quinta-feira, 26 de abril de 2012

STF vota hoje a constitucionalidade das cotas contra o racismo brasileiro

O sistema do mérito, numa situação de falta de equivalência de oportunidades de preparação, é um sistema de hierarquia social que reproduz a desigualdade dominante favorecendo a minoria privilegiada.
Quase toda contestação da validade das cotas raciais revela um racismo mal-dissimulado e um desejo explícito de manutenção de favorecimentos encobertos pela falácia do mérito.
Não há mérito límpido em se se vencer uma competição para qual a qual o oponente não pôde se preparar em condições equivalentes, adequadas, justas, legítimas e paritárias.
O sistema do mérito é uma ilusão de ótica que favorece o ilusionista.
A crítica às cotas parte de um falso universalismo abstrato de valores em defesa de privilégios concretos: as melhores vagas, das melhores universidades públicas, especialmente dos seus mais concorridos cursos, reservadas para os mais aquinhoados, oriundos das famílias mais abastadas e das melhor escolas privadas.
Salvo exceções
Sempre há exceções.
Inclusive em se tratando de escolas públicas.
O Brasil poderia não ter cotas se:
1) Não fosse racista
2) Proporcionasse vaga no ensino superior para todos que fosse aprovados num exame de saída do ensino médio
3) Melhorasse radicalmente o ensino médio e fundamental.
Como não faz e não fará isso tão cedo, precisa compensar aqueles a quem deve depois de séculos.
Como dizia Joaquim Nabuco, o maior intelectual brasileiro de todos os tempos, os negros escravos ergueram o patrimônio brasileiro e jamais foram indenizados por isso: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.
O resto é conversa reacionária, arrogante, fiada, asquerosa, retrógrada, enfim, de jornalistas com cérebro de ervilha como Ali Kamel, Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli.
Ou racismo de conservadores desmoralizados como o senador Demóstenes Torres.
Tudo falácia.
É falso dizer que um estudante com maior escore perde a vaga para um com menor escore por critério de cor.
Esse erro de interpretação decorre de uma leitura incorreta da competição.
Pois é de cor que se trata. Raças não existem.
São dois concursos num só, divididos em fileiras, em chaves.
Na fileira indiferenciada, normal, concorrem x candidatos a x vagas.
Na fileira para cotistas, concorrem x candidatos a x vagas.
Se alguém não entrou na fileira indiferenciada, perdeu para quem fez escore superior na mesma fileira.
É como um time de futebol da chave A reclamar que ficou de fora fazendo mais pontos que outro na chave B.
Está na regra do jogo.
A Constituição brasileira diz que não se pode tratar desigualmente ninguém com base em preconceito.
Nada diz quanto a tratar desigualmente pessoas para combater preconceito.
Se as cotas são inconstitucionais por reservarem tratamento diferenciado a um grupo de pessoas, praticamente tudo é inconstitucional na estrutura de compensações do Estado brasileiro: meia entrada para estudantes, assentos para idosos, atendimento prioritário em bancos, incentivos fiscais, etc.
O Dem, logo o Dem, que contesta a legitimidade das cotas alegando que produzem tratamento diferenciado, sendo todos iguais perante a lei, vive defendendo compensações e benefícios para o “setor produtivo”.
Como diz Nabuco: “A reparação não começou ainda. No processo do Brasil, um milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas…”
As cotas não criam racismo.
Vale a pena ler a tese de João Vicente Silva Souza, “Alunos de escola pública na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: portas entreabertas”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação, orientada pela professora Malvina do Amaral Dorneles.
Ele diz: “Sabemos que os cursos de maior prestígio, densidade ou argumento de concorrência, geralmente são os que mais evidenciam as assimetrias socioeconômicas representadas em números e percentuais. Basta considerarmos o caso dos cursos cujo ‘ponto de corte’ costuma ser muito alto (Medicina, Direito diurno, Administração diurno, Biomedicina, Publicidade/Propaganda, Design Produto, Design Visual e Relações Internacionais). Em tais cursos, nenhum dos candidatos autodeclarados negros de Escola Pública se classificou através da adoção do Sistema de Reserva de Vagas no ano de 2008”.
O mérito depende, salvo exceção, do poder econômico.
O racismo é mantido e atualizado pela exclusão ardilosa dos negros sob a capa do universalismo.
Nabuco previu: “Essa obra – de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – de emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão”.
O pior racismo é o que não quer ser visto como tal, aquele que se disfarça de universalismo abstrato.
Tomara que o STF faça hoje a sua parte.




Do blog do Juremir Machado da Silva

O Supremo e as cotas


Hoje o STF julgará as cotas

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras. No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.
Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.
Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.
Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo". A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos da universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.
Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.
O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.
Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números:
"Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".
E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".
O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram as escravatura ao Brasil.
Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram...."
Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.



Imprensas


Imprensas

DUAS ESPERANÇAS problemáticas em relação à imprensa brasileira, manifestadas simultaneamente. Uma, de Barack Obama, na Cúpula das Américas, na Colômbia. Mas prefiro começar pela outra, de Suzana Singer, ombudsman (sic) da Folha.
Depois de referir-se às relações de parte da imprensa com o círculo de Carlinhos Cachoeira, citadas nos vazamentos da Polícia Federal, Suzana Singer conclama: a imprensa "tem o dever de apurar tudo -mas sem se poupar. É hora de dar um exemplo de transparência".
Por nossa conta, pode-se encontrar na última frase um segundo sentido, que é o da necessidade de uma transparência ainda ausente das normas. Aqui, é claro. O caso remete, porém, a uma face ainda mais crítica do uso da marginalidade para obter informações.
A depender das circunstâncias, o contato com a marginalidade pode ser jornalístico e legítimo. Não há como saber se o é na maioria ou na minoria das vezes. Mas sempre deveria estar, e não está, submetido ao cuidado de ponderar sobre a finalidade de quem dá a informação. Na marginalidade, a tendência do propósito é servir à própria marginalidade. E, quando é assim, o jornalista e sua publicação servem também à marginalidade.
Se houver, devem ser poucas as dúvidas sobre a prática mais crítica que é a compra de informações e de documentos, para noticiário denunciante. Esta pode parecer mera transação, mas, ainda que o fosse, jornalista não é negociante de notícias e documentos. No mínimo, porque tal negócio é uma forma de corrupção.
Nos vazamentos da PF não apareceu negócio algum nas conexões de imprensa e Cachoeira. Mas também não há motivo para que a imprensa brasileira seja tão omissa quando se trata da transparência de si mesma. Omissão, aliás, que vem lá do século passado, como uma regra silenciada, mas praticada.
Essa regra já tinha idade na imprensa brasileira dos anos 50, a que Barack Obama se referiu. No relato de Sylvia Colombo, Obama acusou a imprensa latino-americana de ainda "usar a linguagem" daqueles anos "para tratar da relação EUA-América Latina". Em sua reclamação (ou seria apelo?): "É preciso acabar com a mentalidade de que o culpado por tudo o que vai mal na América Latina são os Estados Unidos".
Não são? Ou não são mais? Ótimo. De qualquer modo, Obama se engana quanto à linguagem do jornalismo por aqui, nos anos 50 e em muitas dezenas de anos mais, sobre os EUA. O extremismo da Guerra Fria não permitia que a imprensa nem sequer tivesse, quanto mais usasse uma linguagem criticante dos EUA.
Na eventualidade de palavras que não fossem de inteiro apoio aos americanos, a imprensa estava apenas transcrevendo algum alto mandatário em momento de exceção. E transcrição literal, ou haveria problema.
A censura democrática, sem lei, mas com todos os meios de poder, não tinha limite. Uma ilustração basta. É a do diretor de "Manchete", Justino Martins, que viaja à União Soviética, anos 60 ou 70, para registrar o mal conhecido cotidiano por lá.
Publicada a primeira de três reportagens, a multinacional Rhodia (têxtil, química, indústria farmacêutica, plásticos, múltiplas atividades), maior anunciante do grupo Manchete, faz a Adolpho Bloch, por telefonema de seu presidente brasileiro, este aviso simples: "Se sair a segunda reportagem da URSS, a Rhodia retira todos os anúncios de tudo aí".
Obama não sabe que a América Latina está aprendendo a falar sobre os EUA. Mas o passado não pode apagar-se todo. Nem os EUA se interessaram por fazê-lo.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os novos ideólogos



André Dahmer, na Folha de São Paulo, 18/04/2012.

"A busca por uma solução de dois Estados é uma fantasia", diz palestino sobre conflito no Oriente Médio

"A busca por uma solução de dois Estados é uma fantasia", diz palestino sobre conflito no Oriente Médio

O proeminente filósofo palestino Sari Nusseibeh acredita que é tarde demais para uma solução de dois Estados para o conflito no Oriente Médio. Em uma entrevista para a “Spiegel”, ele expõe sua visão para uma confederação israelense-palestina e por que desconfia da nova posição moderada adotada pelo grupo militante islâmico Hamas.

Spiegel: Sr. Nusseibeh, em seu novo livro o senhor alega que é tarde demais para um Estado palestino. Por quê?
Nusseibeh: Vocês estão sentados em meu escritório em Beit Hanina, em um lugar chamado Jerusalém Oriental. Se vocês olharem para oeste daqui, verão partes deste bairro árabe que estão separadas de nós. Se olharem lá para o leste, verão Pisgat Zeev, um enorme assentamento israelense que faz parte de Jerusalém. Mais além há Maale Adumim, um assentamento ainda maior de israelenses no que é chamado de Jerusalém Oriental. Não há mais Jerusalém Oriental. Jerusalém Oriental já se tornou um termo impróprio. Mas um Estado palestino sem Jerusalém Oriental como sua capital é inaceitável.

Spiegel: O senhor deseja desistir das fronteiras de 1967, que foram a base de todos os planos de paz?
Nusseibeh: É extremamente difícil até mesmo para o mais criativo entre nós conseguir redesenhar o mapa para nos dar, os palestinos, Jerusalém Oriental como capital. Além disso, há os colonos israelenses. É possível remover meio milhão de pessoas? Não, não é. Nada é impossível, matematicamente falando. Mas nós estamos falando sobre política, e na política nem tudo é possível.

Spiegel: Então devemos admitir que a solução de dois Estados está morta?
Nusseibeh:Matematicamente falando, uma solução de dois Estados é uma solução excelente. Ela causa dor mínima e é aceita por uma maioria em ambos os lados. Por causa disso, nós deveríamos tê-la adotado há muito tempo. Mas não o fizemos.

Spiegel: E de quem é a culpa por isso?
Nusseibeh: Primeiro, Israel demorou demais para aceitar a existência de um povo palestino. Nós, palestinos, demoramos demais para aceitar que deveríamos reconhecer Israel como um Estado. O problema é que a história anda mais rapidamente do que as ideias. Quando o mundo acordou para o fato de que a solução de dois Estados era a melhor solução, nós já tínhamos centenas de milhares de israelenses vivendo além da Linha Verde (nota do editor: a Linha de Armistício de 1949, que forma a fronteira entre Israel e a Cisjordânia). Há um crescente fanatismo em ambos os lados. Hoje, a busca de uma solução de dois Estados parece buscar algo dentro de uma bolha de fantasia.

Spiegel: E quais são as alternativas?
Nusseibeh: A forma política final não importa muito. O importante é que ambos os lados possam concordar a respeito e que os princípios básicos de igualdade e liberdade sejam mantidos. Eles podem ser mantidos no contexto de um Estado, de dois Estados, de três Estados, ou no contexto de uma federação ou confederação de Estados.

Spiegel: Em seu livro o senhor propõe que, em um único Estado conjunto, os palestinos devem ter direitos civis, mas não direitos políticos. “Os judeus podem administrar o país, enquanto os árabes poderiam ao menos desfrutar viver nele”, o senhor escreve. Isso funcionaria?
Nusseibeh: Sim, como uma transição. Desde o início da ocupação, nos tem sido negados direitos civis básicos, sob a promessa de que uma solução ou Estado estava chegando. Isso nos foi prometido por 20 anos. Mas eles não deveriam manter os palestinos vivendo no porão até uma solução ser encontrada. Eu sugiro que nos deem direitos básicos, nos permitam liberdade de movimento, nos permitam viver e trabalhar onde quisermos, nos permitam respirar.

Spiegel: Onde o senhor deseja traçar as fronteiras? Segundo linhas étnicas?
Nusseibeh: Sim, eu proponho uma federação entre Israel e um Estado palestino baseada no posicionamento demográfico da população no país.

Spiegel: E o senhor acha que os israelenses aceitariam isso?
Nusseibeh: Sim, eles adorariam. Os israelenses que desejam um Estado predominantemente judeu poderiam muito bem considerar esta uma solução razoável, porque mesmo se de alguma forma conseguissem se livrar dos árabes na Cisjordânia e em Gaza, que eles consideram um fardo demográfico, eles ainda sentem que têm um problema a longo prazo com os árabes em Israel. O que estou sugerindo não é totalmente insano. Essa ideia sempre esteve presente. Se vocês voltarem na história judaica, vocês encontrarão israelenses a sugerindo desde o início, como (o proeminente sionista intelectual e cultural) Martin Buber.

Spiegel: Qual seria o benefício para os palestinos em uma federação com Israel?
Nusseibeh: Eles teriam liberdade de movimento – eles poderiam se estabelecer e trabalhar onde quisessem. Esse é um benefício imenso. E mais do que isso: segundo a solução clássica de dois Estados, não há retorno dos refugiados (palestinos) para Israel, apenas para a Cisjordânia ou Gaza. Mas em um futuro mapa traçado da forma como estou propondo, partes do que atualmente é Israel poderiam se tornar parte de um Estado palestino. E, portanto, muitos refugiados poderiam voltar exatamente para suas cidades de origem.

Spiegel: Em seu livro, o senhor descreve sua proposta como uma “terapia de choque para acordar os israelenses” e levá-los a encontrar uma solução. Isso significa que, no final, o senhor realmente não acredita no que está dizendo?
Nusseibeh: Pode ser ambos. Pode ser um alerta, um despertar. Eu quero que os israelenses vejam que eles têm um problema e que pensem: talvez devêssemos buscar a solução de dois Estados. Mas pode ser um sinal do que está por vir. Se não fizermos nada, futuramente as pessoas acordariam e descobririam que estão vivendo em uma espécie de confederação.

Spiegel: O senhor acredita que as coisas estão se movendo nessa direção por conta própria?
Nusseibeh: Exatamente. Nós estamos constantemente deslizando nessa direção. Vejam as negociações. Elas apenas andam em círculos.

Spiegel: Em seu livro, o senhor descreve o processo de paz entre israelenses e palestinos mais ou menos como um jogo, “para ser jogado pelo tempo mais longo possível”. O senhor acredita que as negociações devem ser interrompidas?
Nusseibeh: Eu realmente não me importo se os negociadores de ambos os lados quiserem prosseguir conversando em Amã (a capital da Jordânia), como fizeram recentemente. Eles podem passar 48 horas conversando. Mas eu acredito que não chegarão a lugar nenhum. Eles só chegarão a algum lugar se apenas desistirem de tentar ser espertos uns com os outros. (O primeiro-ministro de Israel, Benjamin) Netanyahu é um bom vendedor, mas não me parece uma pessoa sábia.

Spiegel: E quanto ao presidente palestino, Mahmoud Abbas?
Nusseibeh: Bem, permita-me dizer: eu acho que é preciso ser previdente e se importar o suficiente.

Spiegel: A Autoridade Palestina (AP) deveria se dissolver em vez de continuar a administrar a ocupação?
Nusseibeh: Não, isso seria arriscado demais. Pelo contrário, a PA deve ser fortalecida, receber mais território e mais autoridade. E acho que a comunidade internacional deveria continuar a apoiá-la.

Spiegel: Isso poderia mudar rapidamente se o Hamas, o grupo militante islâmico que controla a Faixa de Gaza, e o movimento rival Fatah de Abbas, que controla a Cisjordânia, formarem um governo conjunto. O senhor acredita que a reconciliação deles funcionará?
Nusseibeh: É natural que o Hamas e o Fatah não lutem um contra o outro. Mas não brigar não significa automaticamente concordar. No momento, parece que eles estão tentando conciliar os pontos em desacordo. E eu não gosto disso. Eu acho que as pessoas devem ser claras a respeito de suas posições. E eu não sei ao certo o que Khaled Mashaal (nota do editor: o líder do Hamas em exílio) quer, para dizer a verdade.

Spiegel: Khaled Mashaal disse recentemente que o Hamas deve se concentrar em uma resistência não violenta. O senhor acredita nele?
Nusseibeh: Eu me recordo de uma situação com ele, talvez há dez anos. Foi no auge da segunda intifada, e foi a primeira vez em que fui convidado para comentar na “Al Jazeera”. Eu tentei explicar por que ataques suicidas não eram bons, de que eles não conseguiriam nada. Eu inicialmente não percebi que Mashaal estava do outro lado. Ele respondeu que eu estava falando tolices e que os ataques suicidas eram ótimos, que atirar e matar era ótimo. Esse é o motivo para ficar irritado quando o ouço agora dizendo que deseja uma resistência civil. Por que está optando por isso agora, após 10 anos nos arruinando? Todo o muro (nota do editor: a barreira da Cisjordânia) não teria sido construído. As coisas seriam muito diferentes hoje.

Spiegel: O senhor acredita que haverá eleições na Cisjordânia e em Gaza em breve?
Nusseibeh: Eu não acho que eleições possam acontecer tão cedo. E para dizer a verdade, eu não sei ao certo se sou favorável a eleições no contexto atual. Eleições são uma coisa boa em certas circunstâncias, por exemplo, quando seu país é livre e as pessoas que você elege podem tomar as decisões a seu favor. Mas em nosso caso isso é uma fantasia. O que as pessoas que elegemos fizeram por nós? Nada. Se o próprio Abu Mazen (Mahmoud Abbas), o presidente deste país, quiser ir de um lugar para outro, ele precisa obter uma permissão.

Spiegel: Como poderia funcionar o tipo de federação que o senhor está propondo, se ao mesmo tempo a maioria dos palestinos votou no Hamas, cuja meta declarada é um Estado religioso?
Nusseibeh: Se você olhar para Gaza de cima a baixo, você vê o Hamas. Eu não vejo o Hamas em Gaza, pessoalmente. Eu vejo seres humanos normais: meus parentes, meus amigos, meus alunos. Eles não votaram no Hamas porque repentinamente acordaram e se transformaram em muçulmanos extremistas. Não, eles votaram no Hamas porque o processo de paz fracassou. Se o governo israelense abrisse hoje as fronteiras, o Hamas ficaria no caminho? E se ficasse no caminho, as pessoas dariam ouvido ao Hamas? Não, eu acredito que não. As pessoas querem vidas normais.

Spiegel: Nós estamos sentados aqui no campus da Universidade Al Quds. O que seus estudantes pensam a respeito de política –eles tendem a apoiar o Hamas ou o Fatah?
Nusseibeh: Os estudantes no campus são seres humanos individuais; eles não são ideologias ambulantes. Permitam-me contar uma história. Foi em 2003, quando os israelenses queriam construir o muro de separação, bem no meio de nosso campus. O que ocorreu imediatamente aos estudantes foi –e isso independia de serem a favor do Hamas, Fatah ou da Jihad Islâmica– vamos até lá atirar pedras contra os soldados israelenses. Mas eu lhes disse: ouçam, se fizerem isso, então um de vocês será morto. A universidade terá um mártir, mas será fechada no dia seguinte. E então permaneceram não violentos. No final, nós vencemos. Israel não construiu o muro no campus. O que quero dizer com esta história? Independente de como vocês os veem, independente da ideologia deles, os seres humanos são pessoas razoáveis.

Spiegel: Seus alunos ainda acreditam que este conflito pode ser resolvido? E o que pensam a respeito de uma federação entre Israel e Palestina?
Nusseibeh: Primeiro, eles acreditam que não há solução. Mas o que posso dizer é que as pessoas não têm mais convicção na ideia de dois Estados. Apenas alguns poucos ainda estão presos na ideia de identidade nacional, mas eles não acreditam que conseguirão o Estado que desejam. Outras pessoas estão se voltando para a religião. Ideias religiosas são o que importa agora.

Spiegel: O senhor é um professor de filosofia islâmica. O que o senhor pensa a respeito do papel da religião neste conflito?
Nusseibeh: Eu cresci com a ideia de um Islã muito tolerante. Minha família teve as chaves da Igreja do Santo Sepulcro (na Cidade Velha de Jerusalém) por centenas de anos e temos orgulho disso. Essa é nossa ligação com o cristianismo. Nossa reverência por Jesus é algo inerente em mim como muçulmano. Minha reverência pelos profetas judeus é inerente em mim como muçulmano.

Spiegel: Mas esse não é o Islã reverenciado por todos os muçulmanos.
Nusseibeh: No sentido verdadeiro, as religiões são na teoria formas de apoiar os valores humanos. Na medida em que as religiões passam a interferir no valores humanos, então elas se desviam na direção errada. E, infelizmente, é isso o que está acontecendo em muitas religiões, incluindo o Islã. Há alguns clérigos islâmicos de que gosto, mas eu desconfio de pessoas que se consideram guardiãs da religião.

Spiegel: O senhor frequenta a mesquita regularmente?
Nusseibeh: Não, eu quase nunca vou. Certa vez eu levei meus filhos à mesquita, mas o homem que conduzia a oração me fez ir embora. Ele falava sobre coisas totalmente insanas. Mesmo se você ignorar o conteúdo, é a forma como eles gritam. Você sente como se eles estivessem segurando um chicote e assustando as pessoas a aceitarem a verdade do Islã. Isso não é o Islã. Isso é meio que terrorismo. No meu entender, o Islã é uma religião dócil. E a mensagem do Islã é uma mensagem dócil.

Spiegel: O conflito entre israelenses e palestinos realmente parece menor em comparação a uma possível guerra com o Irã. O que acontecerá se Israel atacar o Irã?
Nusseibeh: Isso seria um grande erro. Tudo o que Israel faz para se afirmar por meio do uso de mais força é um passo para sua própria destruição. Há o ditado: “Aqueles que vivem pela espada morrerão pela espada”.

Spiegel: Uma escalada militar com o Irã poderia pressionar israelenses e palestinos a finalmente chegarem a uma solução?
Nusseibeh: Israel não nos leva a sério no momento. Eles nos manterão sob a tampa por um longo período. Se atacarem o Irã, eu não acho que isso os deixaria mais abertos em relação a nós. Eu certamente acredito que não nos deixaria mais abertos em relação a eles. E, sem dúvida, eu não acho que o mundo árabe estaria mais aberto em relação a eles.

Spiegel: Isso soa como um cenário bastante sombrio.
Nusseibeh: É o motivo para estar propondo este plano. Quantas pessoas vivem entre a Jordânia e o Mediterrâneo?

Spiegel: Aproximadamente 11 milhões.
Nusseibeh: Há cerca de 4 milhões de palestinos na Cisjordânia e Gaza, e 1 milhão em Israel, e há aproximadamente 6 milhões de judeus israelenses. Mas este é um lugar pequeno. Nós estamos dentro um do outro. Cedo ou tarde, nós teremos que encontrar um modo de convivermos uns com os outros. Meu filho vive em um subúrbio judeu de Jerusalém. Minha nora disse à professora de música judia que não quer que o filho dela cante canções religiosas judaicas. E a professora judia disse que tudo bem –quando fizermos isso, ele não precisa participar. Mas, fora isso, ele pode participar da festa.

Spiegel: É assim que seu Estado proposto poderia funcionar? Quando for uma questão judaica, então os palestinos ficariam de lado, mas, fora isso, participariam?
Nusseibeh: E vice-versa, porque não se pode esperar que os judeus apreciem canções palestinas. Mas convenhamos, muçulmanos e judeus conviveram amigavelmente por longos períodos de tempo. Nem tudo foi um mar de rosas, mas na verdade foi melhor do que na Europa por grande parte do tempo. Nós temos amizades entre judeus e árabes que são muito fortes e às vezes remontam gerações. Não é impossível.

Spiegel: Sr. Nusseibeh, obrigado pela entrevista.

Entrevista conduzida por Martin Doerry e Juliane von Mittelstaedt. (Tradução: George El Khouri Andolfato)


Der Spiegel, no UOL.

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2012/02/24/a-busca-por-uma-solucao-de-dois-estados-e-uma-fantasia-diz-palestino-sobre-conflito-no-oriente-medio.htm

Obra revela quase 60 sítios arqueológicos

Obra revela quase 60 sítios arqueológicos

Construção de rodovia na Baixada Fluminense trouxe à tona múltiplas camadas da ocupação do Rio de Janeiro
Resquícios do passado vão da pré-história, há 6.000 anos, aos séculos do Brasil Colônia, com índios, negros e europeus

ITALO NOGUEIRA
DO RIO

A construção de 70 quilômetros do Arco Metropolitano, grande obra rodoviária do Rio de Janeiro, revelou 58 sítios arqueológicos que, aos poucos, trazem detalhes sobre a história da ocupação da Baixada Fluminense.
Técnicos do IAB (Instituto de Arqueologia Brasileira) já encontraram mais de mil cachimbos, louças chinesas, urnas funerárias da cultura tupi-guarani e sambaquis -depósitos primitivos, formados principalmente por conchas, que apontam para a ocupação humana há 6.000 anos.
No total, são quase 50 mil peças inteiras ou fragmentos. O instituto teve de erguer um novo prédio para abrigar os artefatos descobertos.
O arco liga Itaguaí a Itaboraí cortando oito municípios da baixada, a fim de desafogar o trânsito na avenida Brasil, no Rio. O trecho no qual os vestígios estão sendo encontrados compreende cinco municípios (Duque de Caxias, Itaguaí, Nova Iguaçu, Japeri e Seropédica).
A história da região era conhecida basicamente por relatos de viajantes dos séculos 16, 17 e 18, principalmente do bispo José Caetano Coutinho, que descrevia fazendas da Baixada e seus proprietários.
MISCIGENAÇÃO
O resgate dos sítios revela uma ocupação sobreposta. No mesmo local foram encontrados cachimbos de cerâmica indígena, com cerca de 2.000 anos, bem como outros de louça europeia e com motivos africanos esculpidos.
"Isso prova que o europeu ocupou os mesmo lugares já usados pelos índios. Ele acreditava que, como havia gente no local, era sinal de que a terra era boa. Tirava essa terra dos índios e se instalava", diz a arqueóloga Jandira Neto, coordenadora do projeto.
Num local onde o grupo identificou um antigo porto (aterrado ao longo dos anos) foram encontrados relógios solares, bilhas para armazenar azeite e mais cachimbos, alguns com vestígios de fumo, todos trazidos por europeus recém-chegados.
Relatório no início da obra, em 2008, apontava que havia a expectativa de seis sítios perto da rodovia. Em um ano, o número subiu para 22, chegando aos atuais 58.
A maioria é descoberta durante a passagem das máquinas das empreiteiras. Arqueólogos percorrem a área e, quando algo é identificado, a obra é paralisada.
Em alguns casos, porém, a descoberta é feita por operadores de máquinas. Uma ferraria do que se acredita ter sido uma base de tropeiros foi achada após ter o teto atingido pela pá de um trator.
PATRIMÔNIO
Para evitar que situações assim aconteçam, todos os funcionários passam por capacitação para identificar eventuais sítios -a chamada educação patrimonial.
"O operador bateu numa pedra e notou que ela era trabalhada. Embaixo encontramos uma bigorna e instrumentos de uma ferraria", relata Jandira.
O que é motivo de felicidade para arqueólogos causa calafrios para engenheiros da Secretaria Estadual de Obras. A rodovia, cuja conclusão estava prevista para 2011 com custo de R$ 965 milhões, teve o prazo estendido para o fim de 2013 pelas paralisações ligadas às descobertas.
"Faz parte da obra. Temos de respeitar a história e a legislação", disse o secretário estadual de Obras, Hudson Braga. Os achados estão na sede do IAB em Belford Roxo. Já foram mostrados em exposição itinerante na Baixada e poderão ser também expostos no Rio.


Notícia da Folha de São Paulo, de 12 de abril de 2012

Megaoperação militar busca fuzil roubado no PR

Megaoperação militar busca fuzil roubado no PR

Mais de 200 homens e até blindado foram mobilizados; arma foi levada em 29 de maço

LUIZ CARLOS DA CRUZ
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE FRANCISCO BELTRÃO (PR)

O roubo de um fuzil automático mobiliza mais de 200 militares em Francisco Beltrão, interior do Paraná. Para o comando do 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, achá-lo é questão de honra.
A arma foi roubada de um soldado de plantão em 29 de março por bandidos que fingiram pedir informação. Para o comandante do esquadrão, capitão Gustavo Coutinho Nascimento, houve negligência.
Segundo ele, "até agora" o soldado, que tem um mês de corporação, aparece como testemunha no IPM (Inquérito Policial Militar) sobre o caso.
"Esse fuzil não pode estar em mãos erradas, é uma arma de guerra, fura carro, fura parede. Ele tem que voltar para o quartel, e não vamos sossegar enquanto não o encontrarmos", diz Coutinho.
Caminhões, jipes, ambulâncias, carros da Polícia do Exército e até um blindado Urutu participam das buscas.
A população aprova e diz se sentir mais segura. "É fabuloso. Hoje você pode sair de casa e voltar tranquilo", diz Cleiton Wagner, 54, da Associação de Moradores do Bairro Padre Ulrico, um dos mais violentos da cidade.
Operações similares já foram feitas no Rio, em 2006, com mais de mil militares, e no vale do Paraíba (SP), em 2009, após o roubo de fuzis e pistolas de quartéis.



Comentário rápido: pelo jeito, a maior parte da população não se importa, e na reportagem há até o depoimento de alguém que louva o fato de parte do exército estar sitiando uma cidade à procura de um fuzil roubado.  Na minha opinião, nós só seremos um país civilizado de fato, quando por um infortúnio desses algo for roubado de um quartel das forças armadas, a recuperação do objeto ficar a cargo da polícia, que é quem de fato deve policiar as ruas e investigar roubos.

Casal gay é morto em AL com suspeita de tortura

Casal gay é morto em AL com suspeita de tortura

Vítimas estavam há 12 dias desaparecidas

SÍLVIA FREIRE
DE SÃO PAULO

Um casal homossexual que estava desaparecido havia 12 dias foi encontrado morto, com sinais de tortura, em um canavial em Rio Largo, região metropolitana de Maceió.
Segundo o GGA (Grupo Gay de Alagoas), os corpos do pai de santo Márcio Lira Silva e de seu companheiro, Eduardo, foram localizados na última segunda com os dedos decepados, os olhos perfurados e em decomposição. Os dois viviam juntos havia 12 anos.
O IML (Instituto Médico Legal) ainda não concluiu o laudo sobre a causa da morte.
A reportagem não conseguiu contato com o delegado responsável pelo caso.
Para Nildo Correia, do GGA, a suspeita é de motivação homofóbica. Segundo amigos do casal, eles eram homossexuais assumidos, não tinham inimigos nem comentaram sobre ameaças.
Só neste ano, nove homossexuais foram mortos em Alagoas, segundo o GGA.

Notícia publicada na Folha de São Paulo, de 13 de abril de 2012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ausência


Ausência


Por pouco
e a minha mãe teria casado
com o senhor Zbigniew B. de Zduńska Wola.
Se tivessem uma filha - não seria eu.
Talvez com a memória para nomes, rostos
e canções ouvidas uma só vez - melhor que a minha.
Distinguindo sem erro um pássaro do outro.
Com excelentes notas de física e química,
de polonês nem tanto,
mas escrevendo poemas às escondidas,
logo muito melhores que os meus.

Por pouco
e naquela mesma época meu pai teria casado
com a senhorita Jadwiga R. de Zakopane.
Se tivessem uma filha - não seria eu.
Talvez mais teimosa e intransigente.
Saltando sem medo na água funda.
Suscetível ao que comove as massas.
Vista em vários lugares ao mesmo tempo,
poucas vezes com um livro, muito mais com a bola,
jogando com meninos nos pátios e ruas.

As duas poderiam ter se encontrado
na mesma escola e na mesma classe,
mas sem afinidades,
nenhum parentesco,
e na foto da turma, bem afastadas entre si.

Fiquem aqui, meninas
- diz o fotógrafo -,
as pequenas na frente, as mais altas atrás.
E sorrisos bonitos quando eu der o sinal.
Verifiquem ainda,
não falta ninguém?

- Sim, senhor, estamos todas aqui.





Poema de Wisława Szymborska, poeta polonesa, Prêmio Nobel de Literatura de 1996, recentemente falecida, traduzido por Henryk Siewierski, visto na revista Piauí, edição 66, de março de 2012, página 74.

Dilma e Kissinger


Dilma e Kissinger

Em 1876, o imperador dom Pedro 2º, do Brasil, visitou a Universidade Harvard; foi a primeira visita de um monarca reinante à instituição.
Ele participou da exposição do centenário da independência dos EUA, na Filadélfia, com o presidente Ulysses Grant. Depois fez uma viagem pelo rio Mississipi em barco a vapor, de Saint Louis a Nova Orleans. Voltando de trem, ele visitou as cataratas do Niágara e o Canadá. Chegou a Boston em 8 de junho. Em Harvard, jantou com o poeta Ralph Waldo Emerson, na casa deste em Brattle Street.
Na terça-feira, a presidente Dilma Rousseff visitou Harvard. Falou na Escola Kennedy de Administração Pública. No dia seguinte, Henry Kissinger voltou à sua antiga universidade. Falou no Sanders Theater, parte da magnífica edificação que celebra os alunos de Harvard caídos na Guerra Civil Americana, lutando pela União ou pela Confederação.
Drew Gilpin Faust, reitora de Harvard e primeira mulher a dirigir a universidade, foi criada no vale do Shenandoah, na Virgínia, e é uma historiadora premiada da Guerra Civil Americana. Visitou Kissinger em Nova York e o convidou a voltar a Harvard para discursar na celebração do 375º aniversário da instituição.
A presidente Dilma delineou seus planos para encorajar a ciência e a tecnologia no Brasil. O governo federal pretende patrocinar os estudos de 100 mil jovens brasileiros no exterior.
No ano letivo de 2009/10, havia apenas 9 mil alunos brasileiros em universidades dos EUA, ante 127 mil chineses e 100 mil indianos. Mas o problema básico brasileiro jamais esteve limitado ao ensino superior. Está mais na qualidade horrenda do ensino básico de matemática, ciências e leitura, o que é muito mais difícil de resolver.
Talvez seja a hora certa para que Harvard volte a receber Kissinger, antigo professor na universidade. Ao menos foi esta a decisão da reitora Faust. Mas Kissinger não quis discutir a política que adotou para a América Latina em seu período como assessor de segurança nacional do presidente Nixon e secretário de Estado do presidente Ford.
Entre 1970 e 1972, Dilma Rousseff foi prisioneira do regime militar brasileiro. Era chamada de "Joana d'Arc" dos guerrilheiros marxistas. Sofreu tortura por choque elétrico. Ela sobreviveu, ao contrário de milhares de torturados e "desaparecidos" na Argentina e nas demais nações do Cone Sul latino-americano, depois dos golpes militares ocorridos na região no começo dos anos 70, todos durante o período de Kissinger no poder.
Dilma e Kissinger na Universidade Harvard na mesma semana: eis uma comparação que a reitora Faust talvez não tenha pretendido.



Ciência versus intuição


Ciência versus intuição


A TEORIA econômica é uma ciência mais simples do que seus cultores neoclássicos ou ortodoxos supõem. Toda a matemática que usam para desenvolver seus modelos alienados da realidade é, além de desnecessária, prejudicial, porque os conduz a transformar o mercado em um mito, e a propor sua desregulamentação, cujo resultado são graves crises financeiras.
Mas isso não significa que a teoria econômica seja um conjunto de conhecimentos intuitivos. Pelo contrário, ela só se torna inovadora quando rompe com o senso comum.
Adam Smith rejeitou o senso comum quando disse que a riqueza da nação não estava em seu ouro e seus templos, mas na produção; Marx, quando mostrou que o lucro resultava de uma troca de valores equivalentes no mercado.
Schumpeter, quando ensinou que não é a posse do capital mas a capacidade do empresário de inovar e de ter acesso ao crédito que é decisiva; Keynes, quando argumentou que é o investimento que determina a poupança.
Hoje os economistas estão diante de um quebra-cabeça. A intuição lhes diz que "os países ricos em capital devem transferir seus capitais aos países pobres em capital", ou seja: países em desenvolvimento deveriam incorrer em déficit em conta-corrente e financiá-los com empréstimos ou investimentos diretos.
Entretanto, os países asiáticos dinâmicos, que crescem bem mais do que os latino-americanos, têm superávit em conta-corrente (superávit comercial inclusive serviços, juros e dividendos); a China, sempre.
No governo Lula, o Brasil apresentou taxa maior de crescimento quando teve superávit em conta-corrente; desde que voltou ao déficit, tem crescido menos. Na maioria dos casos, um país em desenvolvimento crescerá mais se apresentar superávit em conta-corrente e, assim, financiar os países ricos.
O modelo da doença holandesa explica essa surpreendente verdade. Para um país neutralizar a doença holandesa ou a maldição dos recursos naturais, precisa deslocar a taxa de câmbio do equilíbrio corrente (que zera sua conta-corrente) para o equilíbrio industrial (que torna competitivas empresas que usam tecnologia no estado da arte mundial). Ao lograr fazê-lo, o país terá superávit em conta-corrente, e os países ricos incorrerão em déficit.
O países em desenvolvimento devem, portanto, tentar crescer com despoupança externa ou superávit em conta-corrente.
Um segundo argumento mostra o que ocorre com o país que tenta crescer com poupança externa. As entradas de capitais necessárias para financiar esse déficit apreciam a taxa de câmbio, aumentam artificialmente salários reais e o consumo, de maneira que mesmo quando se trata de investimentos diretos, aumentam afinal mais o consumo do que o investimento. Em seguida, o país, além de ter de remeter lucros e juros para fora, fica ameaçado de crise de balanço de pagamentos.
Não é surpreendente que os países asiáticos dinâmicos, que ouvem muito menos que nós os economistas ortodoxos do Norte, tratem de administrar sua taxa de câmbio e não incorrer em déficit mas em superávit em conta-corrente. Se o Brasil apresentasse também um superávit, cresceria muito mais e com muito mais segurança do que hoje.



Embrapa


Embrapa

Há tarefas que as virtudes do mercado não podem realizar adequadamente. Não se pode e não se deve esperar que uma empresa privada, que só pode sobreviver se gerar lucro, distribuir dividendos e criar valor para seus acionistas, atenda corretamente ao interesse social se tiver objetivos conflitantes entre o curto e o longo prazo.
É o que pode acontecer, por exemplo, quando a pesquisa e a inovação ocorrem em empresas que são, ao mesmo tempo, produtoras e disseminadoras de bens que incorporem seus resultados.
Suponhamos, para simplificar o argumento, uma empresa que produza um eficiente fungicida para combater doença que ataca a produção de feijão. Um dia, seus cientistas constroem com sucesso uma variedade de feijão resistente ao fungicida que ela mesma produz. Qual será a provável reação da sua administração, cujo primeiro dever é proteger o valor do patrimônio de seus acionistas? Patentear a inovação e colocá-la na prateleira! Até quando? Até que o valor dos seus investimentos na produção do fungicida seja completamente amortizado.
O "mercado" apresenta uma "falha". Não funciona adequadamente pela simples e boa razão que o "incentivo" que lhe determina a ação -a maximização dos lucros- subordina o interesse coletivo ao "curto-prazismo" do interesse privado. Em outras palavras, o feijão resistente aos fungicidas que beneficiaria toda a sociedade terá a sua disseminação controlada pela velocidade da depreciação do investimento já feito para produzir o fungicida, condicionada ainda à possibilidade de garantir a remuneração dos dispêndios feitos com a pesquisa -ou seja, à patente e ao controle do valor criado pela descoberta.
Se não houver a "garantia" da patente, o mais provável é que, devido ao interesse privado, a inovação de interesse social nunca veja a luz.
Foram constatações tão simples como essas que levaram o governo, em 1972, a criar a Embrapa, que transformou o maior "passivo" brasileiro, o cerrado, no nosso maior "ativo". Um ativo construído com dedicação, diligência e trabalho duro, que precisa continuar a ser defendido do "aparelhamento" ideológico-partidário.
Ao contrário do que pensam alguns de nossos economistas, a Embrapa não nasceu para competir com o setor privado. Nasceu para inovar, criar e transmitir conhecimentos, usando as empresas privadas como instrumento para disseminá-los. Ela não produz "distorções" no mercado.
Muito pelo contrário, corrige a sua miopia "prazo-curtista". É isso que torna incompreensível o misterioso e confuso "ruído" político atual sobre o seu importante papel para o desenvolvimento nacional.


sexta-feira, 13 de abril de 2012

Exilados esperam recriar área cristã na Turquia


Exilados esperam recriar área cristã na Turquia

Susanne Güsten
Em Idil (Turquia)


Escalando os escombros daquela que já foi sua cidade natal, Robert Tutus apontou para o local mais adiante na estrada onde ficava a casa de sua família. "Este é o local onde meu pai foi assassinado", ele disse. "Dois homens se aproximaram dele enquanto ele voltava para casa certa noite, e o mataram com uma bala na cabeça."

Seu pai, Sukru Tutus, foi o último prefeito cristão de Azeh, conhecida como Idil em turco, uma cidade no sudeste do país cujo cristianismo remonta os tempos dos Apóstolos.

Um mês após o assassinato, que ocorreu em 17 de junho de 1994, o restante da população cristã da cidade, várias centenas de pessoas na época, reuniu seus pertences e fugiu em busca de asilo na Europa Ocidental, segundo Tutus.

A partida marcou o fim da era cristã em Azeh, que contava com um bispo já no século 2º e foi lar de uma população cristã de vários milhares até o final dos anos 70.

Apenas ruínas espalhadas na encosta restam da cidade deles atualmente, enquanto acima, prédios de concreto em mau estado se erguem para formar a nova cidade de Idil, habitada pelos curdos e árabes locais, assim como por alguns poucos administradores turcos em cargos temporários no leste.

E há Tutus, 42, acampado em um apartamento em um desses prédios, enquanto tenta retomar as propriedades de seu pai e reconstruir sua casa entre as ruínas na encosta. "Esse é o nosso lar, lar do povo siríaco", disse Tutus. "Nós não desistiremos."

O planalto de Tur Abdin, no qual Idil se encontra aninhada entre a planície síria e as cadeias de montanhas do sudeste da Turquia, é o coração histórico da igreja Ortodoxa Siríaca, cujo patriarca residiu aqui até as tensões com a república turca o obrigarem a se mudar para a Síria em 1933.

A região ainda é pontilhada por igrejas siríacas como Mor Gabriel, que foi fundada no ano 397 e é um dos mosteiros em atividade mais antigos do mundo. Mas fora os monges, restam muito poucos siríacos.

Há um século, eles chegavam a 200 mil aqui, segundo a União Siríaca Europeia, uma organização da diáspora. Aproximadamente 50 mil sobreviveram aos massacres de cristãos anatolianos durante a Primeira Guerra Mundial, quando o povo siríaco compartilhou o destino dos armênios. Hoje, não mais que 4.500 cristãos siríacos, que falam um dialeto local da língua aramaica assim como árabe, turco e curdo, permanecem em Tur Abdin.

Em Azeh, que resistiu ao sítio dos vilarejos curdos ao redor por meses em 1915, o esforço final na antiga disputa pelo poder na cidade teve início em 1977, quando o prefeito Sukru Tutus foi derrotado pelas autoridades turcas naquela que seu sucessor, Abdurrahman Abay, hoje reconhece abertamente que foi uma eleição fraudulenta.

"O comandante militar, o juiz, o governador do distrito –eles me encorajaram a concorrer e me ajudaram a vencer", disse Abay, chefe da poderosa tribo curda Kecan, enquanto tomava um chá em Idil. "Após a eleição, eu recebi um telegrama do Egito, de Anwar el Sadat. Ele dizia: 'Eu o parabenizo pela conquista muçulmana de Idil'."

A tomada provocou uma mudança dramática na demografia da cidade, que foi concluída em 1994, com os curdos dos vilarejos vizinhos se mudando para ela, enquanto as famílias siríacas vendiam seus imóveis e se juntavam ao crescente fluxo de emigração cristã de Tur Abdin para a Europa.

Hoje, 80 mil siríacos de Tur Abdin vivem na Alemanha, 60 mil na Suécia e 10 mil cada na Bélgica, Suíça e Holanda, segundo estimativas da União Siríaca Europeia.

Tutus encontrou asilo político na Alemanha, juntamente com sua mãe, seis irmãs e três irmãos, todos, com exceção de um, obtendo de lá para cá a cidadania alemã e se estabelecendo lá.

Uma década depois, ele foi um dos primeiros exilados a aceitar o convite público do governo turco para os siríacos voltarem para casa. Ele foi feito em 2001 sob pressão da União Europeia e repetido em várias ocasiões.

Apesar de ter passaporte alemão, Tutus passa grande parte de seu tempo em Idil, onde está supervisionando a restauração da igreja de Santa Maria e no ano passado fundou uma Associação para a Cultura Siríaca.

"Nossa meta é manter a língua e a cultura siríaca viva em Idil, e lembrar às pessoas que este é o lar dos siríacos", disse Tutus.

Apesar do escritório da associação ter sido atacado com uma bomba incendiária neste ano, Tutus permanece determinado. "Nós queremos que o mundo veja que os siríacos ainda vivem aqui", ele disse.

É um desejo que ele compartilha com centenas de siríacos pioneiros por todo Tur Abdin, que voltaram do exílio na Europa nos últimos anos, em uma tentativa de retomar sua herança e abrir o caminho para o reassentamento cristão na região.

Na aldeia de Kafro, a 50 quilômetros a oeste de Idil, os aldeões que saíam para caminhar sob o sol da primavera, em sua rua pavimentada de pedras no mês passado, se reuniam ao redor de um carrinho de bebê para paparicar seu ocupante. Eles admiravam Nahir Demir de um ano de idade, a primeira criança de sua família nascida em Kafro desde que a aldeia siríaca foi abandonada por ordem do Exército Turco, em 1994.

"Meu pai foi o último a partir", disse Aziz Demir, 45, prefeito da aldeia recém-reconstruída. A ordem para evacuar, ele recordou, ocorreu no auge da luta entre o exército e os rebeldes curdos na região.

Mas quando a permissão para voltar foi emitida em uma breve diretriz burocrática pelo governo turco, em 2001, os siríacos de Kafro voltaram correndo da Europa para reconstruir sua aldeia e reassentar seus filhos em uma terra ancestral que nunca viram.

Uma dúzia de casarões modernos de pedra calcária agora se ergue sobre as ruínas da velha aldeia de Kafro, completas com jardins murados e banheiros com azulejos cor-de-rosa, construídos com as economias de toda uma vida dos siríacos que voltavam após trabalharem muitos anos em fábricas na Alemanha, Suíça e Suécia.

Seis anos após a chegada dos primeiros caminhões de mudança, a população de Kafro é de aproximadamente 50 pessoas e aumentando, apesar dos riscos. Tanto a perspectiva de ensino quanto de emprego é ruim nesta região empobrecida, onde os vizinhos curdos são pastores de ovelhas e vão de mula ao mercado.

"Nós sabíamos que não seria fácil e sabíamos dos riscos", disse Israel Demir, 46, construtor dos casarões e pai do pequeno Nahir, assim como de três filhas adolescentes trazidas de Goppingen, Alemanha, em 2006. "Mas também sabíamos que era nosso dever."

Esse dever, disse Demir, é o de assegurar o futuro do povo siríaco. "Eu sinto uma grande responsabilidade, em relação aos meus filhos e em relação ao meu povo, de proteger nossa terra natal para as futuras gerações", disse Demir em uma entrevista em Kafro, no mês passado.

"Porque eu sei que quando um povo deixa sua terra, seu lar, ele não tem escolha a não ser assimilar. Nós podemos ver que está acontecendo com nossas famílias na Europa e na América. Há o risco de que, em poucas décadas, os siríacos deixem de existir."

Demir pagou um preço pessoal por sua missão no ano passado, quando mal escapou com vida após ser baleado por pastores curdos, enquanto tentava impedi-los de trazer seus rebanhos para pastar nas terras da aldeia.

Mas nem a hostilidade dos moradores locais e nem a falta de apoio das autoridades turcas o deterá, ele disse.

"Eu estou tentando abrir a porta para o retorno de nosso povo", ele disse. "Eu escancarei a porta. Agora os outros devem decidir se seguirão meus passos e passar por ela."

Na aldeia vizinha de Enhil, Fehmi Isler, 50, teve uma visão mais sóbria do futuro enquanto olhava da torre do sino da igreja da aldeia para as dezenas de casas recém-restauradas, uma delas a sua. "Apenas os mais velhos voltarão, aqueles que nasceram e foram criados aqui", ele disse.

Dormente no inverno, Enhil ganha vida na Páscoa com a chegada de 300 a 400 exilados siríacos da Europa Ocidental, que restauraram as casas de suas famílias nos últimos anos para usarem como casas de férias.

"Mas os jovens não virão, e quem pode culpá-los?", disse Isler. "Não há nada para eles aqui, exceto pasto para o gado e carne de vaca."

Isler, que estava em Enhil para enterrar uma tia, que morreu em um asilo de idosos em Augsburg, Alemanha, para atender seu último desejo, disse que seus próprios cinco filhos só vieram uma vez da Alemanha.

"Sem Internet, sem celulares, sem piscina –sem nenhuma chance", ele disse. "E as mulheres curdas gritam com as meninas para demonstrarem modéstia e se cobrirem."

Em Idil, Tutus está igualmente cético a respeito de suas chances de sucesso em persuadir a diáspora siríaca a voltar para Idil. Com a guerra em andamento entre os rebeldes curdos e o Exército turco, é uma batalha morro acima, ele disse.

"Todo mundo fala em voltar, mas é apenas conversa", ele disse. "Eu estou aqui lutando pelo nosso retorno, mas eles permanecem sentados firmemente lá."

Até mesmo a esposa de Tutus, uma siríaca, e seus filhos, com 11 e 7 anos, não virão, preferindo permanecer em Frankfurt após o susto que passaram durante uma visita a Idil. "Houve um apagão e troca de tiros na rua à noite", disse Tutus. "Depois disso, eles se recusam a voltar."


Tradutor: George El Khouri Andolfato