terça-feira, 15 de agosto de 2017

A razão em Pascal tem por objeto o reconhecimento da desmesura

"Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir e Outros Escritos de Ciência, Política e Fé" é uma coletânea de textos de Blaise Pascal enfim traduzidos e editados em português em edição cuidadosa de Flávio Fontenelle Loque (Autêntica, 192 págs.).
Juntamente com os "Pensamentos e as Cartas Provinciais", ele fornece os textos principais de um dos mais impressionantes pensadores do século 17 em sua articulação cruzada entre matemática, política radical e teologia.
Filósofo ligado ao jansenismo e sua articulação entre rigor moral, crítica de si e insubmissão política, Pascal fornece, nesses escritos, os eixos principais de sua experiência intelectual. É evidente aqui sua maneira de levar o que o que chamaríamos atualmente de "problemas epistemológicos" a se desdobrarem em afirmações de claras consequências metafísicas.
Tomemos, por exemplo, o manuscrito que abre a coletânea, a saber, "Do Espírito Geométrico". A princípio, pode parecer estarmos diante de um clássico texto no espírito protoiluminista daqueles que afirmarão serem as matemáticas e a geometria o modelo racional de apreensão de um modo desencantado.
No entanto, o verdadeiro objeto de tais elaborações paulatinamente vai se descortinando. Pascal luta contra aqueles que querem, por meio da razão, assegurar a inexistência do infinito, como aqueles que asseguravam que o espaço podia ser dividido em duas partes indivisíveis, em vez de assumir o princípio de uma divisão ao infinito, de uma aceleração ao infinito, de uma diminuição ao infinito. Não há geômetra, dirá Pascal, que não creia ser o espaço divisível ao infinito. Crer nisso seria como crer em um "homem sem alma".
A analogia é mais sugestiva do que parece. Através do infinito, a razão expressa a existência do que o entendimento não alcança. Ela ultrapassa o que o entendimento não concebe. A geometria permite, assim, "admirar a potência da natureza nessa dupla infinidade [do infinitamente grande e do infinitamente pequeno] que nos circunda por todos os lados".
Tal existência pode ser reconhecida não pela sua apreensão sensível, mas devido à compreensão da falsidade de seu contrário ("há o que é espacialmente indivisível").
Ou seja, a razão em Pascal tem por objeto o reconhecimento da desmesura. O infinito matemático é uma astuta porta de entrada ao reconhecimento de realidades infinitas que nos atravessam e nos circundam por todos os lados.
"O silêncio desses espaços infinitos me apavora", dizia Pascal em seus "Pensamentos". Inicialmente, parece que estamos diante da afirmação de que a passagem do mundo fechado da física aristotélica, com seus lugares naturais e qualitativamente distintos, ao universo infinito próprio dos espaços ilimitados e homogêneos da física galilaica teria silenciado todo finalismo e toda teologia.
Daí porque "esses espaços infinitos" pareceriam silenciar um mundo que então cantava a glória e o necessitarismo finalista da criação de Deus.
De fato, Pascal não cansará de afirmar, na aurora da modernidade, que entrávamos na era de um "Deus escondido" que não se faz ver como o Sol ao meio-dia.
Mas ele era escondido e silencioso não porque entrávamos em um mundo desencantado, no qual a natureza aparecia como uma máquina cujas relações de causalidade lhe seriam completamente imanentes.
Deus se silenciaria a partir de então porque, em espaços infinitos –e esta é uma das consequências principais do pensamento pascalino–, é impossível eliminar a realidade ontológica do acaso. Espaços infinitos têm relações e implicações possíveis infinitas, o que é outra forma de dizer que neles o acaso não pode ser eliminado. O que silencia Deus não é a força explanatória da ciência, mas o reconhecimento da irredutibilidade do acaso.
Mas o acaso silencia tanto Deus quanto os reis. O que faz de alguém um rei, dirá Pascal, não é lei natural alguma, mas uma sucessão inumerável de acasos que o poder procura esconder como o mais profundo de seus segredos.
Pois o acaso destitui a naturalidade da autoridade e coloca os reis em uma condição de "perfeita igualdade com todos os homens". Para alguns, isto é ainda mais apavorante do que o silêncio desses espaços infinitos.


Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Como homens e mulheres superam a dor de uma separação?

Observei algumas diferenças de gênero marcantes nas minhas pesquisas. Muitas mulheres "ruminam" durante meses, às vezes anos, as possíveis causas da separação. Elas se sentem angustiadas, deprimidas, fracassadas e, principalmente, culpadas por não terem conseguido manter o relacionamento. "O que eu fiz de errado? O que eu poderia ter feito diferente? E se eu tivesse agido de outra forma?"
Já alguns homens parecem superar mais facilmente o fim de uma relação de duas maneiras: bebendo com os amigos e encontrando rapidamente um novo amor. Eles não se sentem responsáveis pela separação. A culpa é sempre dela: "Ela reclamava de tudo! Ela estava sempre insatisfeita! Ela cobrava e exigia demais! Era o tempo todo DR!".
Eles querem minimizar ou anestesiar a dor, enquanto elas maximizam o sofrimento em um luto interminável.
O processo feminino de superação é muito mais demorado, verbalizado e compartilhado, especialmente com as amigas.
Elas procuram refletir sobre os possíveis erros, para não errarem novamente. E também preferem cicatrizar as feridas antes de buscarem um novo amor. Algumas resolvem investir em novos projetos de vida para se sentirem mais fortes: estudar, trabalhar, viajar, cuidar do corpo e da saúde, reformar a casa etc.
Apesar de agirem de formas diferentes, eles e elas revelam que uma coisa é certa: um dia a dor acaba. Por mais clichê que possa parecer, o tempo é o melhor remédio. Saber que vai passar, mesmo que demore muito, ameniza bastante a dor de uma separação.
E, como me contaram, apesar de todo o sofrimento, a separação pode ter sido a melhor coisa que aconteceu em suas vidas. Muitos encontraram um novo amor, mais saudável, equilibrado e feliz, com mais risadas e menos brigas. Outros fizeram viagens incríveis ou investiram em um trabalho mais interessante, por se sentirem mais livres para assumir novos desafios. Alguns descobriram que é possível, sim, ser feliz sozinho. E que a pior solidão é a solidão a dois.
Para lidar com o sofrimento inevitável de uma separação, aprendi que a melhor saída é repetir o seguinte mantra: "Acabou! Posso sofrer, posso chorar, mas, mais cedo ou mais tarde, vai passar!".


Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

O Silêncio

Há algo de instrutivo no ritual que o Congresso Nacional ofereceu ao país na última quarta-feira, quando um ocupante do cargo da Presidência, gravado em situação flagrante de prevaricação e corrupção passiva, formalmente denunciado pela Procuradoria Geral da União, foi poupado.
É difícil imaginar algum país no mundo que chegaria a um espetáculo tamanho de degradação comandado por uma casta de políticos dignos de filmes de gângsteres série B. Ao menos, depois dessa confissão de desprezo oligárquico pela opinião pública, quem sabe agora parem de falar que estamos em uma "democracia".
Enquanto o país assiste a universidades públicas suspenderem as aulas por se encontrarem em situação falimentar, serviços públicos entrarem em deterioração, agências de pesquisa decretarem estado de calamidade e 3,6 milhões de pessoas saírem da classe média baixa em direção à pobreza, o ocupante do trono da Presidência, único presidente da história brasileira a ser denunciado pela Justiça no cargo, gastava milhões de reais em suborno explícito de deputados, uso de cargos públicos para aliciamento de votos e liberação de emendas escusas a fim de garantir sua sobrevida.
Ou seja, bem-vindos a uma cleptocracia que agora não faz nem sequer questão de conservar as aparências. Há algo de terminal quando até mesmo as aparências já não são mais conservadas. Tudo isso com o beneplácito daqueles que dizem que o país precisa, afinal, de "estabilidade".
Com se vê, há algo de muito interessante no conceito de "estabilidade" que circula atualmente. Uma estabilidade da pauperização, da precarização do emprego, do desmonte dos serviços públicos e da redução final da república brasileira a uma farsa macabra.
Contra isso, há aqueles que falam que receberam uma "herança maldita" do governo anterior. Alguém deveria explicar essa repetição compulsiva que nos acomete. Vivemos em um país onde todo governo usa o expediente de culpar a herança maldita do anterior para mascarar sua própria impotência. O cômico é que eles sempre encontram alguém a continuar a vociferar a mesma estratégia surrada de sempre.
Mas o que pode realmente impressionar alguns é o silêncio com que este momento foi recebido por setores da sociedade brasileira ou, antes, os expedientes que vemos para justificar a passividade. Por que as ruas não queimam, perguntam?
Ao menos três fatores deveriam ser levados em conta aqui.
Primeiro, porque estamos falando de um governo que atira em manifestantes em toda impunidade, como vimos na última manifestação de greve na Esplanada dos Ministérios. Ele usa seu braço armado para cegar estudantes com bala de borracha, atemorizar a população nas ruas com sua polícia gestora da desordem, ameaçar com punições os que entram em greve e ridicularizar o fato de 35 milhões de pessoas pararem o país (como na última greve geral). Ou seja, boa parte das pessoas não sai às ruas porque elas têm medo da violência do Estado, já que elas tacitamente sabem que não têm mais garantias alguma de integridade.
Segundo, porque há um setor da sociedade brasileira que nunca teve problemas com corrupção, mesmo que tenham saído às ruas em 2015 falando o contrário. Eles sempre votaram em corruptos notórios e continuarão fazendo isto. O único problema deles era com o governo anterior. Derrubado o governo, todos eles voltaram para casa e continuarão lá para todo o sempre.
Por fim, não há ninguém nas ruas porque a esquerda brasileira entrou em colapso. Presa entre a tentativa de ressuscitar o que morreu e a incapacidade de encontrar outra forma de incorporação genérica de sua multiplicidade de demandas em um ator político unificado, ela encontra-se paralisada e sem capacidade de dizer claramente o que quer, qual seu horizonte.
Queremos simplesmente retornar ao passado recente, conservar o que está sendo desmontado, ou temos algo a mais a propor? Conseguiremos fazer a maioria da população brasileira sonhar e acreditar em sua própria força de transformação e luta ou empurraremos todos a um horizonte desinflacionado de mudanças, como se isso fosse a expressão de um realismo duro, porém pretensamente necessário?
Sem clareza acerca desses pontos, ninguém avançará um passo.


Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

A família sem linguagem

Era uma casa pequena demais pra tanta doença, mas o que seriam das noites em torno da mesa não fosse a rica profusão de mal-estares? Não era a comida ou o amor, mas sim (o absurdo prazer em relatar) o incômodo físico que os mantinha vivos, falantes e unidos.
Dona Nelma sofria de um suco gástrico mordaz que lhe causava amigdalites, aftas e algumas falsas suspeitas de infarto. Seu Alcides tinhas dores espalhadas pelo corpo todo e colecionava médicos e seus diferentes diagnósticos: fibromialgia, neuropatia, artrite reumatoide. Danilinho, o filho mais velho, estava tranquilo vendo TV quando começava a se tremelicar inteiro e ter medo de morrer. Desde muito novo lhe entucharam anticonvulsivantes, mas jamais lhe perguntaram o que ele sentia.
Drica era o ET da família, pois quase nunca ficava doente. Porém, muitas vezes cansada de não receber nenhuma atenção nos jantares, de ser preterida até mesmo pelo idoso e cardíaco cachorro Arthur (recentemente tratando mazelas renais), deu graças a Deus quando seu corpo inteiro foi tomado por manchas vermelhas que ardiam e coçavam. Algumas, pra sua alegria, viraram feridas com pus. Drica agora tinha lugar à mesa.
Pobre novela ou "Jornal Nacional", querendo competir com as manchetes hospitalares e laboratoriais da família Teixeira. Eles salivavam pelo momento mais esperado do dia: a competição "hoje eu tô pior que vocês". Eram viciados no jogo da insalubridade. Danilinho e mais uma tomografia que nunca descobria nada. Seu Alcides e mais uma ressonância inconclusiva. Nelminha e sua descrença nesses médicos "de hoje" que nunca resolviam seu problema. Drica, mangas compridas mesmo no verão, estava no terceiro tratamento e, em seu íntimo, torcia para piorar. A solidão, o não pertencimento, eram piores do que a psoríase, transformadas por suas unhas angustiadas em chagas abertas.
O que teria acontecido se Danilinho tivesse espaço, naquela casa, para falar sobre o medo de crescer, o medo de ser bissexual e a necessidade de trancar a porta do quarto, às vezes, para poder ser apenas jovem e não um objeto eterno de afago tóxico de uma mãe que não suportava carregar sozinha o inferno dentro do esôfago?
O que teria acontecido se seu Alcides tivesse feito as viagens que planejou, construído as casas que desenhou, ido embora por alguns dias, com o carro que durante tanto tempo guardou dinheiro para ter? Seus membros talvez não gritassem histericamente o peso insuportável da imobilidade, seus nervos não inflamariam tanto, motivados por uma febre raivosa "de tudo que ele poderia ter sido".
O que seriam das tórridas biles descontroladas de dona Nelma se ela pudesse colocar em palavras organizadas (ou em ação despudorada) o desejo de trepar com todo homem que passasse na rua menos com o egoísta descortês com quem divide a cama há mais tempo do que lhe parece tolerável? Que fim levariam as sensações de "facadas na boca do estômago" se ela pudesse empunhar sua arma em objeção às chatices da vida e das convenções e não mais contra as suas fantasias?
Se a família Teixeira pudesse falar, soubesse falar, tivesse a coragem de falar, o que seria da indústria farmacêutica, dos planos médicos, da máfia dos mil exames computadorizados e desnecessários, dos médicos ignorantes que tratam carniças e carcaças e não crianças assustadas em corpos envelhecidos apenas pelo tempo?
Drica passou o rodo na firma e sua única coceira agora é da candidíase. Está bem melhor.


Tati Bernardi na Folha de São Paulo

Ainda e Sempre

Sergio Moro vai tentar, até o fim da vida, explicações para a divulgação ilegal das gravações ilegais com a então presidente e Lula. Volta agora à do começo: "As pessoas tinham o direito de saber a respeito daqueles diálogos". Mesmo que fosse o caso, o juiz Sergio Moro não tinha e não tem o direito de transgredir a lei, como fez em dose dupla. Impunemente -o que deveria incomodar quem vive de punir os outros.


Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Jeanne Moreau, símbolo do cinema francês, morre aos 89 anos

Jeanne Moreau, símbolo do cinema francês, morre aos 89 anos

Musa da Nouvelle Vague foi encontrada morte em sua residência em Paris
Jeanne Moreau, uma das atrizes mais emblemáticas do cinema francês e musa da Nouvelle Vague, faleceu em Paris aos 89 anos, informou nesta segunda-feira seu agente.
Moreau, que atou em mais de 100 filmes ao longo de uma carreira de 65 anos, incluindo "Amantes" de Louis Malle, "Jules e Jim" de François Truffaut e "O Diário de uma Camareira de Luis Buñuel, foi encontrada morta em sua residência na capital francesa, afirmou a prefeitura de seu distrito.
De acordo com várias fontes, o corpo foi encontrado na manhã desta segunda-feira por uma pessoa que trabalhava na limpeza da casa. "Se foi uma parte da lenda do cinema", afirmou a presidência francesa em um comunicado, que descreve Moreau como uma mulher "livre, rebelde e a serviço das causas nas quais acreditava".
Seu talento, beleza e voz profunda fascinaram grandes cineastas, incluindo Luis Buñuel, Orson Welles e Wim Wenders.
Em 1998 recebeu um Oscar honorário pelo conjunto de sua carreira das mãos de Sharon Stone. Dez anos depois recebeu um César honorário, o grande prêmio do cinema francês.

Reprodução do Correio do Povo