"Os jornalistas não eram obrigados a respeitar o toque de recolher. Uma noite, eu estava passando em frente ao Ministério do Interior. Um policial me parou. Ele revistou minha bolsa e confiscou o cartão de memória de minha câmera. 'Por que está fazendo isso?', eu perguntei. 'Cala a boca', ele respondeu. 'Você não é nada. Posso colocá-lo na cadeia, posso dizer que você é um terrorista, posso até mesmo matá-lo. Ninguém vai defender você. Agora o povo está do nosso lado'." O jovem fotógrafo Oussama, de 23 anos, brande sua credencial de imprensa com veemência. "Ele me ameaçava com sua arma de fogo. No final, ele me deixou ir, mas tive de fazer um desvio para chegar até minha casa."
No Egito pós-30 de junho, após o golpe do Exército que levou à destituição do presidente Mohammed Mursi, oriundo da Irmandade Muçulmana, o depoimento de Oussama, jovem comum vindo da pequena burguesia cairota, sem passagem pela polícia, não tem nada de extraordinário. Em um contexto classificado como "combate ao terrorismo" pelas autoridades, o aparelho policial egípcio tem funcionado à toda, apoiado pela propaganda midiática que o acompanha.
Ainda que o estado de emergência e o toque de recolher tenham sido suspensos recentemente, os poderes da polícia parecem estar passando por um recrudescimento, como acontecia durante o regime autoritário de Hosni Mubarak. "Houve uma mudança radical na relação de forças. Antes, a polícia era a inimiga número um do povo. Hoje, é a Irmandade Muçulmana. O Ministério do Interior entendeu bem isso. Os policiais estão saboreando sua vingança e abusando dessa nova popularidade", analisa Karim Ennarah, pesquisador da Egyptian Initiative for Personal Rights, uma organização de defesa dos direitos humanos.
Antes das primeiras revoltas de janeiro de 2011, a polícia era o foco do ódio da maioria dos egípcios que haviam feito do fim dos abusos policiais a principal das exigências da revolução. Derrotados nessa época pelos manifestantes, os policiais sumiram do espaço público durante alguns meses, deixando a falta de segurança se instalar no país.
No entanto, foi uma retirada de fachada. O Ministério do Interior, que era um Estado dentro de um Estado durante o governo de Mubarak, resistiu bem aos sobressaltos revolucionários e não se preocupou com a Irmandade Muçulmana no poder em 2012 e menos ainda com os militares de hoje. O ex-oficial A., que saiu da academia de polícia em 1990, hoje é magistrado e constata a exorbitância de poder da polícia que há em todos os níveis da sociedade. "O cotidiano de um policial é a lei do mais forte, a humilhação do mais fraco, o privilégio permanente, a corrupção endêmica", ele descreve. "Seria necessário no mínimo uma reforma profunda da formação dos policiais da Amn al-Markazi, a polícia central. Eles estão na parte mais baixa da escala, sem educação, formados em violência em meio à violência. A sociedade civil vem tentando desde a revolução iniciar uma reforma do Ministério do Interior. Sem sucesso."
"No fundo nada mudou", lamenta Karim Ennarah. "Está até pior. O uso de tortura é comum, o número de mortos em cárcere aumentou, assim como o uso de violência letal, que vem se banalizando no dia a dia." Com exceção dos defensores dos direitos humanos, pouquíssimas vozes se levantam para pedir satisfações à polícia. "O Estado nomeou uma comissão de inquérito para esclarecer as mortes deste verão. Ficou no papel. Não existe nenhuma vontade política de combater a impunidade da polícia. Aliás, isso nunca existiu, nem antes, nem depois da revolução", ressalta o pesquisador.
Apesar dos 1.300 mortos deste verão entre os islamitas, há somente um processo em andamento, o de quatro oficiais acusados de "homicídio culposo" depois de terem atirado gás lacrimogêneo dentro de um furgão que transportava 37 detentos. Todos morreram por asfixia. "Nossa briga neste momento é para conseguir a acusação de "homicídio doloso", diz Karim Ennarah.
Desde fevereiro de 2011, pouco mais de cem policiais foram levados aos tribunais. A esmagadora maioria deles foi inocentada. Somente alguns poucos foram considerados culpados. É o caso do tenente Mahmoud al-Shennawy, condenado a três anos de prisão sem condicional por ter mirado nos olhos de vários manifestantes. Foi em 2011, perto da Praça Tahrir, durante os confrontos da rua Mohamed-Mahmoud, que resultaram em 47 mortos entre os manifestantes, "mártires" que caíram pelos tiros da polícia e que serão lembrados pelos revolucionários na terça-feira (19).
Mohaned não se reivindica como tal. Bem pelo contrário. Esse jovem de 21 anos nunca participou de nenhuma manifestação. Morador do centro de Abdine, a dois passos do Ministério do Interior, ele se descreve como um "cidadão honesto", preocupado em proteger a ordem e seu bairro. Durante os acontecimentos de julho, ele fez parte dos comitês populares, grupos de homens armados em graus variados que se juntavam espontaneamente para garantir a segurança em caso de crise e que, depois de deterem os tumultuadores, os entregavam nas mãos da polícia.
Durante os confrontos da rua Mohamed-Mahmoud, Mohaned esteve do lado das forças de segurança para deter os manifestantes. Mas de algumas semanas para cá ele passou a achar que a polícia está indo longe demais. Repetidas humilhações nos postos de verificação, averiguações abusivas de identidade e a seguinte traição: "Eles prenderam um de meus amigos, sendo que ele os estava ajudando. Não entendi", ele diz, desiludido. "Por isso vou participar de uma manifestação pela primeira vez na minha vida e será contra a polícia."
Reportagem de Marion Guenard, para o Le Monde, reproduzida no UOL. Tradutor: Lana Lim
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