sexta-feira, 29 de abril de 2016

Ideologia dominante

Em tese, o PSDB é um partido de ideias, relativamente coeso, laico, progressista e social-democrata. Mas a coisa deve ser mais complicada.
Enfim, isso eu aprendi numa pequena polêmica com o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN). A polêmica, além de me instruir sobre a diversidade do partido ao qual ele pertence, serve-me de ocasião para expor algumas ideias básicas sobre o que significa, para mim, criticar a ideologia dominante.
Primeiro, para a gente se entender: chamo de ideologia dominante o conjunto de ideias, valores e crenças que, num dado momento histórico, prevalecem e, com isso, administram a vida concreta de uma comunidade. Isso, claro, de uma maneira que não é maciça e sempre é uma zona de conflitos (salutares).
Numa visão marxista um pouco ingênua e datada, a ideologia dominante seria o instrumento de poder de uma classe. Hoje, parece prudente pensar que as ideologias sequer precisam servir interesses econômicos, elas são poderes autônomos.
Os intelectuais que defendem a ideologia dominante não precisam pensar muito. Basta-lhes propagar os valores que já são administrados pela maioria dos aparelhos ideológicos (a mídia, a escola, a igreja, a padaria, os partidos"¦).
Entre esses valores, na ideologia ainda dominante hoje, destacam-se a família como comunidade supremamente importante, a religião, um pouco de consumismo (ninguém é de ferro) e, enfim, a repressão de orientações, fantasias e desejos sexuais que se afastem da norma estatística aparente: transem só a dois, só com seu casal, e mesmo assim nem muito, porque São Paulo não gosta (São Paulo, entende-se, o apóstolo, não a cidade –porque a cidade gosta).
O deputado Marinho acha que eu sou um intelectual orgânico do outro lado, do lado do proletariado, ou seja, do diabo. Se ele tivesse me dito isso uns 50 anos atrás, eu me sentiria orgulhoso e ficaria tão alegre que poderia lhe dar um beijo (não se preocupe, deputado, só na bochecha).
De fato, esta foi uma questão dificílima para os militantes de esquerda dos anos 1960:
1) As produções artísticas da suposta "cultura proletária" não eram melhores do que os gostos artísticos de Hitler ou Mussolini: um realismo simplório;
2) A grande cultura do século 19 e 20, a dita "cultura burguesa", era para nós um patrimônio irrenunciável;
3) Qual cultura queríamos, então, para nosso futuro? Dizíamos que a própria cultura burguesa seria transformada numa sociedade livre (sem classes, imaginávamos). É claro que não fazia sentido, mas era bonito.
Hoje, encontrei um jeito de entender qual é a cultura que eu gostaria que fosse hegemônica e pela qual estou disposto a lutar. Não me pergunto se Thomas Mann é burguês, e Zola, proletário (isso sempre me pareceu ridículo)
O que faz a diferença entre a cultura que defendo e a que não quero é o tipo de hegemonia. Explico. Uma cultura sempre acaba gerindo vidas concretas. Mas, atenção:
Existe um tipo de cultura hegemônica pelo qual todos devem se comportar segundo o figurino. Esse tipo de cultura, em geral, apresenta suas ideias e valores como se não pertencessem à história, mas fossem verdades eternas, conformes a uma pretensa "natureza". Esse tipo de cultura é perigosa porque, em regra, seus exponentes perseguem nos outros os desejos que eles mal conseguem reprimir neles mesmos. A repressão é severa e impiedosa porque seu alvo verdadeiro é o próprio inquisidor, que gostaria de se reprimir a qualquer custo.
A cultura pela qual eu luto tenta propor a menor gestão das vidas possível. Ela é inspirada por um grande valor (o maior talvez) da cultura burguesa (desde os libertinos do século 17 até hoje): a ideia de que, na vida privada, cada um pode encontrar os prazeres de sua vida livremente –óbvio, com o consentimento dos que o acompanham.
Em suma, a diferença entra a cultura da qual gosta o deputado Marinho e a que eu prefiro é a seguinte. Para o deputado Marinho, não se conformar aos valores de sua cultura significa praticar, suponho, "a adoração do ídolo" e a destruição moral do povo brasileiro.
Enquanto, na hegemonia da cultura que defendo, ninguém forçaria o deputado Marinho a correr com os lobos e as lobas, transar com travestis ou casar com transexual –de fato, ninguém sequer o criticaria por ele ser monógamo, abstinente ou bem casado e religioso. 



Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Antonio Lassance: STF nunca viu golpe no país

Antonio Lassance: STF nunca viu golpe no país: Nunca houve uma única decisão do STF que contrariasse um ato golpista frontalmente ou sequer o denunciasse à opinião pública nacional ou...

terça-feira, 26 de abril de 2016

A dúvida constitucional de que o STF irá fugir


Avalio como inoportuna, inviável, e ilegal, exceto se por decisão do Superior Tribunal Eleitoral, a sugestão à esquerda de que reivindique “eleições, já”. Inoportuna porque lançada em meio ao processo decisório, primeiro, do Senado da República, e depois, se for o caso, do Supremo Tribunal Federal; inviável porque a Câmara, os partidos que votaram de forma truculenta a favor do impedimento de Dilma Rousseff, não irão introduzir tal mudança na Constituição; e ilegal porque se trata de mudança na regra do jogo ao fim do segundo tempo. Perder a bandeira da legalidade é presentear os golpistas com o argumento de que não dispõem e buscam desesperadamente forjar: o de que a presidente Dilma comete crime de responsabilidade, atentando contra a letra da Carta Magna. E sem ele não há justa causa para a violência impeditiva.
 
Tenho escassa esperança de que o Senado, julgando o mérito do pedido de impedimento, aceite o óbvio: por nenhuma evidência atual ou histórica, e até biográfica, a presidente Dilma Rousseff jamais violou ou tentou violar as instituições representativas democráticas. Nada até agora pôs em dúvida esse fato, cuja tonelagem de verdade é brutal. Por declarações de mais de um dos integrantes da partidariamente insuspeita força-tarefa da Lava-Jato, jamais houve tentativas de interferência do Executivo no andamento da investigação. Delações interesseiras, assinadas por tipos que acreditam na clemência do algoz quanto mais fabulam historietas para agradá-lo, transformam conversas cotidianas em conspiratas clandestinas em calabouços do Planalto. Mas a denúncia de conveniência será tratada como pepita pelos impolutos senadores, especialmente porque a acusação de deslize administrativo padece de precária virtude, assentada em ilegalidade não comprovada e anã.
 
Tampouco acredito no discernimento do Supremo. Em matéria de extenso conflito social, só os ministros autoritários costumam içar bandeiras. Os liberais, como de hábito, se escafedem. Dirão todos, ou a maioria esmagadora deles que o rito foi respeitado e não lhes cabe apreciar o mérito da decisão congressual. O dedo do demônio golpista está precisamente neste detalhe. Pode ser difícil encontrar fissura nos trâmites adotados pelo Presidente da Câmara dos Deputados. E não tenho segurança para julgar se é ilegal um réu de processo no Supremo presidir à votação de um pedido de impedimento da Presidente da República, sendo, ademais de réu ele próprio, declarado inimigo político dela. Mas a lisura do rito tem sido reivindicada, até com obsequiosa cautela, não obstante os espasmos alucinados que a TV registrou.
 
O atentado ao contrato social básico é outro, de cujo exame o Supremo fugirá como lebre. Cabe a qualquer maioria interpretar como lhe convier a forma de aplicar preceitos constitucionais? O rito pode criar o objeto a que se aplica? Se dois terços da Câmara dos Deputados decidirem que as contas do atual presidente da Casa não são contas e que a Suiça não existe, vale a anistia com que pretendem presenteá-lo? Se valer, para quê serve um Supremo Tribunal? Qualquer decisão majoritária seria constitucional. Esta é a mácula do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff: o rito criou o crime a ser punido. Vale? Não devia, pois a verdade de juízos de existência não é matéria plebiscitária.  É matéria jurídica, de lógica e da fé contratual que funda as sociedades. Mas os eminentes ministros vão fingir que ela não existe. A seriedade das instituições republicanas se dilui no despudor de um Legislativo que convive com a propaganda da tortura e na prolixidade capciosa dos tribunais de justiça. A república se esfarela e o amanhã promete ser violento.


Texto de Wanderley Guilherme dos Santos, no Jornal GGN. Destaque do Blogueiro.

Billy Paul, a voz de "Me and Mrs Jones", morre aos 81 anos

Billy Paul, a voz de "Me and Mrs Jones", morre aos 81 anos

Cantor contribuiu para o desenvolvimento do rythm and blues moderno
O cantor americano Billy Paul, astro da música soul nascido na Filadélfia e famoso em todo o mundo pela canção "Me and Mrs. Jones" de 1972, morreu nesse domingo aos 81 anos.
"Lamentamos ter que anunciar com pesar que Billy faleceu hoje em sua casa após uma grave doença", afirma um comunicado. Conhecido por sua bela voz, Paul venceu um Grammy e contribuiu para o desenvolvimento do rythm and blues moderno.
Nascido como Paul Williams na Filadélfia, desde criança teve envolvimento com a música soul desta cidade do leste dos Estados Unidos. Na juventude participou em sessões de gravação com lendas da música como Charlie Parker e Nina Simone.
Em 1972 chegou ao posto número 1 das paradas de sucesso com "Me and Mrs. Jones", uma canção sobre uma aventura extraconjugal que depois foi regravada por vários artistas, como a dupla Hall and Oates ou o crooner Michael Buble.
Mas em uma decisão comercialmente desastrosa, decidiu lançar na sequência uma canção totalmente distinta chamada "Am I Black Enough For You?" ("Sou negro o suficiente para você?"), com um tom mais funk e referências ao movimento radical Black Power.
"Esta canção estava à frente de seu tempo", afirmou o artista muitos anos depois.  "Agora é muito popular. Recuperou o tempo perdido, agora temos um presidente negro", disse, em referência a Barack Obama.
Reprodução do Correio do Povo

Aos 57 anos, Prince é encontrado morto

Aos 57 anos, Prince é encontrado morto

Músico estava no estúdio montado em sua casa, em Minessota
O lendário cantor Prince, de 57 anos, foi encontrado morto na tarde desta quinta-feira no estúdio de gravação montado em sua casa, em Minnesota, nos Estados Unidos. Conforme o The Hollywood Reporter, policiais seguem no local onde o corpo foi encontrado realizando investigações, mas as autoridades locais confirmaram a morte do cantor por volta das 14h (horário de Brasília), após falar com os familiares. 
Na última semana, o artista foi hospitalizado em função de uma gripe. Detalhes sobre a doença não foram divulgados, mas pessoas próximas afirmaram que ele estava bastante debilitado e que chegou a cancelar algumas apresentações devido ao seu estado de saúde.
Prince nasceu em 7 de junho de 1958 e lançou seu primeiro álbum, "For You", em 1978. Depois vieram "Prince", "Dirty Mind" e "Controversy", com os quais ele definiu para o mundo o seu som característico: funk pop misturado com letras extremamente sexuais. De lá para cá, foram mais de 20 lançamentos e alguns sucessos consagrados, como o hit "Kiss" e a balada clássica "Purple rain".
Considerado um dos maiores ícones do pop de todos os tempos, Prince foi campeão das paradas de sucesso, ditou o ritmo dos anos 80 e experimentou diversos estilos musicais ao longo da carreira, o que fez com que ganhasse muitos elogios da crítica por causa de sua versatibilidade. Em sua última turnê, ele também realizou apresentações mais intimistas. 
Por outro lado, o artista também tinha a fama de ser "uma pessoa difícil de trabalhar", segundo apontaram alguns companheiros de palco. Na década de 1990, ele mudou o seu nome artístico para um "símbolo de amor" impronunciável e escreveu a palavra "escravo" no rosto para protestar contra as condições de seu contrato com a gravadora Warner. Para muitos, este foi um período de reclusão na vida do músico, que só voltou aos holofotes de antes com o disco "One Nite Alone ... Live!", de 2002.
Recentemente, ele havia demonstrado uma grande produtividade, com o lançamento de álbuns pela plataforma de streaming Tidal, além de programar shows no último minuto para evitar a ação dos cambistas. O artista morava na região de Minneapolis, onde gravava seus álbuns em seu estúdio Paisley Park e organizava festas.

Reprodução do Correio do Povo

segunda-feira, 25 de abril de 2016

'Agenda Temer' tenta pôr o Brasil de hoje na República Velha, diz Haddad


MÔNICA BERGAMO
DE COLUNISTA DA FOLHA


O PT vai sobreviver às turbulências políticas, mas pode não ser mais o partido hegemônico da esquerda brasileira. "Vai ter que pensar mais o campo progressista do que o próprio partido", diz o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT).
Para ele, "a agenda que está colocada como condição de sustentabilidade de um eventual governo Temer tenta colocar o Brasil de hoje na República Velha" e dificilmente vai prosperar.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
*
Folha - Depois de 14 anos de governo do PT, estamos num processo de impeachment liderado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Como se chegou a essa situação?
Fernando Haddad - Esse processo começou há bastante tempo e se intensificou com a reeleição do Lula, em 2006. Desde então, de fato os ricos se tornaram mais ricos, os pobres se tornaram menos pobres e uma certa classe média tradicional viu sua posição relativa em relação a essas duas outras camadas prejudicada. A classe média perdeu status. Os ricos se distanciaram e os pobres se aproximaram.
O PSDB, não podendo fazer crítica frontal à política econômica e social de Lula, começou a dialogar com um conjunto de valores focado nessa classe média tradicional que não viu seus ganhos relativos representados no projeto de nação do PT.
Assumiu uma agenda de intolerância: os efeitos do Bolsa Família sobre o comportamento dos pobres, as cotas raciais e sociais para o ingresso na universidade, a questão da mulher [aborto] na eleição de 2010, da comunidade LGBT na de 2012, da maioridade penal em 2014. E foi contaminando os humores dessa classe média.

A classe média derrubou o governo?
A afirmação é forte para o conjunto de fatores que levou a essa situação. Mas é seguro que um fator importante foi a piora da posição relativa da classe média, que fez surgir uma equação quase impossível de solucionar: ela passou a demandar a melhora dos serviços públicos, para dispensar os privados, sem aumento de tributos.

Mas isso nem mesmo derrotou o governo em eleições.
Enquanto os ricos prosperaram e os pobres foram sócios majoritários do incremento da renda, essa agenda tinha pouca chance de prosperar. Mas vem a crise internacional e o governo adota políticas anticíclicas, à espera de uma melhora do quadro internacional, Que não veio.
Houve um esgotamento do modelo que permitia o ganha-ganha de empresários e trabalhadores. Ele tinha que ser substituído. Para manter foco na redução da desigualdade, seria preciso impor sacrifícios ao andar de cima.

Aí começa o conflito.
Aí começa o conflito. O impasse que o Brasil vive é exatamente esse. Ninguém sabe quem é o personagem por trás daquele pato da Fiesp. A história vai dizer. Os conflitos distributivos estão na ordem do dia. E passam pela política monetária: o quanto ela combate a inflação e o quanto representa ganhos rentistas que passaram a predominar?

Onde entra a responsabilidade da presidente Dilma nisso? E da Operação Lava Jato, que aponta corrupção do PT?
Na reeleição de 2014 ocorreram coisas significativas. Houve um divórcio como nunca se viu entre o Legislativo [de perfil mais conservador] e o Executivo. É sempre difícil para um governo progressista formar maiorias no parlamento, porque a maioria para quem ele quer governar não consegue se fazer representar num sistema totalmente distorcido. Há sempre um descasamento, mas em 2014 ele foi muito maior.
Outro problema é que não houve uma mera inflexão do governo em relação às políticas adotadas até então. Ele mudou o discurso em 180° pouco depois da eleição.

Um divórcio eleitoral.
Houve um divórcio entre a prática e a prédica. E essa mudança violenta corroeu a base dos que reconduziram Dilma ao governo. A oposição, percebendo a fragilidade, passou a defender o impeachment. Há outros fatores de esgarçamento, como a Lava Jato, que potencializou tensões já exacerbadas. É uma sobreposição de crises.
O quadro geral recomendava que se buscasse o entendimento com o PMDB. Mas o movimento do governo foi exatamente o contrário. Ele preferiu confiar em forças que demonstraram maior infidelidade, para dizer o mínimo, do que o próprio PMDB.

O impeachment é golpe?
Eu compartilho da opinião de boa parte da comunidade jurídica que considera o impeachment da Dilma um casuísmo. A base para essa punição máxima é frágil.
Os pretextos usados, de contabilidade criativa, não vão ser usados contra mais ninguém, embora essa prática seja adotada extensamente por governadores e também no plano municipal. Nesse sentido, fazendo as devidas ressalvas com 1964 [em que os militares tomaram o poder], é golpe.

E as consequências?
A agenda posta como condição de sustentabilidade de um eventual governo Temer tenta colocar o Brasil de hoje na República Velha. É um modelo de sociedade que eu espero que seja inaceitável para a maioria dos brasileiros, um retrocesso no que se avançou em direitos trabalhistas e sociais, por soluços históricos, no Brasil. É isso o que está instalado: um conflito de interesses em relação ao papel do Estado como provedor de direitos sociais básicos previstos na Constituição.

Lula sempre acreditou que seria o conciliador desses conflitos no Brasil, o personagem que agregaria as classes. E agora a ficha teria caído.
O viés do PT é trabalhista. É a ideia de que é possível sentar à mesa com o patrão, defender o interesse dos trabalhadores e todo mundo ganhar com isso. Lula pensa assim. E o governo que fez deu razão a ele. O que talvez não tivesse no horizonte dele é que uma crise tão severa se instalaria depois de ele entregar o país com 7,5% de crescimento.

Foi um erro ele escolher a Dilma como candidata?
Ele não tinha opções. Como ministra da Casa Civil, Dilma correspondeu a todas as expectativas. Conhecia o governo como ninguém. E tinha uma biografia. Seria injusto fazer repousar sobre os ombros de uma pessoa toda a responsabilidade, como se o PT não tivesse responsabilidade, como se a oposição não tivesse a sua cota ao impedir que o governo se realizasse, com condições totalmente adversas no Congresso para aprovar o que quer que seja.

O que vai acontecer com o PT?
O PT vai sobreviver. Pequeno por quanto tempo, médio por quanto tempo? A história vai responder.
O partido tem muita capilaridade. Mas o PT vai ter que pensar, daqui para a frente, mais o campo progressista do que o próprio partido. Isso já estava na cabeça do Lula em 2010, quando sinalizava inclusive um apoio ao Eduardo Campos em 2018.
O PT estava consolidado, forte, em seu melhor momento, e o Lula já entendia que o partido tinha que fazer, em algum momento, esse gesto de apoiar o candidato a presidente de outro partido. Você imagina agora. Mais ainda, né? Lula já entendia, e eu concordo com ele, que o roteiro de um partido de esquerda hegemônico, em torno do qual os demais orbitam, tinha se esgotado.

Ele acreditava que o PT não seria mais hegemônico?
É para além de acreditar. É acreditar no oposto. Falava muito da Frente Única. Pensava mais como campo do que como partido. E você veja que já está se configurando um campo a partir do qual se pode reconstruir uma agenda progressista no Brasil em que o PT não precisa ter a hegemonia que sempre teve. Isso já estava no roteiro de 2010. E não há outra saída.

Há um sucessor para o Lula ou ele ainda será candidato? Hoje os movimentos de esquerda ainda o procuram, os partidos.
O Lula tem um perfil piadista. Ele falou que o Instituto Lula está parecendo o posto Ipiranga. Qualquer problema, procura o posto Ipiranga [risos]. Ninguém pode nesse momento prever quem vai suceder o Lula, e quando. A história forja os indivíduos que vão liderar processos.
Naturalmente pessoas vão assumir protagonismo, dependendo de como dialogarem com o movimento social, se souberem, como Lula sabe até hoje, sintetizar esse sentimento que muitos comungam em torno de um projeto mais generoso com o Brasil.

O que o sr. fala para as pessoas que se espantam com o grau de corrupção ou irregularidades no PT, incluindo a proximidade de Lula com empreiteiras?
A maior bênção que nós tivemos foi o Supremo [Tribunal Federal] declarar inconstitucional o financiamento empresarial de campanha eleitoral. A raiz de todos os problemas está nisso, e também nas coligações proporcionais.
Isso ficou evidente na votação do impeachment. Ninguém se vê representado por aquele Congresso. O Brasil é muito melhor do que aquilo. A direita é melhor do que aquilo. E por que houve esse encolhimento comemorativo [dos que apoiaram o impeachment]? Porque ninguém se viu representado nos vencedores do domingo.
Enfim, o PT sempre foi contra o financiamento empresarial, mas nunca teve força para mudar.

E sempre se beneficiou do financiamento empresarial.
Jogou o jogo. E quando você joga um jogo com as regras que você contesta, está sujeito a cometer os equívocos que seus adversários cometeram.

Mônica Moura, que participou do marketing de sua campanha, disse em pré-acordo de delação premiada que também nela houvecaixa dois.
Eu não sei os termos [das declarações de Moura]. Existe a campanha do candidato, sobre a qual ele e o tesoureiro têm responsabilidade. Quanto a essa, eu respondo 100%, com segurança total. O financiamento que veio dos diretórios [do PT], eu espero que estejam corretos também.

Como o sr. vê o futuro da esquerda, que hoje tem cerca de cem votos no Congresso?
Quando o PT tinha 16 deputados, se fazia a mesma pergunta. O que importa não é o número numa fotografia, e sim o filme. O PSDB está há 16 anos fora do poder.
No Brasil, esse campo ganhar quatro eleições consecutivas é o fato que um sociólogo do século passado veria como espanto, e não a possibilidade de ficar um tempo fora. Temos que relativizar um pouco. Até porque os canais de comunicação com o movimento social foram obstruídos nesse último período. Eles precisam ser desobstruídos para nós recuperarmos vitalidade de formulação.


Reprodução da Folha de São Paulo

domingo, 24 de abril de 2016

Quem deu o golpe, e contra quem?


O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.
O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.
A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.
O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer "compreendeu" esse sonho, posto que "afetivamente" nunca sentiu compromisso com os destinos do país.
Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.
A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder "comprar" todas as outras elites.
É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.
De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.
A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.
O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.
Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a "república socialista do Brasil" e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável "vocação democrática".
O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um "Brasil grande".
Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do "esquecimento" no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.
Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.
A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.
Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.
O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.
Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.
Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas "pegava mal" expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.
O discurso da "corrupção seletiva" manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso "campeão da moralidade". O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a "base popular", produto da mídia servil à elite da rapina.
A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma "boa burguesia", ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.
Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma "taxa" que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.
Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As "jornadas de junho" daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média "campeã da moralidade e da decência" contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.
Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.
Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao "sentimento de casta" que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros "partidos corporativos" lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A manipulação da "corrupção seletiva" pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto "bem comum". O troféu de "campeão da moralidade pública" passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.
Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da "justiça seletiva" ele não teria acontecido.
O Estado policial a cargo da "casta jurídica" já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma "seletividade midiática", o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a "grande pizza".
A "pizza" para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de "coragem cívica".
Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de "justiceiros" que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.


Texto de Jesse Souza, na Folha de São Paulo

Cinco centenas, mais cinco

Na última quinta-feira (21) os repórteres Artur Rodrigues, Rogério Pagnan e Avener Prado publicaram no caderno "Cotidiano" uma matéria muito reveladora sobre o Brasil atual, o Brasil de 1964, o Brasil colônia e, pelo andar da carruagem, provavelmente também sobre o Brasil de 2563.
Artur, Rogério e Avener foram ver no que deram, na Justiça, os assassinatos cometidos pelo PCC e por grupos de extermínio, em 2006. Em maio daquele ano, a facção criminosa matou 59 pessoas em São Paulo (policiais, principalmente). Em resposta, homens encapuzados saíram pelas periferias e, em dez dias, assassinaram 505 civis. Sim, quinhentos e cinco. Cinco centenas, mais cinco. E como choramos desde então, como lamentamos, como nos contorcemos pelas vítimas –de Paris, de Bruxelas, de Nova York.
Ana Paula Gonzaga tinha 19 anos e estava grávida de nove meses. Eddie de Oliveira tinha 24 anos e uma passagem pela polícia, na adolescência, por furto. Trabalhava como garçom. No dia 15 de maio de 2006, o casal foi comprar leite na padaria. Um grupo de encapuzados desceu de um carro e os matou a tiros. Antes de morrerem, Ana e Eddie conseguiram arrancar o capuz de alguns dos criminosos, reconheceram policiais do bairro e gritaram seus nomes. O vigia de um posto, que presenciou o crime, foi executado horas depois. Duas outras testemunhas jamais foram procuradas pela investigação. "Filho de bandido, bandido é", uma delas contou ter ouvido, enquanto um policial dava um tiro na barriga de Ana. O parto estava previsto para dali a três dias.
Dos assassinatos investigados pelo DHPP, 85,7% dos casos em que policiais eram as vítimas foram solucionados. Nos casos em que civis foram mortos, apenas 12,9%. Pela morte de todos os 505 civis (quinhentos e cinco. Cinco centenas, mais cinco), só três PMs foram processados. "Um recebeu a sentença de seis anos em regime semiaberto. Outro policial, condenado a 36 anos em regime fechado, continua trabalhando e faz patrulha na mesma área em que ainda vivem familiares das vítimas." O terceiro processo ainda está tramitando. O resto foi arquivado.
Quando vemos Jair Bolsonaro dedicar seu voto de impeachment a um torturador, muitos de nós acreditamos que ele seja um monstro. Uma excrescência. Um ponto fora da curva. Não, ele não é.
O deputado mais votado do Rio de Janeiro, elogiando atos criminosos perpetrados pelo Estado, subscreve ações como as execuções de 2006, assim como boa parte da população brasileira. Principalmente –e isso é o mais chocante– a parte supostamente mais esclarecida dessa população.
Como apontou Fernando Barros no blog da "Piauí" ao analisar a última pesquisa Datafolha sobre intenção de votos para presidente, "entre os que têm renda familiar mensal superior a dez salários mínimos (apenas 5% da população do país), Bolsonaro lidera a corrida presidencial. Em um dos cenários, chega a ter 23% das preferências dos eleitores mais aquinhoados".
Quinhentas e cinco pessoas assassinadas pela polícia, em dez dias. Faz dez anos. Quinhentas e cinco. Cinco centenas, mais cinco –e não é que ninguém esteja nem aí, é pior: querem botar quem aplaude os assassinos na Presidência da República.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A salvação já começou

Os petistas ainda não limparam as gavetas, mas o novo regime já começou a implantar sua doutrina de salvação nacional. O primeiro na fila de resgate é o deputado Eduardo Cunha. Depois de seis meses de manobras, ele está prestes a se livrar de vez do processo por quebra de decoro parlamentar.
A nova fase da Operação Salva Cunha foi deflagrada no domingo. Enquanto o país assistia ao show do impeachment, aliados negociavam um ponto final às investigações contra o peemedebista. A ideia é premiá-lo com uma "anistia" pelo empenho para derrubar Dilma Rousseff. "Todo mundo sabe que sem Eduardo Cunha não teria impeachment", disse o deputado Paulinho da Força. "Ele merece ser anistiado", defendeu.
Horas depois de ser chamado de "gângster", "bandido", "canalha" e "ladrão" em rede nacional, o presidente da Câmara acordou fortalecido na segunda-feira. Ontem seu aliado Waldir Maranhão levou a pizza ao forno.
Com o Congresso esvaziado, escalou um colega para anunciar novas amarras ao Conselho de Ética. Mesmo que o processo vá adiante, Cunha já tem maioria para trocar a cassação por uma pena mais branda.
Para isso, conta com a cumplicidade da oposição, que parou de atacá-lo, e do velho aliado Michel Temer, prestes a se tornar usufrutuário da faixa presidencial. O Supremo continua a lavar as mãos. O pedido para afastar Cunha está na corte desde dezembro, sem data para ser julgado.
Em outra frente, os salvacionistas articulam um enterro para o processo de cassação da chapa Dilma-Temer no TSE. No dia 13, o ministro Gilmar Mendes ressuscitou a ideia de separar as contas da presidente e do vice. "Inicialmente o tribunal tem uma posição contra a divisibilidade da ação, mas certamente agora podemos ter um quadro novo", afirmou.
O quadro novo é o PMDB no comando, sem intermediários. Como disse o correntista suíço, ao votar a favor do impeachment: "Que Deus tenha misericórdia desta nação".


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

Deus, família e minha aldeia

Bons tempos aqueles em que um manifestante podia ir à rua e exclamar apenas: "Marco Feliciano não me representa!"
Assistindo à votação do impeachment domingo à noite (17), percebi que há uns 300 "Marcos Felicianos" na Câmara dos Deputados. Era um tal de falar em Deus, cristandade, família e pecuária que me senti em outro país, em outra época, em outro universo mental.
Mas também, o que mais eu poderia querer? Pertenço à minoria das minorias, a da esquerda caviar... Humpf.
Já havia algo de errado, naturalmente, em dizer "Marco Feliciano não me representa". Claro, não é função dele. Tem de representar os seus eleitores, e ninguém mais.
Os deputados que votaram pelo impeachment não fizeram a coisa certa, a meu ver. Mas é inegável que estavam representando o seu eleitorado. Seriam traidores se aceitassem participar do jogo fisiológico encetado por Lula e Dilma nestas semanas.
Certamente, a hipocrisia foi grande quando falavam em combater a corrupção. Não querem nem podem combatê-la. Segundo a Transparência Brasil, 273 dos congressistas já foram citados na Justiça ou em algum Tribunal de Contas.
Honestidade não é o forte dessa turma. Por mais que o PT tenha exagerado com seus marqueteiros, tesoureiros, mensaleiros e petroleiros, há partes iguais de crise econômica real e anticomunismo imaginário no movimento pelo impeachment.
Isso tudo já foi dito.
Tento não desprezar a maioria dos deputados, todavia.
Na maior parte dos votos pelo impeachment, falaram de Deus, dos familiares e de sua cidade natal ou região do Estado a que pertencem.
O que isso significa? Entendo, e tenho até certa simpatia, quando mencionam a mãe, o neto, os filhos que são "a razão de minha vida". É ridículo, ibérico, sentimental, mas é o melhor que eles podem oferecer.
Num momento de grande emoção e de inegável importância política, levam à tribuna o que mais prezam no mundo; seu valor máximo é a própria família. Bandidos ou raposas, se há algo que os regenere ou explique, será o olhar, hum, dos seus entes queridos.
Que vocabulário, Marcelo! Que o leitor me perdoe esta fraqueza...
Passo a outra característica das declarações de voto.
As localidades mais variadas deste imenso país tiveram seus instantes de glória. De Poleiro das Antas a Brejal das Trevas, de Quatro Patas a Calhordina, de São Finório a Propinópolis, bases eleitorais de Sul a Norte foram invocadas em favor do impeachment.
O que isso significa? Defensor do voto distrital misto, não posso automaticamente reclamar do fato de tantos deputados se referirem a suas bases geográficas.
O problema não é que sejam eleitos, na maioria, em função de alguma referência municipal ou regional. Poderia ser assim no voto distrital misto, para baratear as eleições e tornar mais palpável o espectro das opções em jogo para cada eleitor.
Acontece que, em primeiro lugar, os partidos aparentemente não têm limites para o número de candidatos que colocam à disposição dos votantes: entre quinhentos ou mil nomes possíveis, muito eleitor vota em quem conhece, e não em quem poderia preferir.
Em segundo lugar, e este ponto não é muito lembrado, deve ser imenso o número de cidades no país que depende diretamente de verbas federais. Os gastos do governo, quando não se dirigem a grandes obras ou programas universais como Previdência ou Bolsa-Família, dispersam-se em migalhas que, a rigor, deveriam estar ao encargo dos Estados ou dos próprios municípios.
Com ministérios e órgãos federais administrando torneirinhas que pingam conforme o deputado X ou Y estende sua caneca, a regionalização, o fisiologismo, a ausência de compromissos partidários ou ideológicos mais firmes se torna inevitável.
Acredito que muitos deputados simplesmente não entendam as críticas de fisiologismo que lhes são dirigidas. Afinal, trabalham (ou seja, arranjam verbas) para suas comunidades. Precisam, além disso, de dinheiro para se eleger.
O sistema produz, portanto, esses deputados, bandidos ou não. Além de interesses paroquiais, o que mais podem defender? Ah, sim, eles também procuram algo de universal, de mais amplo em seu discurso: abrem os braços, e sem conhecer Keynes ou Milton Friedman, encontram Deus. 


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Mino Carta: "Esse é o pior golpe que o Brasil sofre"

terça-feira, 19 de abril de 2016

Gol...pe!

O primeiro gol contra Dilma Rousseff foi marcado pela Câmara dos Deputados. É obrigatório dizer que...
...Dilma Rousseff fez avançar como nenhum outro presidente do Brasil a legislação esportiva brasileira.
Além do mais, em sua gestão, nem Ricardo Teixeira, nem José Maria Marin, nem Marco Polo Del Nero tiveram o beneplácito que encontraram em todos, repita-se, todos os governos anteriores, nas duas gestões de Lula, inclusive.
Também já foi dito, aqui, Fernando Henrique Cardoso, graças à obstinação de José Luiz Portella, o "ministro do Futebol", progrediu sensivelmente, com o Estatuto do Torcedor e com a chamada Lei da Moralização do Futebol.
Antes, com a Lei Pelé, também no governo FHC, o país já experimentara passos na direção da modernização, infelizmente dados para trás pelos parlamentares da base do governo quando da regulamentação da lei.
Na gestão de Dilma Rousseff, não.
Com mil dificuldades, e frágil, o governo dela aprovou a Profut, ainda longe do ideal porque sem conseguir passar a sociedade empresária no futebol –agora com a inovadora proposta da Sociedade Anônima do Futebol, ovo de Colombo idealizado pelos advogados Rodrigo Castro e José Francisco Manssur.
O futebol brasileiro é espelho perfeito do país. Poucos se locupletam e as melhores oportunidades são desperdiçadas.
A decisão tomada na Câmara dos Deputados, presidida pelo mais notório dos parlamentares brasileiros, Eduardo Cunha, resultou na vitória do esforço escandaloso para impedir a continuidade da presidenta.
A brilhante jornalista Eliane Brum, com quem tive a alegria de cobrir a última Copa do Mundo, já escreveu que há duas coisas indefensáveis hoje no Brasil: o governo e o impeachment.
O primeiro por todos os seus erros crassos, por suas alianças espúrias que estão dando no que vemos, por suas promessas não cumpridas, pela promiscuidade com o poder econômico, enfim, por tudo que sabemos, embora nada justifique o seu impedimento, manobra feita por corruptos de todas as espécies, contra alguém sem nenhuma acusação de corrupção.
Por isso julgo obrigatório dizer que ela cumpriu todas as promessas feitas sobre a modernização de nosso esporte e será lamentável ver novo retrocesso.
Leitores que não gostam dela, e com motivos para tanto, costumam se insurgir quando leem neste espaço o que consideram impróprio para uma coluna esportiva, como se a política não permeasse todos os aspectos da vida.
Daí, agora, quase me limitar a enfatizar o quanto se perderá caso o Senado reafirme a primeira medida para a interrupção do mandato de Dilma Rousseff, sem entrar no mérito deste tapetão infame que, em vez de esperar a manifestação das urnas para eventualmente trocar o governo, indica um político sem votos, embora posto no cargo por mais um erro imperdoável do Partido dos Trabalhadores.
Não tenha dúvida de que, além de Cunha, deste inominável Michel Temer, Romero Jucá, Aécio Neves, Jovair Arantes e companhia bela, também festejarão os Teixeira, Marin, Del Nero e Carlos Nuzman, todos convidados para a mesma farra que há mais de 500 anos faz do Brasil o país da desigualdade social.
Os de boa-fé que comemoram hoje lamentarão em breve.
Que a reação não bote fogo no país.


Texto de Juca Kfouri, na Folha de São Paulo

Amanhontem

Perdoe, leitor, esse pobre cronista que vos escreve de um passado remoto. Esse é um dos problemas do jornal: tudo o que você está lendo aí foi escrito no passado –às vezes algumas horas, às vezes alguns dias. Esta crônica é ainda mais velha que o resto do jornal– tive que mandar a coluna com dois dias de antecedência porque esta "Ilustrada" fechou no sábado (16). Observe-a com atenção. Perceba suas rugas, seus buracos de traça, seu cheiro de naftalina. Já posso ver, daqui do passado, que caducou.
Nem toda crônica envelhece tão mal –a culpa é desse dia que vocês chamam de ontem e a gente aqui do passado insiste em chamar de amanhã. Esse dia –chamemo-lo de amanhontem– deve durar uns sete meses, posso apostar. O país vai parar para ver se a presidenta cai ou a presidenta fica. Não tem crônica que sobreviva a isto. Quer dizer, tem.
O cronista do passado, se fosse esperto, falaria de outra coisa. Bom, posso garantir que ele tentou. Começou a escrever sobre a tomada de três pinos, e quando viu estava esbravejando que não espanta que as pessoas queiram tanto o impeachment do governo que inventou essa tomada. Não –amanhontem isso já vai estar datado porque o impeachment já vai ter acontecido– ou não. Ia falar da Carreta Furacão –mas impossível não falar que a Carreta é pró-impeachment. Pensou em falar da patafísica –depois lembrou que a patafísica talvez evoque os patos da Fiesp. Desistiu. Essa crônica já nasceu obsoleta.
Do alto da ignorância que caracteriza os seres do passado, não faço ideia se o Congresso vai derrubar Dilma ou se vai mantê-la. A ignorância, nesse caso, pode ser uma bênção. Por isso ouçam essa alma do passado, amigos do futuro. Não importa o que aconteceu/acontecerá amanhontem. Independente do resultado da votação, perdemos, porque quem votou foram os réus. Perdemos porque entregamos o futuro do país nas mãos do pior congresso da história. Perdemos porque acreditamos numa desratização comandada pelos ratos.
Independente do resultado de amanhontem, sonho com uma segunda-feira em que os dois lados percebam que o inimigo não está do outro lado do muro que foi erguido na esplanada. O inimigo está lá dentro do Congresso, tentando tomar o poder. E tudo indica que vai conseguir.
O Brasil não está dividido. O Brasil está unido pelo repúdio a Eduardo Cunha e Michel Temer. Independente do resultado, precisamos ir para rua. Pela primeira vez, juntos.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

Penso sobre o enredo da realidade vendo o filme de jun.2013 a abr.2016

Mark Twain disse não se espantar com o fato de a realidade ser mais estranha do que a ficção: afinal, a ficção tem que fazer sentido. Uma história deve ter personagens e conflitos coerentes com o universo criado, evoluindo através de uma relação de causa e efeito até chegar a um clímax ao mesmo tempo surpreendente e inevitável.
Rick parece um homem cínico que só quer tocar o seu bar em Casablanca, sem resvalar nas turbulências da política e do amor. Mas eis que entra no boteco a belíssima Ilsa Lund, descobrimos que Rick é um ex-combatente da resistência francesa que teve o coração partido por Ilsa, o encontro reacende a chama política e amorosa e no fim Bogart, o falso descrente, tem que optar entre fugir nos braços da Ingrid Bergman ou sacrificar o romance para ajudar na luta contra o nazismo.
Se na última cena, no aeroporto, Rick matasse os nazistas com raios laser lançados pelos olhos ou o filme virasse um musical tipo "Todos Dizem Eu Te Amo", do Woody Allen, o público vaiaria: a ficção precisa fazer sentido.
Já a realidade não tem pé nem cabeça. O acaso tem um peso descomunal, infinitas causas interagindo podem resultar em infinitos efeitos, musicais viram terror, Godard descamba pra Pernalonga, personagens agem de modo contraditório, Woody Allen é acusado de pedofilia e Ingrid Bergman –vai saber?– ainda pode aparecer na Lava Jato. Tenho pensado muito sobre o enredo troncho da vida olhando para o filme estranhíssimo que leva de junho de 2013 a abril de 2016.
Treze de junho daquele ano, em São Paulo, cinco mil manifestantes de esquerda protestam contra o aumento de R$ 0,20 nas tarifas do transporte público. A Polícia Militar desce o sarrafo. Os celulares filmam a violência. Dia 17 de junho, cem mil pessoas de esquerda, de direita, de cabeça, de canela, bicicleta, bunda e calcanhar saem às ruas de São Paulo.
Algumas em solidariedade aos manifestantes do dia 13. Outras contra o governo Dilma. Outras contra o governo Alckmin. Uns com camisa do PT, outros com camisa da seleção. Uma parte da passeata vai protestar contra a Globo. Outra parte vai cantar o hino diante da Fiesp. De lá pra cá, a turma da Fiesp cresceu, o amarelo superou o vermelho, o MPL (Movimento Passe Livre) deu lugar ao MBL (Movimento Brasil Livre) e o que começou com a utopia de uma cidade para todos talvez termine com o país no bolso do PMDB.
Claro que não se pode ignorar os erros políticos e econômicos da Dilma, a corrupção, os caninos sempre afiados da oposição. Talvez, não fosse por este caminho, o governo se esfacelasse por outro.
Mesmo assim, não consigo parar de pensar: e se não tivesse existido o aumento de R$ 0,20? E se aqueles 5 mil não tivessem se manifestado? E se a polícia não tivesse descido o sarrafo? E se os celulares não tivessem filmado?
Bom, talvez assistíssemos a um governo péssimo, mas não à tragédia dos últimos meses. Tragédia, digo, não no sentido grego, pois aquelas obras tinham que fazer sentido, como sabia Mark Twain e mais ainda Aristóteles, que explicou as regras da narrativa em sua "Poética", 335 anos antes de Cristo dar o ar de sua graça e 2.351 anos antes de Eduardo Cunha e Michel Temer darem o ar de suas desgraças, ajudando o Brasil a escrever, neste domingo, mais uma página do seu enredo torto, por linhas tortas.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

domingo, 17 de abril de 2016

Outra vez

Chegamos a mais uma encruzilhada. Vem de longe a motivação mais profunda que aí nos põe: democracia não é para qualquer um, e o Brasil não tem aptidão para vivê-la. É historicamente inapto, como provam suas poucas e vãs tentativas.
A democracia exige certo refinamento. Sua difícil construção exige, para os passos iniciais que jamais completamos, algum desenvolvimento mental da minoritária camada da sociedade que detém os instrumentos de direção do todo; e, para levá-lo a resultados razoáveis, alguma qualidade moral, a que podemos até chamar de caráter, dessa camada.
A ridícula industrialização do Brasil só se iniciou de fato mais de 450 anos depois da chegada dos mal denominados colonizadores. Assim espelha bem a combinação de avareza e preguiça, mental e física, da classe que sempre preferiu, e prefere ainda, amontoar patrimônio a ter de trabalhar no possível investimento em produção, em crescimento, em inovação.
Daí os monstros de concreto que são nossas cidades, destino imobiliário dos resultados com a fácil exploração de mão de obra na lerdeza da agricultura e da pecuária, na mineração, no açúcar e no café. Depois, o máximo da modernidade, nas ações de uma Bolsa cujo número insignificante de empresas figurantes atesta a outra insignificância, a do próprio empresariado brasileiro.
Estamos na décima situação de golpe, consumado ou não, só no tempo de minha vida (e não sou o recordista nem entre os que escrevem na Folha). Apenas uma teve raízes fora da minoritária camada que dirige o todo. Foi a de 1935, quando Prestes precipitou uma quartelada desastrosa, que levou ao retorno absoluto do velho poder. Na décima, já seria para ter me acostumado. Nem de longe.
É no mínimo indecente que um processo de impeachment seja conduzido por quem e como é conduzido, já desde o seu primeiro ato como chantagem e vingança. É no mínimo indecente o conluio, com a indecência anterior, do partido que representa a cúpula social e econômica do país e, sobretudo, de São Paulo. É no mínimo indecente que, "ao se propor o impeachment sem cumprir os requisitos constitucionais de mérito" –palavras "em defesa da democracia" dos reitores das universidades federais–, se falsifique como crime uma prática contábil também de presidentes anteriores. E nunca reprovada. Por isso mesmo posta, desta vez, sob o apelido pejorativo de "pedaladas", para ninguém entender.
É tão legítima a operação do pretendido impeachment que têm sido de madrugada as reuniões em que o presidente da Câmara, na sua casa, articula tanto para derrubar a presidente como para salvá-lo no Conselho de Ética. A votação da Câmara logo mais ainda não é decisiva, se vitorioso o impeachment. Mas, até onde se percebe, deverá ser suficiente para dar início a preliminares de fermentação social que o governo seguinte, com o que pretende, só fará agravar. Até onde é a nova incógnita brasileira. O que, aliás, nem está questionado pela minoritária camada que dirige o todo. O que busca é esse domínio livre de divisão e contestação, exercido com os seus políticos de mãos falsamente limpas.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

O voto não é um detalhe

Às vésperas da Copa de 1994, o técnico Carlos Alberto Parreira declarou que o gol era só um detalhe. A frase espantou os torcedores –afinal, o gol é o momento que mais importa no futebol. Apesar de Parreira, a seleção conquistou o tetracampeonato mundial.
Na discussão do impeachment, os políticos têm falado muito em cargos, verbas, lealdades e traições. Poucos se lembram do eleitor, que expressou sua vontade nas urnas e agora vive num país paralisado pela disputa extemporânea de poder.
Na democracia, o voto não é só um detalhe. Dilma Rousseff está na Presidência porque foi reeleita por 54.501.118 brasileiros em 2014. Como diz o comentarista, a regra é clara: governa quem recebe mais votos. A interrupção do mandato presidencial é uma punição mais grave que um cartão vermelho. Só deve ser aceita no jogo quando há prova clara de crime de responsabilidade.
O impeachment não pode ser um atalho para chegar ao poder sem o voto popular. Nem por vices que desejam mudar de cadeira, nem por candidatos derrotados nas urnas. Governantes ruins devem ser enxotados pelo povo na eleição seguinte. Este era o caminho mais provável de Dilma e do PT, que cavaram juntos o buraco da recessão.
Nos últimos tempos, passamos a ouvir que o país não pode esperar até 2018. "A economia não aguenta", repetem os porta-vozes do impeachment. Curiosamente, eles não costumam perguntar se a democracia brasileira aguenta mais uma ruptura do calendário eleitoral.
Seja qual for a decisão da Câmara hoje, um dos piores legados desta crise será a ideia de que o voto não basta. Os próximos presidentes assumirão sem a certeza de que ficarão quatro anos, como estabelece a Constituição. Quando o Congresso quiser, e a maioria do empresariado apoiar, o caminho para derrubar o governo estará aberto. Encontrar uma fundamentação legal, como as pedaladas, será só um detalhe. 


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

Radicais de centro

Qualquer que seja o resultado na Câmara amanhã, é patente que o país está outra vez dividido, como em 1964. Ficaram para trás os detalhes, confusões, equívocos, tropeços e trapalhadas dos últimos 15 meses. Os polos voltam a se confrontar. Mas quem radicalizou?
Desde que a presidente Dilma Rousseff tomou a trágica decisão de adotar o programa do adversário, serrando o galho no qual estava sentada, logo após a reeleição em 2014, abriu-se período de inversões. O Executivo de centro-esquerda cortava o seguro-desemprego. Os neoliberais do PSDB votavam contra o fator previdenciário. Contudo, por forças de certas circunstâncias, o ciclo lulista de conciliação acabou, a luta de classes retornou ao centro do cenário e os atores reocupam os lugares originais.
Na contagem prévia dos sufrágios parlamentares, vê-se que o único apoio sólido que restou a Dilma está à esquerda do centro. PT, PC do B, PDT e o PSOL formam o núcleo duro dilmista. Com exceção de um ou outro partido, os demais se encontram na articulação do impeachment. A surpresa está em que coube ao pivô do centro, o PMDB, dividir as águas.
A decisão chave foi tomada pelo presidente da Câmara em dezembro passado, ao considerar aceitável pedido de impedimento frágil e insuficiente. No entanto, a ousadia do questionável Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sempre considerado ponto fora da curva no mundo peemedebista, teria ido para o lixo histórico caso outros três fatores não tivessem se acoplado. Dentre eles, o propriamente político foi a traição de Temer.
Primeiro ocorreu a inflexão da Lava Jato. Sergio Moro, face visível de sistema pouco transparente de decisões, escolheu abandonar o papel neutro de juiz para intervir no jogo partidário ao autorizar a condução coercitiva de Lula e, depois, divulgar gravação entre ele e a atual mandatária. Tornou suspeito o esforço anticorrupção realizado desde 2014, colocando-se na ponta de operação para criminalizar o PT.
O segundo fator foi a extraordinária amplitude que a televisão deu às acusações antipetistas. A partir daí, as pífias manifestações a favor do impeachment em dezembro de 2015 converteram-se nas enormes manifestações de massa de março de 2016. Nada, contudo, teria se efetivado caso o PMDB, comandado pelo vice-presidente da República, tivesse cumprido a missão conciliadora que afirma perseguir.
Em lugar de isolar Cunha e promover o acordo que Lula sempre buscou, Temer levou o seu partido à liderança do golpe constitucional que tenta afastar a alternativa popular não só do governo como da luta pelo poder. Desta vez, diferentemente de 1964, não há um Brizola, à esquerda, que se possa acusar de ter posto fogo no circo. Os centristas o fizeram.


Texto de André Singer, na Folha de São Paulo

sábado, 16 de abril de 2016

Turistas, fotografia, pedofilia e estupidez


As vezes fico pensando que, quanto mais a humanidade se desenvolve, talvez mais estúpidas algumas pessoas se tornam. Vivemos em tempos complicados onde tudo é problematizado, tudo representa algo negativo e, a verdade que criamos em nossas cabeças, é mais importante do que uma simples observação da realidade.
Quer ver um exemplo de como a coisa está indo para o fundo do poço. A história a seguir aconteceu em Southend, Essex, no Reino Unido. Era 08 de abril, uma sexta-feira, e o dia corria normal no local ((considerado um ponto turístico) quando três pessoas começaram a agir de maneira suspeita. Elas estavam em frente a uma fonte onde crianças brincavam. Essas três pessoas estavam tirando fotos, o que fez o alarme soar na cabeça das mães preocupadas.
Logo, as mães (com ajuda de outros moradores locais) cercaram os três indivíduos e deram voz de prisão para eles. Tomaram suas câmeras, seus celulares e chamaram a polícia. Uma das mães fotografou os meliantes que estavam detidos e publicou no Facebook a imagem acompanhada de um texto onde bradava para todos que eles tinham desmascarado uma rede de pedófilos na cidade. A publicação da foto, até ontem, tinha mais de 13 mil compartilhamentos na rede social. Final feliz? Não, pois isso só acontece no mundo da fantasia.
Quando a polícia chegou verificou-se, na verdade, que os três detidos eram turistas gregos, todos professores, e estavam lá fotografando a fonte, uma das atrações turísticas do local. Ou seja, na mentalidade das mamães, três pessoas fotografando um lugar turístico apinhado de pessoas só poderiam ser pedófilos. Depois de tudo explicado os turistas foram liberados, mas o estrago já tinha sido feito. Alguns comerciantes locais ficaram preocupados com o fato, pois a cidade vive de turismo e pode pegar mau acusar turistas de serem pedófilos por estarem fotografando as atrações da cidade.
Às vezes, 3 homens fotografando um local turístico nada mais é do que, simplesmente, 3 homens fotografando e não uma conspiração do mal para destruir nossas crianças.
Fonte: Telegraph.

Reprodução do Meio Bit

O governo Temer não existirá


A partir de segunda-feira (18), o Brasil não terá mais governo. Na democracia, o que diferencia um governo do mero exercício da força é o respeito a uma espécie de pacto tácito no qual setores antagônicos da população aceitam encaminhar seus antagonismos e dissensos para uma esfera política. Esta esfera política compromete todos, entre outras coisas, a aceitar o fato mínimo de que governos eleitos em eleições livres não serão derrubados por nada parecido a golpes de Estado.
É claro que há vários que dirão que o impeachment atual não é golpe, já que é saída constitucional. Nada mais previsível que golpe não ser chamado de golpe em um país no qual ditadura não é chamada de ditadura e violência não é chamada de violência. No entanto, um impeachment sem crime, até segunda ordem, não está na Constituição. Um impeachment no qual o "crime" imputado à presidenta é uma prática corrente de manobra fiscal feita por todos os governantes sem maiores consequências, sejam presidentes ou governadores, é golpe. Um impeachment cujo processo é comandado por um réu que toda a população entende ser um "delinquente" (como disse o procurador-geral da República) lutando para sobreviver à sua própria cassação é golpe. Um impeachment tramado por um vice-presidente que cometeu as mesmas práticas que levaram ao afastamento da presidenta não é apenas golpe, mas golpe tosco e primário.
Temer agora quer se apresentar como líder de um governo de "salvação nacional". Ele deveria começar por responder quem irá salvar o povo brasileiro dos seus "salvadores". Seu partido, uma verdadeira associação de oligarquias locais corruptas, é o maior responsável pela miséria política da Nova República, envolvendo-se até o pescoço nos piores casos de corrupção destes últimos anos, obrigando o país a paralisar todo avanço institucional que pudesse representar riscos aos seus interesses locais. Partido formado por "salvadores" do porte de Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Sérgio Cabral e, principalmente, o próprio Temer. Pois nunca na história da República brasileira houve um vice-presidente que conspirasse de maneira tão aberta e cínica para derrubar o próprio presidente que o elegeu. Em qualquer país do mundo, um político que tivesse "vazado" o discurso no qual evidencia seu papel de chefe de conspiração seria execrado publicamente como uma figura acostumada à lógica das sombras. No Brasil de canais de televisão de longo histórico golpista, ele é elevado à condição de grande enxadrista do poder.
Mas não havia outra chance para tal associação de oligarcas conspiradores. Afinal, eles sabem muito bem que nunca chegariam ao poder pela via das eleições. Esta Folha publicou pesquisas no último domingo que demonstravam como, se a eleição fosse hoje, Lula, apesar de tudo o que ocorreu nos últimos meses, estaria à frente em vários cenários, Marina em outros. O eixo central da oposição golpista, a saber, o PSDB, não estaria sequer no segundo turno. Temer, que deveria também ser objeto de impeachment para 58% da população, oscilaria entre fantásticos 1% e 2%. Estes senhores, que serão encaminhados ao poder a partir de segunda-feira, têm medo de eleições pois perderam todas desde o início do século. Há de se perguntar, caso fiquem no poder, o que farão quando perceberem que poderão perder também as eleições de 2018.
Os que querem comandar o país a partir de segunda-feira aproveitam-se do fato de o país estar em uma divisão sem volta. Eles governarão jogando uma parte da população contra a outra para que todos esqueçamos que, na verdade, são eles a própria casta política corrompida contra a qual todos lutamos. Diante da crise de um governo Dilma moribundo, outras saídas, como eleições gerais, eram possíveis. Elas poderiam reconstituir um pacto mínimo de encaminhamento de antagonismos. Mas apelar ao poder instituinte não passa pela cabeça de quem sempre sonhou em alcançar o poder por usurpação.
Diante da nova realidade que se anuncia, só resta insistir que simplesmente não há mais pacto no interior da sociedade brasileira e que nada nos obriga à submissão a um governo ilegítimo. Nosso caminho é a insubmissão a este falso governo, até que ele caia. Este governo deve cair e todos os que realmente se indignam com a corrupção e o desmando devem lutar sem trégua, a partir de segunda-feira, para que o governo caia e para que o poder volte às mãos da população brasileira. Àqueles que estranham que um professor de universidade pública pregue a insubmissão, que fiquem com as palavras de Condorcet: "A verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar". Chega de farsa. 


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.