sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Obstáculos para a paz na Colômbia

A Colômbia acaba de dar um passo gigantesco na direção da paz. Ou não? Esse parece um caso clássico de garrafa meio cheia ou meio vazia, versão a escolher segundo preferências.
Na semana passada as Farc e o governo colombiano entraram em acordo sobre o segundo ponto das conversações de paz em Havana, sobre a incorporação à vida política dos insurretos, em plena legalidade. Os negociadores de Bogotá e o presidente Juan Manuel Santos, assim como a guerrilha, veem à força a garrafa meio cheia, enquanto o terceiro na discórdia, o ex-presidente Uribe, que considera o trato de Havana alta traição, provavelmente teme que também esteja meio cheia, mas crê que está meio vazia; que é um engano ao mesmo tempo das Farc, que não querem realmente a paz, e do governo, que engana a todos os colombianos para que Santos seja reeleito em junho de 2014.
Tanto o Estado como a insurreição precisavam de uma boa notícia que levantasse o moral da cidadania, na qual crescia a ameaça do uribismo diante das eleições legislativas de maio próximo: o governo, porque joga tudo na negociação para acabar com uma guerra que já dura mais de meio século; e os guerrilheiros, porque um Congresso cheio de uribistas e, ainda pior, um presidente clone de Uribe --que por lei não pode ser candidato-- e entregue vocacionalmente à guerra seria para eles o pior futuro imaginável.
E a solução –temporária-- era entrar em acordo nos termos mais abstratos possíveis, que um povo de gramáticos como o colombiano, que maneja a linguagem com virtuosismo próximo do ofuscamento, desse com um projeto, como escreve a revista "Semana", "diante do qual é quase impossível estar em desacordo".
Seria preciso redigir um plano de implementação tão ulterior que hoje ninguém sabe como fazê-lo. As Farc pediam oito assentos nas câmaras e uma grande maioria da opinião pública colombiana exigia que pelo menos os responsáveis por crimes atrozes fossem para a prisão. E o acordo fala em "curules" --assentos em colombiano contemporâneo-- em áreas especialmente devastadas pela guerrilha, mas insistindo em que será preciso disputar nas urnas com outros candidatos que concorrem; estende-se sobre uma ventilação do sistema que consiste em dar facilidades para que os movimentos sociais se transformem em partidos, como pedia a guerrilha, e nasçam novas formações políticas, para o que se rebaixaria o limite de votos (3%) para ter acesso às câmaras. Mas sem especificar com que lei eleitoral, e tudo isso finalmente seria coroado por um estatuto da oposição que deveria dar plenas garantias de segurança --ninguém sabe como-- sobre a vida e a prática da dissidência.
Parece sumamente provável que as negociações ainda durem quando for preciso votar nas legislativas de 25 de maio e que, por isso, guerra e paz sejam protagonistas no debate eleitoral. E nessa tessitura o interesse comum de governo e guerrilha faz pensar que possam vir de Havana notícias animadoras sobre o rumo da negociação. No final de maio já se acordou uma reforma agrária que transformaria a posse da terra, dando ocupação e trabalho para milhões de despojados, deslocados e braços ociosos; mas, depois do anúncio do último dia 6 de novembro sobre participação política, ainda restam quatro pontos por elucidar: 1) erradicação do narcotráfico, do qual as Farc são protetoras de plantações e receptoras do pedágio da coca; 2) fim das hostilidades; 3) reparação às vítimas, o que exigiria paralelamente que a administração da justiça fosse igual para todos; e 4) ratificação em referendo desses acordos. Como arremate, um corolário indispensável: nada será assinado até que tudo seja assinado.
Mas a ironia de todo o processo é que essas reformas deveriam ter sido realizadas há décadas pelo bem da democracia, sem necessidade de que mediasse qualquer insurreição. E unicamente essa nova Colômbia imaginada poderia tornar realidade projetos tão esplêndidos. Se esse país existisse, as Farc nunca teriam encontrado base material para a guerra, e nada menos que sua refundação é o que se espera do estabelecimento da paz.
É assim que a garrafa não está meio cheia ou meio vazia, e sim, ao mesmo tempo, meio cheia e meio vazia; cheia porque as partes querem sinceramente acabar com o conflito; e vazia porque é um verdadeiro mistério a maneira de alcançá-lo.

Reprotagem de M. A. Bastenier, para o El País, reproduzida no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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