domingo, 28 de janeiro de 2018

TRF-4 e Moro atribuíram a indícios o valor e as consequências de provas

Espectador do julgamento de Lula, o jurista britânico Geoffrey Robertson deixou algumas observações que, embora originárias dos procedimentos adotados na sessão, não dizem respeito só a esse caso, mas até ao próprio sistema judiciário brasileiro. Observações que têm, para a nossa Justiça, a importância esperável de um jurista de fama internacional e conselheiro da rainha Elizabeth 2ª. Ainda assim, fique dito desde logo, é improvável que a alta magistratura e o Ministério Público concedam atenção às observações de Robertson.
O interesse mais geral recai na prática de acusação e defesa. A tão comum diferença de tempo para uma e outra, em favor dos acusadores, é um desequilíbrio que, comprometendo o direito de defesa, compromete o próprio julgamento. O direito pleno de defesa, sem qualquer prejuízo ou diferença protocolar se comparada à acusação, não é apenas um princípio fundamental da Constituição. É também uma exigência da Carta Universal dos Direitos Humanos.
Entre acusação e defesa há uma ordem óbvia. A defesa só pode ser plena se, entre outras condições, conhecer toda a acusação. Essa ordem de exposições é também indispensável para a formação de votos conscientes e seguros dos magistrados, logo, para a qualidade da decisão mesma do tribunal. Como disse Robertson, o juiz precisa ouvir a acusação e, depois, o que a ela oponha a defesa, para ponderá-las e só assim formar o seu voto. A prática observada por Robertson, como poderia encontrar em outros julgamentos, foi a de julgadores chegarem com seus votos longos, semelhantes, autorreferentes -por escrito. Prontos, portanto. Mais uma vez, o jurista se sentiu "estarrecido" com isso "que é impossível acontecer na Europa".
De fato, onde fica o pleno direito de defesa? Aliás, fala da defesa para quê, se não importa nem que venha com novos dados e argumentos, porque os magistrados já chegam com suas decisões até escritas. Seus rostos podem voltar-se para o orador da defesa, mas suas fisionomias são as de quem vê um filme entediante. Com votos (e mesmo sentença) preparados antes do balanço acusação/defesa, a defesa fica, à revelia, como uma farsa judicial.
O pleno direito de defesa é vital no regime democrático. A redução de um nega a existência do outro. E o Judiciário deve ser o guardião do regime democrático prescrito pela Constituição.
No plano das observações domésticas, o desembargador João Pedro Gebran Neto foi prolífico em fornecimento de material. Ao fim de mais de três horas de confusa leitura do seu relatório, pareceu-lhe ainda haver tempo para repelir as críticas a práticas problemáticas da Lava Jato. Por exemplo, as decisões de Sergio Moro de manter presos, até capitularem, os resistentes às delações como esperadas. Marcelo Odebrecht ficou preso mais de meio ano sem ser ouvido. Até delatar, sua prisão foi esticada por mais de ano.
Léo Pinheiro, preso em novembro de 2014, conseguiu ser libertado, mas foi preso outra vez em setembro de 2016 e preso ficou. Assim sendo, não é estranho que o negócio de Lula com o apartamento, como é descrito por Moro e pelos três desembargadores, se baseie na delação afinal aceita pelo ex-presidente da OAS. Ao qual os desembargadores Gebran Neto e Leandro Paulsen até elogiaram.
O relator Gebran disse não ser verdadeira a prática de prisão extorsiva. Sim, os numerosos presos da Lava Jato até se renderem são indícios, só. Mas os desembargadores Gebran, Paulsen e Victor Laus, o juiz Sergio Moro, o procurador Deltan Dallagnol e seus colegas atribuíram explicitamente a indícios, até aos mais duvidosos, o valor e as consequências de provas.


Reprodução de texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Aos poucos e discretamente, acabou sonho palestino de Estado próprio

Passo a passo, sem que explodam manchetes a respeito, acabou o sonho palestino de ter Estado próprio.
O mais recente prego no caixão dessa já remota esperança veio na terça (16), quando Donald Trump anunciou que cortou pela metade a verba à agência da ONU que cuida dos refugiados palestinos.
Cria "a mais severa crise de financiamento na história da agência", segundo o porta-voz da organização, Chris Gunness.
Ela cuida de cerca de 5 milhões de refugiados palestinos, atendendo saúde, educação e alimentação. Logo, "cortar verba para comida e educação para refugiados vulneráveis não proporciona um duradouro e abrangente processo de paz", comentou o governo palestino.
Antes do corte, outro prego importante já havia sido martelado no caixão do diálogo: no fim do ano, o Comitê Central do Likud, principal partido governista de Israel, votara para estender a jurisdição de Israel aos assentamentos na Cisjordânia.
"É um prelúdio para a anexação", analisou Steven Cook, especialista em Oriente Médio e África do Council on Foreign Relations.
De fato, se a Cisjordânia é um território que a comunidade internacional reservou para os palestinos, como parte de seu futuro Estado, não faz sentido que valha para ela a legislação israelense. A menos que Israel pretenda anexá-la.
A análise de Cook coincide com informações que os palestinos repassam a jornalistas, depois de recebê-las de interlocutores egípcios e sauditas: o plano de paz que Trump diz repetidamente que está preparando incluiria criar cantões desconectados na Cisjordânia, com um governo supramunicipal e atribuir a Abu Dis, nos confins de Jerusalém, o caráter de capital palestina.
Esse pedaço de território poderia, ainda por cima, "ser vinculado a uma Jordânia vulnerável e que não o quer", na versão de David Gardner no jornal britânico "Financial Times" desta quarta-feira (17).
Morreria, pois, o sonho palestino de um Estado próprio que, porém, tem o respaldo da legalidade internacional: em 1948, a ONU determinou a criação de dois Estados na área, Israel e o que seria a Palestina.
É verdade que os países árabes não aceitaram Israel, foram à guerra e perderam. Esse fato não muda a determinação da ONU, seguidamente reafirmada, de dois Estados.
O problema é que nenhum país tem força suficiente para impor a Israel a solução internacionalmente reconhecida. Os EUA desde sempre —e mais ainda com Trump— sempre respaldaram Israel, ao passo que os palestinos recebem apoio apenas retórico do mundo árabe e do Ocidente em geral.
Depois que Trump reconheceu Jerusalém como capital de Israel, Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina, resolveu decretar que os EUA estão fora do jogo no processo de paz, que, aliás, é um cadáver insepulto.
Vale, pois, o comentário para o "Guardian" de Ian Black (Centro do Oriente Médio da London School of Economics): "A solução dos dois Estados para o conflito com Israel tem tido um longo desfalecimento. Mas o discurso de Abbas poderá ser visto algum dia como o seu epitáfio".


Texto de Clovis Rossi, na Folha de São Paulo

domingo, 14 de janeiro de 2018

O desespero e a graça

No escritório de Carlos Heitor Cony, perto do computador, havia duas pequenas reproduções de Goya. Uma correspondia à fase mais atormentada do pintor: embrulhadas em roupas negras, bruxas se acocoravam contra um céu de chumbo.
Ao lado, uma cena galante de arlequins e cortesãs, num parque ensolarado e verde-claro, fazia lembrar que o artista espanhol tivera seu fastígio em pleno século 18, antes que a brutalidade das invasões napoleônicas modificasse sua visão de mundo.
O primeiro quadro, dizia ele, "são meus romances". O segundo, "as crônicas".
De certo modo, Cony aceitava a opinião tradicional, que associa a crônica a um texto sorridente, descompromissado e ligeiro.
morte de Carlos Heitor Cony priva o país, e a Folha, de um mestre absoluto do gênero –e de um escritor cujo profissionalismo jamais permitiria infringir abertamente as regras prescritas pela convenção.
Seus textos para o jornal foram, portanto, deliciosos de ler, arejados, com um leve perfume de poesia que ele dosava à perfeição.
Mas acontecia de as sombras grotescas das feiticeiras de Goya cruzarem sua memória no meio de uma frase –para serem afastadas num gesto quase que de mau humor, com o qual Cony recuperava a graça exigida pelo gênero jornalístico.
Depois de deixar o seminário, ele se impregnou da filosofia existencialista. Sartre e Camus abriram sua sensibilidade para o absurdo e para a absoluta solidão do indivíduo nas suas escolhas morais.
Pego, meio ao acaso, uma crônica de Cony. Chama-se "Acidente de percurso da química e da gula". Começa assim:
"Não sei bem por que, mas eram considerados primos. Em algum ponto havia uma bifurcação genética e os Almeida da Silva tinham alguma coisa a ver com os Moraes, nossa família materna."
O registro, claro, é o da memória, cotidiana e doméstica. Não se trata, contudo, de recuperar o passado. O narrador não se lembra bem do parentesco; na verdade, nunca soube –e sugere que isso não tem importância.
Surge então o detalhe, este sim memorável: naquele ramo da família havia seis mulheres. "Casaram-se no devido tempo, um dos maridos mexia com produtos químicos, daí que todos eles receberam a classificação coletiva de 'Químicos'".
Apesar de característico, o traço mantém certa imprecisão: "no devido tempo" (quando?), "um dos maridos" (qual?), "mexia" (vendia? Fabricava?), "produtos químicos" (de que tipo?).
Pouco importa. O fato de serem chamados de "químicos" não interfere em nada no desenvolvimento da história, que se concentra no fato de que esses parentes eram "vorazes".
"A especialidade deles", continua Cony, "era frequentar festas em que havia bufê." O líder do grupo, chamado Eurico, vivia da renda de "cinco casas no Cachambi". Dormia "até tarde e, à tarde" (note-se o falso descuido ao repetir a palavra), "gostava de Vicente Celestino e empadinhas de camarão".
Nada disso, parece dizer Cony, tem importância ou razão de ser. Vivemos num universo em que as coisas são simplesmente assim. Poderiam ser quatro casas, poderiam ser em outro bairro, poderia ser outro cantor, poderia ser outro salgadinho. Nada disso modifica nada.
A turma fica sabendo de um casamento rico, mas o convite por escrito não veio. A festa seria na casa de um "comerciante de queijos" na rua Sacadura Cabral. Ou seria em outra rua? Talvez a Gago Coutinho?
Naquele mundo arbitrário do texto, em que um detalhe poderia ser outro qualquer, eis que a imprecisão, a falta de motivos para que algo seja o que é, contamina os próprios personagens –também eles se confundem no específico, trocam uma coisa por outra qualquer.
Terminam parando no lugar errado –e batem à porta (outro acaso inexplicável) de um poeta famoso nos anos sessenta, menos pelo talento do que pelo engajamento político: Thiago de Mello, que organizara uma recepção a outro poeta, um chileno chamado Juvêncio Valle.
A noite transcorre com o chileno recitando versos sobre "a libertação dos povos da América Latina e dos povos afro-asiáticos". Quando acaba o último poema, "Thiago de Mello mandou buscar umas pizzas numa padaria no Largo do Machado".
E a crônica termina nessa frase, como se nenhuma conclusão fosse possível.
Cony é um artista do anticlímax.
O senso lírico da desimportância de todas as coisas se traduz, para Cony, em absurdo, em falta de sentido. Sua ironia não é doce, como em tantos outros cronistas: é no desespero que ele encontrou a sua graça.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, a respeito de Carlos Heitor Cony, recentemente falecido. 

'Consciência do que fazia era absoluta', diz Janio de Freitas sobre amigo Cony

Aberta a grande porta, o saguão do seminário foi invadido pela rumba "Siboney", mandada do outro lado da rua pelo comitê de um candidato à Presidência. Mas o som do mundo a recepcionar o já ex-seminarista também podia ser a marchinha carnavalesca "Jardineira". Ou o samba "Implorar". Ou outro. A depender da ocasião em que a cena era descrita por seu protagonista.
Em 1945 também não houve campanha presidencial, a ditadura de Getúlio só foi derrubada em outubro. Datas, situações, fatos podiam ficar sob a rubrica "rigor histórico". Nenhuma memória valeria a imaginação de um pormenor ou de um fato capazes de dar dramaticidade, sabor original, um toque literário que fosse, à realidade insatisfatória. Conter o impulso ficcionista, quando obrigatório fazê-lo, parecia revoltante a Cony, uma repressão ao privilégio da sua fertilidade imaginosa.
Há uma diferença essencial a ser observada, sempre, nas rebeldias ficcionais de Cony contra a memória dos fatos e mesmo contra fatos. Cony não inventava, no sentido de uma elaboração. Sua fonte não era a má-fé. O fictício lhe ocorria, jorrava, nada mais que isso, e ganhava a sua certeza com uma convicção capaz até de provocar atritos e mágoas.
Em crônica na Folha, um momento de nostalgia levou-o a falar das saídas juntos do "Correio da Manhã", sempre alta noite, dele, Antonio Callado, Luiz Alberto Bahia e eu. Deixei passar, mas logo fui indagado sobre aquelas noites e companhias, e pressenti mais um equívoco a caminho. O quarteto podia ser um trio: nunca trabalhei com Callado e Bahia.
Imprecisão irrelevante, não era o caso de correção. Bastaria informá-lo. Mas foi impossível convencer Cony de que me lembrava bem de onde trabalhei e em que época. Sua certeza de minha presença incluía, além de conversas, caronas no seu carro até minha casa. Nada mais a discutir. Nunca o vi aceitar com naturalidade uma observação, de quem quer que fosse, sobre divergências suas com a memória alheia. Ficção e realidade eram uma coisa só.
Nem por isso soube que guardasse por muito tempo alguma zanga da sua sensibilidade. Exceto, talvez, pelo que foi ou seria o boicote ao seu romance "Pessach".

Mas, no caso, o ressentimento não era de pessoas determinadas e, sim, do Partido Comunista. Comunistas ligados à cultura negaram o boicote. Ainda, porém, que Cony pudesse ter uma visão desproporcional de parte da história, tinha razão quanto à discriminação aplicada ao seu livro, publicado paralelamente ao "Quarup" de Callado.
O episódio com "Pessach" mostrou a muitos um Cony desconhecido. Emergia ali, do Cony ameno, bem-humorado, ótimo de conversa, um Cony áspero, rijo, inabordável. Grosseiro até, como o próprio caso era. E muito emocional.
Fui dos que se enganaram com o seu temperamento, embora anos antes. Indefinido politicamente, Cony me pareceu o mais adequado para uma seção, "Diálogo", que decidi lançar no "Correio da Manhã", para diálogo mesmo com leitores missivistas. Eram tempos de radicalidade política muito maior que a atual, embora sem o ódio público do país embrutecido de hoje em dia.
Errei na escolha. As respostas para a seção inaugural eram de violência assustadora. Jornal não publicava carta de leitor fascistoide insultando jornalista gratuitamente nem achava que jornalista tem que engolir insulto. Foram dias de seção a ser reescrita e de cuidados nas relações. Comecei a desvendar ali uma violência refreada que me explicava algo para mim intrigante na literatura do escritor Cony de até então: a violência subjacente.
A mesma carga esteve, sob outra forma e outro propósito, nos artigos de Cony seguintes ao golpe de 64. Ainda há quem atribua esses escritos a uma dose descontrolada de irresponsabilidade do autor. Estive muitas vezes com Cony naqueles dias, conversando sobre artigos escritos e a escrever. Sua consciência do que fazia, do que sentia necessidade pessoal de fazer, era absoluta. E, enfim, mais forte do que a impulsão do ficcionista.
Os anos que passou, como dizia, sem escrever, na verdade foram sem publicar sua literatura. Certa vez o admitiu, para nunca mais. Avião o incomodava, e suponho que por isso falasse muito em nossas idas e vindas de reuniões em São Paulo.
Tinha muita coisa escrita, sim, e parte dela começava a ser aproveitada —como se pode notar em trechos de um ou outro romance da sua "volta". Mas esse não era um assunto de que gostasse. Parecia preferir conversas sobre outros autores. Aos novos, aliás, tratava com farta generosidade.
Em toda a história da Academia Brasileira de Letras, Cony foi o único autor de quatro discursos de admissão —três de posse, incluída a do próprio, e um de recepção. Nem seus colegas de fardão sabem disso, a não ser os que só entraram com o nome. 


Janio de Freitas, na Folha de São Paulo, a respeito do recentemente falecido colega Carlos Heitor Cony.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O mundo está perdido: até a mudança faz o elogio da mesmice

O respeito às tradições, sempre defendido pelo pensamento conservador, seria mais simples se as tradições não fossem tão arbitrárias, contraditórias e passageiras.
Muita gente ainda acha que homem nasce homem, mulher nasce mulher e ponto final –qualquer mudança nesse programa é invencionice, coisa de quem defende a "ideologia de gênero" e pretende "ensinar o homossexualismo".
É curioso notar que, em tempos mais ordeiros, como a época vitoriana, havia o costume de tirar fotografia de garotos pequenos com roupinha de mulher.
Reconheço que terá sido mais uma moda que uma tradição, mas em todo caso a ideia deveria causar arrepios numa sociedade em que os papéis masculino e feminino se demarcavam com nitidez.
Imagino que a criança pequena (até uns dois ou três anos) fosse considerada mais ou menos sem sexo; o primeiro corte de cabelo, eliminando os clássicos cachinhos, talvez funcionasse como um ritual de passagem.
Com meu pai, nascido em 1915, fizeram um retrato desses, de vestidinho rendado. Ficava em cima de um aparador, logo na entrada de casa, sem que ninguém me explicasse aquele estranho travestismo infantil.
Não sei que consequências isso terá tido na história da minha sexualidade. Aquilo era o que era, e não se questionava demais a influência dos "maus exemplos" sobre a masculinidade, ou a falta dela, na psicologia de quem quer que seja.
Um problema do conservadorismo é o de idealizar os tempos antigos sem conhecê-los realmente. Defende-se a permanência de velhos costumes, mas isso é mais difícil do que se imagina.
É que os velhos costumes perdem uma coisa essencial quando se torna necessário defendê-los. Perdem a inocência que tinham. Existiam sem porquê.
Na medida em que se impõe uma argumentação, estúpida ou razoável, em sua defesa, o ambiente já foi, por assim dizer, "corrompido". Já está em curso o questionamento, a dúvida, a contestação.
Como consequência, o conservador fica em desvantagem desde o início. Passa a jogar segundo regras que não eram as da tradição. Pois a tradição, em seu vigor e eficácia plena, existia sem debate. Entrar no debate já é ser mais moderno do que se gostaria.
Progressistas ou conservadores, de todo modo, chegam muitas vezes atrasados. Modas, costumes e instituições parecem surgir e modificar-se como que sozinhas, debaixo de todos os narizes.
Desapareceu, assim, a coisa de vestir meninos com vestidinho de renda. Vai desaparecendo (espero) o sistema de vestir irmãos gêmeos com roupas iguais.
Sempre achei "perigosíssimo" esse costume. Se fosse pai num caso desses, tentaria sempre diferenciar ao máximo a Jéssica da Jennifer, o Paulo Mário do Mário Paulo, e o Gilbert do Dilbert.
Antigamente, parece que a semelhança dos gêmeos deveria ser mais celebrada do que vencida. A individualidade talvez contasse menos do que a mágica duplicação dos filhos sob a autoridade familiar.
Enquanto isso, tenho visto nestes dias de fim de ano –em que minha frequência aos shoppings se intensifica– um fenômeno paralelo: o das mães que parecem irmãs das filhas.
Por um lado, isso é bom. Significa que as mulheres de 40 anos ou mais estão com aparência cada vez mais jovem, graças à ciência cosmética e ao esporte. Tenho medo de que, ao mesmo tempo, as meninas estejam cada vez mais velhas, aparentando 20 anos quando têm apenas 11.
Nada é estável nesse campo; durante séculos, meninas de 14 ou 15 anos se casavam e viravam mães sem que ninguém se escandalizasse com a pedofilia.
É inegável, em todo caso, que o combate à pedofilia seja paralelo a uma crescente dissolução das diferenças de comportamento, informação e vestimenta entre quem tem 12 ou 30 anos.
Agora, vi em algumas vitrines de shopping um sinal de que as coisas vão longe demais. Agora há roupas idênticas à venda, para que mães e filhas pequenas saiam às ruas como as gêmeas de antigamente.
Será que está em curso uma ideologia excessivamente igualitária, pressupondo que mães e filhas sejam equivalentes em poder, em direitos e em autoridade? Não, isso seria insustentável.
Talvez o contrário: a mãe quer manter seus privilégios de filha, dizer-lhe "não chateia, vou brincar e dormir tarde", quando a criança impõe um mínimo de ordem e disciplina.
Ou então, quem sabe, as duas brincam de boneca –criando cada qual sua imagem duplicada. Um narcisismo recíproco, portanto. Senhores e senhoras, o mundo está perdido: até a mudança faz o elogio da mesmice. 

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo