaço, presas às suas raízes. A menos, claro, que desabem de repente.



Novos assentamentos: Israel não precisa de um "lebensraum"



Até agora, Israel apoiou a ocupação dos territórios palestinos com base em dois pilares: história e segurança - seu direito a herdar a terra e sua obrigação de defendê-la. Nas últimas semanas, um terceiro pilar foi acrescentado, que em todos esses anos estava escondido sob palhas e detritos. E talvez não seja um pilar, mas uma serpente, cuja cabeça deve ser esmagada enquanto ainda é pequena. 

De acordo com a escola de pensamento baseada na história e na fé, a Terra de Israel foi recebida pelo povo judeu das mãos de Deus, e estamos obrigados a tomá-la por inteiro, dada a Aliança de Deus com Abraão. Que foi um grande presente bom, temos de admiti-lo, espalhado do rio do Egito ao grande rio, o Eufrates. Foi garantido em várias ocasiões festivas não apenas a Abraão, mas também aos seus herdeiros. Eventualmente, foi forçada a se reduzir [a Terra], e agora não há verdadeiramente razão para reduzir que não dependa de nossa escolha. 

A segunda escola de pensamento, baseada na segurança, estipula que precisamos virtualmente de todos os territórios por uma questão de autodefesa. Sem eles jamais poderemos viver em segurança sem nos sentirmos ameaçados. Portanto, se em algum momento formos obrigados a abrir mão de algumas partes do país, mesmo quando evacuamos só para permanecermos firmes, para sempre em “arranjos de segurança” temporários, mesmo que com uma orientação voltada ao bem estar, como é o caso de Shelly Yachimovich.

Algumas vezes uma escola se sobrepõe a outra e a diferença entre as duas fica borrada. Ocorre frequentemente de membros da escola da segurança - pessoas que não levam uma vida religiosa – colocarem um quipá tricotado e professarem o mesmo estilo messiânico. E o oposto também ocorre: rabinos e estudantes oferecendo razões em nome da segurança como não tivessem apoiados somente na religião. 

E agora, no meio do verão, quando os protestos sociais puseram o problema da falta de moradia no centro da agenda, por um tempo, a terceira escola de pensamento está se desenvolvendo e tomando conta. O ministro do Interior – preparando-se para o seu próprio setembro negro – aprova a construção de 1600 unidades de moradias para os ultra ortodoxos no bairro Ramat Shlomo, em Jerusalém, outras 624 em Psigat Ze’ev e 930 em Har Homa Gimmel – todas além da Linha Verde. O ministro da Defesa, Ehud Barak, para quem a proximidade das eleições é uma faca afiada na garganta, aprovou 277 casas no assentamento de Ariel, podem ser estabelecidas quando o seu dia chegar. E 42 membros do Congresso estão pedindo ao Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu que alivie o problema da carência de moradia no país via a aceleração de construções nos territórios.

De repente estamos sem espaço aqui em Israel, que está lotado e necessita umLebensraum (espaço vital). Toda pessoa educada sabe que este é um desprezível conceito alemão, banido por causa da associação que traz à tona. Ainda assim, as pessoas estão começando a usá-lo, se não honestamente, com uma clara implicação: estamos perto da terra, estamos perto do ar, deixem-nos respirar neste país.

Quando embarcamos na Guerra dos Seis Dias queríamos remover uma ameaça ou ganhar o controle para nos espalhar? Foi o que ocorreu depois de 44 anos de atoleiro na corrupção moral, que distorce as coisas e nos faz esquecer o objetivo original e substitui-lo por um outro, completamente diferente. Ficamos felizes quando ocupamos a Cisjordânia porque, não o tivéssemos feito, onde iríamos viver? E quem sabe o quanto os preços da moradia não teriam subido? A promessa divina está agora sendo revelada em toda a sua capacidade de profetizar quanto ao setor imobiliário.

Os pais fundadores, ao contrário dos Diadochi, que lutaram por controle depois da morte de Alexandre, o Grande, representavam uma outra visão, em sua maioria. Entre o “devagar se vai longe” e o “não dê um passo maior que as pernas”, eles escolheram dar o passo; eles até concordaram com o plano de partição de 1947, da ONU, por falta de escolha. Eles acreditavam que todos os objetivos do sionismo racional ao estilo Ben Gurion seriam alcançados na “Israel Menor”, o que é mais completo e mais em paz consigo mesmo. E não precisa delebensraum, Deus nos proteja disso.





Texto de Yossi Sarid, para o Haaretz, reproduzido na Agência Carta Maior. Tradução de Katarina Peixoto. 

sábado, 27 de agosto de 2011

A História do Iraque se repetirá na Líbia?


Condenados sempre a travar a guerra passada, voltamos a cometer o mesmo velho pecado na Líbia. Muammar Kadafi desaparece logo depois de prometer lutar até a morte? Não é a mesma coisa que fez Saddam Hussein? Quando Hussein desapareceu e as tropas estadunidenses sofreram suas primeiras baixas ante à insurgência iraquiana, em 2003, foi nos dito – pela boca do pró-cônsul estadunidense Paul Brenner, dos generais, dos diplomatas e dos decadentes especialistas da televisão – que os combatentes da resistência eram fanáticos, desesperados que não se davam conta de que a guerra havia terminado.

E se Kadafi e seu filho sabichão seguem em fuga – e se a violência não termina – quanto tempo vai levar para que outra vez nos apresentem aos desesperados que não entenderam que os rapazes de Bengasi estão no poder agora e que a guerra terminou? De fato, não menos do que 15 minutos – literalmente – depois de ter escrito as palavras acima (às 14 horas de quarta-feira), um repórter da Sky News reinventou a palavra “fanáticos” para definir os homens de Kadafi.

Inútil dizer que tudo é para o bem no melhor dos mundos possíveis, no que diz respeito ao Ocidente. Ninguém descarta o exército líbio e ninguém proscreve os kadafistas de um papel futuro no país. Ninguém cometerá os mesmos erros que cometemos no Iraque. E não há tropas em terra.

Nenhum zumbi encerrado em uma zona verde ocidental, cercada por muralhas, tenta dirigir o futuro da Líbia. “É assunto dos líbios” tornou-se o refrão de toda manifestação do Departamento de Estado/Escritório de Política Exterior/Quai d’Orsay. “Nós não temos nada a ver com isso”.

Mas, desde logo, a presença massiva de diplomatas ocidentais, representantes de magnatas do petróleo, mercenários ocidentais de altos salários e obscuros militares britânicos e francês – todos simulando ser conselheiros e não participantes – conforma a Zona Verde de Bengasi.

Pode ser que não estejam (ainda) rodeados de muralhas, mas o fato é que eles governam por meio dos distintos heróis e pilantras locais que se estabeleceram como senhores políticos. Podemos passar por cima do assassinato de seu próprio comandante – por alguma razão, ninguém menciona mais o nome de Abdul Fatá Yunes, apesar de ele ter sido liquidado há apenas um mês em Bengasi -, mas eles só podem sobreviver se permanecerem com o cordão umbilical preso ao Ocidente.

Esta guerra, é preciso dizer, não é a mesma que nossa perversa invasão do Iraque. A captura de Saddam só levou a resistência a multiplicar os ataques contra as forças ocidentais porque aqueles que, até então, se recusavam a participar da insurgência por medo de que os EUA voltassem a colocar Saddam no governo, perderam essas inibições. Na verdade, a prisão de Kadafi, junto com a de Saif, precipitaria sem dúvida o final da resistência dos seguidores do ditador. O verdadeiro temor do Ocidente neste momento – ainda que isso possa mudar à noite ou amanhã – é a possibilidade de que o autor do Livro Verde tenha conseguido chegar até Sirte, onde a lealdade tribal pode ser mais forte que o medo de uma força líbia respaldada pela OTAN.

Sirte – onde Kadafi, no início de sua ditadura, converteu os campos de petróleo da região no primeiro dividendo internacional para os investidores logo depois de sua revolução de 1969 – não é Tikrit. É a sede da primeira grande conferência da União Africana, a escassos 30 quilômetros da cidade natal de Kadafi: uma cidade e uma região que receberam enormes benefícios de seu governo de 41 anos. Strabo, o geógrafo grego, escreveu que os pontos dos assentamentos no deserto, ao sul de Sirte, converteram a Líbia em uma pele de leopardo. Kadafi deve ter gostado dessa metáfora.
Quase dois mil anos depois, Sirte era o ponto de união entre as colônias italianas de Tripolitania e Cirenaica.

Em Sirte os rebeldes foram derrotados pelas forças leais a Kadafi na guerra de seis meses travada este ano. Sem dúvida, teremos que mudar essas ridículas etiquetas: os que apoiam o pró-Ocidente Conselho Nacional de Transição terão que ser chamados de leais e os rebeldes partidários de Kadafi se tornarão os terroristas que poderão atacar a nossa amiga nova administração líbia. Seja como for, Sirte, cujos habitantes se supõe estejam negociando agora com os inimigos de Kadafi, poderia rapidamente aparecer entre as cidades mais interessantes da Líbia.

O que Kadafi deverá estar pensando agora? Acreditamos que está desesperado, mas, será que está mesmo? No passado, escolhemos muitos adjetivos para qualificá-lo: irascível, demente, perturbado, magnético, incansável, obstinado, estranho, estadista (Jack Straw descreveu-o assim), críptico, exótico, louco, idiossincrático e – em datas mais recentes – tirano, assassino e selvagem. Mas com sua visão enviesada e astuta do mundo líbio, Kadafi poderia sobreviver – para prosseguir um conflito civil-tribal e assim consumir os novos amigos líbios do Ocidente no pântano da guerra de guerrilhas – e debilitar pouco a pouco a credibilidade do novo poder do governo de transição.

A natureza imprevisível da guerra na Líbia implica que as palavras raramente sobrevivam ao momento em que são escritas. Talvez Kadafi esteja escondido em um túnel debaixo do hotel Rixos ou esteja relaxando em uma das casas de campo de Robert Mugabe. Duvido. Enquanto isso, a ninguém ocorre travar a guerra anterior a esta.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Desigualdade, tendência do verão


Desigualdade, tendência do verão 

"VOCÊ TEM CASACO de couro da Forum?" A pergunta teria sido encarada de forma natural tivesse ela sido feita nas dependências de um shopping center. Mas soou para mim algo inusitada ao ser formulada no curso de um sequestro-relâmpago sofrido há 11 anos, no bairro do Sumaré.
Eu sempre havia me perguntado como responderia em uma situação dessas (temia reagir à italiana, com passionalidade extremada, e acabar com uma azeitona cravada na testa). Acho que me saí melhor do que a encomenda. Selei o episódio escrevendo junto com a jornalista que estava comigo um artigo para a revista "Marie Claire" intitulado: "Fomos assaltadas e fizemos amizade com os bandidos".
Não me sentia à vontade para falar sobre o caso na época -tanto é que apenas a sombra do nosso perfil aparece na foto que ilustra a reportagem-, nem para colocar o pé para fora de casa por um bom tempo depois do ocorrido. Mas uma década já se passou e o assunto volta à tona por motivos outros que não a violência paulistana.
Fomos interceptadas no semáforo da rua Heitor Penteado por um garoto a quem os institutos de pesquisa bem poderiam classificar de "classe média". Ele tinha aparelho nos dentes, alguma escolaridade e vocabulário de bandido, ou seja, uma figura comum nos dias de hoje. Nos abordou de arma em punho e veio acompanhado de duas amigas, uma loira com considerável e visível investimento monetário na juba e a outra, negra, gorducha, simpática, que lembraria a Jennifer Hudson.
Ninguém no grupo tinha mais de 21 anos. Desandei a falar assim que entraram no carro e lá fomos nós de caixa eletrônico em caixa eletrônico. Quatro horas mais tarde, vários quilômetros rodados e uma parada no posto para reabastecer, nossos novos amigos, sempre de arma apontada para nós, se convenceram de que não tínhamos dinheiro e resolveram ir saquear minha casa. Enquanto vasculhava a gaveta atrás de roupas de grife, Miss Simpatia contou-me do filho e eu lhe dei um bicho de pelúcia. "Toma, este é seu, não faz parte do assalto", disse-lhe. Acho que eu tinha tomado umas a mais naquela noite.
De volta ao carro, e sempre sob ameaça, resolvi despejar um balde de perguntas sobre o rapaz: "Por que um cara como você se dedica a este tipo de atividade?", queria saber. "Na verdade", disse-me, "Isso é um bico".
Contou-me que acabara de deixar a noiva em casa. Sua mãe desconfiava de que os tênis, os eletrônicos e as noitadas não vinham do trampo de carteira assinada, mas preferia não entrar em detalhes.
"Não é um tanto arriscado levar a vida assim?", insisti. Ele fez que sim com a cabeça. "De alguma coisa a gente tem que morrer, né?"
Nisso, a fofucha que estava comigo no banco de trás, a loira, grudou o cano da arma na minha têmpora e disse: "Se você não calar a boca, eu te mato". Não me impressionou. "Sabe quantas vezes ao dia eu ouço essa frase?", devolvi. O carro inteiro caiu na gargalhada.
Podia ter sido fatal, mas bicho ruim não morre, especialmente em se tratando de jornalista. Vivi para constatar que, por uma vez, os londrinos não estão ditando moda. Que a desigualdade, a ilusão do multiculturalismo e a sedução do consumismo que faz a roda girar e que ora incendeiam o verão londrino já chegaram por estas bandas faz muitas estações. É São Paulo dando uma de "trendsetter" mundial, olha só que luxo.



Morre Jerry Leiber, autor de "Hound Dog"


Morre Jerry Leiber, autor de "Hound Dog"

O compositor Jerry Leiber, que escreveu "Hound Dog" e "Jailhouse Rock", entre outros hits cantados por Elvis Presley, morreu anteontem aos 78, de complicações cardiopulmonares, em Los Angeles. Durante sua carreira, criou sucessos para artistas como Aretha Franklin e Frank Sinatra.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O mito do efeito dominó no Oriente Médio

Os poderosos e tiranos árabes sobreviventes passaram uma segunda noite de insônia. Em quanto os tempo os libertadores de Trípoli se metamorfosearão nos libertadores de Damasco, Alepo e Homs? Ou de Amã? Ou de Jerusalém? Ou de Bahrein ou Riad? Não é a mesma coisa, claro.

A primavera-verão-outono árabe não só demonstrou que as velhas fronteiras coloniais permanecem invioladas --espantoso tributo ao imperialismo, suponho --, como também que cada revolução tem características próprias. Isso já foi dito por Saif Kadafi no princípio de sua própria queda: “A Líbia não é a Tunísia...será uma guerra civil. Haverá banho de sangue nas ruas”. E assim ocorreu.


Olhemos na bola de cristal. A Líbia será uma superpotência do Oriente Médio – e ao menos que imponhamos uma ocupação econômica como preço do bombardeio libertador da OTAN – e menos africana, mais árabe agora que a obsessão de Kadafi com a África Central e Austral desapareceu. Pode ser que contagie Argélia e Marrocos com suas liberdades. Os estados do Golfo estão felizes – até certo ponto -, pois a maioria considerava Kadafi mentalmente instável e maligno.

Mas destronar tiranos árabes é um jogo perigoso quando governantes árabes não eleitos se unem a ele. Quem lembra agora da guerra de 1977, quando Anuar Sadat mandou pulverizar as bases aéreas de Kadafi, as mesmas que a OTAN atacou nos últimos meses, logo depois que Israel advertiu o presidente egípcio que Kadafi planejava assassiná-lo? No entanto, a ditadura de Kadafi sobreviveu 30 anos mais que Sadat.

Como todos os demais, a Líbia sofreu do câncer do mundo árabe: a corrupção financeira...e moral. O futuro será diferente? Passamos demasiado tempo exaltando o valor dos combatentes pela liberdade da Líbia em suas jornadas pelo deserto, e muito pouco tempo examinando a natureza da fera, o pegajoso Conselho Nacional de Transição (sic), cujo suposto líder, Mustafá Abdul Jalil, foi incapaz de explicar porque seus camaradas -- e talvez ele mesmo -- planejaram o assassinato do comandante de seu próprio exército no mês passado. E o Ocidente oferece lições de democracia à Nova Líbia, aconselhando com indulgência seus líderes não eleitos a como evitar o caos que causamos aos iraquianos quando os libertamos há oito anos. Quem receberá os subornos no novo regime – democrático ou não – quando ele estiver instalado?

Assim como todos os novos regimes contêm personagens obscuros do passado – tanto a Alemanha de Adenauer como o Iraque de Maliki – a Líbia terá que abrir espaço às tribos dos Kadafi. As cenas de segunda-feira na Praça Verde foram dolorosamente similares à frenética adoração exibida nesse mesmo lugar por Kadafi há apenas algumas semanas. Evoquemos, pois, o dia em que um assessor perguntou a De Gaulle se as multidões que o aclamavam após a liberação da França, em 1944, eram tão grandes como as que aplaudiram Pétain algumas semanas antes. De Gaulle teria respondido: “São as mesmas”.


Não todas. Quanto tempo levará para o mundo bater à porta do supostamente moribundo Abdulbaset al-Megrahi, autor do bombardeio em Lockerbie – se é verdade que ele cometeu esse crime – para descobrir o segredo de sua longevidade e de suas atividades encobertas no regime de Kadafi? Quanto tempo levará para que os libertadores de Trípoli ponham as mãos nos arquivos dos ministérios do Petróleo e de Relações Exteriores de Kadafi para averiguar os segredos dos idílios de Blair-Sarkozy-Berlusconi com o autor do Livro Verde. Ou será que os espiões britânicos ou franceses vão se adiantar nesta tarefa?

E quanto tempo passará, devemos perguntar, antes que o povo europeu exija saber porque, se a OTAN teve tanto êxito na Líbia – como asseguram agora Cameron e seus amigos – não pode fazer a mesma coisa contra as legiões de Assad na Síria, tomando Chipre como base de lançamento de aviões, de devastar os oito mil tanques e veículos blindados que mantêm sitiadas as cidades desse país? Ou devemos prestar atenção nos vizinhos: Israel tem a esperança secreta (como de modo vergonhoso teve em relação ao Egito) de que o ditador sobreviva, se converta em seu amigo e firme um acordo de paz definitivo sobre Golan.

Israel, que tem sido tão oblíquo e imaturo em sua resposta ao despertar árabe, tem muito o que ponderar. Por que seus governantes não expressaram satisfação com a revolução egípcia, abrindo os braços a um povo que mostrou que desejava essa democracia que Tel Aviv tanto alardeia, em vez de matar cinco soldados egípcios no mais recente tiroteio em Gaza?

Ben Ali e Mubarak se foram; Saleh está mais ou menos fora; Kadafi foi derrotado; Assad está em perigo; Abdalá, da Jordânia, ainda enfrenta opositores; a minoritária monarquia sunita do Bahrein se aferra de forma suicida à esperança de governar até a eternidade. Todos estes são eventos de enorme importância histórica, aos quais os israelenses têm respondido com uma espécie de hostil apatia. No momento em que poderia afirmar que seus vizinhos árabes só buscam as liberdades que seus cidadãos já possuem – que existe uma irmandade democrática capaz de transcender as fronteiras -, Israel cala, constrói mais colônias em terra árabe e continua deslegitimando-se enquanto acusa o mundo de tentar destruí-lo.

Em uma hora tão crítica não é possível esquecer o império otomano. No ápice de seu poder, era possível viajar de Marrocos a Constantinopla sem documentos migratórios. Se houvesse liberdade na Síria e na Jordânia, poderíamos ir da Argélia a Turquia e, daí, para a Europa, sem necessidade de visto. O império otomano renascido. Exceto para os árabes, é claro: podem ter certeza que eles seguiriam precisando de visto.


Ainda não chegamos aí. Quanto tempo falta para que os xiitas do Bahrein e as abatidas massas sauditas, sentados em cima de tanta riqueza, perguntem por que não podem controlar seus próprios países e pressionem para derrubar os marionetes que os governam? Com que semblante sombrio Maher Assad, irmão de Bashar e comandante da infame Quarta Brigada Síria, deve ter escutado a última chamada telefônica da Al Jazeera ao filho de Kadafi. Nos faltou sabedoria e previsão, lamentou Kadafi para o mundo antes que o fogo das armas cortasse a sua voz. “Estão na casa!” – ouviu-se. E logo depois: “Deus é grande!” E a linha morreu.

Todo líder árabe não eleito – ou qualquer líder muçulmano eleito via fraude – deve ter pensado nesta voz. A sabedoria é, sem dúvida, uma qualidade muito ausente no Oriente Médio; a previsão, uma habilidade que os árabes e o Ocidente desprezaram. Oriente e Ocidente – se é que é possível fazer uma divisão tão crua – perderam a capacidade de pensar no futuro. As próximas 24 horas é tudo o que importa. Ocorrerão protestos amanhã em Hama? O que dirá Obama no horário nobre de televisão? O que dirá Cameron ao mundo?

As teorias do efeito dominó são uma fraude. A primavera árabe durará anos. É melhor pensarmos nisso. Não há um fim da história.





Texto de Robert Fisk, visto no Opera Mundi.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Moral? Que moral?

Moral? Que moral?


Nada melhor do que um primeiro-ministro conservador, como David Cameron, para reagir rapidamente à onda de saques, de incêndios e de desordem que tomou conta da Inglaterra nos últimos tempos.
Ele poderá falar, não sem razão, da necessidade de lei e ordem. Apontará os sintomas de um "colapso moral" na sociedade. Atingirá, como provavelmente ninguém da esquerda pode fazer, o coração das pessoas de bem, que lutam para subir na vida e não aceitam a delinquência bárbara (e é bárbara mesmo) das gangues da periferia.
Dito isto, gostaria de prosseguir um pouco na reflexão. Não me convencem as lições de moral proferidas por governantes. David Cameron acabou de sair arranhado pelo escândalo dos tabloides britânicos.
Tinha nomeado como seu secretário de imprensa Andy Coulson, posteriormente preso porque, como editor do "News of the World", foi responsável pelas escutas ilegais daquele jornal à procura de escândalos.
Os parlamentares britânicos estiveram recentemente envolvidos numa farra de gastos sem autorização, capaz de rivalizar com os trambiques de Brasília. Não é preciso lembrar o papel vergonhoso de Tony Blair na Guerra do Iraque. Deixou de considerar importante a questão de Saddam Hussein possuir as armas de destruição de massa, que ele achava importantíssima.
Achava importantíssima antes de não ter sido encontrada nenhuma arma de destruição de massa. Onde estariam, portanto, as raízes do "colapso moral" apontado por David Cameron? Seria fácil dizer que "as elites" são mais imorais do que "as massas". Gostaria de observar que o problema não é de moralidade ou imoralidade. Veja o que disse a maioria dos comentaristas a respeito dos saques na Inglaterra.
Numa sociedade desenvolvida, os saques foram chocantes. Não se tratava de pegar leite ou batatas num supermercado. Os desordeiros queriam DVDs, iPads, Blackberrys ou não sei mais o quê.
Teoricamente, isso seria um sinal de "imoralidade". Saques motivados pela fome? Podemos entender. Saques motivados pelo luxo, eis algo inadmissível. Será? Toda a estrutura de nossa sociedade afirma que sem um tênis Nike, um iPad ou uma camiseta de grife você não é nada.
Esses badulaques se tornaram, assim, artigos de primeira necessidade. O saqueador alcança, rapidamente e sem punição à vista, o passaporte que o levará a conquistar as mulheres mais bonitas e o respeito dos seus pares. É mais do que simplesmente alimentar-se e sobreviver. Trata-se de existir.
Ao mesmo tempo, o saque é ambíguo. Representa, em doses iguais, revolta e adesão. Destruo aquilo que eu desejo. Arrebento a vitrine que me separa do paraíso, mas também escolho, definitivamente, o caminho da danação. Na violência dessas desordens, vejo ao mesmo tempo denúncia e cumplicidade. Sabemos perfeitamente que uma grife não significa coisa nenhuma. Sabemos que todo o consumo contemporâneo está montado numa mentira.
A mentira da propaganda se duplica em outras mentiras, em incontáveis mentiras. Uma agência de risco mente quando eleva ou rebaixa o risco de um país. Um país mente quando imprime moedas ou títulos da dívida que, promete, vai pagar. O consumidor mente quando usa um cartão de crédito cujas mensalidades não sabe bem como ficarão. Na própria palavra (cartão de crédito), pode-se ler "acreditar".
O consumidor acredita, por sua vez, que é escolha sua um produto cientificamente elaborado para suscitar os seus desejos. Você sabia que até o cheiro de carro novo é produzido por um "spray"? É o que leio num livro recente de Martin Lindstrom, guru dinamarquês do marketing e do "branding". Chama-se "A Lógica do Consumo" (editora Nova Fronteira).
Eles estão usando técnicas da neurociência para chegar mais perto da mentalidade dos consumidores. Adeus, pesquisas de opinião. Os técnicos da propaganda e do marketing medem diretamente a sua atividade cerebral. E, mesmo que aparentemente você não goste de um produto ou de um programa de TV, eles identificam o prazer que produziram no seu cerebelo.
Cheiros, sons e cores ajudam a atrair você a entrar numa butique. Mesmo proibindo propaganda de cigarro, os consumidores de Marlboro aumentam quando se usa cientificamente a cor vermelha. Vá falar em moral e disciplina numa sociedade dessas.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 17/08/2011.

sábado, 20 de agosto de 2011

Porto Alegre Antiga - Praça Marechal Deodoro




A capela do Espírito Santo, a Igreja Matriz e parte do antigo prédio do Tribunal de Justiça, em vista parcial da Praça Marechal Deodoro (Praça da Matriz) no final do século XIX. Foto de Virgílio Calegari. Reprodução do calendário Sindilojas de Porto Alegre de 2010, a partir do acervo da Fototeca Sioma Breitman, do Museu Joaquim José Felizardo.

"A Árvore da Vida" e "Melancolia"


"A Árvore da Vida" e "Melancolia"

No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.
Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.
Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".
A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".
Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?
Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!
Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.
Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.
Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.
Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.
Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.
Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.
No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".
Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.



Mudança


Mudança 


DO FUNDO da gaveta, numa foto de 1991, minha primeira namorada me sorri. No verso, em tinta rosa, diz que me ama "pra sempre!!!". Eu também a amei para sempre e com muitas exclamações, por seis meses e alguns amassos, na distante oitava série -até um recreio em que, não lembro exatamente por qual motivo, resolvemos "dar um tempo", num canto da quadra poliesportiva. O tempo dura até hoje. (Alguém me disse, outro dia, que ela é procuradora do Estado. Duvido que ainda use canetinhas cor-de-rosa.)
De uma pasta, surge uma prova de história sobre o feudalismo, o cartão-postal de um amigo, de Amsterdã, uma agenda de 92. Dia 23 de maio: "Niver da Ju B.!!! Não vai esquecer, hein?!". Por onde andará aquele amigo? Quem era mesmo a Ju B., hein?
Numa caixa de charuto, papéis e guardanapos cheios de projetos da última década e meia. "Revista de jornalismo literário. Arte: Ciça. Textos: Antonio, Chico, Nirla, Fred, Paulo." "Ideia de romance: paulista toma pé na bunda e cai no carnaval do Rio". "Sitcom: bar frequentado por artistas que não emplacam, tendo que sobreviver de atividades paralelas".
Cercado por aqueles achados arqueológicos, escavados de diferentes camadas sedimentares do meu apartamento, reflito sobre o que levar para a casa nova, o que jogar no saco de lixo azul. Um lado, nostálgico, agarra-se ao conteúdo das gavetas: é minha vida, meu passado, é preciso guardá-lo. Outro lado, o prático, provoca: "guardá-lo por quê? Em que situação você desenterrará as cartas de ex-namoradas, cartões-postais de quem já não vê há 20 anos, projetos que não concretizou, nem concretizará?"
Não interessa a utilidade desses fósseis, digo à minha sanha sanitarista: é dos momentos representados por eles que somos feitos. "Pois o feito, feito está", retruca o pragmático: "todo o conteúdo dessas gavetas não são mais que andaimes de teu edifício. Para que preservá-los?"
Ora -defendo-me-, e do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Aliás, eles nos sobreviverão. Vão-se os dedos, ficam os anéis, eis a triste verdade. O utilitarista insiste, agora com arroubos de sarcasmo: "Exato!
E se mesmo você uma hora será descartado, de que valerão todos esses bricabraques?".
Ah, inclemente faxineiro! Não percebe?! É justamente a certeza de que nos vamos que obriga a nos agarrarmos ao que fomos! "Você está se repetindo", diz o chato. "Já escreveu isso em outra crônica, dia desses." Pouco me importa. A repetição não é necessariamente um defeito. Veja Woody Allen. Nelson Rodrigues. Vonnegut. Rubem Braga.
Só temos duas ou três coisas a dizer sobre a vida e as vamos reconfigurando, polindo, tentando clareá-las ao longo do tempo. Para isso, aliás, servem esses andaimes, cacarecos recolhidos nas andanças: pontuam o caminho, amenizam a falta de sentido da linha de chegada.
Decido: levarei tudo comigo. De madrugada, o caminhão de lixo mastigará apenas os canhotos dos talões de cheque, velhas contas de luz e declarações do imposto de renda. Amores eternos, mesmo os mais fugazes, amigos que perdemos e os sonhos antigos devem permanecer sempre conosco: senão no fundo do coração, ao menos no fundo de uma gaveta.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Os Estados Unidos e a crise

EUA e a crise

Acabam de ser publicadas as estimativas corrigidas do crescimento real do PIB dos EUA (medido a preços constantes de 2005) e que dão uma visão mais realista do que aconteceu à economia americana nos últimos quatro anos (2º trim. 2011/2º trim. 2008).
Ela apenas retornou ao nível em que se encontrava no 2º trimestre de 2007! Há quatro anos o PIB está estagnado. Como a população cresceu, isso significa que o PIB per capita diminuiu. Considerando que em condições normais de pressão e temperatura o PIB real americano cresce à taxa de 2% ao ano, a flutuação dos últimos quatro anos representa qualquer coisa entre 10% e 15% de um PIB anual (mais ou menos um PIB anual do Brasil) que potencialmente deixou de ser produzido pela disfuncionalidade do sistema financeiro.
As consequências sobre o endividamento interno foram importantes. De um lado, pela redução da receita e, de outro, pelo aumento das despesas com o desemprego. Paralelamente, aumentou a desigualdade na distribuição de renda, o que acentuou o mal-estar da sociedade com relação ao presidente Obama.
É cada vez mais evidente que as políticas monetária e fiscal foram incapazes de cooptar a confiança do setor privado, de forma que seus efeitos sobre a recuperação do consumo e ampliação dos investimentos têm sido pífios.
Basta dizer que as empresas não financeiras têm em caixa qualquer coisa como US$ 1,5 trilhão a US$ 2 trilhões aplicados em papéis do Tesouro americano. Por que não investem? Porque continuam a desconfiar do presidente Obama e não têm certeza de que encontrarão demanda no futuro.
Enquanto isso, o crescimento do consumo é inibido por um desemprego total ou parcial de mais de 25 milhões de pessoas, que continuam assustadas com o comportamento do mercado de trabalho, especialmente na construção civil.
Deveria ser claro que o problema só poderá ser resolvido com um aumento da demanda privada que até agora não tem respondido aos imensos estímulos monetários e fiscais.
A resposta não é "mais do mesmo", mas entender por que não funcionou. Em nossa opinião, porque: 1º) o comportamento de Obama foi hostil com o setor real da economia no início de sua administração; 2º) ele foi submisso e leniente em relação ao setor financeiro, que precisava mesmo ser preservado, mas não os seus agentes mais conspícuos e 3º) gastou o enorme patrimônio político do "we can" com programas necessários, mas discutíveis, em lugar de utilizá-lo cooptando e dando confiança ao setor privado para reduzir o desemprego.
O problema dos EUA não é econômico: é a falta de confiança da sociedade na ação do Executivo e do Legislativo.



quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Uma fábula


Uma fábula

RIO DE JANEIRO - Parece que foi na antiga Rússia dos tzares. Todo documento público precisava de estampilhas para ter valor legal.
Ivan Petrocivich perdeu a mulher e precisou comunicar o fato ao Registro Civil. Entrou na papelaria e pediu os selos necessários. O empregado lamentou não poder atendê-lo, não havia selos nem estampilhas, a Casa da Moeda estava fechada, todos os funcionários, do diretor ao faxineiro, estavam afastados ou presos por corrupção.
Ivan Petrocivich foi ao primeiro cemitério que encontrou, explicou a impossibilidade de legalizar a certidão de óbito, mas o coveiro que o recebeu nada pôde fazer: a instituição que explorava os cemitérios estava toda demitida por corrupção, vendia túmulos, mármores, enterravam quem bem entendessem, o jeito foi fechar os cemitérios.
Meio desesperado, Ivan Petrocivich apelou para a polícia. Pediu audiência ao chefe do sistema da Polícia Central, mas não foi atendido. Na véspera, o aparelho policial estava fechado, o Estado havia demitido toda a cúpula da instituição a bem do serviço público, dada a corrupção em todos os níveis.
Um vizinho o aconselhou a procurar o ministro da Justiça. Ivan Petrocivich chegou ao ministério e ali encontrou grande agitação. O ministro acabava de ser preso, estava algemado, dentro de uma troica que pertencia ao palácio do tzar. Mas a troica não saía do lugar porque faltavam os três cavalos de praxe, que na véspera haviam sido vendidos na bacia das almas, enriquecendo o noivo de uma das princesas da corte.
Desesperado ficou também o tzar. Garantiu que continuaria a combater a corrupção doesse a quem doesse.
Só não aprovou o uso das algemas, que começavam a escassear no mercado, uma vez que a principal fábrica de algemas estava sob intervenção federal devido aos frequentes casos de corrupção.



Mundo de Imposturas - uma ficção sobre a mais recente ditadura militar na Argentina


Mundo de imposturas
Os governos ditatoriais criaram inúmeras vezes a ilusão de que a violência não acontecia no verso de suas imagens oficiais. A reconstrução discursiva desse mundo de imposturas tem sido feita pelo realismo cortante dos testemunhos, que descortinam a brutalidade das torturas e dos traumas dos sobreviventes e também pela ficção, que cria um cenário propício para os desvendamentos e as reflexões históricas. Nesse sentido, o romance A Quem de Direito, do escritor argentino Martín Caparrós, lança outro olhar sobre a história da ditadura argentina, levando em conta a perspectiva dos militantes “não desaparecidos”, daqueles que sobreviveram e necessitam de um heroísmo póstumo para suportar as perdas e as desilusões.
O personagem Carlos, que na juventude foi um militante, carrega o fardo do desaparecimento de sua esposa grávida. Ao longo da narrativa, tenta recuperar os fios desatados de sua vida por meio de diálogos, encontros e lembranças entrecortadas. No emaranhado da sua memória, surgem inúmeros questionamentos sobre as vozes, no contexto atual, dos sujeitos que viveram os anos da militância e parecem estar suspensos na ordem da história. Todos merecem ser ouvidos? Até mesmo o antigo torturador que hoje acumula traumas e vive em um mundo repleto de fantasmas? Há lugar para a voz da geração dos filhos e netos dos militantes, que vive hoje mergulhada na arrogância e no niilismo? Tais perguntas encontram respostas na articulação ficcional de Caparrós e apontam atalhos para a construção de um período histórico obscuro, que possui como legado a necessidade da memória. – ANA LÚCIA TREVISAN
A quem de direito, de Martín Caparrós, Companhia das Letras, 336 páginas, 49 reais


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Natureza e Graça


Natureza e graça

A vida é feita de escolhas. Uma das escolhas mais sérias na vida é o modo como vivemos a vida, se como graça ou como natureza. Essa questão é uma alternativa clássica na filosofia cristã, mais especificamente de Santo de Agostinho, morto no ano 430 d.C. Duas de suas obras, "Natureza e Graça" e "Confissões", são essenciais para entendermos este problema.
O novo filme do misterioso cineasta americano Terrence Malick (que despreza o glamour da indústria do cinema e das festas da mídia) se abre com esta questão. "Árvore da Vida" foi o vencedor da palma de ouro de Cannes deste ano.
Malick é um cineasta que faz da espiritualidade a matéria-prima de seu cinema, como, por exemplo, o russo Tarkovski fazia.
Já em "Além da Linha Vermelha", de 1998, com a espiritualidade na guerra, e "O Novo Mundo", de 2005, com a espiritualidade do encontro com o "outro", Malick faz da voz em "off" de seus personagens um apelo desesperado da espécie humana em busca do sentido de nossa aventura na Terra. Em Malick, cada agonia do indivíduo (cada "voz") é arquetípica do humano.
Por favor, não entenda "espiritualidade" aqui como essas bobagens de sofás que você muda de lugar para melhorar a energia da sua casa ou uma palavra para você falar de suas manias com cristais ou expectativas reencarnacionistas.
"Espiritualidade" aqui significa a indagação essencial se a vida é fruto de uma força cega ou fruto de uma intenção bela, confrontada cotidianamente com o sofrimento inquestionável da vida.
Segundo a personagem feminina principal, a mãe dos três filhos (um deles, quando adulto, será Sean Penn) e esposa de Brad Pitt no filme, interpretada pela belíssima ruiva Jessica Chastain, há duas formas de viver: "The way of grace or the way of nature" (segundo a graça ou segundo a natureza). Podemos também traduzir "way" aqui por caminho, modo, forma ou maneira.
Esta é a chave para o entendimento mais profundo deste filme. Sem ela, você poderá ficar rodando em círculos ao redor do encontro, no enredo, entre a origem do universo e da vida na Terra (narrada em maravilhosas imagens cósmicas e paleontológicas) e a história da família que tem essa "mística" como mãe e que nos primeiros minutos recebe a notícia da morte de um de seus filhos na guerra do Vietnã (o "filho mais doce e generoso" dos três).
Eu, que sou uma pessoa essencialmente atormentada pela melancolia (como dizia semana passada ao comentar outra recente pérola do cinema, o filme "Melancolia" de Lars von Trier), considero esse conceito de "graça" do cristianismo uma das maiores criações da filosofia ocidental, além do conceito de Deus, claro. A graça sempre me encanta e, no cristianismo, ela é o "modo" de Deus criar as coisas.
Toda vez que o mundo (e nós nele) surpreende, saindo de sua constante miséria interesseira, vaidosa, traiçoeira, monotonamente previsível, eu sinto o cheiro da graça.
Tivesse eu que definir o modo como vivo, diria, entre a melancolia e a graça. Para mim, não há nada entre elas, só abismo.
Peço aos inteligentinhos que me poupem o blá-blá-blá do jardim da infância sobre as críticas ao cristianismo ou ao conceito de Deus. Proponho que hoje vão brincar no parque.
A graça é generosa, não pensa em si mesma, pode ser humilhada, ignorada, desprezada, mas ainda assim ela dá vida. A natureza só pensa em si mesma, submete todos a ela, é escrava de sua fisiologia, ao fim, vira pedra.
É mais ou menos assim que a mãe "mística" define a diferença entre viver segundo a graça ou segundo a natureza.
Se a vida é fruto da graça, ela é dádiva de beleza e de bondade, se ela é apenas natureza, ela é cega e sem sentido.
O adulto Sean Penn será o herdeiro agoniado desta questão: a vida é graça ou mera natureza? "Devo ser competitivo", como o pai o ensinou a ser (a natureza), ou "generoso", como a mãe lhe dizia (a graça)? A morte prematura do irmão será intransponível? Como amar a vida diante da morte? Seria ela a derrota da graça? A vitória da natureza cega?
Cada morte é como se fosse a primeira morte no mundo.



Os soluços do outono


Os soluços do outono

Ainda é inverno, na Europa ainda é verão, mas com a idade fui me libertando do tempo e das estações, há uma primavera no meio, mas já sinto aqueles "sanglots longs de violons de l'automne" do poema de Verlaine, afinal, o verão foi curto, a primavera, pouca, só o outono parece que vem para ficar e durar, além do inverno definitivo e inútil.
Como o atleta que não sabe se chega ao fim da corrida, como o pintor que ignora até que ponto aquela linha ou aquela cor o levará, primavera e verão são noviciados efêmeros da vida que afinal importará e que só será vida verdadeira quando abrirmos a lente grande-angular de nossas retinas e, desprezando detalhes, ou juntando-os para a perspectiva serena de nós mesmos, sentiremos os soluços longos de tudo o que passou e ainda não acabou, embora não possa ser resgatado. De que valeria o resgate se o chão dos parques e jardins estão atapetados de folhas que foram verdes e ainda não estão mortas, mas da cor de ouro, da cor dos cascos abandonados dos navios que não podem mais nem querem mais navegar.
Com suas âncoras cansadas, esperam resignadas, seu silêncio enferrujado, o grande mar que tantas vezes elas venceram, o grande mar que aos poucos fará parte delas mesmas, como as folhas mortas do outono voltarão à terra que não mais será nossa terra, mas aquilo que fomos, efêmeros embora.
Sempre lembro o amor outonal de Goethe por uma jovem. Somente a perspectiva do outono pode dar sentido a tudo o que aconteceu, a nós e a tudo. Aos 20, 30 anos, que nos importava a Guerra do Peloponeso, o ciúme de Otelo, o teto da capela Sistina, as sinfonias que Mahler ainda escreveria?
Em pleno verão de sua vida, quando escrevia o poema do médico senil que venderia a alma para possuir a juventude eterna, Goethe já começava a ouvir, distante ainda, os soluços longos do outono que se aproximava e do qual ele teve a perspectiva das folhas que formariam seu chão definitivo.
"Quando a imaginação desdobra as suas asas atrevidas, ela sonha com a eternidade em seu delírio; mas um estreito espaço basta-lhe quando um abismo devorou todas as suas alegrias e esperanças.
A inquietude aloja-se no fundo do coração e nele produz dores secretas: ela trabalha sem descanso e destrói o prazer e o repouso; assume mil fisionomias diversas: é ora o nosso lar, ora uma mulher, depois uma criança, uma casa, o fogo, o mar, um punhal, um pouco de veneno.
O homem treme diante desses males que não o atingirão e chora continuamente os bens que não perdeu." No tempo de Goethe, parece que ninguém fazia sinopses para poemas e romances, tudo vinha de repente, de uma perspectiva própria das "asas atrevidas da imaginação".
Os longos soluços, vindos do outono que se aproximava, davam-lhe o anúncio que não chegava a ser triste, mas final. Não podia terminar esta crônica sem voltar a Verlaine, em tradução de Guilherme de Almeida: "Estes lamentos dos violões lentos do outono enchem minha alma de uma onda calma de sono. E soluçando, pálido, quando soa a hora, recordo todos os dias doidos de outrora. E vou à toa no ar mau que voa: que importa? Vou pela vida, folha caída e morta".
E é por aí que, dos soluços cada vez mais longos e próximos, descubro não a tristeza do outono, mas a lucidez de sua verdade e de sua beleza.
PS: Se Guilherme de Almeida fosse apenas um tradutor, teria traduzido "violons" por "violino" -o que seria mais correto. Contudo, ele também era poeta -dos bons- e não perderia a oportunidade de obedecer ao ritmo do famoso verso que serviu de senha para os resistentes franceses da Segunda Guerra Mundial ficarem sabendo que os Aliados estavam desembarcando na Normandia, no início do que seria a libertação da França da ocupação nazista e, praticamente, do próprio fim da guerra.
De certa forma, o longo soluço de um outono para o tempo do homem em sua verdade final.


Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 12 de agosto de 2011. Devo dizer que ele começa muito melhor que termina, mas é um belo texto.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Com o muro erguido, Adenauer propôs a Kennedy vender Berlim Ocidental

A República Federal Alemã (RFA) e os Estados Unidos consideraram vender Berlim Ocidental à Alemanha comunista, revelou neste domingo, cinquenta anos após a construção do muro de Berlim, um semanário alemão citando documentos governamentais revelados recentemente.

O chanceler da RFA de então, Konrad Adenauer, sugeriu após a construção do muro, em 13 de agosto de 1961, que Berlim Ocidental, ocupada por França, Grã-Bretanha e Estados Unidos e totalmente isolada dentro do bloco comunista, fosse trocada por partes da República Democrática Alemã (RDA), publicou o semanário Spiegel.

Citando documentos governamentais revelados recentemente, o Spiegel indica que Adenauer evocou a ideia com o então secretário de Estado americano, Dean Rusk, e com o presidente John F. Kennedy, sugerindo que os Estados Unidos propusessem esta troca à União Soviética, que detinha o controle da Alemanha Oriental.

A ideia era deixar a RDA e as forças soviéticas tomarem o controle do oeste de Berlim e, em troca, a RFA estenderia suas fronteiras ao leste em direção à Turingia e a partes da Saxônia e Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental.

Estas áreas eram ocupadas pelas potências ocidentais ao final da Segunda Guerra Mundial e foram entregues ao Exército Vermelho, como foi estipulado nos acordos do pós-guerra.

O mesmo ocorreu com Berlim, que estava totalmente ocupada pelo Exército Vermelho em 1945 e foi dividida em quatro setores após a guerra.

A RFA não acreditou realmente que Moscou aceitasse o acordo, já que o recentemente criado Estado da Alemanha Oriental precisaria entregar partes de seu cordão industrial ao Ocidente.

Mas Adenauer pensou que poderia tirar proveito com esta troca ou, ao menos, resolver problemas com as autoridades soviéticas e da Alemanha Oriental se Moscou estivesse tentada com a ideia.

Para as potências ocidentais, a troca teria sido proveitosa, já que teria posto fim às tensões com o bloco soviético pelo controle de Berlim Ocidental, um dos pontos quentes da Guerra Fria.

Segundo estes documentos, Kennedy rejeitou a ideia.

Em junho de 1963, o presidente americano visitou Berlim e declarou seu apoio aos berlinenses do oeste com a famosa frase: "Ich bin ein Berliner" (Eu sou um berlinense).





Notícia da AFP, reproduzida no UOL Tecnologia

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Consolação?!...


Poucas semanas depois da morte do meu sogro, vi meu filho de 7 anos chorando na cama. Sua avó tinha morrido no ano anterior, e tudo aquilo estava sendo muito doloroso para ele.
- Sabe, Kyle – disse eu – quando a gente morrer, vai poder ver de novo o vovô e a vovó no céu.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Kyle resmungou:
- Prá você é fácil dizer isso porque não falta tanto tempo!

Farrel Chapman

Publicado na Seleções do Reader’s Digest brasileira, de agosto de 2011, página 57.

Redes Sociais para animais




Do caderno Tec, da Folha de São Paulo.

Derrota de Gutenberg


Derrota de Gutenberg

A ascensão dos livros eletrônicos vem transformando mais do que os hábitos de leitura. Os Kindles e Nooks transformaram o setor das editoras, e o ramo que ensina pessoas como ingressar no setor das editoras também está se adaptando.
Um curso de seis semanas na Universidade Columbia, em Nova York, que prepara universitários recém-formados para uma carreira no ramo editorial, se manteve em grande medida igual por décadas.
Neste verão, porém, o curso está diferente. O Curso de Edição da Columbia ofereceu palestras de executivos do setor editorial que explicaram como dominar o "e-marketing". Especialistas digitais falaram sobre a publicação eletrônica de formato curto. O jornal "The New York Times" acompanhou.
Tudo isso resulta em incerteza. "Este é um momento assustador para se ingressar nesse ramo", disse ao "Times" o agente literário Douglas Stewart. "Quando olhamos para aquele mar de rostos interessados, ficamos pensando 'será que eu deveria estar fazendo isto, neste momento?'"
Mas nem todos ficarão desapontados se menos livros forem publicados. Bill Keller, editor-executivo do "Times", se pergunta por que seus jornalistas se dão ao trabalho de escrever livros, considerando que as vendas de livros impressos nos EUA vêm caindo desde 2005.
Quando um repórter jovem e bem conceituado revelou que ingressaria nas fileiras dos autores, a reação de Keller foi pessimista: "Sim, ele pode escrever um livro. Mas por que gostaria de fazer isso? Na realidade, por que qualquer pessoa gostaria?"
Se os livros desaparecerem, haveria "conteúdo" para tomar seu lugar, como escreveu James Gleick no "Times". A Biblioteca Britânica anunciou em junho que está trabalhando com o Google para digitalizar 40 milhões de páginas de livros, folhetos e periódicos que datam desde a Revolução Francesa. A Biblioteca Digital Europeia, a Europeana.eu, colocou on-line mais de 10 milhões de "objetos" no ano passado, incluindo um manuscrito búlgaro de 1221, escrito originalmente sobre pergaminho, e a pedra rúnica Rok, da Suécia, que data aproximadamente do ano 800.
Alguns temem que a facilidade de acesso on-line possa amesquinhar o trabalho dos estudiosos. Tristram Hunt, historiador e deputado inglês, se queixou do "tecno-entusiasmo". "Quando tudo pode ser descarregado no computador, o mistério da história pode se perder", escreveu. "É com o manuscrito em mãos que o significado real do texto se evidencia."
James Gleick, que se recorda do assombro que sentiu ao ver o primeiro caderno de anotações de Isaac Newton, de 1659, discorda: "Acho isso sentimentalismo, até mesmo fetichismo", ele escreveu no "Times".
"Isso guarda relação com a fantasia de que aquilo que amamos nos livros é a tessitura do papel e o cheiro da cola."
Mas, se Bill Keller ver seu sonho realizado, mais de nós seremos poupados do que vem acontecendo com Bryan Burrough, que escreve resenhas de livros de negócios. "Bons autores fazem um esforço para contar grandes histórias de negócios", ele escreveu. "Mas, da massa de livros que se espalham sobre minha mesa, uma parte grande demais é feita de livros que simplesmente não são muito bons."


TOM BRADY



sábado, 13 de agosto de 2011

Porto Alegre Antiga - Viaduto Otávio Rocha



O Viaduto Otávio Rocha, por volta de 1930, em foto sem autor identificado. Reprodução do calendário Sindilojas de Porto Alegre de 2010, a partir do acervo da Fototeca Sioma Breitman, do Museu Joaquim José Felizardo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

41


Paris, 27 de agosto de 1955
Meu caro Eduardo:
Ontem fiz 41 anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema do qual deves se lembrar, e ele dizia isso com tanta tristeza quanto eu. Quarenta e um é um número horrível para quem acredita que o mundo é belo, mas alheio, alheio aos meus sentidos que só conhecem uma parte ínfima, à minha inteligência, incapaz de apreendê-lo em suas estruturas mais elementares. Agora começa verdadeiramente o declive, a década que nos leva aos 50. E eu, que me sinto sempre com 20 anos, tão bobo, tão crédulo, tão entusiasta, tão esperançoso como naqueles tempos! Mas os sinais físicos me trazem de volta à realidade. Fico doente mais seguidamente, me canso muito mais rápido. Até cinco anos atrás podia passar uma noite em branco e continuar perfeitamente no dia seguinte; agora, se vou me deitar depois da meia-noite, pago o preço no dia seguinte. Não posso beber tanto vinho, não posso comer tantas coisas, não posso ler tantas horas. Coisas profundamente materiais começam a minguar, a afinar sutilmente, como se o mundo iniciasse, sigiloso, sua retirada, deixando-me cada vez mais suas imagens em troca de suas matérias... Imagino que essa melancolia (acompanhada, ao mesmo tempo, de uma exaltação extraordinária, de uma vontade, como nunca antes, de fazer coisas, de conhecer, de amar) deve-se a uma vistosa transformação de minha fórmula sanguínea, derivada de um danado de um vírus filtrável que me pegou durante uma parte deste mês, que passei me levantando e caindo. Nunca tenhas mononucleose infecciosa, porque incomoda muito. (Deves estar sorrindo ironicamente, pobre velho, também versado em achaques...) Agora estou melhor e respondo a tua carta que chegou há pouco, e que li tomando um vinhozinho perto da place de Ternes, cheias de castanheiros que já começavam a ficar com esse amarelo propício ao outono... Ma foi, tua carta me deixou triste vários dias, e estou quase contente de não tê-la respondido em seguida. Agora eu a vejo – te vejo – com mais perspectiva. Agora consigo ser um pouco mais desapiedado, embora não seja piedade, muito pelo contrário, o que tu esperas de mim. (Hoje me saem “tu” por todo lado: devem ser os galegos da Unesco se infiltrando em meu sangue. Não estou disposto a renunciar ao “você” por nada neste mundo. No máximo, um ponto intermediário como os uruguaios, que dizem “tu diz”...) De tudo o que me conta, de tudo o que confia a mim, o pior é esse sentimento de solidão, de estar isolado entre todos os que o cercam. Conheço um pouco esse sentimento porque fui quase um camarada de juventude e você sabe disso muito bem. As causa e os matizes eram outros, mas não os efeitos. Por isso me dói – e como lhe dizer com as palavras certas tudo isto, se a única coisa possível seria olhá-lo nos olhos e dar umas palmadinhas em seu ombro para que você soubesse que seu amigo está perto? –, me dói ver você metido num labirinto tão sutil, tão feito de nadas que são tudos, com paredes que se franqueiam com o corpo mas que nem assim o deixam em liberdade. E me dói – e me dá raiva, não vou esconder isso, e tenho vontade de gritar que assim você não pode continuar –, me dói ver se agravar o que não foi difícil de suspeitar durante todo o verão passado em Buenos Aires. Naquela época pensei que seu estado físico somava desassossego a sua inquietação moral, mas agora acho que entendo que esta pode mais que qualquer outro fator momentâneo. Não retiro o que disse naquela noite em que conversamos sobre seu diário. Acho que seu defeito – para lhe dar um nome francamente, embora talvez fosse melhor dizer sua maneira de ser, pura e simplesmente – é uma soma de incapacidades e inadaptações que eu gostaria de conhecer bem para poder enumerá-las e ajudá-lo – se isso fosse possível.
Você me escreve num tom que me autoriza, creio, a empregar o tom daquela noite e completar, talvez, o que eu lhe disse um pouco intimidado pela presença muito próxima de María e pelo fato de entrar com você num terreno tão pessoal, no qual não tocávamos há pelo menos quinze anos. Deixe que eu empregue outra vez o termo “egotista”. Não é pejorativo, você sabe. Você tem um interior rico demais para não ser um pouco bumerangue e retornar a si mesmo toda vez que sai para o mundo. Seu egotismo me parece uma barricada, um muro de defesa. Não me parece seu verdadeiro ser, o profundo; insisto em vê-lo como um método de vida, um meio que ameaça tomar o lugar de um fim. Se me perguntar por que penso isto, vou lhe responder francamente: acho que sua infância e sua primeira adolescência são culpadas, e que não existe nenhuma razão verdadeira para continuar mantendo uma fachada (porque no fundo é só uma fachada), quando você está beirando os 40 e já não tem os problemas do menino. Me desculpe por essa psicanálise barata (e absolutamente desprovida de rigor) que, aliás, você já deve ter praticado sozinho mais de uma vez. Se me perguntasse no que me baseio para dizer tudo isso, eu mencionaria o quadro oferecido por todo homem que passa sua infância sem o pai, rodeado de uma mãe bondosa, mas severa, e de três irmãs bem mais velhas, que triplicam a imagem materna e acabam lhe dando uma dimensão esmagadora. (Quando fui visitá-lo um dia em sua casa de Banfield, por vezes não sabia quem era sua mãe, se a verdadeira ou a Quica... E você vivia assim noite e dia.) O mecanismo de defesa viril, de rebeldia necessária, é claramente visível em sua conduta daqueles anos. Você já era “difícil” e, mil vezes, em conversas com Paco – o único amigo em quem eu confiava plenamente, além de você –, nós ríamos lembrando suas reações petulantes, seus acessos de entusiasmo seguidos de depressões brutais que o deixavam arrasado e atormentado. Depois fiquei um longo tempo sem vê-lo, mas foi então que você fez o que correspondia exatamente a seu mecanismo de rebelião: foi para a Europa numa viagem bastante insensata e, ao fazer isso, fez o que Freud chama de “matar a mãe” (matava vários outros, de quebra). Não sei muito bem como você viveu quando voltou, embora imagine que tenha sido uma pequena boemia honorável, viveu sozinho – um dia me mostrou seu ateliê –,mas tudo isso encobria, receio, o começo da derrota, a volta ao rincão natal, o ingresso na ordem. Talvez tenha sido nessa época que teve medo (inconscientemente, sem confessá-lo) de escolher um caminho absoluto, ser um artista, como Van Gogh escolheu ser, ou um poeta, como Vallejo escolheu ser. Tudo reside, creio, no fato de você ter vocação para o que não faz, ou para o que faz insatisfatoriamente (não estou aludindo aos resultados, mas a sua satisfação ao fazê-lo). A única maneira de se realizar teria sido, naquele momento, quando você não era casado nem tinha filhos, fazer a viagem verdadeiramente. Entendo por viagem qualquer roteiro interior ou exterior que o teria levado até o extremo de si mesmo. Porque – e será o melhor elogio já feito a você – você não é homem de termos médios, acomodado. Tem uma espécie de sede de absoluto, que se reflete em toda a sua conduta. Sua vida, porém, foi montada sobre uma série de compromissos, e até irrisoriamente você caiu num tipo de trabalho fundamentalmente impuro e cheio de concessões, arranjos e compromissos (como o que eu tive um tempo na Câmara, e do qual me libertei porque eu ia acabar na rua). Você tem de sair de carro com geólogos e voar para Córdoba com médicos, tem de fazer coisas que acha repugnantes, e paga caro por isso. Paga especialmente caro porque quando era menino não quis se entregar e se rebelou contra seu meio familiar, e continua atrás de sua barricada, como se nota em muitos detalhes de sua conduta; ao mesmo tempo o inimigo está infiltrado em sua cidadela, todos os dias da meia-noite às seis, e tem outros inimigos mais doces e mais sutis nas horas restantes. Desses últimos “inimigos” não quero falar porque gosto muito deles e porque eles não têm a menor culpa do que acontece com você; aliás, você é o primeiro a reconhecer isso. Não são inimigos, você é que se rebela contra a ordem que eles representam, e assim os transforma no que são, em inimigos. E por que você se rebela contra a ordem burguesa que aceitou há dez anos? A rebelião aos 15 anos tudo bem; esta rebelião aos 40 dá o que pensar; tem muito de absurdo, tem muito de cópia irrisória da primeira, da autêntica. Entre as duas há uma derrota, a de seu ingresso numa ordem que você não queria. É aí que você tem de procurar uma solução possível, aí e em seu próprio caráter, alterado por fossos, barricadas e pontes levadiças que não são seu verdadeiro eu.
Vou lhe falar com toda a franqueza: neste verão tive a impressão de que você perdeu um dom que antes tinha, embora nunca em grandes proporções: o da alteridade, o de saber se debruçar e escutar, o de se colocar um pouco no lugar de seu interlocutor, de seu amigo, de quem estiver com você nesse momento. Eu me surpreendia, por exemplo, que numa reunião incoerente, onde circulavam diversas pessoas, você se empenhasse em encontrar cinco minutos para me mostrar poemas e esperar minha opinião, ou me fazer ver quadros em circunstâncias nada propícias. Eu ficava comovido com seu desejo evidente de se vincular ao interlocutor por meio do que fazia, mas ao mesmo tempo percebia em você certo desprezo (agora não consigo encontrar outra palavra, e esta está longe de dar conta do que quero dizer) dirigido a seu interlocutor, fosse eu, Aurora, Sakai ou qualquer dos presentes. Não gostaria que me entendesse mal nesta passagem. Minha impressão é que você estava ansioso por testemunhas, por pessoas que o amam e que você ama, mas que procurava essas testemunhas de uma forma perigosamente egoísta, sem dar nada de você e mesmo assim esperando tudo do outro. Achei que você tinha perdido a capacidade para o diálogo, um pouco porque era continuamente rodeado e amavelmente fustigado por seus filhos e por tantos que continuamente o acompanhavam; mas mesmo aceitando essa justificativa, insisto em dizer que o achei um pouco rígido, um pouco cristalizado, ansioso por oferecer tudo espiritualmente e ao mesmo tempo se negando a fazê-lo, encerrando-se rapidamente na anedota fácil, na conversa anódina, no papo-furado social. Tome tudo isso a conta-gotas; provavelmente eu esperava de nosso diálogo um encontro em profundidade e que cada quadro ou cada poema fosse como um ponto de partida para conversas muito mais profundas do que as que tivemos.
Como as circunstâncias não o permitiram, a não ser por raras vezes e por breves minutos, posso estar atribuindo a seu caráter algo que era apenas exterior. No entanto, algo em mim insiste em dizer que não estou totalmente equivocado. Há em você um fundo invariável de ternura, de confiança e entusiasmo adolescentes; sei que continua encarando a amizade como um sentimento muito mais exigente que o que pode ter, por exemplo, Jorge. Suas reações frequentes e bastante violentas diante da conduta displicente e desapegada do Jorge me provam isso. Sei também que, se eu morasse em Buenos Aires, já teríamos alcançado o plano que eu esperava encontrar neste verão (tanto em você quanto em María, pois também com ela eu esperava dialogar a fundo, já que sei como é sensível, inteligente e carinhosa). Não pense que ignoro o fundo de bondade até excessiva que há em você; o que me espanta um pouco é sua tendência resoluta a disfarçá-la, a se mostrar muito menos espontâneo do que poderia ser. Acho que só no final – tinha de ser assim – eu o medi de novo em toda a sua admirável qualidade humana. Estou falando da noite anterior a sua viagem a Córdoba, quando jantou com Aurora e comigo, e conversamos durante horas. Naquele momento você foi como talvez devesse ser sempre com os outros; agora deixe que eu me ponha de lado e o defronte com os outros. Se me escolhi como interlocutor nesses “exemplos” foi porque só assim podia lhe dar uma ideia de minhas reações. Agora penso em você diante das outras pessoas. Que razão fundamental você tem para estar divorciado de sua mulher ou de seus amigos, ou de seus filhos, ou do papa? Que razão pode haver senão esse encastelamento obstinado, essa resistência ferrenha às ofensivas do mundo? Não é necessário resistir ao mundo de hoje, o que é preciso é escolher bem o mundo que se prefere e ao qual é preciso se dar; e a esse, ah, a esse é preciso se dar profundamente, como quando se nada, ou se dorme, ou se ama. E eu temo (me diga se estou enganado, porque tudo isso pode ser falso) que sua velha rebeldia de menino contra sua mãe e suas irmãs está envenenando seu presente sem uma razão legítima.
Veja que não estou aludindo, não quero aludir à razão central de sua infelicidade, que é, na verdade, o tema de boa parte de sua carta. Não quero porque, ainda que admita sua existência, e isso me dói tanto, entendo que essa razão não é a última e que sua única saída consiste, se for para sair do poço, em voltar para trás, refazer sua vida analisando-a longamente, descobrir sem engano possível os erros, e depois, instalado em seu presente, e sem renunciar a ele, travar a batalha. E essa batalha irá se travar dentro e fora de você, que poderá vencê-la. As soluções extremas e românticas (a pobreza, a travessia do Atlântico, a renúncia às obrigações sociais), você deve descartar de cara. Se não pode ser Van Gogh, quem o impede de ser como Picasso? Se não pode ser Vallejo, por que não viver como Valéry? Não insista em viajar para Marrakech, como aos 17 anos. A vida já provou que você não foi feito para isso. Em compensação, foi feito para tantas outras coisas igualmente valiosas, igualmente belas! Se você achar que deve tomar algum outro rumo, seja inflexível nisso: ninguém deve impedi-lo. Se entender que precisa de seis horas por dia para pintar, é necessário, absolutamente necessário que as encontre.Não diga já de saída que é impossível, tampouco exija que sejam doze ou dezoito horas. Conforme-se com seis, mas ganhe essas horas. Recuse as pequenas coisas parasitas que vão nos roubando as grandes. Procure outro trabalho, sem se apressar e sem ficar frenético, se não aparecer alguma coisa logo. Será que você procurou de verdade? Digamos que você realmente chegue à conclusão de que só saindo da embaixada terá condições de alcançar certa paz; no mesmo instante tem de começar a procurar, e sei que encontrará. E não me diga que a embaixada não é, nesse momento, a razão de sua infelicidade. Já sei, e insisto em que não quero tocar no assunto de sua situação com sua mulher. Só acho que, se você conseguir uma base material de tranquilidade (outro emprego, tempo para seu próprio trabalho, certa satisfação diante do espelho quando estiver vivendo como quer e fazendo o que quer), há mais possibilidades de o outro se acertar, de os fantasmas irem embora, de haver paz. Receio que você esteja combatendo no campo errado; tem que procurar os inimigos em outro lugar, a começar por você mesmo. Vou lhe dizer algo muito duro: acho que até agora você brinca de não ter pena de si mesmo (escrevendo, por exemplo, um longuíssimo diário onde não demonstra ter a menor pena de si mesmo, embora o próprio fato de escrevê-lo mostre de sobra que você tem, e quanta); penso que chegou a hora de você realmente começar a não sentir pena de si mesmo, ou seja, hora de renunciar a esse narcisismo às avessas que consiste em cuspir na água onde seu rosto está refletido. Aceite seu rosto, no dia em que ele for como você o deseja.
Eduardo, acho que me excedi na mesma tecla, e me pergunto o que você vai pensar desta carta. Claro que vou mandá-la mesmo assim, como uma simples prova de amizade, de um antigo afeto que só vai acabar junto comigo. Eu também me pergunto o que María vai pensar se a ler. Acho que entenderá. Acho que vai me perdoar por me intrometer num espaço tão privado, para o qual, no fundo, não fui chamado por ninguém. Teria sido mais fácil ignorar sua última carta e responder, como tantas vezes, com notícias sobre as exposições e a literatura. María sabe, também, que gosto muito dela, e que tenho profunda admiração por sua sensibilidade, seu contínuo dom de poesia, sua graça. Não me desculpo com você, nem com ela. Mas gostaria tanto de estar com os dois quando receberem esta carta, e dar um empurrão em vocês, meio na louca, e que nós três caíssemos na risada, na água-furtada da rua Ocampo onde fui tão feliz com vocês, e para onde eu quero tanto voltar um dia.
Com um abraço,
Julio

Carta do escritor argentino Julio Cortázar a seu amigo Eduardo Jonquiéres – uma de algumas publicadas na edição de julho/2011 da revista Piauí. Esta e algumas mais podem ser conferidos no sítio da revista Piauí.